Title: Album chulo-gaiato ou collecção de receitas para fazer rir
Author: Anonymous
Release date: May 4, 2007 [eBook #21289]
Language: Portuguese
Original publication: Bruxelles: Typ. Bruyllant-Cristophe et C^ie Rue Blaes, 31, 1862
Credits: Produced by Pedro Saborano. Para comentários à transcrição
visite http://pt-scriba.blogspot.com (This book was
produced from scanned images of public domain material
from the Google Print project.)
BRUXELLES
TYP. BRUYLANT-CRISTOPHE ET C^ie
Rue Blaes, 31
1862
«O mundo acabar Penso que vai, Ai ai! ai ai! Vou apitar! Tão rodeado Estou de diabos Com unhas e rabos D'assarapantar! Raios, coriscos, Bombas e traques E mais petiscos A rabiar E a estoirar Em torno de mim! Zás catrapaz! Se Deus piedade Não tem do frade, Grande caurim Me vai pregar Dom Satanaz!»
Todo a tremer, Santo Antonio Assim se poz a gritar Quando o travesso demonio Em pessoa o foi tentar.
Sae do inferno Troça bravia De quantos demos Por lá havia. Em vassouras Vêem montados, Com tesouras E machados Sobraçados; Bem armados D'escupetas, Estes coçam as carécas, Aquelles fazem caretas, Tocando grandes trombetas, Cavaquinhos e rebecas. Vem um tocando fagote, E outro com um chicote Já começa a sacudir O habito empoeirado Do alegre frei Antonio; Mas o frade atomatado Logo se põe a fugir De tão chibante demonio, Correndo conforme póde E gritando todo afflicto: «Aqui d'el-rei, quem m'acode! Ó da guarda! Eu apito!»
Dous feios diabos Mui cabelludos, Cornos agudos E longos rabos, Entram na cella Do bom santinho; Vão-lhe á panella Que ao lume tinha C'uma gallinha Paio e toucinho, Tiram-lhe a tampa, Comem-lhe tudo, Deitam-lhe trampa; Vão-lhe á borracha Que tem o vinho N'um esconderijo; Bebem-lhe tudo Deitam-lhe mijo. Á tal cambada Não escapa nada Tudo se acha Quebra e estraga Mija e caga.
Uma pequena bonita Tambem lh'entra na caverna Toda lépida e catita, E começa a levantar O ballão, e linda perna Logo se põe a mostrar... «Ai Jesus! diz Santo Antonio Vai-te d'aqui ó demonio Não me estejas a tentar...»
«Façam dançar Contradançar Pular Cantar Saltar Esse santinho» Já diz gritando Um diabinho Que está tocando A desgarrada N'um cavaquinho.
Eis toda aquella Endiabrada Troça bravia O bom do Santo, Que já n'um canto Se escondia, Vai buscar. E a tocar N'uma panella Com a tranca Da janella, N'uma banca O faz dançar Pular Saltar Cantar.
Até Plutão, o rei demonio, Quiz assistir á funcção, Pois quer ver se frei Antonio Se livra da tentação; E p'ro que der e vier Comsigo traz a mulher.
O Santo todo encolhido No meio d'aquella canalha Cada vez mais se atrapalha; Um demo mais atrevido, Dá-lhe muita bordoada, E outro feito cupido Vem por traz com uma setta E no coração lh'a espéta... A nada se move o frade Modelo de castidade!!
Vendo porém Que fim não tem A seringação Fórma tenção De s'esconder; E mui callado Vai-se a metter Dentro da cama; Mas lá recúa Todo espantado Pois uma dama Toda janota, (Ainda que nua, Mesmo em pelóta) Acha deitada Em seu lugar... A concubina Com uns olhinhos Muito espertinhos A scintillar Já o fulmina E quer tentar...
A tal menina É mesmo boa; Se Prosepina É em pessoa!
Santo Antonio atrapalhado Contempla incendiado Aquella erotica scena, E em frente da belleza De coisas que nunca viu... Ao poder da natureza, Com bem custo resistiu... Mas quando quasi tentado Com os olhos da pequena, Vai a cair na esparrella De saltar a cima della, Lembra-lhe Deus derepente Que vai cair em peccado, Fica todo aforçurado E como que inspirado, Vai buscar muito apressado D'agua benta seis canadas E nos demos imponente Ferra boas hysopadas. Estoira que nem castanhas Toda aquella diabada, Cada demo dá um tiro Que nem uma peça raiada; E fugindo a bom fugir Tudo vai em debandada, Santo Antonio de contente Dá tamanha gargalhada Que até no traseiro sente A fralda toda cagada.
«Se não vou buscar Logo tão depressa A tal agua benta, De certo me tenta Aquella travêssa... Olhem que é ladina, Mesmo de tentar, A tal Prosepina! Mal empregado pexão Para o dente do Plutão!»
Lamenta tão pesaroso A má sorte da pequena O famoso Santo Antonio, Que parece já ter pena De se mostrar tão teimoso Em resistir ao demonio...
Era uma vez um marido, anno da graça 1861, mas um marido verdadeiro modelo de todos os maridos. Chamava-se o sr. Carneiro; seu hymeneu fôra devidamente legalisado e recebera as bençãos da egreja. Era pois esposo, tanto quanto se póde ser, legal, social, religiosa, e christãmente, da amavel, bonita e joven Amelia, a quem se ligára com o intuito de perpetuar a raça dos Carneiros, fim este que infelizmente ainda não alcançára, apesar da lua de mel ter já o seu anno e meio, e este gasto nas fadigas e diligencias de que um marido póde dispôr para multiplicar a sua raça. O sr. Carneiro emagrecia a olhos vistos, e estafava-se em vão. O nosso homem era um modelo de bondade e simplicidade; era bom e affavel e manso, não como Carneiro que era, mas como um borrego; nunca fizera mal a pessoa alguma, e ninguem tambem no mundo podia dizer a mais pequena coisa em seu desabono. Com taes e quejandos titulos á estima de seus concidadãos, o sr. Carneiro tinha conseguido tornar-se um dos maridos mais felizes do seu bairro, que era o Alto.
Mas o homem nunca está satisfeito sobre a face da terra: o sr. Carneiro era homem, e por conseguinte tinha aspirações. O seu ideal era a vida bucolica, amava a chicoria e o feno, adorava os rabanetes, e sonhava pastoras e zagallos; não podia viver na capital. Suspirava constantemente pelo chocalho campestre, pelas felicidades ruraes, e a sua paixão pelo campo não podia achar lenitivo nos esgalhos do Rocio, nas ervas do Passeio Publico, nas couves da praça da Figueira.
Por fim os seus sonhos tiveram uma realidade, comprou uma quinta na aldea de Pae Pires, e transferiu para alli os seus penates. Alli, n'uma habitação modesta, no declive de um serro, vendo ao longe o Tejo e as suas faluas, passava o sr. Carneiro uma vida santa, junto de madama Carneira, como elle lhe chamava, cultivando as suas cebollas, regando a sua horta, capando o seu meloal.
Ali fazia admirar á sua cara metade a grossura dos seus pepinos ou a côr rubicunda dos seus tomates.
--Vês, menina, lhe dizia, como está lindo este meu pepino; olha para esta perfeição, parece que d'hontem para hoje cresceu meio palmo. Repara-me para a belleza d'estes tomates! que côr e que tamanho...
--É verdade, cada dia estão mais vermelhos...
--E este melão?
--Cresce a olhos vistos, como já está redondinho!
--Ah! filha! não é como tu, segue a lei da naturesa; tudo cresce e se arredonda cá n'este mundo... só tu, meu anjinho... apesar das minhas diligencias, persistes em não arredondar essa...
--Que bonitas estão as batatas.
--Eu sempre as tive boas.
--E que bellos grãos de bico!
--Os grãos são o meu forte...
--Como a vinha vae arrebentando...
--Tudo arrebenta e produz... só tu não me produzes nada... (dá um profundo suspiro).
--Que animal é aquelle que está bebendo além, no rio?
--Julgo que é um burro, queridinha.
--Engana-se, é boi, senhor Carneiro.
--Boi, boi! será... mas não lhe vejo as armas...
--Jesus! que bicho tão feio que eu ia pisando! Mate-me este bicho, sr. Carneiro... que nojo!
--Ah! ah! ah! Ora não ha uma tolinha assim! um caracol, pois mette-te medo um caracol?
--Olhe, só os paus que elle tem; t'arrenego! não se veem senão animaes bicorneos por estes sitios... eu que sempre embirrei com estes bichos!
--Não te zanques commigo, menina... isto é o animal mais innocente que eu conheço...
--Que quer? não está mais na minha mão; diga lá o que disser, n'este ponto não posso vencer a minha repugnancia...
(O marido toma o caracol entre dois dedos.)
--Olha vês, não faz mal. Caracol, caracol, põe os corninhos ao sol...
--Deite isso fóra... que me ataca os nervos...
--Socega, filha, ja deito...
--Esteja quieto! tire isso para lá!
--Então não vês que já o não tenho na mão! Pobre amorsinho, que medo que teve... mas agora dá um beijinho... (quer abraçal-a.)
--Vá primeiro lavar essas mãos; que nojo, não sei o que me parece a tal reima dos caracoes...
--Vamos limpal-as aqui na relva... senta-te aqui ao meu lado...
--Era o que faltava! para me escangalhar o balão.
--Ah! trazes balão? (vae para apalpar.)
--Esteja quieto que me faz cocegas!
--Tem a saia cheia de nodoas verdes...
--São ervas pisadas.
--E n'um sitio esquisito!
--Não sei quem me poz n'este estado...
--Eu decerto não fui. Seria hontem na quinta do Alfeite, quando te perdeste no labyrintho...
Ah! sim, quando o primo Montenegro me lá foi buscar... que bom rapaz que é este nosso primo e hospede... se não fosse elle ainda estava a estas horas em procura da saída...
--E como elle soube entrar e saír com a mesma facilidade... como elle sabe d'aquelles torcicolos...
--É porque sabe desenho.
--Mas sentemo-nos, a erva está tão fresca. Com o calor que está ha de ser um prazer... pódes até levantar as saias para apanhar mais fresco...
--Obrigada, fresca estou eu...
--Que bella noite, que ar tão puro! como é bom ver as estrellas, assim, ao pé d'uma linda rapariga como tu!
--Digo-lhe que tenho frio, estou fria que nem uma pedra...
--Pois eu estou quente que nem uma braza...
--É feliz.
--Podia sel-o... se quizesse... não me resista... ora está agora com medo do seu Carneiro... eu sou sempre o mesmo, aqui e em casa...
--Esteja quieto, senhor, agora aqui no meio da rua...
--Estamos em nossa casa, não offendemos a moral publica...
--Faz luar como de dia...
--Melhor se vê o que se faz...
--São coisas que não gosto de fazer contra vontade!
--Tambem, não sei quando tem vontade!
--Olhe que se espeta nos arcos do balão.
--Maldita moda que cá havia de vir!
--Bem sabe que sou delicada... olhe que me ataca os nervos a mais pequena coisa...
--Pequena, pequena! pois esta não é das maiores...
--Pelo que vejo quer-me ver doente... já estou com uns arripios...
--Olha, embrulha-te no meu paletot... (aproxima-se ainda mais da mulher) apertemo-nos bem um contra o outro... assim, assim... vês? aposto que d'aqui a cinco minutos estás a suar em bica...
--Jesus! que scena! olha se algum visinho vê... que quadro vivo este!
--Estou vendo que o não fazem todos! (Amelia geme e suspira, o que faz suspender Carneiro.) Mas emfim, se estás incommodada...
--Incommodada não é... mas... estas coisas tocam-me sempre os nervos...
--É a peior coisa que ha, é uma mulher nervosa...
--Sinto não sei o que, cá por dentro...
--Isso é agora... o que faria se...
--Sinto um peso...
--Mas em que sitio? (Áparte.) Se fosse na barriga...
--Por todo o corpo.
--Elle em alguma parte ha de ser... no peito, na cabeça, no ventre?
--É ao pé do ventre... não me sinto bem, parece-me que vou desmaiar...
--Louvado seja Deus! és muito delicada... sempre perdes as forças nestas occasiões!
--Estou como que penetrada por um raio...
--Então vamos para casa.
--Não, eu vou, fica tu.
--Vamos ambos para a cama.
--Vou-me deitar.
--Deixa-me ir comsigo?
--Eu não tenho medo, fique tomando o fresco...
--Mas eu queria-te ir aquecer.
--Eu aqueço bem sem o seu auxilio...
--Isso é birra... eu como marido tenho tambem os meus direitos...
--Mas eu estou doente... sinto agora um calor...
--É febre talvez...
--Por isso mesmo não se chegue para mim...
--Vou chamar o medico.
--Não é preciso. O que elle me receitava, é o que eu vou fazer... dormir um somno longe de meu marido... ámanha tem-me sã como um pero...
--Queira Deus!
--Isto passa em me deixando descançar.
--Então não queres que vá ao menos ajudar-te a despir?
--Nada, socego é o que eu preciso.
--Mas...
--É verdade não me disse hontem que, queria hoje observar o cometa?
--Fazia até tenção de t'o mostrar...
--Vel-o-hei em sonhos.
--Ámanhã será em realidade... não é assim meu amor?
--Eu faço ideia; é uma coisa muito comprida.
--Qual historia! verás que não é tão grande como julgas... e então visto pelo meu excellente telescopio! Has de ver-lhe toda a cabelleira...
--Como está tolo com o seu telescopio... tambem o primo Montenegro tem um que não é dos peores...
--Aposto que não tem a grossura do meu!
--Bom, por hoje basta...
--Paciencia, não ha remedio: vae-te deitar com Deus, já que não póde ser comigo... Se tiveres precisão de alguma coisa de noite, chama-me... bem sabes como sempre sou prompto em te prestar os meus serviços, seja a que hora da noite fôr...
--Prompto até de mais! ao menor movimento que faço, elle ahi está em cima de mim, a atenazar-me... Mas bem sabe o mal que me faz quando me acorda de noite; é ataque de nervos certo no dia seguinte, e fico mole, amarella, com olheiras...
--Bem, bem, vá descançada que lhe não interromperei o seu somno.
--Promette-m'o?
--Juro-o.
--Bonito! então boas noites.
--Nem um beijinho me dá!
--Dou, mas com a condição de cumprir o seu juramento.
--Qual.
--O de não entrar no meu quarto esta noite.
--Está dito.
--Então dê lá o beijo. (Dá-lhe a face a beijar, Carneiro beija-lh'a sofregamente, apertando-lhe ao mesmo tempo a cintura com avidez.)
--Jesus! que cintura tão elastica!
--Esteja quieto, não se adiante! o que me pediu foi um beijo...
Valha-te Deus, menina! Vae-te lançar nos braços de Morpheu, e pede-lhe uma boa dose de sumo de dormideiras.
--Adeus meu Carneirinho.
--Adeus minha Carneirinha... Olha, deita-te para o lado direito... não te ponhas de costas, bem sabes que te faz mal...
--Bem me lembro de hontem á noite...
--É verdade, quando gemeste tão significativamente, que eu julguei estarias com algum pesadelo...
--Ora! se eu parecia que estava esborrachada... nem respirar podia... estava a sonhar que o tinha em cima de mim...
--E gritava de tal maneira, que eu no quarto contiguo, ouvi e fui acudir... mas felizmente o nosso primo e hospede, Montenegro, já tinha chegado antes de mim...
--Que bom primo que é aquelle rapaz!
--Se o ceu nos désse um filho, estou certo que o estimava...
--Havia de amal-o como se fosse delle proprio...
--Ha-de ser o padrinho do nosso primeiro néné...
--Isso tem tempo... ainda eu...
--Louvado seja Deus! muito me tem custado a fazer o tal herdeiro...
--Agora tenho esperanças que brevemente...
--Sim? oh grande Deus! será possivel?
--Bom, deixe-me ir deitar...
--Vae filha, e dorme bem, eu vou ver se bispo o cometa.
E nisto, depois de acompanhar sua mulher á porta do quarto, voltou logo para o terrado, afim de melhor observar a passagem do astro cabelludo.
Madama Carneira entrou no quarto e ahi encontrou o primo Montenegro, que a esperava para lhe mostrar tambem o cometa com o seu telescopio...
Alguns mezes depois madama Carneira brindava seu marido com o esperado e desejado herdeiro, que tantas fadigas lhe custára...
Que grande franciscanda Vai fazer com frei Bento Frei João e frei Monteiro P'ra longe do convento?
Bom alforge levam cheio, Recheiado de finorio Presunto, e grosso paio, Furtados no refeitorio.
Frei Bento vai ajoujado Com tremebunda borracha; Chega o rancho a uma tasca Para a horta lá se encaixa.
Frei João despindo o habito E de manga arregaçada Tempra e meche aforçurado Um alguidar de salada.
Frei Monteiro pisca o olho Á moça, que é rapariga, E frei Bento sem c'rimonia Um chouriço já mastiga.
Voam paios e presuntos Tal é a gula e a gana, Torna-se logo a borracha Em famosa carraspana.
Depois alegres cantando Lá se vão abarrotados Ao convento recolhendo Pelos muros encostados.
Chama a campa ao refeitorio, Pois são horas de ceiar, A fradalhada apparece Mas não acha que trincar.
--«Que pouca vergonha é esta?» Grita logo frei Martinho, «Que é dos nossos grossos paios, O presunto e mais o vinho?»
--«Fomos roubados», responde O padre refeitoreiro, «Tudo lambeu frei João Com frei Bento e frei Monteiro!»
--«Ah! bebedos! ah glotões! Ah! cambada de marotos!...» Berra o padre provincial Dando cinco ou seis arrotos.
--«Hão de caro pagal-o!» Brada em peso o convento, «Hão de levar bons açoites Frei Monteiro e frei Bento;
«E tambem Dom frei João Ha de leval-o o diabo! Tudo quanto nos comeram Ha de lhes saír do rabo!»
Todos logo bem armados De sandalias gigantescas Tratam de pôr á vela As seis nadegas fradescas.
E depois sem mais demora Pé atraz e furibundos Tocam todas as matinas Nos traseiros rubicundos.
Eis no meio da batalha, Quando tudo em confusão 'Stá batendo a bom bater, Dá um peido frei João!
Mas não é peido de medo É um peido tremobundo, Peido de frade, que é O maior que ha neste mundo.
Se o famoso Garibaldi Um tiro destes lh'escapa Lá se vão com mil diabos Os exercitos do Papa.
Foge tudo com o estoiro E ainda mais com o cheiro, Aquelles que mais gritaram São os que fogem primeiro.
Frei João põe em derrota O resto da fradalhada, Dizendo-lhe que ainda tem A peça bem carregada...
O incauto saloio, o venal gallego Espreitas esfaimado atraz da esquina, Armado de catana serpentina Vermelho como um paio de Lamego.
Tão ufano estás com teu sujo emprego, Que pareces uma ave de rapina, Prendendo a trouxe mocho quem urina Com a velha chibança d'um morcêgo[1].
Não sejas papelão, pesa as razões, Olha que se a fortuna não sorri, Falta o mijo e adeus os dez tostões!
Por isso vou um conselho dar-te aqui: É que respeites todos os mijões Em quanto mijando forem p'ra ti.
[1] Antigo soldado da policia.
Quer ser guarda de commuas Certo João Raphael, Mas fica a chuchar no dedo Visto não ser bacharel.
Hontem estava em minha casa, E por signal a dormir, Á porta sinto bater, Levantei-me e fui abrir.
Era o doutor Gatazio, Bacharel e fidalgote, --Vai torta! digo comigo, Vem ferrar-me algum calote!
Eis entra com ar risonho E sentando-se ao meu lado, «Amigo, diz, dou-te parte Que estou feito deputado.»
A honra de Eliza bella Atacam quinze soldados, Vence um a cidadella Quatorze são derrotados.
Como a noz foi a mulher Neste mundo fabricada, Não se conhece que é podre Senão depois de rachada.
Aqui jaz dormindo a sesta Um bacharel formado, Foi barbeiro, deputado, Caloteiro e grande besta.
Dona Justina de Sousa Nesta campa aqui repousa, Foi no mundo afortunada Visto que até morrer Passou sempre por honrada Tendo a dita de o não ser...
Das miserias deste mundo Se compadece Maria, E cheia de dó profundo Seis ditosos faz por dia...
A viuva d'um entrevado Já novo marido tomar Queria, passados dois mezes Do velho marido enterrar.
É cedo, lhe diz um visinho, Homem de agudo pensar, Sem estar uns dez mezes viuva Assento não deve casar.
Essa é boa! diz a matrona, Então não se devem contar Oito mezes que estuporado Na cama elle esteve a penar?
Deus disse a Pedro «que é das minhas ovelhas?» e Pedro respondeu «eu não sei d'ellas.»
Que bondade, que prudencia, que sabedoria, meus queridos irmãos, não devemos nós admirar em Pedro; que, mesmo no momento em que seu Divino Mestre lhe pergunta, onde estão as minhas ovelhas; responde com toda a delicadeza que não sabe d'ellas, porque essas ovelhas não estavam em estado de apparecerem perante o seu Senhor. Asneiras, meus caros ouvintes, eu não tinha esse genio, não sou mentiroso nem falso, não tenho papas na lingua, e se o Mestre me pergutasse, como a Pedro, onde estão as minhas ovelhas, eu logo lhe dizia sem mais cerimonia, foram pastar para casa do diabo, Senhor.
E com effeito, se Elle tivesse vindo hontem á noite perguntar-me pelas minhas ovelhas, que lhe havia eu de responder?
Elle que recommenda tanto no seu Evangelho, que as ovelhas se conservem sempre separadas dos competentes bodes, o que teria Elle dito se visse essas mesmas ovelhas misturadas com os bodes, saltando uns em cima dos outros, e a fazerem gaifonas ao seu pastor!
Sim, amados irmãos, foi grande a balburdia, e ao aspecto de tal desordem, o amor pelo meu rebanho animou-se de um santo zelo e ardendo em fogo, corri de cajado na mão, para arrancar as minhas innocentes ovelhas das dentuças dos lobos encarniçados. Mas, ó dôr, ó desdita, ó patifaria! as minhas ricas ovelhinhas já não escutam a minha voz; já penetradas pelos agudos dardos d'aquelles diabos e inundadas pelos seus liquidos venenosos e seductores, estavam indoceis e levadas da breca. O meu cajado, outr'ora tão poderoso, não póde juntar senão um pequeno numero, que trago para o meu curral, onde as hei de ter fechadas e guardadas até que deem os fructos do seu arrependimento.
Mas vós, amados ouvintes, vós, os que fostes fieis, lamentae a desgraça de vossos irmãos; comportae-vos sempre bem, e tomae para exemplo esses grandes santos da antiguidade; menos um tal santo Agostinho, que, segundo dizem, foi um grande pandigo, quando moço, e é por esse motivo que eu nunca vos fallo d'elle.
Fallemos antes d'aquelle santo Chrisologo, que diz que um cura é um sol, e os seus freguezes são uns átomos. Mas eu não sei que diabo de átomos vocês são! não me pagam a congrua, querem que os case de graça e ainda em cima dizem: «ora, estamos nas malvas para o seu padre cura, elle não tem filhos para sustentar!» Vocês sabem la disso? Não sabem que nós outros padres, temos mais trabalho em os esconder, do que vocês em os fazer?...
Mas voltando á vacca fria, pensemos na vossa conversão, se ella é possivel.
Julgo que a melhor maneira de o conseguir é fallando-vos das maroteiras que se fazem na freguezia.
Por exemplo: o João da Canhota, regedor, sae á noite e se ha de vir ao sermão, vai-se metter em casa da Felicia do Frade, e não sae de lá senão de madrugada. Diz que vae tomar chá, mas imaginem os ouvintes que qualidade de chá elle não tomará...
Aqui não ha senão desordem e immoralidade. Immoralidade nos velhos, immoralidade nos moços, immoralidade nos grandes, immoralidade nos pequenos.
Digo immoralidade nos velhos, porque esses velhos, raça damnada de Caim, depois de haverem passado toda a vida... em patuscadas e pandigas, ainda mesmo arrumados ao bordão e de cabeça calva, se vão metter em logares suspeitos! Infames velhos de Suzana! quando é que lhes acabarão as furias carnaes e burriçaes?
Immoralidade nos moços. Os rapazes e as raparigas andam por essas ruas aos beijos e abraços, cantando cantigas indecentes e immoraes; ainda eu hontem ouvi a filha do Thomaz da Horta e o filho do Ignacio do Dente a cantarem o Pirolito que bate que bate! Ora não ha maior pouca vergonha, uns fedelhos que ainda cheiram a coeiros e já sabem o que isto quer dizer!
Immoralidade nos grandes. Esses mariolões e essas mocetonas que vão todos os dias para o matto, sob pretexto de que vão buscar lenha, e por fim fazem por lá couzas do arco da velha... Lenha no forno queriam ellas, malditas!
E quando vão aos figos! O que acontece?
As raparigas sobem para cima das arvores e os mariolões ficam em baixo, a olhar para cima e a dizer: Olha Antonia vejo-te os calcanhares, e as pernas, e os joelhos, e o...
Ponham cobro a este escandal-o, amados irmãos, são couzas que se não devem ver senão em certas occasiões. Eu não pego aos rapazes e ás raparigas que vão ao matto e comam por lá o seu figuinho e mesmo que subam ás figueiras, mas para evitar indecencias, as raparigas fiquem debaixo e os rapazes que lhes vão acima.
Immoralidade nos pequenos. Essa gaiatada miuda que anda todos os dias a correr pelo adro cá da freguezia, onde estão as campas dos nossos antepassados, e que depois vão fazer as suas necessidades mesmo á porta da sachristia. Se não teem respeito pelos mortos, tenham ao menos compaixão pelos vivos, não póde uma pessoa entrar na egreja pela porta de traz sem ficar a bem dizer atolado até o nariz. Já disse ao sr. regedor da freguezia que pozesse mão n'estas cousas, mas por ora continúa a mesma marmelada á porta da sachristia.
Tambem é digno de reprehensão o comportamento d'essas mulheres casadas, que sem nenhuma consideração pelos seus maridos, se levantam do leito conjugal de madrugada, sob pretexto de levarem o gado ao campo, e depois de andarem lá por fóra a laurear, em pernas, recolhem-se para casa frias de neve, e vão-se outra vez metter na cama com os maridos e arripial-os sem piedade! Pobres homens! Se fosse comigo, que coça que ellas não levavam...
Tambem ha certa moça cá na freguezia, que eu trago d'olho ha dias, cá por certa cousa. Eu devia já dizer quem é, mas emfim por hoje limitar-me-hei só a mettel-a na sachristia e arrumar-lhe um lembrete... domingo direi quem é, se não tomar juizo... por agora saibam unicamente que é a unica na freguezia que usa ligas encarnadas... (Pausa, rumor na egreja.)
Domingo, de hoje a oito dias, me alargarei mais sobre os homens, coçarei as mulheres casadas, e caírei em cima das solteiras, se não tomarem juizo d'aqui até lá.
Sendo hoje dia de festa e estando a chuver far-se-ha a procissão só por baixo da egreja, pois eu não estou para apanhar alguma porrada d'agua. Não precisa vir toda a gente a ella, basta que de cada familia venha um varão.
A proposito de procissão, tenho a dizer-vos, amados ouvintes, que os santos cá da freguezia vão estando muito chimfrins. Eu não dava tres vintens por elles. O São Miguel é que está assim mais direitinho, mas o diabo que está por baixo já não tem cornos; pois olhem, não ha na freguezia poucos homens ricos no caso de lh'os darem. O calvario tambem não está mau; todos os instrumentos da paixão estão em bom estado, falta-lhe só o gallo, mas a isso não direi nada, porque ha poucos na freguezia e as gallinhas precisam d'elles: no entanto se houver por ahi alguma dona de casa que tenha dois, que me mande para cá um.
Esta semana não ha jejum, podem comer tudo quanto quizerem e bebam-lhe melhor; ha só a bemaventurada santa rainha, que cura a tinha; é quinta feira, sexta feira ha feira e domingo é a festa de São Simão e São Judas. Tambem, não sei quem foi o diabo do animal que se lembrou de pôr Judas no calendario. Juro-vos, amados ouvintes, que se não fosse domingo não lhe fazia festa, era o que merecia o senhor S. Simão por caír na asneira de se ir metter com similhante tratante.
Mas acabemos com esta maçada.
Ó seu Zé, accenda os sinos e mande tocar as vellas, accenda a agua benta e bote agua no thuribulo... não, enganei-me, faça o contrario de tudo isto.
No entretanto façamos as nossas costumadas e ordinarias orações.
Oremos pela conservação da nossa bemaventurada mãe catholica, apostolica e romana; pela estripação da cisma e abaixamento da hydropisia; oremos tambem pelos ricassos cá da freguezia, a fim de que Deus os mantenha na sua honesta pobreza; pois se fossem mais ricos punham-nos o pé no pescoço. Oremos pelos ausentes e pelos viajantes, afim de se deixarem por lá estar, se estão bem; oremos pelo feliz successo das mulheres pejadas, afim de que Deus lhes faça a mercê de largarem o fructo com a mesma facilidade e doçura com que o comeram. Oremos, n'uma palavra, pela conservação dos bens da terra, como salada, couves, batatas, pepinos e tomates, e pela extincção dos seus males, como formigas, lagartos, ortigas, pulgões e ratazanas... etc.
Depois de longo derriço Casou João com Maria, E passados quatro mezes Tem um filho já Maria. Fallam do caso as visinhas Chora João, ri Maria. «Casei bem tarde, já vejo», Diz o coitado a Maria, «Fui eu que cedo pari» Ao marido diz Maria. O mundo ri de João E acha razão a Maria.
Esta carta, resultado das pesquizas e estudos dos viajantes que teem visitado aquelle reino, é de muita utilidade para aquelles que se quizerem abalançar a emprehender viagem para sítios tão amenos e escabrosos ao mesmo tempo. Eil-a:
O reino do hymeneu, fica a dois graus de longitude e cincoenta e um de latitude, meridiano de Pariz, de sorte que fica justamente sobre a zona dos Paizes Baixos. Não obstante, o seu clima, principalmente o das provincias mais ferteis, é o da zona torrida.
O aspecto do paiz é encantador, visto de longe, mas vae perdendo a belleza á medida que uma pessoa se aproxima das suas costas. A primeira terra que se encontra, logo nas fraldas das suas montanhas, chama-se o porto desejado, o qual dá entrada para o cabo da saciedade, cabo este mui difficil de dobrar, e todos aquelles que emprehendem esta viagem, se espedaçam muitas vezes nos baixios do aborrecimento. Aquelles que escapam ao perigo, ficam por muito tempo em calmaria primeiro que cheguem á bahia da conveniencia mutua.
Os campos aqui apresentam de fóra um aspecto muito insipido. Antes de chegar a este porto é frequente experimentar os violentos safanões dos ventos do ciume e do mau humor. A maior parte dos navegantes, chegados que são a esta ultima bahia, desejam voltar para traz, mas em taes alturas isso é cousa inteiramente impossivel. Abordando á bahia da conveniencia mutua muitos soffrem terriveis furacões e correntes rapidas, que os lançam nos gurgulhões da velhice prematura, onde geralmente os navegantes perdem as agulhas e ficam com agua aberta á mercê das ondas, appellando todos os dias para o favor dos ventos.
Felizes d'aquelles que podem constantemente conservar-se nas alturas da affeição mutua, as quaes ficam entre o porto do desejo e o cabo da saciedade.