A VIAGEM DA INDIA
Poemeto em dois cantos
por
FERNANDES COSTA
A VIAGEM DA INDIA
JUSTIFICAÇÃO DA TIRAGEM
3 exemplares em papel de linho branco nacional
1:000 em papel de algodão de 1.ª qualidade
quarto centenario do
descobrimento da india
contribuições
da
sociedade de geographia de lisboa
A VIAGEM DA INDIA
Poemeto em dois cantos
por
FERNANDES COSTA
LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
1896
A
Luciano
Cordeiro
o iniciador
e incançavel
propugnador do moderno movimento
geographico portuguez
CANTO PRIMEIRO
A IDA
CANTO PRIMEIRO
A IDA
I
Onde vae, Tejo em fóra, a
lusa armada?..
Naus altivas, possantes caravelas!
Vae em busca da India enfeitiçada,
Sobre as ondas azues, pandas as vélas.
II
E quem é, que essa gente
assim conduz
A cumprir o prodigio nunca visto?
Accesa levam n'alma a viva luz
Da fé, e nos pendões a cruz de Christo!
[10]
III
Mas já vão
longe as quatro
embarcações...
Parecem quatro pombas a voar,
Em demanda de ignotas vastidões,
Onde vão novo ninho edificar.
IV
Romeiros da romagem longa e vaga,
Que nova Terra Santa, ao longe,
alveja?
Deus vos leve, romeiros, Deus vos traga,
E a vossa obra, eterna e benta seja!
V
Mas nas ondas o sol vae
descaíndo,
E quando o manto placido e sidereo
Da noite, o céu cobriu e o mar infindo...
Perdeu-se a lusa armada no mysterio.
VI
Nenhuns olhos humanos a seguiam;
Espantadas, porém, da audaz
empreza,
No céu alto, as estrellas repetiam:
«Vae ali a fortuna portugueza!»
VII
E aquella, que apontando sempre o
norte,
Sobre a cupula movel, firme
está,
Dizia: «Raça ousada! raça forte!
Dentro em pouco, outra irmã vos
guiará!»
[11]
VIII
E, dentro em pouco, respondendo ao voto
Da irmã polar...
lá vem surgindo a chamma,
Sobre as ondas ignotas, astro ignoto,
A divina Akher-Nahr, fanal do Gama!
IX
Porém, agora, que mysterio summo!..
Já sobre o Carro
se
condensa um véu;
O mar o engole, quando ao alto, a prumo,
Anda o Centauro percorrendo o
céu!
X
E, emquanto a Hydra
vem
subindo, enorme,
Não baixa já,
mas demandando a altura,
Longe o Dragão, retorso e
desconforme,
Busca do mar a fria sepultura.
XI
Depois, na vaga, a
Cassiopêa tomba,
E nascem estrellas, que ninguem
conhece!
Lá vem do Sul, a remontar, a
Pomba,
Quando ao norte, Cepheu desapparece.
XII
Da armada a gente, a vista leva immersa,
Com pasmo natural, que não
surprende,
N'aquella nova cúpula diversa,
Que sobre mar e terra a noite extende.
[12]
XIII
Ergue-se, agora, da longinqua esphera,
―Ó Cruz
maravilhosa e
deslumbrante!―
O symbolo christão, que n'alma impera,
Não vista, mas cantada pelo Dante!
XIV
E ao passo que ante os olhos vão surgindo
Os segredos, que guarda a
immensidão,
Dir-se-ía, que da treva está saíndo,
Á voz de Deus, segunda creação!
XV
E por todo o estrellado firmamento,
De cada estrella, esta pergunta
cáe:
«Quem viu tal aventura, tal portento?
D'onde vem esta gente, e aonde vae?»
XVI
No emtanto, os rudes peitos temerarios,
Dentro das naves, perguntando
vão:
«Astros novos, propicios ou contrarios,
Estes astros do céu, que estrellas
são?»
XVII
Onde vae, mar em fóra, a lusa armada?..
Vae em busca do eterno vellocino.
Olhos postos na cruz e a mão na espada,
Leva em si Portugal e o seu destino.
[13]
XVIII
O destino de um povo! Assim tranquillo,
Sob a luz das estrellas scintillando,
De Moisés o destino andou boiando,
N'uma cesta de vime, sobre o Nilo!
XIX
Na treva, ruge o mar sinistramente;
Nas almas pésa a noite...
Muito embora!..
Avançam para o fulgido Nascente,
Hão de ver, no seu throno, a rosea Aurora!
XX
Vae ali cada um cumprir seu fado,
E Deus fará, que seja bem
cumprido;
Em vão ha de rugir o mar irado,
Em vão clamar o céu desconhecido.
XXI
Por todos foi jurado,―e cada um,―
Levar a cabo um feito, ao
pé do qual,
Não houvesse, em annaes de povo algum,
Memoria d'outro feito assim igual.
XXII
Hão de tudo tentar que for preciso...
Descer á eterna sombra do
profundo,
Escalar os humbraes do paraiso,
Transpôr os proprios términos do mundo!
[14]
XXIII
Mal dá logar a crença, que os
inflamma,
Ás visões, que o
pavor, na mente gera;
Em frente, muito em frente, a India os chama...
Atraz, já muito atraz, a patria espera!
XXIV
Vozes mil o silencio perturbando,
Da treva densa, em côro,
vão subindo!
Serão monstros do mar, que estão bramando?..
Ou d'Africa os leões, que estão rugindo?..
XXV
Mas nenhum peito, a vozes taes se atterra;
A armada segue, pelo mar em
fóra...
É Portugal, que vae dizendo á terra:
«É tempo já de despertar
agora!»
XXVI
As ondas rugem; noite e dia, atroam;
Batem, com furia, nos bojudos cascos;
D'azas abertas, para os seus penhascos,
Corvos marinhos, crocitando voam.
XXVII
Dir-se-íam bandos de crueis harpyas,
No seu dominio temeroso e vasto,
Aves d'agoiro, a reclamar, sombrias,
Aquellas presas para o seu repasto.
[15]
XXVIII
Depois a calma, a infinda quietação!
Negro aviso de morte ingloria e lenta,
N'um mar de chumbo, sepulchral mansão,
Que obriga a ter saudades da tormenta!
XXIX
N'isto, uma nuvem, caprichoso fumo,
O azul remoto levemente empana;
Ligeira avança, e traz do norte o rumo...
É bom prenuncio... mas as naus engana!
XXX
Que extranha nuvem, é, porém,
aquella?..
Corta a direito, consciente e viva!..
Trará no bojo horrisona procella?
Ou sôpro brando á calmaria estiva?
XXXI
Pasmam de vel-a os arduos navegantes!
Parece palpitar! que vida tem!..
São hostes mil de pombos emigrantes,
Que as terras vão buscar d'onde elles vêm!
XXXII
E os pombos, a quem tarda o quente ninho,
Vendo os mastros da armada festival,
Julgam ser os pinhaes de Portugal
Que foram recebel-os ao caminho!
[16]
XXXIII
E n'elles pousam confiadamente...
Pelas enxarcias, nos ovens, nas
pontes,
São cachos vivos, são tropeis, são
montes...
Que as naus adornam sob o peso ingente!
XXXIV
Descancem ledos, nos humbraes sagrados!..
Ninguem lhes toca, n'um respeito mudo.
Destinos altos! vão assim trocados!
É Deus que o manda, Deus assim fez tudo!
XXXV
Mas quando, emfim, das naves se levanta
Aquella nuvem, que escurece o dia,
―Por que a levem á patria sacrosanta,―
Cada um, sua prece lhe confia!
XXXVI
Que traço argenteo, as ondas illumina?
Uma estrada de luz!.. Talvez a esteira
Deixada pela espuma crystallina,
Da nau do Dias, que as cortou primeira.
XXXVII
Sempre ao Sul, sempre ao Sul, a estrada avança!
De cada lado d'ella, o eterno escuro!
Extendeu-a no mar a mão da Esperança,
Na direcção da Gloria e do Futuro!
[17]
XXXVIII
Sempre ao Sul, sempre ao Sul, a estrada segue!
Ao termo d'ella, encontra-se o Ideal!
Em demanda do Sonho, que as persegue,
Navegam quatro naves de crystal!..
XXXIX
Partiram todas d'um paiz de fadas,
As quatro envoltas em celeste alvor;
Vão em busca das Ilhas Encantadas,
Onde dorme o divino Encantador!
XL
O caminho é de luz; porém, infindo;
Tem o termo, talvez, na immensidade!
Quem vae as quatro naves dirigindo?..
Vae o genio immortal da humanidade!
XLI
Anjo indómito, prompto a combater.
Curvado sempre ao seu destino mudo!
Vae a Fé, vae a Força, vae o Querer,
A Vontade, que emfim consegue tudo.
XLII
Inquebrantavel, vae da Historia a lei,
Essa, que aos povos a
missão traçou;
O saber, o pensar de um grande rei,
E a tradição, que um rei maior deixou.
[18]
XLIII
De noite, recortando o vivo argento,
De dia, sobre as vagas de turqueza,
Lá vae, de Portugal o pensamento,
Ao leme de uma esquadra portugueza!
XLIV
Sempre ao Sul, sempre ao Sul! porém um dia
Hão de as proas dobrar-se
ao Oriente;
Então perdida a esteira, que hoje os guia,
Engano e trevas hão de ter sómente.
XLV
Sempre ao Sul, sempre ao Sul! eia! valor!
Na cerração, que
ao longe se condensa,
Mal sabem, que os aguarda a voz immensa
Do assombrado gigante Adamastor!
XLVI
Vão entrar nas paragens revoltosas,
―Paragens que ainda hoje o homem
teme,―
Onde luctam as ondas alterosas,
E o vento, em turbilhões, contínuo geme.
XLVII
Onde, em furia, tres mares se combatem;
Onde o encontro se faz de tres
correntes;
Portas de inferno, onde Cerbéros latem,
De tripla fauce e triplicados dentes.
[19]
XLVIII
Portas divinas, onde Archanjos luzem,
Sente-o o Gama, no crente
coração;
Portas de luz, que ao exito conduzem;
Portas do Sonho! portas da Visão!
XLIX
Sempre ao Sul! sempre ao Sul! ao largo! em
fóra!..
Mas a armada parece que se perde
Nas liquidas montanhas de um mar verde,
Que as naus afunda, e soffrego as devora!
L
E mais e mais ao Sul se aventuravam,
As gastas equipagens consumidas,
Em tal desesperar, que a Deus bradavam,
As almas lhes guardasse, e não as vidas.
LI
Mas em que mares vão agora
entrando,
Que o sol, tão pouco tempo
ali dardeja?..
É castigo de Deus, que os vae chamando
Aos confins onde eterna a noite seja?..
LII
Ali, a luz do sol se desvanece;
É tres vezes menor que a
noite, o dia;
Em este despontando, logo desce
Na treva immensa, cada vez mais fria!
[20]
LIII
Não é esse,
não
é, nem por signaes,
Aquelle grande sol, de intensos
brilhos,
Que prateia as madeixas de seus paes,
E aquece as cabecinhas de seus filhos.
LIV
Não é aquelle o sol, de vivos raios,
Que pinta os verdes prados a matiz,
Que faz abrir as rosas dos seus maios,
E que doira os trigaes do seu paiz!
LV
O de lá, illumina com
doçura,
Beija a terra, e aquece-a com amor;
Este, aqui, é um sol de sepultura,
Mortiça luz, sem brilho e sem calor.
LVI
Não mais o sol
verão da sua terra!..
Com que saudade o dizem! que
saudade!..
Aperta-os ali dentro a immensidade!
O espaço, como um tumulo, os encerra!..
LVII
E sempre o Sul demanda a larga volta,
Que nas azas do vento a armada leva,
Para a morte, de certo, á véla solta,
Para o silencio... a solidão... a treva!..
[21]
LVIII
Cinco vezes, o Cabo, a armada
affronta,
Cinco vezes, a armada o Cabo investe!
A costa retrocede, o céu remonta...
É força as proas apontar a leste!..
LIX
Foi Pero d'Alemquer, que o conseguiu,
Largos dias de teima usando e manha;
O piloto maior que o mundo viu,
O que soube fazer maior façanha.
LX
Mas se foi Alemquer, piloto astuto,
O que a volta avisada ao Cabo deu,
Foi o genio do Gama, resoluto,
Quem dobrou as vontades e venceu.
LXI
Assim o reconhece a armada inteira,
Que em salvas, o saúda, de
alegria!..
E Adamastor escuta, a vez primeira,
A grande voz da lusa artilheria!
LXII
E quem desgraças taes
prophetisou
Áquellas gentes, mais que
tudo ousadas,
Ouviu, em plenas ondas subjugadas,
A resposta, que a armada lhe enviou!
[22]
LXIII
Ruge o colosso do que viu e ouviu!
Corre a envolvel-o a
cerração distante.
Mudo e quedo, o phantastico gigante,
Humilhado, de nuvens se cobriu!
LXIV
Emquanto ao Sul desciam, mar em
fóra,
Tinha visto, de bordo a rude gente,
Das costas africanas vir a aurora,
Caír nas salsas ondas o poente.
LXV
Pasmava a gente, agora, do que via,
Suppondo a natureza ser mudada;
Sobre a terra, á sinistra, o sol descia!
Erguia-se do mar a madrugada!..
LXVI
Vão colhidos na
gávea, agora, ospannos;
Baixos os mastros; mas as naus
correndo!
Segredos são, que ninguem sabe; enganos,
Com que a mãe natureza os vae mantendo.
LXVII
Vagas taes, ninguem viu,
tão revolvidas!
Agora, as nuvens tocam sempiternas!
Depois, as naus inteiras engulidas,
Precipitam-se em lôbregas cavernas.
[23]
LXVIII
E as naves, por não serem
dispersadas.
Cada uma, na gávea se
allumia.
―Como um grupo de estrellas conjugadas,
Umas ás outras são pharol e guia!―
LXIX
Onde vae, mar ignoto, a lusa armada?..
Nem enganos, nem trevas a detem!
Vae á India levar a Cruz e a Espada;
É ali, é ali, Jerusalem!
LXX
Ha contornos da magica
visão,
Nos vagos horisontes da miragem!..
Ninguem pense no termo da viagem,
Sem que surja a fulgente apparição!
LXXI
Antes de ao mar a armada se fazer,
Havia o forte Capitão
jurado,
De nunca, em caso algum, retroceder
Nem um só palmo do caminho andado!
LXXII
E quando a desesperança
algum vencia,
Irado, o Gama, então lhe
perguntava:
«Quando elle a mortes cem desafiava,
Quem é que uma só morte ali temia?»
[24]
LXXIII
E o mór peso tomando do
seu cargo,
Em vendo levantar-se a maior guerra,
Quando a gente dizia: A terra! a terra!..
Gritava-lhes o Gama: Ao largo! ao largo!..
LXXIV
Hão de ver, o que o mundo
nunca vira:
Surgir do mar a India
abençoada,
Acenando, de longe, á lusa armada,
Em torres de esmeralda e de saphyra!
LXXV
Ou, então, enjeitados pela
Gloria,
Figurarem, terriveis e sombrios,
Como espectros, no templo da memoria,
Eternamente, os homens e os navios!
LXXVI
Á nova Terra Santa! em
frente! em frente!
Romeiros da romagem longa e vaga!
Ah! Deus vos mostre a India refulgente!
Deus vos leve, romeiros, Deus vos traga!
CANTO SEGUNDO
A VOLTA
CANTO SEGUNDO
A VOLTA
I
Porém que vejo agora?..
Empavezada,
Sobre as ondas azues, e panda a
véla,
Do mar e das tormentas alquebrada,
Vem subindo rasteira caravela!
II
Avança a panno largo, e
com vontade;
Na praia, atroam vozes retumbantes;
Tocam sinos nas torres da cidade;
É louvado o Senhor dos Navegantes!
[28]
III
Aos pontos altos, prestes e ligeira,
Acode, a mais e mais, a
multidão;
Tremúla, á brisa, o regio pavilhão
Sobre o Tejo, nos Paços da Ribeira.
IV
Que gentil! que bem segue a caravela,
Embalada nas aguas crystallinas!..
Tem toda a gente os olhos postos n'ella!
Vão salvando, na borda, as columbrinas!
V
Das naus respondem salvas redobradas:
No castello o canhão tambem
resôa;
Por boas vindas dar, alvoroçadas
Ostenta quantas galas tem, Lisboa.
VI
A barca é d'oiro!.. Que
deslumbramento!
Envolve-a toda, luminoso
alvôr!..
É a barca do eterno Encantamento;
Vem das Ilhas do grande Encantador!
VII
Em que espaço, em que ceus
andou voando?
Nunca d'antes, ninguem no Tejo a viu!
Pomba perdida, não pertence ao bando,
Que ha muito tempo do pombal saíu.
[29]
VIII
Nave extranha, que o Tejo
não conhece,
Traz cruz em pendão branco,
por signal;
―Mas traz, tambem, o que a ninguem parece―
Traz a gloria maior de Portugal!
IX
Gloria, que a especie inteira
nobilita,
E não sómente o
nome portuguez!
Grande empreza, phantastica, inaudita,
Que outra maior jamais alguem a fez!
X
E a barca vae seguindo, rio em
frente;
Branca visão, que nada
apagará!
Sobre a esteira de espuma reluzente,
O sulco aberto, aberto ainda está!
XI
E a barca vae seguindo, rio acima;
É seu condão a
eterna mocidade!
Traz o sopro vital que tudo anima,
Traz o genio immortal da humanidade!
XII
Traz aquelles, que os mares
ignorados,
Passaram, com assombro, e sem pavor;
Os que foram ao longe ouvir os brados
E as funestas visões do Adamastor.
[30]
XIII
Que sulcaram do mar a immensidade,
Nas azas intangiveis da chimera,
Os sonhos transformando na verdade,
De polo a polo completando a esphera!
XIV
Os que viram as luzes do
Cruzeiro,
Dos tropicos na noite a scintillar,
Depois de terem visto o céu primeiro,
Com todo o norte, descaír no mar.
XV
Esses, de quem os astros repetiam,
Ao vel-os persistir na sua empreza,
Quando já nenhuns olhos os seguiam:
«Vae ali a fortuna portugueza!»
XVI
Os que os astros ouviram perguntando,
Na torrente de luz, que d'elles
cáe:
«Quem deu ser a taes homens? como e quando?
D'onde vem esta gente, e aonde vae?»
XVII
Os que os astros ouvindo,
responderam,
Sem desalento algum no
coração:
«Ó astros, que jámais nos conheceram,
Á India vamos; dae-nos vós a
mão!»
[31]
XVIII
Esses, de quem as ondas murmuravam,
Sob as quilhas pesadas das galeras,
Quando as proas altivas as rasgavam:
«Vão as portas abrir de novas eras!»
XIX
Os que viram, primeiro, o nunca
visto,
E o foram demandar, a tempo e azo,
Na luz confusa de um saber previsto,
Mas não levados pela mão do Acaso;
XX
Do velho mundo, os immortaes
pioneiros,
Em mundos novos demandando ingresso;
Missionarios do Bem e do Progresso;
Missionarios... e não aventureiros.
XXI
Os que foram, do caso conscientes,
Quebrando sellos, descobrindo lousas,
Perturbar em remotos continentes,
A quietação dos homens e das cousas.
XXII
Esses, de quem os povos assombrados,
Viram a altiva gente cavalleira,
Por mares nunca d'antes navegados,
Desenhando os confins da terra inteira.
[32]
XXIII
Esses, que em nova e pertinaz
cruzada,
―Povos inertes evocando á
vida,―
Foram, sempre, deixando a patria amada,
Pelo mundo em pedaços
repartida.
XXIV
Esses, que foram longe,
raça dura!
Sondar o negro abysmo, sem receio,
Desvendar os mysterios da natura,
Meio mundo ensinando a outro meio.
XXV
Esses, que abandonando os deuses
lares,
Na mais ousada empreza de gigante,
Para o seu curso dirigir nos mares,
Uma estrella do céu não foi bastante!
XXVI
Os que a patria exaltaram portugueza,
E quebraram, com brava galhardia,
A maritima força de Veneza,
E a fortuna da grande Alexandria.
XXVII
Os que o globo da terra devassaram,
E dando um mundo novo ao mundo velho,
Das columnas herculeas ao Vermelho,
O negro continente recortaram.
[33]
XXVIII
Os que tendo arrancado ao fero Islam,
Arzilla, Tanger, Ceuta e Azamor,
Hão de agora affrontar-lhe a gloria van,
E, em mar remoto, enchel-o de terror.
XXIX
E assim terão cumprido,
heroicamente,
Duas vezes, a épica
missão,
Os pendões abatendo do Crescente,
Ante as glorias do symbolo christão.
XXX
Os que viram no céu
diversos astros;
Aquelles para quem o mar do Sul,
Nos topes accendeu dos rijos mastros,
Do Santelmo divino a chamma azul.
XXXI
Os que viram mil cousas portentosas,
O sobre-natural, o sobre-humano;
Descer do céu as trombas sequiosas,
Bebendo em sorvos largos o Oceano.
XXXII
Os que investiram frias espessuras,
Onde escuro docel a noite eleva,
E demandando antarcticas alturas,
Chegaram quasi ás regiões da treva.
[34]
XXXIII
Os que affrontando a propria natureza
Foram a prima gente que sulcou,
Altos mares, de infinda profundeza,
Onde sonda nenhuma o fundo achou.
XXXIV
Os que tendo no peito a palpitar,
De raça mais que humana o
coração,
Iam, á raça humana abrir o mar,
Findando aquella eterna solidão.
XXXV
Os que foram, nas azas da vontade,
Á India, refulgente de oiro
e luz,
Ver o berço da nossa humanidade,
Como os Magos o berço de Jesus.
XXXVI
Os que foram do Tejo ao Malabar,
Levando no regaço a paz e a
guerra,
Chamar á vida, despertar a terra,
Do somno seu, profundo e secular.
XXXVII
Os que viram surgir a India ardente.
Acenando, de longe, á lusa
armada,
Huri, rainha e fada do Oriente,
Das torres de saphyra debruçada.
[35]
XXXVIII
Esses, que para erguer a patria
historia,
Foram tentar emprezas immortaes,
D'onde se volta pela mão da Gloria,
Ou d'onde nunca se voltou jamais.
XXXIX
Esses, que emquanto andavam
completando
Não vistos feitos,
épicas
acções,
Já o céu lhes estava destinando
A lyra inimitavel de Camões!
XL
Os homens grandes, cuja obra immensa,
Deviam memorar, no tempo alem,
―Refulgente prodigio de Arte e Crença,―
As naves portentosas de Belem!
XLI
Os que, salvos por Deus,―humilde
gente,―
Nos riscos tormentosos, que correram,
Sepultaram no mar, piedosamente,
Tantos, tantos irmãos que lhes morreram!
XLII
Lá vae a caravela, rio
acima!
É ella a sombra da primeira
armada!
A nova que em si traz, é quem a anima:
«Foi descoberta a India abençoada!»
[36]
XLIII
É isto o que ella clama e
vae dizendo;
É isto, o que ella a todos
annuncía;
O sol da Meia Idade vae descendo,
O alvor desponta, já, de um novo dia!
XLIV
Mas, vendo-a, mal suppõe a
multidão,
Sobre a tolda contando a pouca gente,
Que da gloria da humilde embarcação,
Viverá Portugal, eternamente.
XLV
Agora, a nave, as ancoras largou;
Içou, no mastro grande, o
vellocino!
A patria em boas mãos depositou
A espada, a cruz, e todo o seu destino.
XLVI
Bemvindos sois ao berço
hospitaleiro,
Romeiros da romagem do Ideal!
Pois fez, o esforço vosso, verdadeiro
O sonho que tivera Portugal.
XLVII
Cumpristes um gigante pensamento;
No mundo, o vosso nome, eterno
sôa;
Trouxe-vos Deus a porto e
salvamento,
A vossa obra foi bemdita e boa!
[37]
XLVIII
E, largo tempo,―esplendida visão!―
Se ha de ver, Tejo acima, a caravela,
Como um barco de lenda, panda a véla,
Bordada a cruz de Christo em seu pendão!
XLIX
E um dia chegará,―dia
jocundo!―
Em que, no Tejo, que hoje aos
pés vos corre,
Hão de armadas estar, de todo o mundo,
Saudando a caravela, que não morre!
L
Monarchas hão de vir de
imperios novos,
Em convivio fraterno, doce e amigo,
Unindo n'um só laço, os reis e os povos,
Saudar, em honra vossa, o reino antigo.
LI
E só por vós,
se a mente me
não erra,
Vós, que fostes do Gama os
companheiros,
Marinheiros virão de toda a terra,
Á patria dos mais rudes marinheiros.
LII
Sonhados impossiveis conseguistes,
Vós, raça
aventureira, omnipotente!
Se muito foi, que a Portugal servistes,
Mais servistes, ainda, a extranha gente.
[38]
LIII
Pois da aguia, que os reis d'outr'ora
viram,
Na terra inteira, as azas extendendo,
As aguias, d'hoje em dia, andam colhendo
As pennas, que das azas lhe caíram!
LIV
D'este povo, o passado causa espanto!
O que teve! o que pôde
dividir!..
Cada um dos pedaços do seu manto
Dá hoje a um povo inteiro, que vestir!
LV
Quem havia de ver, o que se viu?
Agora, é Prometheu
acorrentado,
Por famintos abutres devorado,
Na montanha da Gloria, a que subiu!
LVI
Venham, pois, ver a nave
abençoada,
Do Tejo sobre as vagas diamantinas!
Nave eterna!.. Na pôpa leva as quinas,
E a figura do Gama, na amurada.
LVII
Que vejo?.. Quem tal quadro
antecipou?
Desusado fragor no grande rio!..
Vinte esquadras, que o mundo aqui mandou,
Abrem alas ao fulgido navio!
[39]
LVIII
Em cada pôpa, um
pavilhão ondula;
Vistosas cores, alegrando os ares!
Vêm ver, ainda, como audaz tremula
O pavilhão que os precedeu nos mares!
LIX
Monstros de ferro, enormes
couraçados,
Venham aqui, de toda a terra, ovantes,
Pousar no Tejo, que sustinha d'antes
Sobre o seu dorso, galeões sagrados!..
LX
Naus d'alto bordo, carregadas d'oiro,
A mór riqueza, que se viu
outr'ora!
Dizêl-o ouvimos,―não hajaes desdoiro:―
«São bem mais leves estas naus de
agora!»
LXI
E o Tejo, aberta a sua larga foz,
Com justo orgulho, vos recebe e chama!
Almirantes! sabeis, que honrar o Gama,
É honrar o maior de todos vós!
LXII
Lá vae a caravela, altiva
e calma
No meio do bramir da artilheria!
Não é sonho da nossa phantasia;
É nitida visão que temos n'alma!
[40]
LXIII
Da justiça reluz o dia, a
hora;
O premio do serviço, emfim,
chegou!
Mil bandeiras, que o mar conhece agora,
Vêm saudar a primeira, que o passou!
LXIV
Mas vós, povo indolente e
descuidado,
Que a patria tantas vezes esqueceis,
Sêde digno, em memoria do passado,
Das honras, que ao presente recebeis!
LXV
Não tem direito, ninguem
tal o diga,
A abandonar-se n'um dormir profundo,
Quem, tão grande passado, a tanto obriga,
Quem tal papel desempenhou no mundo!
LXVI
Um povo que se preza, não
descança
Nem á sombra dos loiros
conquistados;
A gloria é grande, mas pesada herança:
Mantel-a pura, deve dar cuidados.
LXVII
O preceito deixámos
esquecido,
Embalados em vagas
illusões;
Hoje vemos um céu de inquietações,
Por sobre as nossas almas extendido.
[41]
LXVIII
A gloria é armadura
reluzente,
Que veste os peitos e rebrilha ao sol;
Não é fria mortalha, nem lençol,
Que o corpo envolva d'um heroe jacente.
LXIX
A gloria é um deposito
sagrado;
Quem o deixa fugir, por mal seguro,
As maldições merece do futuro,
Mostrando ser indigno do legado.
LXX
Ainda o mesmo genio em nós
palpita,
O mesmo sangue, em nossas veias,
corre;
Somos o rijo povo, que não morre!
Pois, se morto parece, resuscita!
LXXI
E a raça, que ascendeu a
tal grandeza,
Não póde figurar
entre as
nações,
De mãos ligadas, amarrada e presa,
Á columna das proprias tradições.
LXXII
Tem de viver no tempo indefinido,
Em voz alta affirmando o seu direito
De povo, que entre os povos escolhido,
Aos povos, seus irmãos, impõe respeito.
[42]
LXXIII
E tu, que és
mãe bondosa, patria
amiga,
Sê madrasta cruel, altiva e
dura,
A todo o filho que de ti mal diga...
Nem descanço lhe dês de sepultura!
LXXIV
Pois não merece a luz que
o allumia,
E que o berço lhe veste de
esplendor,
Quem o nome de patria pronuncia,
Sem, lá no fundo, estremecer de amor!
LXXV
Lá vae a barca d'oiro,
enfeitiçada!
Lá vae a deslumbrante
caravela!
Leva o Gama, de pé, junto á amurada,
E uma cruz escarlate em cada vela!
LXXVI
Lá vae a Barca-Sonho, rio
em frente!
Pobre quem, dentro d'alma,
não a vir!
Se leva a gloria do passado ingente,
Leva, tambem, a esperança no porvir!
Acabou de imprimir-se
Aos 24 dias do mez de agosto do anno
M DCCC XCVI
NOS PRELOS DA
Imprensa Nacional de Lisboa
PARA A
COMMISSÃO EXECUTIVA
DO
CENTENARIO DA INDIA