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Rita
Farinha (Jan. 2008)
OBRAS
DE
J. B. DE A. GARRETT.
IX.
(segundo das viagens.)
VIAGENS
NA MINHA TERRA
POR J. B. DE ALMEIDA-GARRETT.
II.
LISBOA
NA TYPOGRAPHIA DA GAZETA DOS TRIBUNAIS.
1846.
VIAGENS NA MINHA TERRA.
CAPITULO XXVI.
Modo de ler os auctores antigos, e os
modernos tambem.―Horacio
na sacra-via.―Duarte Nunes iconoclasta da nossa
historia.―A policia e os barcos de vapor.―Os vandalos
do feliz systema que nos rege.―Shakspeare lido em Inglaterra
a um bom fogo, com um copo de
old-sack sôbre
a banca.―Sir John Falstaff se foi maior homem que
Sancho-Pansa?―Grande
e importante descuberta archeologica
sôbre San'Thiago, San'Jorge e Sir John
Falstaff.―Próva-se
a vinda d'este último a Portugal.―O enthusiasta
britannico no tumulo de Heloisa e Abeillard no Pere-la-Chaise.―Bentham
e Camões.―Chega o auctor
á sua janella, e pasmosa
miragem poetica produzida por umas oitavas dos Lusiadas.―De
como emfim proseguem éstas viagens para Santarem,
e que feito será de Joanninha.
Se eu for algum dia a Roma, heide entrar
na cidade eterna com o meu Tito-Livio e o
meu Tacito nas algibeiras do meu paletó de
viagem. Alli, sentado n'aquellas ruinas immortaes,
[2]
sei que heide intender melhor a sua história,
que o texto dos grandes escriptores se me
hade illustrar com os monumentos d'arte que os
viram escrever, e que uns recordam, outros presenciaram
os feitos memoraveis, o progresso e a
decadencia d'aquella civilização pasmosa.
E Juvenal e Horacio? o meu Horacio, o meu
velho e fiel amigo Horacio!.. Deve ser um prazer
regio ir lendo pela sacra-via fóra aquella deliciosa
satyra, creio que a nona do L. I.
Ibam forte sacra via, sicut meus
est mos,
Nescio quid meditans nugarum...
Deve ser maior prazer ainda, muito maior do
que beijar o pé ao papa. Parece-me a mim;
mas como eu nunca fui a Roma...
E não é preciso. Pegue qualquer na bella
chronica d'elrei D. Fernando, a que Duarte
Nunes menos estragou...
O Duarte Nunes foi um reformador iconoclasta
das nossas chronicas antigas, truncou todas as
imagens, raspou toda a poesia d'aquellas venerandas
[3]
e deliciosas
sagas
portuguezas... Em ponto
historico pouco mais eram do que
sagas, verdade
seja, mas como taes, lindas. E o Duarte Nunes,
que era um pobre grammaticão sem gôsto
nem graça, foi-se ás filagranas e arrendados de
finissimo lavor gothico d'aquelles monumentos,
quebrou-lh'os; ficaram so os traços historicos que
eram muito pouca e muito incerta coisa; e cuidou
que tinha arranjado uma história, tendo apenas
destruido um poema.
Ficámos
sem Nibelungen,
podendo-o ter, e não obtivemos história
porque se não podia obter assim.
Pois digo: pegue qualquer na bella chronica
d'elrei D. Fernando, obedeça á lei concorrendo
com o seu cruzado-novo para o augmento e glória
da benemerita companhia que tem o exclusivo
d'esses caranguejos de vapor que andam e desandam
no rio, entre n'um dos referidos caranguejos,
em que, além da porcaria e mau-cheiro,
não ha perigo nenhum senão o de rebentar
toda aquella camara-optica que anda por arames,
e que em qualquer paiz civilizado onde a policia
fizesse alguma coisa mais do que imaginar
conspirações,
ha muito estaria condemnada a ir alli
caranguejar
para as Lamas
á sua vontade. Mas
[4]
emfim ca não ha d'outros nem haverá tam cedo,
graças ao muito que agora, diz que, se cuida
nos interêsses materiaes do paiz: e portanto tome
o seu logar, passe o mesmo que eu passei; chegue-me
a Santarem, descanse e ponha-se-me a
ler a chronica: verá se não é outra
coisa, vera
se deante d'aquellas preciosas reliquias, ainda
mutiladas, deformadas como ellas estão por tantos
e tam successivos barbaros, estragadas emfim
pelos peiores e mais vandalos de todos os
vandalos, as auctoridades administrativas e municipaes
do feliz systema que nos rege, ainda assim
mesmo não ve erguer-se deante de seus olhos
os homens, as scenas dos tempos que foram; se
não ouve fallar as pedras, bradar as
inscripções,
levantar-se as estátuas dos tumulos; e reviver-lhe
a pintura toda, reverdecer-lhe toda a poesia
d'aquellas edades maravilhosas!
Tenho-o experimentado muitas vezes: é infallivel.
Nunca tinha intendido Shakspeare em quanto
o não li em Warwick, aope do Avon,
debaixo
de um carvalho secular, á luz d'aquelle sol
baço e branco do nublado ceo d'Albion... ou á
noite com
os pés no
fender, a chaleira a ferver
no fogão, e sôbre a banca o crystal antigo de
[5]
um bom copo lapidado a luzir-me alambreado com
os doces e
perfumados resplendores
do
old
sack;
em quanto o fogão e os ponderosos castiçaes de
cobre brunido projectam no antigo tecto almofadado,
nos pardos compartimentos de carvalho que
forram o apposento, aquellas fortes sombras vacillantes
de que as velhas fazem visões e almas-do-outro-mundo,
de que os poetas―poetas como
Shakspeare―fazem sombras de
Banco,
bruxas
de
Mackbeth, e
até a rotunda pansa e o arrastante
espadagão do meu particular amigo Sir
John Falstaff, o inventor das legítimas consequencias,
o fundador da grande eschola dos restauradores
caturras, dos poltrões pugnazes que
salvam a patria de parolla e que ninguem os
atura em tendo as costas quentes.
Oh Falstaff, Falstaff! eu não sei se tu es
maior homem que Sancho Pança. Creio que não.
Mas maior pansa tens, mais capacidade na pansa
tens. Quando nossos avós
renegaram
de San'
Thiago por castelhano perro, e invocaram a San'
Jorge, tu vieste, ó Falstaff, em sua comitiva de
Inglaterra e aqui tomaste assento, aqui ficaste,
e foste o patriarcha d'essa immensa progenie de
Falstaffs que
por ahi anda.
[6]
Este importante ponto da nossa história, da
demissão de San'Thiago e da vinda de San'Jorge
de Inglaterra com Sir John Falstaff por seu
homem-de-ferro―ésta
grande descoberta archeologica
que tanta coisa moderna explica, como a
fiz eu? Indo aos sitios mesmos, estudando alli os
antigos exemplares: que é a minha doutrina.
Em tudo, para tudo é assim. Chegou um dia
um inglez a Paris: um inglez legítimo e
cru,
virgem de toda a corrupção continental;
calça de
ganga, sapato grosso, cabello de cenoira, chapeo
fillado na cova-do-ladrão. Era enthusiasta de
Heloisa e Abeillard, foi-se ao Pére-la-Chaise,
chegou ao tumulo dos dois amantes, tirou um
livrinho da algibeira, pôs-se a ler aquellas cartas
do Paracleto que tem indoidecido muito menos
excentricas cabeças que a do meu inglez puro-sangue.
Não é nada; excitou-se a tal ponto
que entrou a correr como um perdido, bradando
por um conego da sé que lhe acudisse, que se queria
identificar com o seu modêlo, purificar a sua
paixão,
ser emfim um completo―ou um incompleto
Abeillard.
Eu não sou susceptivel de tammanho enthusiasmo,
[7]
sôbretudo desde que dei a minha demissão
de poeta e cahi na prosa. Mas aqui tem
o que me succedeu o outro dia. Tinha estado ás
voltas com o meu Bentham, que é um grande
homem por fim de contas o tal quaker, e são
grandes livros os que elle escreveu: cançou-me
a cabeça, peguei no Camões e fui para a janella.
As minhas janellas agora são as primeiras
janellas de Lisboa, dão em cheio por todo esse
Tejo. Era uma d'estas brilhantes manhans d'hynverno,
como as não ha senão em Lisboa. Abri
os Lusiadas á ventura, deparei com o canto IV
e puz-me a ler aquellas bellissimas estancias
E ja no porto da inclita Ulyssea...
Pouco a pouco amotinou-se-me o sangue, senti
baterem-me as arterias da fronte... as lettras fugiam-me
do livro, levantei os olhos, dei com
elles na pobre nau Vasco-da-Gama que ahi está
em monumento-caricatura da nossa glória naval...
E eu não vi nada d'isso, vi o Tejo, vi a bandeira
portugueza fluctuando com a brisa da manhan,
a tôrre de Belem ao longe... e sonhei, sonhei
que era portuguez, que Portugal era outra vez
Portugal.
[8]
Tal fôrça deu o prestigio da scena ás
imagens
que aquelles versos evocavam!
Senão quando, a nau que salva a uns escaleres
que chegam... Era o ministro da marinha que ia
a bórdo.
Fechei o livro, accendi o meu charuto, e fui
tractar das minhas camelias.
Andei tres dias com odio á lettra-redonda.
Mas de tudo isto o que se tira, a que vem tudo
isto para as minhas viagens ou para o episodio
do valle de Santarem em que ha tantos capitulos
nos temos demorado?
Vem e vem muito: vem para mostrar que a
história, lida ou contada nos proprios sitios em que
se passou, tem outra graça e outra
fôrça; vem
para te eu dar o motivo porque n'estas minhas viagens,
leitor amigo, me fiquei parado n'aquelle
valle a ouvir do meu companheiro de jornada, e
a escrever para teu aproveitamento, a interessante
história da menina dos rouxinoes, da menina
dos olhos verdes, da nossa boa Joanninha.
[9]
Sim, aqui tenho estado extendido no chão, as
mulinhas pastando na relva, os arrieiros fummando
tranquillamente sentados, e as últimas horas
de uma longa e calmosa tarde de julho a cahir
e a refrescar com a aragem percursora da
noite.
Mas basta de valle, que é tarde. Oh lá! venham
as mulinhas e montemos. Picar para Santarem,
que no inclyto alcaçar d'elrei D. Affonso-Henriques
nos espera um bom jantar d'amigo―e
não é so a
vacca
e
riso de Fr. Bartholomeu
dos Martyres, mas um verdadeiro jantar d'amigo,
muito menos austero e muito mais risonho.
―'Porquê? ja se acabou a historia de Carlos
e de Joanninha?' diz talvez a amavel leitora.
―'Não, minha senhora,' responde o auctor
mui lisongeado da pergunta: 'não, minha senhora,
a historia não acabou, quasi se póde dizer
que ainda ella agora começa; mas houve
mutação
de scena. Vamos a Santarem, que lá se passa
o segundo acto.'
CAPITULO XXVII.
Chegada a Santarem.―Olivaes de
Santarem.―Fóra-de-Villa.―Symetria
que não é para os olhos.―Modo de medir
os versos da biblia.―Architectura pedante do seculo XVII.―Entrada
na Alcáçova.
Eram as últimas horas do dia quando chegámos
ao princípio da calçada que leva ao alto
de Santarem. A pouca frequencia de povo, as
hortas e pomares mal cultivados, as casas de
[12]
campo arruinadas, tudo indicava as vizinhanças
de uma grande povoação descahida e desamparada.
O mais bello comtudo de seus ornatos e glórias
suburbanas, ainda o possue a nobre villa,
não lh'o destruiram de todo; são os seus olivaes.
Os olivaes de Santarem cuja riqueza e formosura
proverbial é uma das nossas crenças populares
mais geraes e mais queridas!.. os olivaes de
Santarem lá estão ainda. Reconheceu-os o meu
coração e alegrou-se de os ver; saudei n'elles o
symbolo patriarchal de nossa antiga existencia.
N'aquelles troncos velhos e coroados de verdura,
figurou-se-me ver, como nas selvas incantadas do
Tasso, as venerandas imagens de nossos passados;
e no murmurio das folhas que o vento agitava a
espaços, ouvir o triste suspirar de seus lamentos
pela vergonhosa degeneração dos netos...
Estragado como os outros, profanado como
todos, o olival de Santarem é ainda um monumento.
Os povos do meio-dia, infelizmente, não professam
com o mesmo respeito e austeridade aquella
religião dos bosques, tam sagrada para as
nações
do norte. Os olivaes de Santarem são
excepção:
[13]
ha muito pouco entre nós o
culto das
árvores.
Subimos, a bom trotar das mulinhas, a impinada
ladeira―eu alvoraçado e impaciente por
me achar face a face com aquella profusão de monumentos
e de ruinas que a imaginação me tinha
figurado e que ora temia, ora desejava comparar
com a realidade.
Chegámos emfim ao alto; a majestosa entrada
da grande villa está deante de mim. Não me
inganou a imaginação... grandiosa e
magnífica
scena!
Fóra-de-villa
é um vasto largo, irregular e
caprichoso como um poema romantico; ao primeiro
aspecto, áquella hora tardía e de pouca
luz, é de um effeito admiravel e sublime. Palacios,
conventos, egrejas occupam gravemente e tristemente
os seus antigos logares, infileirados sem
ordem aos lados d'aquella immensa praça, em
que a vista dos olhos não acha symetria alguma;
mas sente-se n'alma. É como o rhytmo e
medição
dos grandes versos biblicos que se não cadenceiam
por pés nem por sylabas, mas cahem certos
[14]
no espirito e na
audição
interior com uma
regularidade admiravel.
E tudo deserto, tudo silencioso, mudo, morto!
Cuida-se entrar na grande metropole de um
povo extincto, de uma nação que foi poderosa e
celebrada mas que desappareceu da face da terra
e so deixou o monumento de suas construcções
gigantescas.
Á esquerda o immenso convento do Sítio ou de
Jesus, logo o das Donas, depois o de San'Domingos,
célebre pelo jazigo do nosso Fausto portuguez―seja
ditto sem irreverencia á memoria
de San'Frei Gil que, é verdade, veio a ser grande
sancto, mas que primeiro foi grande bruxo.―Defronte
o antiquissimo mosteiro das Claras,
e aopé as baixas arcadas gothicas de San'Francisco...
de cujo último guardião, o austero Frei
Diniz, tanta coisa te contei, amigo leitor, e tantas
mais tenho ainda para te contar! Á direita
o grandioso edificio philippino, perfeito exemplar
da massissa e pedante architectura reaccionaria do
seculo dezesette, o Collegio, typo largo e bello
no seu genero, e quanto o seu genero póde
ser, das construcções jesuiticas...
[15]
Não ha alma, não ha genio, não ha
espirito
n'aquellas massas pesadas, sem elegancia nem
simplicidade; mas ha uma certa grandeza que
impõe, uma solidez travada, uma symetria de
calculo, umas proporções frias, mas bem
assentadas
e esquadriadas com methodo, que revelam
o pensamento do seculo e do instituto que tanto
o characterizou.
Não são as fortes crenças da
meia-edade que
se elevam no arco agudo da ogiva; não é a
relaxação
florída do seculo quinze e desesseis que
ja vacilla entre o byzantino e o classico, entre
o mystico ideal do christianismo que arrefece e os
symbolos materiaes do paganismo que acorda;
não, aqui a
renascença triumphou, e
depois de
triumphar, degenerou. É a inquisição,
são os
Jesuitas, são os Philippes, é a
reacção catholica
edificando templos
para que se creia
e se ore,
não
porque se
crê e se ora.
Até aqui o mosteiro e a cathedral, a ermida
e o convento eram a expressão da idea popular,
agora são a fórmula do pensamento governativo.
Alli estão―olhae para elles―defronte uns
[16]
dos outros, os monumentos das duas religiões,
a qual mais expressivo e loquaz, dizendo mais
claro que os livros, que os escriptos, que as
tradições, o pensamento das edades que os
ergueram,
e que alli os deixaram gravados sem
saber que o faziam.
Mais embaixo, e no fundo d'esse declive,
aquella massa negra é o resto ainda suberbo
do ja immenso palacio dos condes de Unhão.
Rodeámos o largo e fomos entrar em Marvilla
pelo lado do norte. Estamos dentro dos muros
da antiga Santarem. Tam magnífica é a entrada,
tam mesquinho é agora tudo ca dentro, a maior parte
d'estas casas velhas sem serem antigas, d'estas
ruas moirescas sem nada de arabe, sem o menor
vestigio de sua origem mais que a estreiteza
e pouco aceio.
As egrejas quasi todas porêm, as muralhas e
os bastiões, algumas das portas, e poucas
habitações
particulares, conservam bastante da physionomia
antiga e fazem esquecer a vulgaridade do
resto.
[17]
Seguimos a triste e pobre rua Direita, centro
do debil commercio que ainda aqui ha: poucas e
mal providas logeas, quasi nenhum movimento.
Ca está a curiosa tôrre das Cabaças, a
velha
egreja de
San'João do_Alporão.
Ámanhan iremos
ver tudo isso de nosso vagar. Agora vamos á
Alcaçova!
Entrámos a porta da antiga cidadella.―Que
espantosa e desgraciosa confusão de intulhos, de
pedras, de montes de terra e calissa! Não ha
ruas, não ha caminhos, é um labyrinto de ruinas
feias e torpes. O nosso destino, a casa do nosso
amigo é aopé mesmo da famosa e historica
egreja
de Sancta Maria da Alcaçova.―Hade custar
a achar em tanta confusão.
CAPITULO XXVIII.
Depois de muito procurar acha emfim o
auctor a egreja de Sancta-Maria d'Alcaçova.―Stylo da
architectura nacional
perdido.―O
terremoto de 1755, o marquez de Pombal e o chafariz
do Passeio-publico de Lisboa.―O chefe do partido
progressista portuguez no alcassar de D. Affonso Henriques.―Deliciosa
vista dos arredores de Santarem observada de
uma janella da Alcaçova, de manhan.―É tomado o
auctor
de ideas vagas, poeticas, phantasticas como um
sonho.―Introducção
do Fausto.―Difficuldade de traduzir os versos
germanicos nos nossos dialectos romanos.
Depois de muito procurar entre pardeiros e
intulhos, achámo-la emfim a egreja de Sancta
Maria d'Alcaçova. Achámos, não
é exacto:
ao menos eu, por mim, nunca a achava, nem
[20]
queria accreditar que fôsse ella quando m'a mostraram.
A real collegiada de Affonso Henriques,
a quasi-cathedral da primeira villa do reino, um
dos principaes, dos mais antigos, dos mais historicos
templos de Portugal, isto?.. esse egrejorio insignificante
de capuchos? mesquinha e ridicula
massa d'alvenaria, sem nenhuma architectura,
sem nenhum gôsto! risco, execução e
trabalho
de um mestre pedreiro d'aldeia e do seu apprendiz!
É impossivel.
Mas era, era essa. A antiga capella-real, a veneranda
egreja da Alcaçova foi passando por successivos
reparos e transformações, até que
chegou
a ésta miseria.
Perverteu-se por tal arte o gôsto entre nós desde
o meio do seculo passado especialmente, os estragos
do terremoto grande quebraram por tal modo
o fio de todas as tradições da architectura
nacional,
que na Europa, no mundo todo talvez se
não ache um paiz onde, a par de tam bellos monumentos
antigos como os nossos, se incontrem tam
villans, tam ridiculas e absurdas construcções
públicas
como essas quasi todas que ha um seculo
se fazem em Portugal.
[21]
Nos reparos e reconstrucções dos templos antigos
é que este pessimo stylo, ésta ausencia de
todo stylo, de toda a arte mais offende e escandaliza.
Olhem aquella impena classica posta de remate
ao frontispicio todo renascença da
Conceição-velha
em Lisboa. Vejam a implastagem de geço
com que estão mascarados os elegantes feixes de
columnas gothicas da nossa sé.
Não se póde cahir mais baixo em architectura
do que nós cahimos quando, depois que o marquez
de Pombal nos
traduziu, em vulgar e
arrastada
prosa, os
rococós de Luiz
XV, que no original,
pelo menos, eram florídos, recortados, caprichosos
e galantes como um madrigal, esse stylo
bastardo, hybrido, degenerando progressivamente
e tomando presumpções de classico, chegou
nos nossos dias até ao chafariz do
passeio-público!
Mas deixar tudo isso, e deixar a egreja da
Alcaçova tambem; entremos nos palacios de D.
Affonso Henriques.
[22]
Aqui, pegado com o pardeiro rebocado da capella
hãode ser. Por onde se entra?
Por ésta portinha estreita e baixa, rasgada,
bem se ve que ha poucos annos, no que parece
muro de um quintal ou de um páteo.
É comeffeito aqui; apeemo'-nos.
Recebeu-nos com os braços abertos o nosso
bom e sincero amigo, actual possuidor e habitante
do regio alcassar, o Sr. M. P.
Notavel combinação do acaso! Que o illustre
e venerado chefe do partido progressista em Portugal,
que o homem de mais sinceras convicções
democraticas, e que mais sinceramente as combina
com o respeito e adhesão ás fórmas
monarchicas,
esse homem, vindo do Minho, do berço
da dynastia e da nação, viesse fixar aqui a sua
residencia no alcassar do nosso primeiro rei, conquistado
pela sua espada n'um dos feitos mais
insignes d'aquella era de prodigios!
Entrámos na pequena horta em fórma de claustro
que une a antiga casa dos reis com a
[23]
sua capella. Assim foi sem dùvida n'outro tempo:
a parede oriental da egreja é o muro do
quintal de um lado, mas as communicações foram
vedadas provavelmente quando a coroa alienou
o palacio e o separou assim perpetuamente
do templo.
Plantado de larangeiras antigas, os muros forrados
de limoeiros e parreiras, aquella pequena
cêrca, apezar dos muitos canteiros e alegretes
de alvenaria com que está moirescamente intulhada,
é amena e graciosa á vista.
Appresentou-nos o nosso amigo a sua mulher,
senhora de porte gentil e grave; beijámos seus
lindos filhos, e fomos fazer as abluções
indispensaveis
depois de tal jornada para nos podermos
sentar á mesa.
O palacio de Affonso Henriques está como a
sua capella: nem o mais leve, nem o mais apagado
vestigio da antiga origem. Sabe-se que é alli
pela bem confrontada e inquestionavel topographia
dos logares, por mais nada...
E que me importam a mim agora as antiguidades,
[24]
as ruinas e as demolições, quando eu sinto
demolir-me
ca por dentro por uma fome exasperada
e destruidora, uma fome vandalica insaciavel!
Vamos a jantar.
Comêmos, conversámos, tomámos
chá, tornámos
a conversar e tornámos a comer. Vieram
visitas, fallou-se politica, fallou-se litteratura,
fallou-se de Santarem sôbretudo, das suas ruinas,
da sua grandeza antiga, da sua desgraça
presente. Emfim, fomo'-nos deitar.
Nunca dormi tam regalado somno em minha
vida. Acordei no outro dia ao repicar incessante
e appresurado dos sinos da Alcaçova. Saltei
da cama, fui á janella, e dei com o mais bello,
o mais grandioso, e ao mesmo tempo, mais
ameno quadro em que ainda puz os meus olhos.
No fundo de um largo valle aprazivel e sereno,
está o socegado leito do Tejo, cuja areia
ruiva e resplandecente apenas se cobre d'agua
juncto ás margens, d'onde se debruçam verdes
e frescos ainda os salgueiros que as ornam e
defendem. D'alêm do rio, com os pés no pingue
[25]
nateiro d'aquellas terras alluviaes, os riccos
olivedos d'Alpiarça e Almeirim; depois a villa
de D. Manuel e a sua charneca e as suas vinhas.
D'aquem a immensa planicie ditta do Rocio,
semeada de casas, de aldeias, de hortas, de
grupos de árvores sylvestres, de pomares. Mais
para a raiz do monte em cujo cimo estou, o
picturesco bairro da Ribeira com as suas casas e
as suas egrejas, tam graciosas vistas d'aqui, a
sua cruz de Sancta Iria e as memorias romanescas
do seu alfageme.
Com os olhos vagando por este quadro immenso
e formosissimo, a imaginação tomava-me
azas e fugia pelo vago infinito das regiões ideaes.
Recordações de todos os tempos, pensamentos
de todo o genero me affluiam ao espirito, e me
tinham como n'um sonho em que as imagens
mais discordantes e disparatadas se succedem umas
ás outras.
Mas eram todas melancholicas, todas de saudade,
nenhuma de esperança!..
Lembraram-me aquelles versos de Goethe,
[26]
aquelles sublimes e inimitaveis versos da
introducção
do Fausto:
Resurgis outra vez, vagas figuras,
Vacillantes imagens que á turbada
Vista accudieis d'antes. E heide agora
Retter-vos firme? Sinto eu ainda
O coração propenso a illusões d'essas?
E appertais tanto!... Pois embora! seja:
Dominae, ja que em nevoa e vapor leve
Emtôrno a mim surgis. Sinto o meu seio
Juvenilmente trépido agitar-se
Co'a maga exhalação que vos circunda.
Trazeis-me a imagem de ditosos dias,
E d'ahi se ergue muita sombra amada:
Como um velho cantar meio-esquecido,
Véem os primeiros simplices amores
E a amizade com elles. Reverdece
A mágoa, lamentando o errado curso
Dos labyrintos da perdida vida;
E me está nomeando os que trahidos
Em horas bellas por fallaz ventura
Antes de mim na estrada se sumiram.
....................................................
....................................................
Não me atrevo a pôr aqui o resto da minha
infeliz traducção: fiel é ella, mas
não tem outro
merito. Quem póde traduzir taes versos,
quem de uma lingua tam vasta e livre hade passá-los
[27]
para os nossos appertados e severos dialectos
romano
para os nossos appertados e severos dialectos
romanos?
[1]
CAPITULO XXIX.
Doçuras da
vida.―Imaginação e
sentimento.―Poetas que
morreram moços e poetas que morreram velhos.―Como
são
escriptas éstas viagens.―Livro de pedra. Criança
que brinca
com elle.―Ruinas e reparações.―Idea fixa do A.
em
coisas d'arte e litterarias.―Sancta Iria ou Irene, e
Santarem.―Romance
de Sancta Iria.―Quantas sanctas ha
em Portugal d'este nome?
Este sonhar acordado, este scismar poetico
deante dos sublimes spectaculos da natureza,
é dos prazeres grandes que Deus concedeu ás almas
de certa têmpera. Doce é gosar assim... mas
[30]
em que doçuras da vida não predomina sempre
o acido poderoso que stimula! Tirae-lh'o, fica
a insipidez; deixae-lh'o, ulcéra porfim os orgams:
o gôso é mais vivo
porque a acção do
stímulo é mais sentida... mas a
ulceração cresce,
o coração está em carne-viva... agora
o prazer
é martyrio.
Infeliz do que chegou a esse estado!
Bemaventurado o que póde graduar, como
Goethe, a dóze d'amphião que quer tomar, que
poupa as sensações e a vida, e economiza as
potencias
de sua alma! N'esses porêm é a
imaginação
que domina, não o sentimento. Byron, Schiller,
Camões, o Tasso morreram moços; matou-os
o coração. Homero e Goethe, Sophocles e Voltaire
acabaram de velhos: sustinha-os a imaginação,
que não despende vida porque não gasta
sensibilidade.
Imaginar é sonhar, dorme e repousa a vida
no entretanto; sentir é viver activamente, cansa-a
e consomme-a.
Isto é o que eu pensava―porque não pensava
[31]
em nada, divagava―em quanto aquelles versos
do Fausto me estavam na memoria, e aquella
saudosa vista do Tejo e das suas margens deante
dos olhos.
Isto pensava, isto escrevo, isto tinha n'alma,
isto vai no papel: que d'outro modo não sei escrever.
Muito me pêza, leitor amigo, se
outra coisa
esperavas das minhas
Viagens,
se
te falto,
sem o querer, a promessas que julgaste ver n'esse
titulo, mas que eu não fiz decerto. Querias
talvez que te contasse, marco a marco, as leguas
da estrada? palmo a palmo, as alturas e
larguras dos edificios? algarismo por algarismo,
as datas de sua fundação? que te resummisse a
historia de cada pedra, de cada ruina?..
Vai-te ao padre Vasconcellos; e quanto ha de
Santarem, peta e verdade, ahi o acharás em
amplo folio e gorda lettra: eu não sei compor
d'esses livros, e quando soubesse, tenho mais
que fazer.
So tenho pena de uma coisa, é de ser tam
[32]
desestrado com o lapis na mão; porque em dois
traços d'elle te dizia muito mais e melhor do que
em tanta palavra que porfim tam pouco diz e
tam mal pinta.
Santarem é um livro de pedra em que a mais
interessante e mais poetica parte das nossas chronicas
está escripta. Ricco de illuminuras, de recortados,
de florões, de imagens, de arabescos e
arrendados primorosos, o livro era o mais bello e
o mais precioso de Portugal. Inquadernado em
esmalte de verde e prata pelo Tejo e por suas ribeiras,
fechado a broches de bronze por suas fortes
muralhas gothicas, o magnífico livro devia durar
sempre em quanto a mão do Creador se não
extendesse para apagar as memorias da creatura.
Mas ésta Ninive não foi destruida,
ésta Pompeia
não foi submergida por nenhuma catastrophe
grandiosa. O povo de cuja história ella é o
livro, ainda existe; mas esse povo cahiu em infancia,
deram-lhe o livro para brincar, rasgou-o,
mutilou-o, arrancou-lhe folha a folha, e fez papagaios
e bonecas, fez carapuços com ellas.
Não se descreve por outro modo o que ésta
[33]
gente chamada govêrno, chamada
administração,
está fazendo e deixando fazer ha mais de seculo
em Santarem.
As ruínas do tempo são tristes mas bellas, as
que as revoluções trazem, ficam marcadas com o
cunho solemne da historia. Mas as brutas
degradações
e as mais brutas reparações da ignorancia,
os mesquinhos concertos da arte parasyta, esses
profanam, tiram todo o prestigio.
Tal é a geral impressão que me faz
ésta terra.
Almocemos, que ja oiço chamar para isso, e iremos
ver depois se me inganei.
Ao almôço a conversação veio
naturalmente a
cahir no seu objecto mais óbvio, Santarem. D.
Affonso Henriques e os seus bravos, San'Frei Gil e
o Sancto-milagre, o Alfageme e o Condestavel, el-rei
D. Fernando e a rainha D. Leonor, Camões
desterrado aqui, Frei Luiz de Sousa aqui nascido,
Pedralvares Cabral, os Docems, quasi todas as
grandes figuras da nossa historia passaram em revista.
Porfim veio Sancta Iria tambem, a madrinha
e padroeira d'esta terra, cujo nome aqui
fez esquecer o de romanos e celtas.
[34]
Quem tem uma idea fixa, em tudo a mette.
A minha idea fixa em coisas de arte e litterarias
da nossa peninsula são as xacaras e romances
populares. Ha um de Sancta Iria.
Porque é a Sancta Iria da trova popular tam
differente da Sancta Iria das legendas monasticas?
A trova é ésta, segundo agora a rectifiquei e
appurei pela collação de muitas e
várias versões
provinciaes com a ribatejana ou bordalenga, que
em geral é a que mais se deve seguir.
[2]
Stando eu á janella co'a
minha almofada,
Minha agulha d'ouro, meu dedal de prata;
Passa um cavalleiro, pedia pousada;
Meu pae lh'a negou: quanto me custava!
―'Ja vem vindo a noite, é tam so a estrada...
Senhor pae, não digam tal da nossa casa,
Que a um cavalleiro que pede pousada
Se fecha ésta porta á noite cerrada.'
[35]
Roguei e pedi―muito lhe pezava!
Mas eu tanto fiz que porfim deixava.
Fui-lhe abrir a porta, mui contente entrava;
Ao lar o levei, logo se assentava.
Ás mãos lhe dei agua, elle se lavava;
Puz-lhe uma toalha, n'ella me
limpava.
Poucas as pallavras, que mal me fallava,
Mas eu bem sentia que elle me mirava.
Fui a erguer os olhos, mal os levantava,
Os seus lindos olhos na terra os pregava.
Fui-lhe pôr a cea, muito bem ceava;
A cama lhe fiz, n'ella se deitava.
Dei-lhe as boas noites, não me replicava:
Tam má cortezia nunca a vi usada!
Lá por meia noite que me eu suffocava,
Sinto que me levam co'a bôcca tapada...
Levam-me a cavallo, levam-me abraçada,
Correndo, correndo sempre á desfilada.
Sem abrir os olhos, vi quem me roubava;
Callei-me e chorei―elle não fallava.
[36]
D'alli muito longe que me perguntava
Eu na minha terra como me chamava.
―'Chamavam-me Iria, Iria a fidalga;
Por aqui agora Iria, a cansada.'
[3]
Andando, andando, toda a noite andava;
Lá por madrugada que me attentava...
Horas esquecidas commigo luctava;
Nem fôrça nem rogos, tudo lhe mancava.
Tirou do alfange... alli me matava,
Abriu uma cova onde me interrava.
No fim de sette annos passa o
cavalleiro,
Uma linda ermida viu n'aquelle outeiro.
―'Minha Sancta Iria, meu amor primeiro,
Se me perdoares, serei teu romeiro.'
―'Perdoar não te heide, ladrão carniceiro,
Que me degollaste que nem um cordeiro.'
Ou houve duas sanctas d'este nome, ambas de
aventurosa vida e que ambas deixassem longa e profunda
memoria de sua belleza e martyrio―o de
[37]
que não tenho a menor idea―ou nos
escriptos
dos frades ha muita fábula de sua unica
invenção
d'elles que o povo não quiz acreditar: alias
é inexplicavel a singeleza d'esta
tradição oral.
Tam simples, tam natural é a narração
poetica
do romance popular, quanto é complicada e
cheia de maravilhas a que se auctoriza nas
recordações
ecclesiasticas.
O caso é grave, fique para novo capitulo.
CAPITULO XXX.
Historia de Sancta Iria segundo os chronistas e
segundo o
romance popular.
A milagrosa Sancta Iria―Sancta Irene―que
deu o seu nome a Santarem, donzella nobre,
natural da antiga Nabancia
[4],
e freira
[40]
no convento dupplex
[5]
benedictino que pastoreava
o sancto abbade Celio, floreceu pelos meados
do septimo seculo. Namorou-se d'ella extremosamente
o joven Britaldo, filho do conde ou consul
Castinaldo que governava aquellas terras, e
não podendo conseguir nada de sua virtude, cahiu
infêrmo de molestia que nenhum physico acertava
a conhecer, quanto mais a curar.
É sabido que a mais sancta lhe não pêza
de
que estejam a morrer por ella; e, mais ou menos,
sempre sympathisa com as victimas que faz.
Sancta Iria resolveu consolar o pobre Britaldo;
e ja que mais não podia por sua muita virtude, quiz
ver se lhe tirava aquella louca paixão e o convertia.
Sahiu, uma bonita manhan, do seu convento―que
não guardavam ainda as freiras tam absoluta
e estreita clausura―e foi-se a casa do namorado
Britaldo.
Consolou como mulher e ralhou como sancta,
e porfim, impondo-lhe na cabeça as lindas e
bemdittas mãos, n'um instante o sarou de todo
[41]
achaque do corpo; e se lhe não curou o d'alma
tambem, pelo menos lh'o adormentou, que parecia
acabado.
Mas como o demo, em chegando a entrar n'um
corpo humano, parece que não sai d'elle senão
para
se ir metter n'outro; tam depressa o inimigo deixou
ao pobre Britaldo, como logo se foi incaixar
em não menor personagem do que o monge Remigio,
que era o mestre e director da bella
Iria.
Arde o frade em concupiscencia, e não obtendo
nada com rogos e lamentos, jurou vingar-se.
Disfarçou porêm, fingiu-se emendado, e deu-lhe,
quando ella menos cuidava, uma bebida de
sua diabolica preparação, que apenas a sancta a
havia tomado, lhe appareceram logo e continuaram
a crescer todos os signaes da mais apparente
maternidade.
Corre a fama do supposto estado da donzella,
chovem as injúrias e os insultos dos que mais a
tinham respeitado até então. E Britaldo, que se
julga escarnecido pela hypocrisia d'aquella mulher
artificiosa, em vez de a esquecer com desprêzo―sente
[42]
reviver-lhe, senão tam pura, muito
mais ardente, toda a antiga paixão.
Tam mysterioso é o coração do
homem!―tam
vil! dirão os asceticos―tam inexplicavel!
direi eu com os mais tolerantes.
Novas tentativas, promessas, ameaças do furioso
amante... A sancta resiste a tudo, forte na
sua virtude.
Costumava a devota donzella ir todas as noites
a uma occulta lapa que jazia no fim da cêrca e
juncto ao rio Nabão, para alli estar mais so com
Deus, e desabafar com Elle á sua vontade. Soube-o
Britaldo, espreitou a occasião e alli a fez
apunhalar por um seu criado cujo nome a legenda
nos conservou para maior testimunho de verdade:
chamava-se Banam.
Banam! é um verdadeiro nome de mellodrama.
Morta a innocente, Banam despiu-lhe o hábito
e lançou o corpo ao rio, que depressa a levou
ás arrebatadas correntes do Zezere em que
desagua; e logo este ao Tejo―que defronte da
[43]
antiga Scalabicastro lhe deu sepultura em suas
louras areas, para maior glória da sancta e
perpétua
honra da nobillissima villa que hoje tem o
seu nome.
Mas emquanto ia navegando o corpo da sancta,
teve Celio, o abbade do convento, uma revelação
que lhe descobriu a verdade e os milagres
do caso; e communicando-a logo aos
monges e ao povo de Nabancia, sahiu com todos
de cruz alçada, e foi por esses campos da
Golegan fóra, até chegar á Ribeira de
Santarem.
Ahi benzendo as aguas do rio, éstas se
retiraram
cortezes e deixaram ver o sepulchro que era
de fino alabastro, obrado á maravilha pelas mãos
dos anjos.
Chegaram aopé do tumulo, abriram-n'o, viram
e tocaram o corpo da sancta, mas não o poderam
tirar, por mais diligencias que fizeram.
Conheceu-se que era milagre; e contentando-se
de levar reliquias dos cabellos e da tunica, voltaram
todos para a sua terra.
As aguas tornaram a junctar-se e a correr
como d'antes, e nunca mais se abriram senão
[44]
d'ahi a seis seculos e meio, quando a boa rainha
sancta Isabel, mulher d'el-rei D. Diniz, tam fervorosas
orações fez aopé do rio pedindo
á sancta
que lhe apparecesse, que o rio tornou a
abrir-se como o mar Vermelho á voz de Moises,
dizem os devotos chronistas, e patenteou o benditto
sepulchro.
Entrou a rainha a pé inchuto pelo rio dentro,
seguida de seu real espôso e de toda a
sua côrte; mas por mais que rezasse ella, e que
trabalhassem os outros com todas as fôrças
humanas,
não poderam abrir o tumulo; quebraram
todas as ferramentas, era impossivel. Desinganado
el-rei de que um podêr sobrehumano não permittia
que elle se abrisse, mandou a toda a pressa levantar
um padrão muito alto sôbre o mesmo tumulo,
e tam alto que o rio na maior inchente o
não podesse cubrir.
O rio esperou com toda a paciencia que os pedreiros
acabassem, e quando viu que podia continuar
a correr, deu aviso, retiraram-se todos,
tornaram a junctar-se as a
O rio esperou com toda a paciencia que os pedreiros
acabassem, e quando viu que podia continuar
a correr, deu aviso, retiraram-se todos,
tornaram a junctar-se as aguas e o padrão ficou
sobresahindo por cima d'ellas.
[45]
Passaram mais tres seculos e meio; e no anno
de 1644 a camara de Santarem mandou refazer
de cantaria lavrada o ditto marco ou pedestal
que não era senão de alvenaria, e
pôr-lhe
em cima a imagem da sancta.
Ainda lá está, assás mal cuidado com
tudo;
lá o vi com estes olhos peccadores no corrente
mez de julho de 1843. Mas, sem milagre nem
orações, o rio tinha-se retirado, havia muito,
para um cantinho do seu leito, e o padrão estava
perfeitamente em sêcco, e em sêcco está
todo o anno até começarem as cheias.
Tal é, em fidelissimo resummo, a historia da
Sancta Iria dos livros.
A das cantigas é, como ja disse, muito outra
e muito mais simples, conta-se em duas palavras.
A sancta está em casa de seus paes; um
cavalleiro desconhecido, a quem dão pousada uma
noite, levanta-se por horas mortas, rouba a descuidada
e innocente donzella, foge a todo o correr
de seu cavallo, e chegado a um descampado
d'alli muito longe, pretende fazer-lhe violencia...
A sancta resiste, elle mata-a. D'alli a annos
[46]
passa por ahi o indigno cavalleiro, ve uma
linda ermida levantada no proprio sítio onde
commetteu o crime, pergunta de que sancta é,
dizem-lhe que é de Sancta Iria. Elle cai de joelhos
a pedir perdão á sancta, que lhe lança
em
rosto o seu peccado e o amaldiçoa.
E acabou a historia.
Sería o povo que se esqueceu nas suas
tradições,
ou os frades que augmentaram nas suas escripturas?
Pois a legenda monastica é realmente
bella e cheia de poesia e romance, coisas que
o povo não costuma desprezar.
É difficil de explicar-se este phenomeno, interessantissimo
para qualquer observador não vulgar,
que n'estas crenças do commum, n'estas
antigualhas, desprezadas pela suberba philosophia
dos nescios, quer estudar os homens e as
nações e as edades onde elles mais sinceramente
se mostram e se deixam conhecer.
A extrema simplicidade do romance ou xacara
de Sancta Iria, o ser elle, d'entre todos os
que andam na memoria do nosso povo, o
[47]
mais geralmente sabido e mais uniformente
repettido
em todos os districtos do reino, e com
poucas variantes nas palavras, nenhuma no contexto,
me faz crer que ésta seja das mais antigas
composições não so da nossa lingua,
mas de toda
a peninsula. A phrase tem pouco sabor antigo:
este é um d'aquelles poemas quasi aborigines
que a tradição tem vindo intregando, e ao
mesmo tempo traduzindo, de paes a filhos insensivelmente;
e tambem não é porcerto dos
que desceram do palacio ás choupanas e fugiram
da cidade para as aldeas, como em muitos outros
se conhece: este visivelmente nasceu nos
arraiaes, nos oragos dos campos, e por lá tem
vivido até agora.
A fórma metrica da composição
é a que a
phrase didatica das Hispanhas chamou
romance em
endechas. Eu, adoptando para elle, mais que para a
fórma ordinaria do metro octosyllabo, a theoria do
ingenhoso philologo allemão, Deeping, tam benemerito
da nossa litteratura peninsular, creio que
estes são verdadeiros versos de dôze syllabas, e
que as coplas não constam senão de dous versos
cada uma, segundo a óbvia significação
da palavra.
O povo cantando não separa os hemistychios
[48]
d'estes versos como fazem os que os escrevem:
e ao contrário nos romances da medida
mais commum, o canto popular reparte distinctamente
cada membro de oito syllabas sôbre si.
Não sei se me ingano, mas desconfio que as
quatro coplas últimas, em que muda completamente
a rhyma, sejam additamento posterior
feito á cantiga original. Todavia estes oito versos
apparecem, com ligeiras variantes, em toda
a parte.
CAPITULO XXXI.
Quommodo sedet sola
civitas.―Santarem.―Portugal em
verso e Portugal em prosa.―Exquisito lavor de umas portas
e janellas de architectura mosarabe.―Busto de D. Affonso
Henriques.―As salgadeiras de Affrica.―Porta do Sol.―Muralhas
de Santarem.―Voltemos á historia de Fr.
Diniz
e da menina dos olhos verdes.
Eram mais de dez horas da manhan quando sahimos
a começar a longa viasacra de reliquias,
templos e monumentos que são hoje toda Santarem.
[50]
A vida palpitante e actual acabou aqui inteiramente:
hoje é um livro que so recorda o que foi. Entre
a historia maravilhosa do passado que todas éstas
pedras
memoram, e as
prophecias tremendas
do futuro que parecem gravadas n'ellas em characteres
mysteriosos, não ha mais nada: o presente
não é, ou é como se não
fosse: tam pequeno,
tam mesquinho, tam insignificante, tam
desproporcionado parece a tudo isto.
Dá vontade de intoar com o poeta inspirado
de Jerusalem: 'Quommodo sedet sola civitas!'
Portugal é, foi sempre uma nação de
milagre,
de poesia. Desfizeram o prestigio; veremos como
elle vive em
prosa. Morrer,
não morre a terra,
nem a familia, nem as raças: mas as
nações
deixam de existir.―Pois embora, ja que assim
o querem. A mim não me fica escrupulo.
Passámos a egreja da Alcaçova, que
achámos
ja fechada; e tomando sempre sôbre a esquerda,
fomos pelo que hoje parece uma azinhaga de entre
quintas, mas que visivelmente foi n'outras eras
a rua mais
fashionavel d'esta villa
cortezan. Aqui
estão quasi aopé da egreja umas portas e janellas
[51]
do mais fino lavor e gôsto mosarabe que me
lembra de ter visto.
E a proposito, porque se não hade adoptar na
nossa peninsula ésta designação de
mosarabe para
characterizar e classificar o genero architectonico
especial nosso, em que o severo pensamento christão
da architectura da meia
edade se sente relaxar
pelo contacto e exemplo dos habitos sensuaes
moirescos, e de sua luxuosa e redundante elegancia?
De que palacio incantado foram éstas portas
tam primorosamente lavradas? Que bellezas se
debruçaram d'essas arrendadas janellas para ver
passar o cavalleiro escolhido do seu coração?
São
tam lindas, tam elegantes ainda éstas pedras
desconjunctadas,
e mal sustidas de um muro insosso
e grosseiro que as facea, que naturalmente despertam
a mais adormecida imaginação a quanto sonho
de fadas e trovadores a poesia fez nascer dos
mysterios da edade-média.
Pouco mais adeante está, em um mau nicho
escalavrado e feio, um pretendido busto de D.
Affonso Henriques, a que attribuem grande antiguidade.
[52]
Não me fez esse effeito a mim.
Chegámos á porta do
Sol; sentamo'-nos alli a
gosar da majestosa vista. É majestosa mas triste.
A ribanceira que d'alli corta abaixo, até ao rio,
é arida e quasi calva: cobrem-n'a apenas, como
a mal povoada nuca de um velho, alguns tufos
de verdura cinzenta e grisalha de um arbusto
rasteiro, meio
frutex meio herbaceo
que aqui
chamam 'Salgadeira' e que a tradicção diz ter
vindo de Affrica para segurar a terra n'estes taludes
e precipicios. O aspecto e hábito da planta
é realmente affricano e oriental, não tem nada
de europeu. Mas ésta derradeira e occidental
parte da nossa Hespanha é, geologicamente fallando,
ja tam affrica, tam pouco europa, que
não sería necessaria a
transplantação talvez; e
porventura ficou ésta memoria entre o povo do
uso que os moiros faziam da planta para esse
fim.
Ésta porta do sol dizem que é onde se faziam
as execuções em tempos antigos. Foi bem
escolhido o sítio; não o ha mais triste e
melancholico.
Aopé está um torreão quadrado da
muralha
que ahi fórma canto para seguir depois na
[53]
direcção de sul a norte. D'este lado as
fortificações
e lanços de muro estão todas pouco estragadas;
e do mirante a que subimos, póde-se formar
perfeita idea do que era uma antiga cidade
murada.
Sería aqui, dizia eu commigo, que o nosso
Fr. Diniz de quem ja tenho saudades―o velho
guardião de San'Francisco veio chorar o seu ultimo
threno sôbre as ruinas da antiga monarchia?
Sería aqui n'este logar de desolação e
melancholia
que correram as suas derradeiras lagrymas!
Elle que ja não chorava, acharia aqui quem desse
aos seus olhos as fontes de agua que o coração
lhe pedia para se desaffogar dos pezares que o
rallavam na aridez e seccura de sua desconsolada
velhice?
Passavam-me éstas ideas pelo pensamento quando
o historiador que tantos capitulos nos retteve
no vale, contando-nos os successos de Joanninha
e da sua familia, nos disse:
'Sentemo-nos aqui na sombra que faz ésta muralha
e acabemos a historia da menina dos rouxinoes.
De tarde vamos á Ribeira saudar a memoria
[54]
do Alfageme. Ámanhan de manhan está
detalhado que iremos ver a Graça, o Sancto
milagre, San' Domingos e San' Francisco. Concluamos
hoje ésta historia.'
'Seja' respondemos nós.
Entraremos portanto em novo capitulo, leitor
amigo; e agora não tenhas medo das minhas
digressões
fataes, nem das interrupções a que sou
sujeito. Irá direita e corrente a historia da
nossa
Joanninha até que a terminemos... em bem
ou em mal? D'antes um romance, um drama em
que não morria ninguem era havido por semsabor;
hoje ha um certo horror ao tragico, ao
funesto que perfeitamente quadra ao seculo das
commodidades materiaes em que vivemos.
Pois, amigo e benevolo leitor, eu nem em
principios nem em fins tenho eschola a que esteja
sujeito, e heide contar o caso como elle
foi.
Escuta.
CAPITULO XXXII.
Tornámos á historia de Joanninha.―Preparativos
de guerra.―A
morte.―Carlos ferido e prisioneiro.―O hospital.―O
infermeiro.―Georgina.
'Escuta!' disse eu ao leitor benevolo no fim do
último capítulo. Mas não basta que
escute, é
preciso que tenha a bondade de se recordar do
que ouviu no capitulo XXV e da situação em
[56]
que ahi deixámos os dous primos, Carlos e Joanninha.
N'este despropositado e inclassificavel livro das
minhas
Viagens,
não
é que se quebre, mas inreda-se
o fio das historias e das observações por
tal modo, que, bem o vejo e o sinto, so com
muita paciencia se póde deslindar e seguir em
tam imbaraçada meada.
Vamos pois com paciencia, caro leitor; farei
por ser breve e ir direito quanto eu podér.
Lembra-te como n'uma noite pura, serena e
estrellada, aquelles dous se despediram um do
outro no meio do valle, como se despediram tristes,
duvidosos, infelizes, e ja outros, tam outros
do que d'antes foram.
N'essa mesma noite, a ordenada confusão de
um grande movimento de guerra reinava nos postos
dos constitucionaes. Á longa apathia de tantos
mezes succedia uma inesperada actividade.
Preparavam-se os sanguinolentos combates de Pernes
e de Almoster, que não foram decisivos logo,
mas que tanto appressaram o termo da contenda.
[57]
Carlos achou ordem de se appresentar no quartel-general,
partiu immediatamente. O pensamento
absorvido por ideas tam differentes, tam
confuso, tam alheado de si mesmo, seguiu machinalmente
o corpo. Foi, chegou, recebeu as
instrucções que lhe deram, e voltou mais
satisfeito,
mais tranquillo.
Tractava-se de morrer. Não sabe o que é
verdadeira
angústia d'alma o que ainda não
abençoou
a morte que viu deante de si, o que a não
invocou ainda como unico remedio de seu mal,
ou, o que é mais desesperado, como unica sahida
de suas fataes perplexidades.
Estes momentos são raros na vida, é certo;
mas quando occorrem, não ha
exaggeração nenhuma
em dizer que antes, muito antes a morte
do que elles.
Oh! e se a morte que se contempla é de honra
e glória, se o enthusiasmo, tirando fortemente
a corda dos nervos, os faz vibrar n'aquelles
tons secretos e mysteriosos que arrebatam, e elevam
o coração do homem á sublime
abnegação
de si, e de tudo o que é piqueno, baixo e vil
[58]
na sua natureza―oh então a morte parece um
triumpho, uma bemaventurança porcerto!
Carlos esqueceu-se de tudo, menos da sua espada
que affiou com escrupuloso cuidado, e das
suas boas e seguras pistolas inglezas que limpou
minuciosamente, carregou e escorvou com um
verdadeiro amor de artista que se compraz no
último acabamento de um trabalho predilecto.
O pouco da noite que lhe restava passou-se
n'isto, a marcha começou antes do dia. E os primeiros
raios do sol foram saudados pelo fuzilar
das espingardas, e pelo trovejar dos canhões.
Combateu-se larga e incarniçadamente―como
entre irmãos que se odeiam de todo o odio
que ja foi amor―o mais cruel odio que tem a
natureza!
O dia declinava ja quando n'um hospital em
Santarem entravam muitas maccas de feridos, e
entre elles, um todo crivado de ballas e cuberto
de sangue que, assim pelos restos do un
O dia declinava ja quando n'um hospital em
Santarem entravam muitas maccas de feridos, e
entre elles, um todo crivado de ballas e cuberto
de sangue que, assim pelos restos do uniforme
como por certo ar bem conhecido―e charecteristica
[59]
então, se via claramente ser do
exército
constitucional.
Eram muitas e perigosas as feridas d'esse homem;
estenderam-n'o n'uma especie de tarimba
sôbre que havia alguma palha, e quando lhe chegou
a sua vez foi examinado e pençado como os
outros. Não dava signal de padecer, tinha os olhos
fechados, o pulso forte mas não agitado de febre;
não proferia uma syllaba, não soltava um
ai, e prestava-se a tudo o que lhe diziam e faziam,
menos a soltar da mão esquerda que apertava
contra o peito o que quer que fosse que alli
tinha seguro e que lhe pendia ao pescosso de uma
estreita fitta preta.
Assim o deixaram largo tempo: elle adormeceu.
Não sería largo, mas foi profundo o seu
dormir. Quando acordou ja se não viu no vasto caravanseray
d'aquelle confuso hospital,
mas n'um
pequeno quarto arejado, limpo, e quasi confortavel
que em tudo parecia cella de convento, menos
na boa cama em que jazia o doente, e na
extremada elegancia do infermeiro que o velava.
O quarto era comeffeito uma cella do convento
[60]
de San'Francisco em Santarem, o doente o
nosso Carlos; e o infermeiro que o velava, uma
bella mulher de estatura não acima de ordinaria
mas nem uma linha menos, involvida nas amplissimas
pregas de um longo roupão de seda d'aquella
acertada côr que, em dialecto da rua Vivienne,
se diz
scabieuse; a
cabeça toucada de finissima
Bruxellas, com uns laços de preto e côr de
granada que realçavam a transparencia das rendas,
a infinita graça dos longos e ondados aneis
louros do cabello, e a pureza symetrica de um
rosto oval, classico, perfeito, sem grande mobilidade
de expressão mas bello, bello, quanto póde
ser bello um rosto em que pouco d'alma se
reflecte, e em que a serena languidez de uns
olhos azues entibía e modera a energia do sentimento
que não é menos profundo talvez, mas
certamente se expande menos.
De joelhos juncto ao leito de Carlos, com a
mão direita d'elle nas suas, os olhos seccos mas
fixos nas descahidas palpebras do soldado, aquella
mulher estava alli como a estátua da dor e da
anxiedade. A uma porta interior e que abria para
De joelhos juncto ao leito de Carlos, com a
mão direita d'elle nas suas, os olhos seccos mas
fixos nas descahidas palpebras do soldado, aquella
mulher estava alli como a estátua da dor e da
anxiedade. A uma porta interior e que abria para
uma especie de alcova obscura, em pé, os
braços cruzados e mettidos nas mangas, o capuz
[61]
na cabeça, estava um frade velho, alto mas curvado
do pêso dos annos ou dos soffrimentos.
O frade contemplava o infêrmo e a infermeira,
mas visivelmente não queria ser visto n'essa
occupação,
porque ao menor estremecimento do
doente recuava apressado e como assustado para
o interior da sua alcova.
Uma so vela de cera allumiava este quadro,
accidentando-o de fortes sombras, e dando-lhe
um tom de solemnidade verdadeiramente magico
e sublime.
Carlos segurava ainda na esquerda com o mesmo
affêrro o relicario ou talisman, o que quer
que era que não queria desprender de seu
coração.
A bella infermeira beijava de vez em quando
aquella mão tenaz que estremecia a cada beijo,
por mais suave e mimoso que fosse o leve
contacto d'esses labios delicados.
A outra mão estava nas mãos d'ella, mas era
insensivel a tudo, essa.
[62]
O silencio era o do sepulchro: so se ouvia o
respirar incerto e descompassado do infêrmo.
Derepente Carlos entreabriu as palpebras e
exclamou em inglez: '
Oh Georgina, Georgina,
I love you still.'―(Georgina,
Georgina, eu ainda
te amo).
Duas lagrymas―duas perolas, d'estas que se
criam com tanta dor no coração e que
ás vezes
sahem com tanto prazer dos olhos―romperam
do celeste azul dos olhos da dama e suavemente
correram por aquellas faces de uma alvura pallida
e mortal.
Carlos accordou de todo, abriu os olhos e cravou-os
fixamente no rosto angelico d'essa mulher.
Esteve assim minutos: ella não dizia nada nem
de voz nem de gesto: fallavam-lhe so as lagrymas
que corriam quietas, quietas, como corre
uma fonte perenne e nativa d'agua que mana sem
esfôrço nem impeto, por um declive natural e
facil.
[63] ―'Onde estou eu, Georgina?'
―'Nos meus braços.'
―'Que me succedeu?'
―'Que não podes ser feliz senão n'elles:
bem sabes.'
―'Sei... devia saber.'
―'Hasde sabe-lo agora. O passado...'
―'O passado! qual?'
―'O passado deixou de existir.'
―'E o futuro?'
―'Eu não creio no futuro.'
―'Porquê?'
―'Porque tu me disseste que não cresse.'
―'Eu!.. Eu sou um...'
[64] ―'Um homem.'
―'Oh!'
―'Basta e descança. Amanhan fallaremos.'
―'Estou ferido, muito; e doe-me agora...
não me doía.'
―'Estás, mas sem perigo: e estou eu aqui.
Dorme.'
―'Não posso. Que casa é ésta?'
―'San'Francisco de Santarem.'
―'Deus de misericordia!'
―'Es prisioneiro: sára, e eu te livrarei.'
―'Tu!―E tu aqui, como?'
―'Vim buscar-te, e achei-te assim.'
―'Georgina!'
[65] ―'Que tens tu ahi tam seguro na mão esquerda?'
―'Vê: a medalha com o teu cabello.'
―'Então amas-me tu ainda?'
―'Se te amo! Como no primeiro...'
―'Não mintas, Carlos... E dorme.'
―'Oh meu Deus, meu Deus! Georgina
aqui, eu n'este estado e... E a minha gente?'
―'A tua gente está salva.'
―'Aonde?'
―'Aqui mesmo, em Santarem.'
―'Quero... não quero... Oh sim, quero mas é
morrer. Tende misericordia de mim, meu Deus!'
―'Socega, Carlos.'
Mas Carlos não socegava: immudeceu porque
[66]
a torrente de seus pensamentos, o incontrado
d'elles, e o inesperado d'aquella situação lhe
imbargavam
a voz, e o quebramento das fôrças lhe
tolhia os movimentos do corpo; mas o espirito
inquieto e alvoraçado revolvia-se dentro com um
phrenesi louco. Era pasmar o que elle soffria.
Á fôrça de bebidas calmantes o accesso
diminuiu,
a noite passou mais tranquilla; e pela manhan
o doente não dava cuidado ao facultativo que
o veio ver.
Prohibiram-lhe fallar; e Georgina tinha a coragem
de lhe resistir, de lhe não responder todas
as vezes que elle tentava quebrar o preceito
de que dependia a sua vida... e a d'ella, porque
a infeliz amava-o... oh! amava-o como se não ama
senão uma vez n'este mundo.
Passaram dias, semanas, Carlos estava melhor,
estava salvo; Georgina pôde dizer-lhe um dia:
―'Carlos, meu Carlos, tu estás livre de perigo,
vou restituir-te aos teus.'
―'Os meus!'
[67] ―'Os teus. Tua avó, tua prima...'
―'Joaninha! oh! Joanninha...'
―'Tua avó que tambem tem estado a morrer
mas que emfim está escapa, ignora que tu
estejas aqui. Occultámo-lo egualmente a tua prima.'
―'Ah!'
―'Sim, assentámos de lh'o não dizer a uma
nem a outra até que tivessemos certeza da tua
melhora. Hoje porêm vais ve-las. E eu...'
―'Tu!'
―'Eu não tenho aqui mais nada que fazer.'
―'Georgina!'
―'Carlos!'
―'Tu ja me não amas?'
―'Não.'
[68]
Seguiu-se um silencio torvo e abafado como o
da calma que precede as grandes tempestades. O
rosto de Georgina estava impassivel, Carlos estorcia-se
debaixo de uma compressão horrivel e
incapaz de se descrever.
CAPITULO XXXIII.
Carlos e Georgina.
Explicação.―Ja te
não amo! palavra terrivel.―Que
o amor verdadeiro não é cego.―Frade no caso
outra vez. Ecce iterum Crispinus; ca
está o nosso Fr.
Diniz comnosco.
―'Tu ja me não amas, Georgina, tu!'
exclamou Carlos depois de uma longa e penosa
lucta comsigo mesmo: 'Ja me não amas
tu, Georgina? Ja não sou nada para ti n'este
[70]
mundo? Aquelle amor cego, louco, infinito, que
derramavas em torrentes sôbre a minha alma,
em que trasbordava o teu coração; aquelle amor
que eu cheguei a persuadir-me que era o maior,
o mais sincero, talvez o unico verdadeiro amor
de mulher que ainda houve no mundo, esse amor
acabou, Georgina? Seccou-se no teu peito a
fonte celeste d'onde manava? Nem as recordações
de nossa passada felicidade, nem as memorias
dos crueis lances que nos custou, dos
sacrificios tremendos que por mim fizeste, nada,
nada póde acordar na tua alma um echo, um
echo sumido que fosse, da antiga harmonia de
nossas vidas―da nossa vida, Georgina, porque
nós chegámos a confundir n'um só os
dois seres
da nossa existencia―Oh! porque vivi eu até
este dia? E tu, tu que refinada crueldade te
inspirou o salvar uma vida que tinhas condemnado,
que tinhas sacrificado quando a separaste
da tua?'
―'Carlos,' respondeu Georgina com a fria
mas compassiva piedade que mais o desesperava:―'Carlos,
não abuses da pouca saude que
ainda tens. O esfôrço d'alma que estás
fazendo
póde-te ser prejudicial. Socega. Tu illudes-te, e
[71]
sem querer, procuras illudir-me tambem a mim.
Entra em ti, Carlos, e discorramos pausadamente
sôbre a nossa situação, que
não é agradavel
porcerto nem para um nem para outro,
mas que póde supportar-se se tivermos juizo para
a incarar toda e sem medo, e para nos convencermos
com lealdade e franqueza do que ella
realmente é. Ouve-me, Carlos: tu amaste-me
muito...'
―'Oh como, oh quanto! Nenhum homem...'
―'Poucos homens, é certo, amaram ainda
como tu... quem sabe! talvez nenhum.―Não
quero perder ésta última illusão... ja
não tenho outra... Talvez nenhum amou como tu me
amaste ou... ou cuidaste amar-me. Eu... oh! eu
quiz-te... pelo eterno Deus que me ouve! eu
quiz-te com uma cegueira d'alma, n'uma singeleza
de coração, com um abandôno tam
completo,
uma abnegação tam inteira de mim mesma,
que realmente creio, este é o amor que so a
Deus se deve, que so ao Creador a creatura póde
consagrar licitamente.
Bem castigada estou: mereci-o.'
[72] ―'Georgina, Georgina!'
―'Deixa-me, quero desabafar eu tambem
agora. Ouve-me, tens obrigação de me ouvir.―Se
te dei provas d'este amor, tu o sabes; se
desde que te amei, uma palavra, um gesto, um
pensamento unico, um so e o mais leve relampejar
da imaginação desmentiu em mim d'esta
absoluta e exclusiva dedicação de todo o meu
ser... dize-o tu.'
―'Não, minha alma, não, minha vida,
não;
tu és um anjo, tu es...'
―'Sou uma mulher que te amava como creio
que ordinariamente se não ama.'
―'Não, certo, não.'
―'Fomos felizes, é verdade; e creio que
poucos amantes ainda foram tam felizes como
nós nos breves dias que isto durou.―Tu partiste
para a tua ilha; era forçoso partir, conheci-o
e resignei-me. Consolavam-me as tuas cartas,
as tuas cartas de fogo, escriptas, oh se o eram
escriptas com o mais puro sangue do teu coração.
[73]
Nunca duvidei do que me ellas diziam:
não
se mente assim, tu não mentias então.
É falso
que o amor seja cego: o amor vulgar póde sê-lo,
amor como o meu, o amor verdadeiro tem
olhos de lynce: eu bem via que era amada.
Nunca me escreveste a protestar fidelidade, e
eu sabía, eu via que tu me eras fiel.―Assim
passaram meses, annos. Na ilha e no Porto foste
o mesmo. Eu padecia muito, mas confortava-me,
vivia de esperanças... triste viver mas doce!
Emfim vieste para Lisboa, para aqui... e as
tuas cartas que não eram menos ternas nem menos
apaixonadas...'
―'Se eu nunca deixei, nem um momento...'
Com um gesto expressivo, e de suave mas
resoluta denegação, Georgina pôs a
mão na bôcca
do pobre Carlos, como para o impedir de dizer
uma blasphemia. Elle segurou-a com as suas
ambas e lh'a beijou mil vezes com um arrebatamento,
uma
furia, n'um paroxismo de
lagrymas
e de soluços, que partiriam o coração
ao mais
indifferente. Commoveu-se, vacillou a inalteravel
rigidez do bello rosto da dama, abaixaram-se
[74]
as longas palpebras de seus olhos; mas se chegou
até elles alguma lagryma mais rebelde, prompta
refluiu para o coração, porque ao
levantá-los
outra vez e ao fixá-los tranquillamente nos do
seu amante, aquelles olhos puros, celestes e austeros
como os de um anjo offendido, estavam
seccos.
Ella continuou:
―'As tuas cartas, que não eram menos ternas
nem menos apaixonadas, começaram todavia
a ser menos naturaes, mais incarecidas... eram
menos verdadeiras por fôrça. Senti-o, vi-o, e
cuidei morrer. Uma familia da minha amizade
vinha então para Portugal, accompanhei-a. Apenas
cheguei, procurei e obtive os meios seguros
de tranzitar pelos dous campos contendores: presagiava-me
o coração que me havia de ser preciso.
E foi; cheguei ao valle no dia em que tu
o deixavas para aquella fatal acção que te ia
custando
a vida. Vim-te incontrar prisioneiro e meio
morto no hospital dos feridos. Aopé de ti estava
um frade...'
―'Um frade! Meu Deus, se seria elle?'
[75] ―'Era elle.'
―'Pois tu sabes?..'
―'Sei: eu disse-lhe quem era e o que tu me
eras...'
―'Tu a elle... disseste?..'
―'Disse. Não sei se fiz mal ou bem, sei
que me não importava o que fazia. Vi depois que
me não inganára na confiança que
posera n'elle.
Trouxemos-te para este convento, trattámos de
ti, conseguimos salvar-te a vida... E em quanto
esse cuidado me livrava de outros, fui... fui feliz.
A tua gente... a tua familia do valle tambem
veio para Santarem... tua avó e tua prima, Carlos...'
―'Joanninha! Joanninha está aqui?'
―'Está; socega; ja t'o disse, logo a verás.'
―'Eu! Eu para quê? Eu não quero...'
[76] ―'Quero eu: hasde ve-la. Ja sabes que sei
tudo.'
―'Tudo o quê, Georgina?'
―'Queres que t'o repitta? Repettirei. Que
tu amas tua prima, que ella que te adora. E
por Deus, Carlos eu ja lhe quero como se fôra
minha irman. Intendes bem agora que te não amo?
Comprehendes agora que tudo acabou entre nós,
e que não vejo, não posso ver em ti ja
senão o
espôso, o marido da innocente criança que tomei
debaixo da minha protecção, e a quem juro
que hasde pertencer tu?'
―'Juras falso.'
―'Como assim! Pois queres mais victimas?
Não estás satisfeito com a minha ruina? Eu
aomenos
não sou do teu sangue. E essa velha decrepita
que é tua avó, que duas vezes foi em
verdade tua mãe porque te criou,―essa innocente
que te ama na singelleza do seu coração...
e esse pobre frade velho...'
―'Oh! aqui anda elle, bem o vejo, aqui
[77]
anda o genio mau da minha familia. Malditto sejas
tu, frade!'
O desgraçado não acabára bem de
pronunciar
éstas palavras, quando a porta da alcova se abriu
de par em par, e a rigida, ascetica figura de
Fr. Diniz estava deante d'elle.
CAPITULO XXXIV.
Carlos,
Georgina e Fr. Diniz.―A
peripecia do drama.―
Carlos estava meio sentado meio deitado n'uma
longa cadeira de recôsto; Georgina em
pé, com os braços cruzados e na attitude de
reflexiva
tranquillidade. Um sol brilhante e ardente,
[80]
um sol de maio, feria os estreitos vidros da
pequena janella que so dava luz áquelle quarto:
a excessiva claridade era velada por uma longa e
ampla cortina.
Carlos lançou derepente a mão a essa cortina
e a affastou para avivar a luz do aposento. Um
raio agudissimo de sol foi bater direito no macerado
rosto do frade, e reflectiu de seus olhos
incovados, um como relampago de íra celeste que
fez estremecer os dous amantes.
Não foi porêm senão relampago;
sumiu-se,
apagou-se logo. Aquelles olhos ficaram mortaes,
mudos, fixos, invidraçados como os de um homem
que acabou de expirar e a quem não cerraram
ainda as palpebras.
E assim mesmo aquelles olhos tinham o podêr
magnetico de fixar os outros, de os não deixar
nem pestanejar.
Curvo, incostado a um bordão grosseiro, o seu
chapeo alvadio debaixo do braço, o frade deu
alguns passos tremulos para onde estavam os dous,
arrastando a custo as sôltas alpercatas que davam
[81]
um som baço e batido, e faziam―não sei por
quê nem como―estremecer a quem as sentia.
Parou a pouca distancia, e tirando a voz fraca e
tenue, mas vibrante e solemne, do íntimo do
peito, disse para Carlos:
―'Tu mal disseste-me, filho, e eu venho perdoar-te.
Tu detestas-me, Carlos, de todos os podêres
da tua alma, com toda a energia de teu
coração; e eu venho-te dizer que te amo, que
tomára dar a minha vida por ti, que do fundo
das intranhas se ergue este
immenso amor que
não tem outro egual, a pedir-te misericordia, a
clamar-te em nome de Deus e da natureza, a pedir-te,
por quanto ha sancto no ceo e de respeito
na terra, que levantes essa maldicção, filho,
de cima da cabeça de um moribundo.'
Eram dittas em tal som estas vozes, vinham
pronunciadas lá de dentro d'alma com tal vehemencia,
que lh'as não articulavam os labios, rompiam-n'os
ellas e sahiam.
O soldado parecia desaccordado, confuso e
sem intelligencia do que ouvia. Georgina impassivel
[82]
até alli, rigida e inabalavel com o seu
amante, sentia commover-se agora d'aquella angústia
do velho. É que partia pedras a dor que
vinha n'aquellas fallas sepulchraes, que trassudava
d'aquelle rosto cadaverico.
Ao mesmo tempo, um som confuso, um tumulto
vago e abafado de mil sons que pareciam
arredar-se, incontrando-se, tornando, indo e
vindo, e dispersando-se para se tornar a unir,
e tornando a dispersar-se emfim, reboava ao
longe pela villa, extendia-se nas praças, concentrava-se
nas ruas, e mandava áquella solitaria e
remota cella do convento uns echos surdos, como
os do mar ao longe quando se retira da praia no
murmurar melancholico que precede um temporal
d'equinoxio.
―'Ouves esse borburinho confuso, Carlos?
É a tua causa que triumpha, é a d'estes loucos
que succumbe, é a de Deus que a si mesmo se
desamparou. A hora está chegada, escreveram-se
as lettras de Balthasar; a confusão e a morte
reinam sos e senhoras na face da terra. Eu quero
ir morrer onde haja Deus... Perdoae-me, Senhor,
[83]
a blasphemia!.. onde o seu nome não seja
profanado e malditto...
Ao canto de uma pedra, debaixo de uma árvore
hade ser, n'algum logar escuso d'essas
charnecas, onde me não rasguem aomenos ésta
mortalha, e m'a não insultem nos ultimos instantes,
porque eu sou frade, frade, frade... o
malditto frade! Mas frade quero morrer, e heide
morrer. Oh! assim tivera eu vivido!'
―'Mas que foi; que succedeu?'
―'O resto do exército realista evacua n'este
momento Santarem; vão em fuga para o Alemtejo.
Os constitucionaes venceram na Asseiceira,
e tudo está ditto para nós. Para mim, Carlos,
falta uma palavra so: quererás tu dizê-la?'
―'Eu?'
―'Sim tu, Carlos. Revoca as palavras terriveis
que proferiste, e em nome de Deus, filho,
perdoa a teu...'
A Carlos revolvia-se-lhe no peito uma grande
[84]
lucta. O horror, a compaixão, o odio, a piedade
iam e vinham-lhe alternadamente do coração
ás faces, e tornavam do rosto para o peito.
Uma exclamação involuntaria lhe rebentou
dos labios em meio d'este combate:
―'Padre, padre! e quem assacinou meu pae,
quem cegou minha avó, e quem cubriu de infamia
a minha... a toda a minha familia?'
―'Tens razão, Carlos, fui eu; eu fiz tudo
isso: mata-me. Mas oh! mata-me, mata-me por
tuas mãos, e não me maldigas. Mata-me, mata-me.
É decreto da divina justiça que seja assim.
Oh! assim meu Deus! ás mãos d'elle, Senhor!
Seja, e a vossa vontade se faça...'
O frade cahiu de bruços no chão, e com as
mãos postas e extendidas para o mancebo, clamava:
―'Mata-me, mata-me! aqui ha pouca vida
ja: basta que me ponhas o pé sobre o pescoço;
esmaga assim o reptil venenoso que mordeu na tua
familia e que fez a sua desgraça e a de quantos
o amaram. Sim, Carlos, sê tu o executor das
[85]
íras divinas. Mata-me. Tantos annos de penitencia
e de remorsos nada fizeram; mata-me, livra-me
de mim e da íra de Deus que me persegue.'
CAPITULO XXXV.
Reunião de toda a familia.―Explicação
dos mysterios.―O
coração da mulher.―Parricidio.―Carlos beija
emfim a
mão a Fr. Diniz e abraça a pobre da
avó.
Georgina disse para Carlos:
―'Dá a mão a esse homem, levanta-o e dize-lhe
as palavras de perdão que te pede.'
[88]
Carlos fez um gesto expressivo de horror e de
repugnancia. Georgina ajoelhou aopé do frade,
tomou as mãos d'elle nas suas, e lh'as affagou com
piedade; depois levantou-lhe o rosto, incostou-o
a si e gradualmente o foi accalmando. O velho
parecia uma criança mimada e sentida que se vai
accalantando nos braços da mãe: agora so
murmurava
de vez em quando alguns soluços, a mais
e a mais raros.
Estavam de joelhos ambos, o frade e a dama;
elle mal se tinha, ella amparava em seus braços
e contra seu peito o amortecido corpo do velho.
E Georgina disse com aquelle som de voz irresistivel
que as filhas de Eva herdaram de sua
primeira mãe, e que a ella ou lh'o tinham antes
insinado os anjos, ou o apprendeu depois da serpente,―um
som de voz que é a última e a mais
decisiva da seducções femininas―disse:
―'Este homem vai morrer, Carlos: e tu
hasde-o deixar morrer assim,
meu
Carlos?'
Todo o odio, todas as offensas se callaram, desappareceram
deante d'aquellas palavras do anjo
supplicante.
Meu Carlos ditto assim,
não o ouvíra
[89]
elle ha muito tempo, não lhe pôde resistir:
extendeu
os braços para o frade, cahiu de joelhos aopé
d'elle, e um so abraço uniu a todos tres.
Como no eterno grupo de Lacoonte, o velho e
os dous mancebos sentiam estreitar-se das cobras
da mesma dor, e affogavam junctos da mesma
angústia.
Assim estiveram longamente; e não se ouvía
entre elles senão algum gemido sôlto, e aquelle
sussurrar sumido das lagrymas que mais se ouve
com o coração do que com os ouvidos.
O frade disse emfim com uma voz apenas perceptivel
de timida e de fraca:
―'Carlos, meu Carlos, perdoa tambem... oh
perdoa á memoria de tua desgraçada
mãe!'
O mancebo saltou convulsamente como o cadaver
na pilha galvanica. Em pé, hirto, horrivel,
tremendo, exclamou com um brado de trovão:
―'Demonio! demonio incarnado em figura
de homem, que vieste recordar-me? Dizias bem
[90]
indagora, monstro: so ás minhas mãos deves
morrer.
E hasde.'
Lançou-se a um enorme velador de pau-sancto
que lhe jazia aopé, massa terrivel d'Hercules,
e bastante a fender craneos de ferro, quanto
mais a descarnada caveira do frade! D'ambas
as mãos a levava no ar; e o velho extendeu para
elle a cabeça como na ancia de morrer... Georgina
fechou involuntariamente os olhos, e um grande
e medonho crime ia consummar-se...
Dous gritos agudissimos, dous gritos de desespêro
e de terror, d'aquelles que so sahem da bôcca
do homem quando suspenso entre a morte e
a vida―soaram repentinamente no apposento;
uma velha decrepita e meia morta, arrastada por
uma criança de pouco mais de dezeseis annos,
estava deante de Carlos, e ambas cubriam com
seus debeis corpos a fragil e extenuada figura
da sua victima.
―'Filho, meu filho!' arrancou a velha com
stertor do peito: 'é teu pae meu filho. Este homem
é teu pae, Carlos.'
[91]
O ponderoso velador cahiu inerte das mãos do
mancebo, e rolou pesado e baço pelo pavimento.
Carlos cahiu por terra sem sentidos. De um pulo
Georgina estava aopé d'elle, e o fez incostar
na longa cadeira de braços. Estava lavado em sangue;
era uma ferida do pescôço que o excesso
da commoção lhe fizera rebentar. Os dous velhos
vieram ajoelhar-se aopé d'elle. As duas mulheres
moças lidavam pelo restaurar e lhe estancar o
sangue. A cambraia dos lenços, as rendas do collo
e das cabeças, tudo se fez em ataduras e compressas:
o sangue parou emfim.
Admiravel belleza do coração feminino, generosa
qualidade que todos seus infinitos defeitos
faz esquecer e perdoar! Essas duas mulheres amavam
esse homem. Esse homem não merecia tal
amor: não, por Deus! o monstro amava-as a ambas:
está tudo ditto. E ellas que o sabiam, ellas
que o sentiam, e que o julgavam digno de mil mortes,
ellas rivalizavam de cuidados e de ancia para
o salvarem.
De tanto não somos capazes nós.
E por isso admirâmos tanto.
[92]
E perdoâmos tanto.
E esquecêmos tanto.
Mas amar tanto, não sabemos: verdade, verdade...
Amâmos
melhor; sim, isso
sim:
tanto não.
O mancebo permanecia em deliquio. Fr. Diniz
e a velha rezavam. Georgina e Joanninha―ja
vereis que era Joanninha―olharam uma para a
outra, coraram e ficaram suspensas. A ingleza
extendeu a mão á amavel criança,
estremeceu
involuntariamente, mas disse-lhe com firmeza:
―'O ditto ditto, Joanninha! Eu ja o não amo;
prometto.'
―'Eu amo-o cada vez mais, Georgina: elle
é tam infeliz!'
―'Juras-me tu de o não deixar, de velar
por elle sempre, de o defender de si mesmo que
é o peior inimigo que tem?'
[93] ―'Se juro!'
―'Então adeus, Joanninha! Eu estou de mais
aqui. Ja tenho ouvido o que não devia ouvir. Os
segredos da tua familia não me pertencem. O
coração d'esse homem não é
meu, nem o quero.
É um nobre e grande coração,
Joanninha; mas...
Não te deixes dominar por elle se o queres segurar.
Adeus!―Santarem está desamparada pelos
realistas; eu vou para Lisboa. Consola tua
boa avó, e esse pobre velho. Elle não
é tam
criminoso, estou certa...'
―'Oh não! Carlos cuida-o assassino de seu
pae; e é falso. Minha avó ja me disse tudo.'
―'Falso!' murmurou Carlos sem abrir os
olhos: 'é falso? Pois não foi elle que matou meu
pae?'
―'Não, filho, clamou a velha: 'não, meu
filho; teu pae é este infeliz.'
―'E minha mãe?'
―'Tua mãe... e eu somos duas desgraçadas.
[94]
Que mais queres saber? Tua mãe amou esse homem...'
―'Ah!' disse Carlos: 'ah!' e abriu os
olhos pasmados para a avó e para o frade que
cravaram os seus no chão, e ficaram como dous
réos na presença do seu inflexivel juiz.
―'Mas esse homem que é... que por
fôrça
querem que seja meu... meu pae... Sancto Deus!
elle matou o outro.'
―'Defendi-me, foi defendendo ésta vida miseravel...
Oh nunca eu o fizera! E paraquê?
Paraque quiz eu viver? Para isto!'
―'E meu tio, o pae de Joanninha? Tambem
esse era preciso que morresse?'
―'Ambos se junctaram para me assassinar, e
me accommetteram atraiçoadamente na charneca.
Não os conheci; foi de noite escura e cerrada.
Defendi-me sem saber de quem, e tive a desgraça
de salvar a minha vida á custa da d'elles.
Filho, filho, não queiras nunca sentir o que eu
senti, quando pegando, um a um, n'esses cadaveres
[95]
para os lançar no rio, conheci as minhas
victimas... Era hynverno, a cheia ia de valle a
monte: quando abateu e se acharam os corpos ja
meios desfeitos, ninguem conheceu a morte de
que morreram; passaram por se ter affogado.
Ninguem mais soube a verdade senão eu―e tua
infeliz mãe a quem o disse para meu castigo, a
quem vi morrer de pezar e de remorsos, que
expirou nos meus braços chorando por elle, e
maldizendo-me a mim. Não sería bastante castigo,
meu filho?―Não foi, não. Este burel que
ha tantos annos me roça no corpo, estes cilicios
que m'o desfazem, os jejuns, as vigilias, as
orações
nada obtiveram ainda de Deus. A sua íra
não me deixa, a sua cholera vai até a sepultura
sôbre mim... Se me perseguirá além
d'ella!..'
Fez-se aqui um silencio horroroso: ninguem
respirava; o frade proseguiu:
―'Não me dei por bastante castigado com
a agonia de tua mãe, a mais horrorosa e desesperada
agonia que ainda presenciei, oh meu
Deus!.. Tive o cruel ânimo de explicar a tua
avó as negras circumstancias d'aquella morte, e
de lhe patentear toda a fealdade e hediondez do
[96]
meu crime. Rasguei-lhe o coração, e vi-lhe sahir
sangue e agua pelos olhos, até que lhe cegaram.
Que mais queres? Cuidei que podia morrer
sem passar por ésta derradeira
expiação. Deus
não o quiz. Aqui estou penitente a teus pés,
filho.
Aqui está o assassino de tua mãe, de seu marido,
de teu tio... o algoz e a deshonra de tua familia
toda.―Faze de mim como fôr tua vontade.
Sou teu pae...'
―'Meu pae!.. Misericordia meu Deus!'
―'Misericordia, filho, e perdão para teu pae!'
Carlos levantou-se deliberadamente, veio ao velho,
tomou-o a pêso nos braços, foi sentá-lo
na cadeira que acabava de deixar, e pondo-se
de joelhos, beijou-lhe a mão em silencio. Depois
foi abraçar-se com a avó, que o apalpava
soffregamente
com as mãos trémulas, e murmurava
baixo:
―'Agora sim, ja posso morrer, ja posso
morrer porque o abracei, porque o senti juncto
a mim, o meu filho, o filho da minha filha querida...'
[97]
Carlos é que não proferiu mais palavra;
tinha-se-lhe
rompido corda no coração, que ou
lhe quebrára o sentimento ou lh'o não deixava
expressar. Sahiu da cella fazendo signal que vinha
logo: mas esperaram-n'o em vão... não tornou.
D'ahi a tres dias, veio uma carta d'elle, de
juncto d'Evora onde estava com o exército constitucional.
CAPITULO XXXVI.
Que não se acabou a historia
de Joanninha.―Processo ao
coração de Carlos.―Immoralidade.―Defeito de
organização
não é immoralidade.―
Horror,
horror, maldicção!―Um
barão que não pertence á familia
lineana dos barões
propriamente dittos―Porta de Atamarma.―Senatus
consulto
santareno.―Nossa Senhora da Victoria
afforada.―Threnos
sôbre Santarem.
―Pois ja se acabou a historia de Joanninha?
―Não, de todo ainda não.
[100] ―Falta muito?
―Tambem não é muito.
―Seja o que for, acabemos, que está a
gente impaciente por saber como se concluiu tudo
isso, o que fez o frade, o que foi feito da
ingleza, Joanninha e a avó que caminho levaram,
e o pobre Carlos se...
―Pois interessam-se por Carlos, um homem
immoral, sem principios, sem coração, que fazia
a côrte―fazer a côrte ainda não
é nada―que
amava duas mulheres ao mesmo tempo?
Horror, horror! como dizem os dramaticos romanticos:
horror e maldicção!
―Horror seja, horror será... e horror é,
sem dúvida. E maldicção que deitaram
ao pobre
homem. Mas immoralidade! Immoralidade
é inganar, é mentir, é
atraiçoar: e elle não o
fez. Desgraça grande ter um coração
assim; mas
não me digam que é próva de o
não ter. Eu
digo que elle tinha coração de mais: o que
é
um defeito e grande, é um estado pathologico
e anormal. Physicamente produz a morte; e moralmente
[101]
póde matar tambem o sentimento. Bem
o creio: mas é molestia commum, e com que
vai vivendo muita gente, até que um dia...
―Um dia, o orgam, que progressivamente
se foi dilatando, não póde funccionar mais, cessa
a circulação e a vida. Deve ser horrivel morte!
―Fallam physicamente?
―Physicamente. Mas no moral anda pelo
mesmo. E se esse é o defeito de Carlos...
―Sentir muito?
―Não; ter sentido muito: que o
coração,
como orgam moral, não se dilata a esse ponto
senão pelo demaziado excesso e violencia de
sensações
que o gastaram e relaxaram. Se esse é o
defeito, a molestia de Carlos, digo que ja sei o
fim da sua historia sem a ouvir.
―Então qual foi?
―Que um bello dia cahiu no indifferentismo
absoluto, que se fez o que chamam sceptico,
[102]
que lhe morreu o coração para todo o affecto
generoso,
e que deu em homem politico ou em
agiota.
―Póde ser.
―Mas qual das duas foi, deputado ou barão?
queremos saber.
―Saberão.
―Queremos ja.
―E se fossem ambas?
―Oh horror, horror, maldicção, inferno!
Ferros em braza, demonios pretos, vermelhos,
azues, de todas as côres! Aqui sim que toda a
artelharia grossa do romantismo deve cahir em
massa sôbre esse monstro, esse...
―Esse quê? Pois em se acabando o
coração
á gente...
―Eu não creio n'isso. Acaba-se lá o
coração
a ninguem!..
[103]
Houve gargalhada geral á custa do pobre incredulo,
e levantamo'-nos para ir ver o Sancto-milagre,
que era a hora apprazada, e estava o
prior á nossa espera.
Ámanhan o fim da historia da menina dos olhos
verdes.
No caminho incontrámos o nosso antigo amigo,
o barão de P.―barão de outro genero, e
que não pertence á familia lineana que n'esta
obra
procurámos classificar para
illustração do seculo―cavalheiro
generoso, e typo bem raro ja hoje
da antiga nobreza das nossas provincias, com todos
os seus brios e com toda a sua cortezia
d'outro tempo, que em tanto relêvo destaca da
grosseria villan d'essas notabilidades improvisadas...
Vinha em nossa procura para nos guiar. Seguimo-lo.
Fomos de passagem observando algumas das
mais interessantes coisas d'aquella interessantissima
terra em que se não póde dar um passo sem
que a reflexão ou a imaginação
incontre objecto
[104]
para se entreter. Inclinando um pouco á direita,
démos na celebrada porta de Atamarma.
Por aqui entrou D. Affonso Henriques, por
aqui foi aquella destemida surpreza que lhe intregou
Santarem, e acabou para sempre com o
dominio arabe n'esta terra.
Os illustrados municipaes Santarenos têem tido
por vezes o nobre e generoso pensamento de
demolir ésta porta! o arco de triumpho de Affonso
Henriques, o mais nobre monumento de
Portugal!
A idea é digna da epocha.
Felizmente parece que tem faltado o dinheiro
para a demolição; e o senatus consulto dos
dignos
padres conscriptos não pôde ainda executar-se.
Não que eu creia este arco o genuino arco
moiresco por onde entraram os bravos de D. Affonso;
mas creio que essa porta da antiga villa
se foi reparando, concertando e conservando em suas
successivas alterações, até chegar ao
que hoje está:
[105]
e ainda assim como está, é um
monumento
de respeito que so barbaros pensariam desacatar
e destruir.
Porcima d'ella está uma capellinha de N. S.
da Victoria: quer a tradicção que primeiro
erguida
e consagrada á Virgem pelo heroico fundador
da monarchia e da independencia portugueza.
Este é um dos muitos pontos em que a religião
das tradições deve ser respeitada e crida
sem grandes exames, porque nada ganha a crítica
em pôr dúvidas, e o espirito nacional perde
muito em as acceitar.
Deixá-la estar a Virgem da Victoria sôbre o
arco de Affonso Henriques. Prostremo'-nos e adoremos,
como bons portuguezes, o symbolo da fé
christan e da fé patriotica levantado pelas mãos
insanguentadas do triumphador!
Mas sería elle ou não que levantou essa
capellinha?
os documentos faltam, os escriptores
contemporaneos guardam silencio; a historia deve
ser rigorosa e verdadeira...
Deve: e os grandes factos importantes que fazem
[106]
epocha e são balizas da historia de uma
nação,
tambem eu os regeitarei sem dó quando lhes
faltarem essas authênticas indispensaveis. Agora
as circumstancias, para assim dizer, episodicas
de um grande feito sabido e provado, quem as
conservará senão forem os poetas, as
tradições,
e o grande poeta de todos, o grande guardador
de tradições, o povo?
Eu creio na Senhora da Victoria de Santarem,
e em muitos outros sanctos e sanctas, que a religião
do povo tem por esses nichos e por essas
capellas e por esses cruzeiros de Portugal, a recordar
memorias de que se não lavrou outro
auto, não se escreveu outra escriptura, de que
não ha outro documento, e que os frades chroniqueiros
não julgaram dever escrever no livro
de terça ou de noa, em nenhum livro preto nem
incarnado, porque o tinham por melhor escripto
e mais bem guardado nos livros de pedra em
que estava.
Coitados! não contaram com os apperfeiçoadores,
reparadores e demolidores das futuras
civilizações
que, para pôr as coisas em ordem, tiram
primeiro tudo do seu logar.
[107]
A camara de Santarem, não podendo demolir
o arco, tomou um meio termo que appósto
que ninguem é capaz de adivinhar. Afforou a capella
por cima d'elle, com altar, com sanctos e
tudo: e assim esteve afforada alguns annos, não
sei paraquê nem porquê; o caso é que
esteve.
O anno passado porêm (1842) começou a
manifestar-se
ésta reacção religiosa que os
especuladores
quizeram logo converter em ganancia pessoal,
descontando-a no mercado das agiotagens
facciosas; mas perdem o seu tempo, inda bem!
Veio, digo, ésta reacção nas ideas das
gentes;
e a capella da Senhora da Victoria sôbre o arco,
não sei tambem como nem porquê, foi
desafforada,
e restituida ao culto popular.
Subimos a ver a capella por dentro: é um
rifacimento ridiculo e miseravel, sem nenhuma
da solemnidade do antigo, nem elegancia moderna
alguma.
Desappontou-me tristemente. Vamos ao Sancto-milagre
depressa, que me quero reconciliar
com Santarem: e ja começa a ser difficil.
[108]
Mas é injustiça minha. Que culpa tem ella,
coitada?
Ai Santarem, Santarem, abandonaram-te, mataram-te,
e agora cospem-te no cadaver.
Santarem, Santarem, levanta a tua cabeça coroada
de tôrres e de mosteiros, de palacios e de
templos!
Mira-te no Tejo, princeza das nossas villas: e
verás como eras bella e grande, ricca e poderosa
entre todas as terras portuguezas.
Ergue-te, esqueleto colossal da nossa grandeza,
e mira-te no Tejo: verás como ainda são
grandes e fortes esses ossos desconjuntados que te
restam.
Ergue-te, esqueleto de morte, levanta a tua
foice, sacode os vermes que te poluem, esmaga
os reptis que te corroem, as osgas torpes que
te babam, as lagartixas peçonhentas que se passeiam
atrevidas por teu sepulchro deshonrado.
Ergue-te Santarem, e dize ao ingrato Portugal
[109]
que te deixe em paz ao menos nas tuas ruinas,
myrrhar tranquillamente os teus ossos gloriosos;
que te deixe em seus cofres de marmore,
sagrados pelos annos e pela veneração antiga,
as cinzas dos teus capitães, dos teus lettrados
e grandes homens.
Dize-lhe que te não vendam as pedras de teus
templos, que não façam palheiros e estrebarias de
tuas egrejas; que não mandem os soldados jogar
a pella com as caveiras dos teus reis, e a bilharda
com as cannellas dos teus sanctos.
Tiraram-te os teus magistrados, os teus mestres,
os teus seminarios... tudo, menos o intulho
e a caliça, as immundices e os monturos que
deixaram accumular em tuas ruas, que espalharam
por tuas praças.
Santarem, nobre Santarem, a Liberdade não é
inimiga da religião do ceo nem da religião da
terra. Sem ambas não vive, degenera, corrompe-se,
e em seus proprios desvarios se suicida.
A religião do Christo é a mãe da
Liberdade,
a religião do Patriotismo a sua companheira. O
[110]
que não respeita os templos, os monumentos de
uma e outra, é mau amigo da Liberdade, deshonra-a,
deixa-a em desamparo, intrega-a á irrisão
e ao odio do povo.
Vamos ao Sancto-milagre.
CAPITULO XXXVII.
A Graça e sua bella fachada gothica.―Sepultura de
Pedr'alvares
Cabral.―Outro barão que não é dos
assignalados.―Egreja
do Sancto-milagre.―Bellos medalhões mosarabes.―De
como, chegando o prior e o juiz, houve o
A. vista do Sancto-milagre, e com que solemnidades.―Monumento
da muito alta e poderosa princeza a infanta D.
Maria da Assumpção.―Casa onde succedeu o
milagre,
convertida em capella de stylo philipino.―O homem das
botas, e o que tem elle que haver com o Sancto-milagre
de Santarem.―Admiravel e graciosa esperteza da regencia
do Rocio.―Aaroun-el-Arraschid: e theoria dos governos
folgasões; os melhores governos
possiveis.―Volta o paladio
scalabitano de Lisboa para Santarem.
Inclinámos o nosso caminho para a esquerda,
e fomos passar deante do arrendado e elegante
frontispicio gothico da Graça. A ausencia
de não sei que regedor, ou insignificante personagem
[112]
que não respeita os templos, os monumentos de
de egual importancia que tem as chaves
da egreja e convento, nos fez perder toda a
esperança de visitar a sepultura de Pedr'alvares
Cabral que alli jaz, assim como outras bellas e
interessantes antiguidades de não menor preço.
Fomos seguindo até casa do barão d'A., outro
illegitimo, porque não pertence aos barões
assignalados
Que, sem passar além da
Taprobana,
No velho Portugal edificaram
Novo reino que tanto sublimaram.
Incontrámo-lo prompto a accompanhar-nos, e a
presidir, como juiz da irmandade que é, á grande
cerimonia da exposição e ostensão do
Sancto-milagre.
Junctos descémos á egreja; que é
perto.
A egreja pequena e do peior gôsto moderno por
dentro e por fóra. Notavel não tem nada se
não uns
quatro medalhões de pedra lavrada com bustos de
homens e mulheres em relêvo q
A egreja pequena e do peior gôsto moderno por
dentro e por fóra. Notavel não tem nada se
não uns
quatro medalhões de pedra lavrada com bustos de
homens e mulheres em relêvo que visivelmente
pertenceram a edificação antiga, e que
actualmente
[113]
estão incrustados na tosca alvenaria do cruzeiro.
Os bustos são de puro e finissimo lavor gothico,
altos de relêvo e desenhados com uma
franqueza que se não incontra em esculpturas
muito posteriores.
São talvez reliquias da primitiva egreja do
Sancto-milagre que nas successivas reedificações
se teem ido conservando. Abençoado seja o escrupuloso
que as salvou d'este último
melhoramento
que houve no desgraçado e desgraçioso templo:
o que não foi ha muitos annos por certo.
Chamo gothico ao lavor d'aquellas cabeças por
que é a phrase vulgar e impropria usada de toda
a gente: segundo ja observei n'outra parte, com
mais exacção se devêra dizer mosarabe.
Chegou o prior, o Sr. juiz deu as suas ordens,
vieram uns poucos de irmãos com tochas, distribuiram-nos
a cada um de nós a sua, e processionalmente
nos dirigimos á porta lateral do
altar-mor, da qual se sobe, por uma escada assás
larga e commoda, á especie de camarim
[114]
que está parallelo com o mais alto do throno
em que perpetuamente se conserva o grande
paladio santareno.
Subimos, accompanhados do prior em sobrepeliz
e estola; chegados ao alto, ajoelhámos em roda d'elle
que subiu a uns degrausinhos, abriu, com a chave
dourada que trazia pendente ao pescosso, uma
como porta de sacrario, depois ajoelhou, incensou,
tornou a ajoelhar, disse alguns versetos a
que respondeu o sacristão, e finalmente tirou de
seu repositorio uma especie de ambula de ouro
de fábrica antiga, mas não mais antiga que o
decimo sexto, ou decimo quinto seculo, quando
muito.
Depois de nos inclinarmos e receber a bençam
que o padre nos deitou com a reliquia, foi-nos
permittido erguer-nos, e chegar perto para ver
e observar.
Entre uns cristaes ja bem velhos e imbaciados
se descobre comeffeito o pequeno vulto
amarellado-escuro que piedosamente se crê ser
o resto da particula consagrada qu
Entre uns cristaes ja bem velhos e imbaciados
se descobre comeffeito o pequeno vulto
amarellado-escuro que piedosamente se crê ser
o resto da particula consagrada que a judia roubára
para seus feitiços.
[115]
Escuso contar a historia do Sancto-milagre de
Santarem que toda a gente sabe. O bom do
prior, ex-frade trino gordo e bem conservado,
não nos perdoou o menor ponto d'ella, que tivemos
de ouvir com a maior compuncção.
Incerrada outra vez a ambula com as mesmas
solemnidades, entrámos em conversação
com o
prior.
N'aquelle mesmo camarim juncto á devota
reliquia se conservaram, por espaço de cinco ou
seis annos, se bem me recordo do que o bom
do parocho nos contou, os restos mortaes da
senhora infanta D. Maria da Assumpção, que
fallecêra em Santarem nos ultimos mezes da
occupação d'aquella villa pelas
fôrças realistas.
O cadaver, mal imbalsemado e com más drogas,
foi mettido n'um caixão de folha de Flandres.
Em pouco tempo a corrupção estragou e rompeu
a folha, e uma infecção terrivel apestava a
egreja. Soffreu-se isto annos, representou-se ao
govêrno por vezes, mas nenhuma
resolução se
pôde obter. Até que afinal, declarando o prior
que, se não mandavam tomar conta d'aquelles
tristes restos da pobre princeza, elle se via obrigado
[116]
a mettê-los na terra, foi-lhe respondido
que fizesse como intendesse; e elle intendeu
que os devia sepultar no cruzeiro da
egreja, como fez, do lado da epistola, isto é,
á direita.
E ahi jaz em sepultura raza, sem mais distincção
nem epitaphio, a muito alta e poderosa
princeza D. Maria, filha do muito alto e poderoso
principe D. João o VI, rei de Portugal,
imperador do Brazil, e da conquista e navegação
etc.
Assim é o mundo, as suas grandezas e as
suas glórias!
A visita ao Sancto-milagre não é completa
sem se ir ver a casa onde elle se operou. Conservou-se
ella por alguns seculos em grande veneração,
e em mil seiscentos e tantos se converteu
porfim em capella. Hoje está abandonada,
chove em toda ella, e apenas tem uma má porta
que a defende das incursões dos animaes. Pena
e desleixo grande, porque é elegante e graciosa
a capellinha, lavrada de bons marmores,
no melhor gôsto do decimo-sexto seculo, de
renascença ja muito adiantada no classico: é
[117]
um verdadeiro typo do stylo philippino, que
tanto predomina n'essa epocha em toda a peninsula.
A historia do Sancto-milagre de Santarem muitas
vezes tem andado ligada com a historia do
reino; e ja n'este seculo, no tempo da guerra da
independencia, veio prender com um dos factos
mais importantes, e tambem com a mais curiosa
e comica aventura de que em Lisboa ha memoria.
Alludo nada menos que ao 'homem das botas.'
E perdoem-me as senhoras beatas a irreverencia
apparente, que bem sabem não ser eu de motejar
com as coisas sérias e sanctas. Mas o facto
é que a historia do Sancto-milagre está ligada
com a célebre historia do 'homem das botas.'
Saiba pois o leitor contemporaneo, e saiba a
posteridade, para cuja instrucção principalmente
escrevo este douto livro, que pela invasão de
Massena, o grande paladio scalabitano foi mandado
recolher a Lisboa, e ahi se conservou alguns
annos até muito depois da completa retirada dos
francezes.
[118]
Passado todo o perigo de que o exército invasor
roubasse―ou profanasse―que era o mais
provavel―a sancta reliquia, começou a reclamá-la
o senado e povo santareno, e a mostrar
muito pouca vontade de lh'a restituir o senado e
povo ulyssiponense. Era uma questão d'entre Alba
e Roma que dava serio cuidado aos reflectidos
Numas da regencia do Rocio.
Em poucas preplexidades tam graves se viu
aquelle pobre
govêrno que tantas teve, e de
quasi
todas se sahiu tam mal.
Não assim d'esta, que a evitou com o mais
inesperado e admiravel stratagema,
digno
de
ornar os maravilhosos fastos do grande Aaroun
el-Raschid, ou de qualquer outro principe de
bom humor, d'esses poucos felizes que em felizes
tempos reinaram a brincar, e zombaram com
o seu povo, mas fazendo-o rir.
Pois, senhores, apertada se via a regencia
d'estes reinos com a restituição do
Sancto-milagre
que era de justiça fazer-se a Santarem, mas
que Lisboa recusava, e ameaçava impedir. Temia-se
alborôto no povo.
[119]
Não sei de quem foi o alvitre, mas foi de maganão
de bom gôsto; e bom gôsto teve tambem o
govêrno em o acceitar e approveitar. Para o dia em
que o Sancto-milagre devia sahir de
Lisboa
Tejo
acima, e que se esperava fosse com grande solemnidade
e pompa ecclesiastica,―fez-se annunciar
por cartazes que um fulano de tal passaria
o rio, de Lisboa a Almada, em umas botas
de cortiça nas quaes se teria direito e inchuto,
navegando a pé sem mais embarcação,
vela nem
remo.
A logração era gorda e grande; melhor e mais
depressa foi ingullida. No dia apprazado despovoou-se
a capital, e uns em barcos outros por navios,
outros por essas praias abaixo, tudo se encheu
de gente de todas as classes, e todos passaram
o melhor do dia á espera do homem das botas.
No emtanto, muito surrateiramente imbarcava
o Sancto-milagre no seu barco de agua-arriba,
e navegava com vento e maré para as ditosas
ribeiras de Santarem.
Ninguem o viu sahir, nem soube novas d'elle
em Lisboa senão quando constou da sua chegada
[120]
a Santarem, e das grandes festas que lhe fizeram
aquelles saudosos e devotos povos ribatejanos.
Os Aarouns-el-Raschids do Rocio riram de
soccapa: e nunca tam innocentemente se riu govêrno
algum de ter inganado o povo.
Nós celebrámos a historia como ella merecia,
e fomos jantar á Alcaçova, para irmos de tarde
ver a Ribeira, e procurar os vestigios do seu inclyto
alfageme.
CAPITULO XXXVIII.
Jantar nos reaes paços de
Affonso
Henriques.―Sautés e salmis.―Desce
o A. á Ribeira de Santarem em busca da tenda
do Alfageme.―A espada do Condestavel.―Desappontamento.―O
salão elegante. Dissipam-se as ideas archeologicas.
Os fosseis.―Tudo melhor quando visto de longe.―O
baile público.―Soirée de piano
obrigado.―Theatro.
Desafinações da prima-dona. Syphlis incuravel das
traducções.
Destempêro dos originaes.―A xácara de rigor, o
subterraneo e o cemiterio.―Sublime gallimathias do ridiculo.―A
bella e necessaria palavra 'gallimathias.'―Se as
saudades matam.―Perigo de applicar o scalpello ou a lente
ao mais perfeito das coisas humanas.―De como a logica
é a mais perniciosa de todas as incoherencias.
Esperava-nos comeffeito em casa do nosso bom
hóspede, nos regios paços de Affonso Henriques,
um esplendido jantar a que assistiram
quasi todos os cavalheiros da terra.―Não quero
[122]
dizer as notabilidades, por ser palavra peralvilha
a que tenho invencivel zanga.―As iguarias
de legítima eschola portugueza, não menos
saborosas e delicadas por apparecerem estremes
de
sautés e salmis
extrangeirados. Brilharam sôbre
tudo os productos das duas grandes vendimas
rivaes, do Ribatejo e Ribadouro. Foi largo
e alegre o jantar.
Acabámos tarde, montámos logo a cavallo,
e pela porta de Atamarma
descémos á Ribeira;
era quasi sol pôsto quando la chegámos.
É o suburbio democratico da nobre villa, hoje
o ricco e o forte d'ella. Faz lembrar aquellas aldeas
que se criaram á sombra dos castellos feudaes
e que, libertas, depois, da oppressora protecção,
cresceram e ingrossaram em substancia
e fôrça: o castello, esse está vazio e
em ruinas.
Por aqui se faz quasi todo o commercio da Extremadura
e Beira com o Alemtejo. Os habitantes
laboriosos e activos conservam os antigos brios e
independencia do character primitivo: é a unica
parte viva de Santarem.
[123]
Cruzámos a povoação em todos os
sentidos,
procurando rastrear algum vestigio,
confrontar
algum sítio onde podessemos collocar, pela mais
atrevida supposição que fosse, a tenda do nosso
alfageme
com as suas espadas bem 'corregidas', as suas
armaduras luzentes e bem postas―e o joven
Nun'alvares passeando alli por pé, ao longo do
rio―como diz a chronica―namorado d'aquella
perfeição de trabalho, e dando a 'correger'
a bella espada velha de seu pae ao rustico propheta
que tantos vaticinios de grandeza lhe fez,
que o saudou condestavel, conde d'Ourem e salvador
da sua patria.
Nada podémos descubrir com que a
imaginação
se illudisse siquer, que nos désse, com
mais ou menos anachronismo, uma leve base tamsomente
para reconstruirmos a gothica morada do
célebre cutileiro-propheta que a historia herdou
das chronicas romanescas, e hoje o romance outra
vez reclama da historia.
Em Santarem ha poucas casas particulares que
se possam dizer verdadeiramente antigas; na Ribeira,
nenhuma. As implastagens e replastagens
successivas teem anachronizado tudo. É uma
feliz
[124]
expressão do Sr. Conde de Raczinski bem applicada
por elle ao estado de quasi todos os nossos
monumentos, ésta de anachronismo.
Mas alli, na villa alta ou Marvilla, no Santarem
propriamente ditto, ha os templos, os conventos,
a cêrca das muralhas que todavia conservam
a physionomia historica da terra; aqui
nem isso ha.
Voltei completamente desappontado da Ribeira,
isto é, da sua pedra e cal: gósto immenso
da sua gente.
Outra surpreza de mui differente genero nos
esperava á noite em Marvilla, no elegante salão
da B. d'A. com quem fomos tomar cha.
Em meio das ruinas e desconfôrto d'aquelles
desertos e mortos pardeiros circumstantes, ir incontrar
uma casa em plena florescencia de civilização
e de vida; ver a amabilidade e a elegancia
fazendo graciosamente as honras d'ella―por
mais que se devesse esperar―sempre espanta á
primeira vista: parecia golpe de varinha de condão.
[125]
Em tam agradavel e joven companhia todas as
ideas archeologicas se desvaneceram, apezar de
dous ou tres fosseis que alli appareciam para se
não perder detodo a côr local talvez.
Largamente se conversou, de Lisboa principalmente,
dos nossos mutuos amigos, das festas do
último hynverno, das probabilidades que se deviam
esperar do futuro.
Ralhámos muito da sociedade portugueza; exaltámos
París e Londres e não sei se Pekim e Nankim
tambem, e concluimos que antes Timbokotuo
do que a seccante capital do nosso pobre reino.
E comtudo estavamos com saudades d'ella;
e concessão d'aqui, concessão d'alli, viemos a
que não era tam má terra como isso.
Admiravel condicção da natureza humana, que
tudo nos parece melhor e menos feio quando visto
de longe!
O baile público mais semsabor, detestavel de
barulho e confusão, em que, para repousar os
olhos n'um rosto conhecido e agradavel, foi preciso
furar por entre centenas de cotovellos barbaros
[126]
que se não sabe d'onde vieram, levar desalmadas
pisadellas do dançante noviço, do deputado
recemchegado, e das botas novas do novo
director da Galocha―e, mais horrivel que
tudo! ver as absurdas toiletes, os penteados fabulosos,
as caras incriveis e as antidiluvianas figuras
de tanta mulher feia e desastrada... pois
esse mesmo baile, quando ja não é
senão reminiscencia
que acorda no meio do infado ronceiro
de uma terra de provincia, parece outro. As luzes,
as flores, a musica, toda aquella animação
lembra com prazer, o mais esquece, e involuntariamente
se descai um pobre homem a suspirar
por elle.
A soirée mais massante, de piano obrigado,
com dueto das manas, polka das primas e casino
das tias velhas―recordada em eguaes circumstancias,
tambem ja não accode á memoria
senão como uma reunião escolhida e
íntima, de
facil e doce tracto... oh! o verdadeiro prazer da
sociedade.
Pois o theatro... Que se lembre alguem, na
provincia, dos martyrios que soffreu o ouvido com
os berros da prima-dona, as desafinações do
tenor,
[127]
ou com o infadonho resonar
d'aquella adormecida
orchestra de San'Carlos!
A injoativa traducção de uma comedia da
Rua-dos-condes,
roída de incuravel syphilis, figura-se
avelludada de todas as graças do stylo de Scribe.
E o destempêro original de um drama plusquam
romantico, laureado das imarcessiveis palmas
do Conservatorio para eterno abrimento das
nossas bôccas! Lá de longe applaude-o a gente
com furor, e esquece-se que fummou todo o
primeiro acto ca fóra, que dormiu no segundo,
e conversou nos outros, até á infallivel scena
da xacara, do subterraneo, do cemiterio, ou
quejanda, em que a dama, soltos os cabellos e
em penteador branco, indoudece de rigor,―o
gallan, passando a mão pela testa, tira do
profundo thorax os tres
ahs! do
stylo, e promette
matar seu proprio pae que lhe appareça―
o
centro perde o centro de gravidade, o barbas
arrepella as barbas... e maldicção,
maldicção,
inferno!... 'Ah mulher indigna, tu não sabes
que n'este peito ha um coração, que d'este
coração
sahem umas arterias, d'estas arterias
umas veias―e que n'estas veias corre sangue...
[128]
sangue, sangue! Eu quero sangue, porque
eu tenho sêde, e é de sangue... Ah!
pois tu cuidavas? Ajoelha, mulher, que te
quero matar... esquartejar, chacinar!'―E a
mulher ajoelha, e não ha remedio senão
applaudir...
E applaude-se sempre.
E não é de mim que fallo, que eu gósto
d'isto: os outros é que se infastiam e cansam de
tanta barafusta, sempre a mesma...
Mas emfim o que digo é que na provincia
não ha tal fastio, que esquece a canceira, e que
nem o sublime gallimathias do ridiculo d'alli se
percebe.
Peço aos illustres puritanos que, á
fôrça de
sublimado quinhentista, tem conseguido levar a
lingua á decrepitude para a curar de suas infermidades
francezas, peço-lhes que me perdoem o
gallimathias, porque elle
é muito mais portuguez
que outra coisa. A célebre oração
pro gallo Mathiae
deu origem a ésta bella e ex
deu origem a ésta bella e expressiva palavra,
que sim foi procreada em francez, mas hoje
[129]
precisâmos ca muito mais d'ella que em parte
nenhuma.
Volto ja da digressão philologica: tornemos
á optica e á catoptrica.
Grande coisa é a distancia!
E dizem que saudades que matam! Saudades
dão vida; são a salvação de
muita coisa que,
em seu pleno gôso e posse pacífica,
pereceria
de inanição ou morreria da oppressora molestia
da saciedade.
Por isso eu não gósto de metter o scalpello no
mais perfeito da construcção humana, nem de
applicar a lente ao mais fino e delicado do seu
funccionar...
Vamos usando d'estas palavras que herdámos,
sem metter louvados na herança; não succeda
descobrirmos que estamos mais pobres do que
se cuidava... vamos repetindo éstas phrases que
nos formularam nossos antepassados sem as analysar
com muito rigor; não succeda vermos claro
demais que temos passado a vida a mentir...
[130]
Detesto a philosophia, detesto a razão; e sinceramente
creio que n'um mundo tam desconchavado
como este, n'uma sociedade tam falsa,
n'uma vida tam absurda como a que nos fazem
as leis, os costumes, as instituições, as
conveniencias
d'ella, affectar nas palavras a exactidão,
a logica, a rectidão que não ha nas coisas,
é a
maior e mais perniciosa de todas as incoherencias.
Não fallemos mais n'isto, que faz mal, e acabemos
aqui este capítulo.
CAPITULO XXXIX.
Processo de scepticismo em que
está o auctor.―Moralistas de
requiem.―O maior sonho d'esta vida,
a logica.―Differença
do poeta ao philosopho.―O coração de Horacio.―O
collegio de Santarem.―Jesuitas e templarios.―O alliado
natural dos reis.―'Ficar na gazeta' phrase muito mais
exacta hoje do que 'Ficar no tinteiro.'―San'Frei Gil e o
Doutor Fausto.―De como o A. foi ao tumulo do sancto
bruxo e o achou vazio.―Quem o roubaria?
O final do capítulo antecedente é, bem o
sei, um terrivel documento para este processo
de scepticismo em que me mandaram metter certos
moralistas de
requiem de quem tenho
a audacia
[132]
de me rir, d'elles e da sua querella e do
seu processo, protestando não me aggravar nem
appellar, nem por nenhum modo recorrer da
mirifica sentença que suas excellentissimas hypocrisias
se dignarem proferir contra mim.
Feita ésta declaração solemne,
procedamos.
E quanto a ti, leitor benevolo, a quem so
desejo dar satisfação, a ti, se ainda te cansas
com essas chymeras, dou-te de conselho que voltes
a pagina obnoxia, porque essas reflexões do
último capítulo são tam deslocadas no
meu livro
como tudo o mais n'este mundo. Dorme pois, e
não despertes do bello-ideal da tua logica.
É uma descuberta minha de que estou vaidoso
e presumido, ésta de ser a logica e a
exacção
nas coisas da vida muito mais sonho e muito mais
ideal do que o mais phantastico sonho e o mais
requintado ideal da poesia.
É que os philosophos são muito mais loucos
do que os poetas; e de mais a mais, tontos: o
que est'outros não são.
[133]
Voltemos, voltemos a pagina comeffeito, que
é melhor.
Amanheceu hoje um bello dia, puro e sublime.
Dorme nas cavernas do padre Eolo aquelle
vento sêcco e duro, flagello dos estios portuguezes.
Suspira no ar uma viração branda e suave
que regenera e dá vida. Mal impregado dia para
o passar a ver ruinas! No seio da sempre joven
natureza, sob a remoçada espessura das árvores,
sôbre a alcatifa sempre renovada das grammas
verdes e variegadas boninas, queria eu que me
corresse este dia em ocio bemaventurado de corpo
e d'alma, sentindo pulsar lento e compassado
o coração livre e sôlto de todo
impenho, o verdadeiro
coração de Horacio,
Solutus omni foenore!
Tomára-me eu no valle outra vez, com a irman
Francisca a dobar á porta, a nossa Joanninha
a deslindar-lhe a meada; e embora venha
o terrivel spectro de Fr. Diniz projectar sua funesta
e tragica sombra no idilio d'este quadro
suave, que não póde destruir-lhe toda a amenidade
bucolica, por mais que faça.
[134]
Lá voltaremos ao nosso valle, amigo leitor,
e lá concluiremos, como é de
razão, a historia
da menina dos rouxinoes. Por agora almocemos,
que é tarde, e terminemos os nossos estudos
archeologicos em Marvilla de Santarem.
Cá estamos no Collegio, edíficio grandioso,
vasto, magnífico, propria
habitação da
companhia―rei
que o mandou construir para educar os
infantes seus filhos.
Creio que ésta e a de Coimbra eram as duas
principaes casas que para isto tinham os Jesuitas
em Portugal.
Foram os templarios dos seculos modernos,
os Jesuitas. A potencia formidavel e quasi régia
que aquelles levantaram com a espada, tinham
estes fundado com a doutrina. Riquezas, podêr,
influencia, uns e outros as tiveram com applauso
e acquiescencia geral; uns e outros as perderam
do mesmo modo.
Extinctas e perseguidas, ambas as ordens renasceram
no mysterio, e se converteram em associações
secretas para conspirarem; ambas tomaram
[135]
diversos nomes e variadas máscaras para
o fazerem mais seguramente.
Ambas em vão!
O predominio, crescente ha seculos, do elemento
democratico annulla todas essas conspirações.
Sos e sem elle, os reis tinham succumbido...
É a alliada natural dos reis a democracia.
O edificio do Collegio é todo philippino, ja
o disse: a egreja dos mais bellos specimens d'esse
stylo, que em geral sêcco, duro e sem poesia,
não deixa comtudo de ser grandioso.
Aqui esteve depois muitos annos o seminario patriarchal,
cujas aulas frequentava a mocidade do
districto. Hoje leem-se alli outras palestras da
cathedra administrativa. É a séde do
govêrno
civil chamado: corrumper a moral do povo, sophismar
o systema representativo é o thema das
licções.
Todo outro insino se tirou de Santarem. Falla-se
n'um liceu e não sei em que mais 'que ficou
na gazetta:' phrase portugueza moderna que
[136]
deve supprir a antiga e antiquada de―'ficou
no tinteiro'―por muitas razões, até porque
hoje não fica nada no tinteiro senão o senso
commum,
tudo o mais de lá sai, tudo. E muitas
graças a Deus quando não passa ás
ballas do
impressor para dar a volta do mundo.
Santarem é das terras de Portugal a melhor situada
e qualificada para um grande estabelecimento
de instrucção e de educação
pública. Porque
não hade estar aqui o Collegio-militar ou a Casa-pia,
ou outra grande eschola, seja qual for?
Porque hade ser ésta centralização
d'insino em
Lisboa? Em que se funda um privilegio dado
á capital em prejuizo e á custa das provincias?
Sahimos do Collegio, fomos direitos a San'Domingos,
um dos mais antigos estabelecimentos
monasticos do reino e que eu tanto desejava
visitar. Não sei descrever o que senti quando a
inferrujada chave deu a volta na porta da egreja
e o velho templo se patenteiou aos nossos olhos.
Acabára de servir, não imaginam de
quê... de
palheiro!
A derradeira camada de palha que apodrecêra,
[137]
adheria ainda ao lagedo humido, e exhalava
um forte vapor mephitico que nos suffocava.
Mal podémos ver os tumulos dos Docems e tantos
outros interessantes monumentos que abundam
na parte superior do templo. A inferior, ou corpo
da egreja como dizem, é de um miseravel e
moderno anachronismo.
Respirando a custo aquelle ar infecto, todo o
tempo que lhe pudesse resistir, quiz approveitá-lo
em examinar a principal e mais interessante
reliquia da profanada egreja―a capella e
jazigo do grande bruxo e grande santo, San'Frei-Gil.
Algures lhe chamei ja o nosso Doutor Fausto:
e é comeffeito. Não lhe falta senão o
seu Goethe.
Vixere fortes ante Agamemnona multi.
Houve fortes homens antes de Agamemnão, e
fortes bruxos antes e depois do Doutor Fausto.
Mas sem Homero ou Goethe é que se não chega
á reputação e fama que alcansaram
aquelles senhores.
Nós precisâmos de quem nos cante as admiraveis
[138]
luctas―ora comicas, ora tremendas―do
nosso Frei Gil de Santarem com o diabo. O
que eu fiz na 'Dona Branca' é pouco e mal
esboçado
á pressa. O grande mago lusitano não apparece
alli senão episodicamente; e é necessario
que appareça como protagonista de uma grande
acção, pintado em corpo inteiro, na primeira
luz, em toda a luz do quadro.
Então o seu ardente e anciado desejo de saber,
os seus vastos estudos, os reconditos mysterios da
natureza que descobriu até penetrar no mundo
invisivel―a sêde de oiro, de prazer e de podêr
que o perseguia e o fez cahir nas garras do
espirito maligno―o fastio e saciedade que o
desincantaram depois―o seu arrependimento emfim,
e a regeneração de sua alma pela penitencia,
pela oração e pelo desprêzo da van
sciencia
humana―então essas variadas phases de uma
existencia tam extraordinaria,
tam poetica, devem
mostrar-se como ainda não foram vistas,
porque ainda não olhou para ellas ninguem com
os olhos de grande moralista e de grande poeta
que são precisos para as observar e intender.
Lembra-me que sempre entrevi isto desde pequeno,
[139]
quando me faziam ler a historia de San'Domingos,
tam rabujenta e semsabor ás vezes, apezar
do incantado stylo do nosso melhor prosador;
e que eu deixava os outros capitulos para ler e
reler somente as aventuras do sancto feiticeiro
que tanto me interessavam.
Com todas éstas reminiscencias que me reviviam
n'alma, com os admiraveis versos do Fausto
a acudir-me á memoria, e com uma infinidade
de associações que essas ideas me traziam,
caminhei direito á capella do sancto, cheio de
alvorôço,
e como tocado, para assim dizer, de sua
magica vara de condão.
A capella―oh desappontamento! a cappella
de San'Frei Gil é um mesquinho rifacimento moderno,
do lado esquerdo da egreja, sem nenhum
vestigio de antiguidade, nenhum ornato characteristico,
pesada, grosseira―velha sem ser antiga―um
verdadeiro non-descriptum de mau
gôsto e semsaboria. Quem tal dissera?
O tumulo do sancto está elevado do altar
n'uma especie de mau throno. Subi acima da
[140]
degradada e profanada credencia para o examinar
deperto.
É de pedra o jazigo; mas ultimamente ve-se
que tinham pintado a pedra; não tem lavor algum.―E
estava vazio, a loisa levantada e
quebrada!..
Quem me roubou o meu sancto?
Quem foi o anathema que se atreveu a tal sacrilegio?..
CAPITULO XL.
As Claras.―Aventura nocturna.―Se as
freiras mettem medo
aos liberaes?―O Psalmo.―Tres frades.―Práctica do
franciscano.―O
corpo de San' Fr. Gil.―Que se hade fazer
das freiras?―Mal do govêrno que deixar comer mais aos
barões.
Èra de noite, reinava a
confusão, a desordem,
o susto e a anciedade nos muros de
Santarem, tres homens chegavam, por horas
mortas, ao antigo mosteiro das Claras, davam
[142]
á portaria um signal surdo e mysterioso; respondiam-lhe
de dentro com outro egual; e d'ahi
a pouco, sem rumor e com as mais escrupulosas
precauções se abria quietamente a porta da
clausura.
Os tres homens entraram, a porta fechou-se
sôbre elles do mesmo modo precatado.
Que será?
Os homens levavam uma especie de cofre que
parecia conter preciosidades de grande valor: tal
era o desvello com que o resguardavam.
Ha um mysterio que se figura criminoso n'esta
aventura. Mas os tempos são para tudo.
Era no anno de 1834.
Entremos n'esse convento das pobres Claras,
tam afflictas e desconsoladas agora que as ameaçam
de dissolução como aos frades.
Não será assim: aquellas
instituições não mettem
medo aos verdadeiros liberaes, e os outros lá
[143]
teem o espolio dos frades para devorar; estão
entretidos: as freiras salvam-se porora.
Taes eram as esperanças dos tres homens que
entravam a essas deshoras nos vedados precinctos
do mosteiro. Sigamo-los porêm, que é tempo.
Chegavam elles a uma pequena capella do
claustro das freiras, foram depor sôbre o altar o
cofre que traziam, e ajoelharam devotamente
deante d'elle. Logo se ouviu ao longe o psalmear
baixo e sumido de vozes femininas; e d'ahi a
pouco, toda a communidade das Claras, de tochas
na mão, em duas alas, e a abbadessa com
o seu baculo atraz, entravam processionalmente
no claustro e se dirigiam á mesma capella.
O psalmo que cantavam era este:
[6] 'Meu
Deus, vieram os barbaros ás tuas herdades,
polluiram o teu sancto templo, pozeram
Jerusalem como um grannel de fructos.
'Pozeram os cadaveres de teus filhos de cevo
[144]
ás aves do ceo; as carnes dos teus sanctos ás
alimarias da terra.
'O sangue d'elles derramaram-n'o como agua
nos valles de Jerusalem; ja não havia quem sepultasse.
'Estamos feitos o oppróbrio dos nossos vizinhos;
o escarneo e a zombaria dos que vivem por nossos
arredores.
'Até aonde, ó Senhor, te hasde irar emfim;
e se hade accender o teu zêlo como fogo?
'Vérte a tua íra sôbre as
gentes que te não
conheceram, contra os reinos que não invocaram
o teu nome;
'Que devoraram a Jacob; e desolaram suas
terras.
'Não te lembres de nossas iniquidades passadas,
e depressa nos alcancem as tuas misericordias;
ja que tam pobres de mais estamos.
'Ajuda-nos Deus, salvador nosso; e pela gloria
[145]
do teu nome livra-nos, Senhor, amercea-te
de nossos peccados por causa do teu nome.'
Cantavam assim as pobres das freiras, cantavam
em latim que ellas mal intendiam; mas
dizia-lhes o instincto do coração, dizia-lhes a
tam excitavel imaginação feminina, que era
chegada
a hora de se cumprir a seus olhos, e sôbre
ellas mesmas tambem, a tremenda prophecia
do psalmo que intoavam.
Havia pois lagrymas n'aquellas vozes que
assim cantavam, sahiam d'alma aquelles sons e
n'alma vibravam tambem com profunda e solemne
melancholia.
Chegadas juncto á capella aonde estava o cofre,
as freiras pararam conservando as mesmas
duas alas da procissão e continuando no accentuado
mormúrio de seu psalmo.
Os tres vultos de homem permaneceram de
joelhos e curvados deante do altar.
Findou o psalmo e seguiu-se breve intervallo
de silencio. Depois, os tres homens levantaram-se,
[146]
e cahindo-lhes para os lados as longas
capas
em que vinham
involtos, viu-se que o do meio
era um frade velho, magro, curvado e sêcco,
trajando ainda, apezar da lei, o burel preto dos
franciscanos e cingido com sua corda. Os outros
dous eram dominicos e vestiam de preto e branco
segundo as côres de seu tambem proscripto instituto.
O velho franciscano subiu com passo trémulo
os degraus do altar, beijou o cofre que estava
sôbre elle, e voltando-se para a communidade
que o contemplava em religioso silencio, disse
com uma voz cava que parecia vir do sepulchro
mas accentuada e forte:
'Irmans, vimos intregar-vos este depósito precioso.
Deus não quer que os cadaveres dos seus
sanctos fiquem expostos ás aves do ceo e ás
alimarias
da terra. Este é o sancto corpo de um
dos maiores sanctos que produziu ésta terra de Portugal
quando era abençoada. Hoje é malditta e
não devia conservar as suas reliquias. Os filhos
de San'Domingos foram expulsos de sua casa, assim
como nós fomos, nós os filhos de Francisco,
incontrámo'nos sem tecto nem
abrigo uns e outros,
[147]
e junctámos as nossas miserias para as chorarmos
como irmãos que somos, como filhos de
paes que tanto se amaram e ajudaram. Perigrinaremos
junctos por essas solidões da terra, e
junctos iremos bater por essas portas que cerrou
a impiedade e a indifferença, a pedir o pão de
cada dia porque temos fome.
'Que importa! não professâmos nós,
não nos
honrâmos nós de ser mendigos? De que
vivêmos
nós sempre senão de esmolla?
'Não choreis irmans, não choreis sôbre
nós.
Deus que o permittiu bem sabe o que fez. Louvado
seja elle sempre! Nós tinhamos peccados
para mais! Ainda foi misericordioso comnosco
o Senhor da justiça e do castigo.
'A nós tiraram-nos tudo, tudo! Até
éstas mortalhas
que tinhamos escolhido em vida e que nem
a morte ousava roubar-nos.
'A furto e como quem se esconde para um acto
criminoso, nós as vestimos ésta noite para
commetter o que elles chamarão um furto, e
que era uma obrigação sagrada nossa.
[148]
'Fomos á antiga casa de nossos irmãos e
roubámos o corpo do bemaventurado San'Frei
Gil.
'Aqui vo-lo intregâmos; guardae-o. Emquanto
estes muros estiverem em pe, que o abriguem dos
desacatos d'essa gente sem Deus nem lei. A vós
não ousarão expulsar-vos d'aqui: talvez vos matem
á fome... Não póde ser: Deus
não hade permitti-lo.
'Mas qualquer que seja a sua vontade, resignae-vos
a ella, minhas irmans. So elle sabe como
nos ama e como nos castiga. Louvemo'-lo
por tudo.'
Aqui foi um chorar e um supplicar fervente
como so se ouve na hora da angústia.
As afflictas monjas, estavam prostradas nas lages
humidas do claustro, sôbre as sepulturas de
suas irmans, sôbre seus proprios jazigos que haviam
de ser. O frade com os braços extendidos
pronunciou as solemnes palavras de benção,
descrevendo
com a direita o augusto symbolo da redempção:
[149]
'Bemdiga-vos Deus omnipotente, Pae, Filho
e Espirito-sancto!' 'Amen!' respondeu o côro;
e os tres proscriptos se retiraram, deixando a
salvo o seu thesoiro.
Assim desappareceu do tumulo o corpo de
San'Frei Gil de Santarem.
Ninguem sabía d'elle: soube eu e guardei o
segredo religiosamente.
Os tempos são outros hoje: os liberaes ja conhecem
que devem ser tolerantes, e que precisam
de ser religiosos. Não ha perigo em dizer-lhe onde
elle está.
Quando houver em Portugal um govêrno que
saiba ser govêrno, hade regular e consolidar a
existencia das freiras, hade approveitá-la para as
piedosas instituições do insino da mocidade, da
cura dos infermos, e do amparo dos invalidos.
Os barões andam-lhe com o cheiro nos poucos
bens que lhes restam ás pobres das freiras. Mal
do govêrno que deixar comer mais aos barões!
CAPITULO XLI.
O roubador do corpo do sancto descuberto pela arguta
perspicacia
do leitor benevolo.―Grande lacuna na nossa historia.―Porque
se não preenche?―Página preta na historia
de Tristam Shandy.―Novellas e romances, livros insignificantes.―O
adro de San'Francisco e as suas acacias.―Que
será feito de Joanninha?―O peito da mulher do norte.―Vamos
embora: ja me infada Santarem e as suas ruinas.―A
corneta do soldado e a trombeta do juizo final.―Eheu,
Portugal, eheu!
Porcerto, leitor amigo, no franciscano velho
que vai de noite roubar os ossos do sancto
ao seu tum
Porcerto, leitor amigo, no franciscano velho
que vai de noite roubar os ossos do sancto
ao seu tumulo, e os vem esconder na clausura
das freiras, porcerto, digo, reconheceu ja
[152]
a tua natural perspicacia ao nosso Frei Diniz, o
frade por excellencia―frade por teima e acinte.
Pois esse era, não ha dúvida.
Assim se passou aquella scena e assim m'a
contaram. Do que mediára entre ella e o acontecido
com o frade, Carlos, Joanninha, a avó
e a ingleza, d'isso é que nada pude saber.
É uma grande lacuna na nossa historia; mas
antes fique assim do que enchê-la de
imaginação.
Oh! eu detesto a imaginação.
Onde a chronica se calla e a tradição
não falla,
antes quero uma pagina inteira de pontinhos,
ou toda branca―ou toda preta, como na veneravel
historia do nosso particular e respeitavel
amigo Tristão Shandy, do que uma so linha da
invenção do chroniqueiro.
Isso é bom para novellas e romances, livros
insignificantes que todos leem todavia, ainda os
mesmos que o negam.
[153]
Eu tambem me parece que os leio, mas vou
sempre dizendo que não...
Emfim, tornemos ao frade, e tornemos ás minhas
viagens.
Cheio d'elle e da sua memoria, palpitando
com a recordação das tremendas scenas que, havia
tam poucos annos, se tinham passado em seu
antigo mosteiro, eu me approximei emfim do
real convento de San'Francisco de Santarem.
Dei pouca attenção ao bello adro e á
solemne
vista que d'elle se descobre―e menos ainda ás
doentias acacias que ahi vejetam infezadas e rachiticas,
como plantadas de má mão e em má
hora―porque môças são ellas,
é visivel: poseram-n'as
ahi depois de extincto o convento.
São triste mas verdadeiro symbolo da apagada
e facticia vida que se quiz dar ao que era morto.
Vamos dentro, e vejamos pelas baixas e aguçadas
arcadas do claustro, pelas altas naves do
templo se descubrimos algum vestigio do último
guardião d'esta casa, e d'essa fadada familia cujo
[154]
destino em hora aziaga tam estreitamente se
ligou com o d'elle.
Ja me interessa isto mais, confesso, ai! muito
mais, do que todos esses tumulos e inscripções
que por ahi estão, e que tanto characterizam este
um dos mais antigos e mais historicos edificios
do reino.
Mas em vão interrogo pedra a pedra, lage a
lage: o echo morto da solidão responde tristemente
ás minhas perguntas, responde que nada
sabe, que esqueceu tudo, que aqui reina a
desolação
e o abandôno, e que se apagaram todas
as lembranças de outro estado...
Que foi feito de ti, Joanninha, e dos teus
amores? Que será feito d'esse homem que ousou
amar-te amando a outra? E essa outra onde está?
Resignou-se ella devéras? Sepultou comeffeito,
sob o gêlo apparente que veste de triplice
mas falsa armadura o peito da mulher do norte,
todo aquelle fogo intenso e íntimo que solapadamente
lhe devora o coração?
Não tenho esperanças de saber nada d'isso aqui.
[155]
So pude descubrir que, no dia immediato á
scena nocturna das Claras, Fr. Diniz sahiu de
Santarem, não se sabe em que
direcção―que
n'esse mesmo dia Georgina sahíra tambem pela
estrada de Lisboa, levando em sua carruagem a
avó e a neta, ambas meias mortas e ambas meias
loucas―que não houvera mais novas de Carlos―e
que a sua última carta, aquella que escrevêra
de juncto d'Evora, Joanninha a levava apertada
nas mãos convulsas quando partíra.
Pois tambem eu me quero partir, me quero
ir embora. Ja me infada Santarem, ja me cansam
éstas perpétuas ruinas, estes pardeiros
interminaveis,
o aspecto desgracioso d'estes intulhos,
a tristeza d'estas ruas desertas. Vou-me embora.
E comtudo San'Francisco é uma bella ruina,
que merecia examinada de vagar, com outra
paciencia que eu ja não tenho.
Se tudo me impacienta aqui!
Da bella egreja gothica, fizeram uma arrecadação
milítar; andou a mão destruidora do soldado
quebrando e abolando esses monumentos preciosos,
[156]
riscando com a baioneta pelo verniz mais
pulido e mais respeitado d'esses jazigos antiquissimos:
os lavores mais delicados esmoucou-os,
degradou-os. Levantaram as lages dos sepulchros;
e ao som da corneta militar acordaram os
mortos de seculos, cuidando ouvir a trombeta final...
Decididamente vou-me embora, não posso estar
aqui, não quero ver isto. Não é horror
que
me faz, é náusea, é asco, é
zanga.
Maldittas sejam as mãos que te profanaram,
Santarem... que te deshonraram, Portugal... que
te invilleceram e degradaram, nação que tudo
perdeste, até os padrões da tua historia!..
Eheu, eheu, Portugal!
CAPITULO XLII.
Protesto do
auctor.―Desaffinação dos nervos.―O
que é preciso
para que as ruinas sejam solemnes e sublimes.―Que Deus
está no Colliseu assím como em
San'Pedro.―Quer-se o auctor
ir embora de Santarem.―Como, sem ver o tumulo d'elrei
D. Fernando?―Em que estado se acha este.―Exemplar
de stylo byzantino.―Coroa real sôbre a caveira.―O rei
d'espadas e o symbolo do imperio.―Quem nunca viu o rei
cuida que é de oiro.―Brutalidades da soldadesca n'um tumulo
real.―O que se acha nas sepulturas dos reis.―A
phrenologia.―Vindicta publica, tardia mas
ultrajante.―Camões
e Duarte Pacheco.―A sombra falsa da religião.―Regimen
dos barões e da materia.―A prosa e a poesia
do povo.―Synthese e analyse.―O senso íntimo.―Se o
auctor é demagogo ou Jesuita?―Jesu Christo e os
barões.
Não chamem exaggerado ao que vai escripto
no fim do último capitulo; senti o que escrevi,
senti muito mais do que escrevi. O que
poderá haver é desacêrto nas palavras,
porque
[158]
em verdade não sei explicar a impressão que me
faz uma ruina n'este estado. Desaffinam-me os
nervos, vibram-me n'uma discordancia e dissonancia
insupportavel. Queria ver antes estes altares
expostos ás chuvas e aos ventos do ceo,―que
o sol os queimasse de dia,―que á noite, á
luz branca da lua, ou ao tibio reflexo das estrellas,
piasse o mocho e sussurrasse a coruja sôbre
seus arcos meio-cahidos.
Não me parecia profanado o templo assim,
nem descahido de majestade o monumento. Podia
ajoelhar-me no meio das pedras sôltas, entre
as hervas humidas, e levantar o meu pensamento
a Deus, o meu coração á
glória, á grandeza,
o meu espirito ás sublimes aspirações
da
idealidade. O material, o grosseiro, o pesado da
vida não me vinham affligir ahi.
Deus, a idea grande do mundo―Deus, a Razão
Eterna―Deus, o amor―Deus, a glória―Deus,
a fôrça, a poesia e a nobreza d'alma―Deus
está nas ruinas escalavradas do Colliseu,
como nos zimborios de bronze e marmore
de San'Pedro.
[159]
Mas aqui!.. nos pardeiros de um convento velho,
concertado pelas Obras-públicas para servir
de quartel de soldados―aqui não habita espirito
nenhum.
Quero-me ir embora d'aqui!
E como? sem ver o tumulo d'elrei Fernando?
Não póde ser, é verdade.
Onde está elle?
No côro alto.
Subamos ao côro alto.
Oh! que não sei de
nôjo como o conte!
O bello jasigo do rei formoso e frivolo, tam
dado ás delicias do prazer como foi seu pae ás
austeridades da justiça, em que estado elle está!
Oh nação de barbaros! Oh malditto povo de
iconoclastas que é este!
O tumulo do segundo marido de D. Leonor
[160]
Telles é um sarcophago de pedra branca, fina e
friavel, elegante e simplesmente cortada, com
mais sobriedade de ornatos do que tem de ordinario
os monumentos do seculo XIV, mas de
uma acabada sculptura, casta e continente, como
o não foi a vida do rei que ahi incerraram
depois de morto.
Percebem-se ainda vestigios das vivas côres
em que foram induzidos os relevos da pedra branca:―stylo
byzantino de que não sei outro exemplar
em Portugal. Este é―ou antes, era―precioso.
Era; porque a brutalidade da soldadesca o
deturpou a um ponto incrivel. Imaginou a estupida
cubiça d'estes Allanos modernos que devia
de estar alli dentro algum grande haver de riquezas
incantadas,―talvez cuidaram achar sôbre
a caveira do rei a coroa real marchetada de
perolas e rubis com que fosse interrado,―talvez
pensaram incontrar appertado ainda entre as
sêccas phalanges dos dedos myrhados, aquelle globo
de oiro macisso que lhes figura o rei d'espadas
do sujo baralho de sua tarimba, e que elles
teem pela indisputavel e infallivel insignia do
[161]
supremo imperio;―talvez supposeram que mesmo
depois de morto, um rei devia de ser de
oiro... Emfim quem sabe o que elles cuidaram e
pensaram? O que se sabe, porque se ve, é que
quizeram abrir e arrombar o tumulo. Tentaram,
primeiro, levantar a campa; não poderam: tam
solidamente está soldada a pedra decíma ao corpo
ou caixão do jazigo, que o todo parece macisso
e inconsutil. Mas n'este impenho quebraram
e estallaram os lavores finos dos cantos, os
caireis delicados das orlas; e a campa não cedeu:
parece chumbada pelo anjo dos últimos julgamentos
com o sêllo tremendo que so se hade
quebrar no dia derradeiro do mundo.
A cubiça estolida dos soldados não se aterrou
com a religião do sepulchro, nem lhe causou
attrição,
ao menos, ésta resistencia quasi sobrenatural
das pedras do moimento. Ve-se que trabalhou
alli, de alavanca e de ariete, algum possante
e ponderoso pé-de-cabra; mas que trabalhou
em vão muito tempo.
Desinganaram-se emfim com a tampa; e resolveram
atacar, mais brutalmente mas com mais
vantagem, as paredes do sarcophago, que justamente
[162]
suspeitaram de menos espessos. Assim era;
e conseguiram na parede da frente abrir um rombo
grosseiro por onde entra facil um braço todo
e póde explorar o interior do tumulo á vontade.
Assim o fiz eu, que metti o meu braço por
essa abertura barbara, e achei terra, pó, alguns
ossos de vertebras, e duas caveiras, uma de homem,
outra de criança.
Não me lembra que haja memoria alguma de
infante que ahi fosse sepultado tambem, segundo
faziam os antigos muitas vezes que punham os
cadaveres das crianças nos jazigos dos paes, dos
parentes, até de meros amigos de suas familias.
Tive, confésso, uma especie de prazer maligno
em imaginar a estupida compridez de cara
com que deviam de ficar os brutaes profanadores,
quando achassem no tumulo do rei o que so
teem os tumulos―de reis ou de mendigos―ossos,
terra, cinza, nada!
Por mim, estive tentado a furtar a caveira
d'elrei D. Fernando. Se acreditasse na phrenologia,
parece-me que não tinha resistido. Não
[163]
creio na sciencia, felizmente―n'este caso―para
a minha consciencia. Tambem não sei o que faria
se a caveira fosse de outro homem. Mas o
'fraco rei' que fez 'fraca a forte gente' não são
reliquias as suas que se guardem.
Oh! e quem sabe? Ésta profanação, este
abandôno,
este desacato do tumulo de um rei, alli
na sua terra predilecta―D. Fernando era santareno
de affeição―não será elle
o juizo severo
da posteridade, a vindicta pública dos seculos,
que tardia mas ultrajante, cai emfim sôbre a
memoria reprovada do mau principe, e lhe deshonra
as cinzas como ja lhe deshonrára o nome?
Quero acreditar que tal não podia succceder
aos tumulos de D. Diniz, de D. Pedro I, dos
dois Joannes I e II, de...
Sim: e aonde está o de Camões? O de Duarte
Pacheco aonde
esteve? que ainda
é mais vergonhosa
pergunta ésta última.
Em Portugal não ha religião de nenhuma especie.
Até a sua falsa sombra, que é a hypocrisia,
desappareceu. Ficou o materialismo estupido,
[164]
alvar, ignorante, devasso e desfaçado,
a fazer gala de sua hedionda nudez cynica no meio
das ruinas profanadas de tudo o que elevava o
espirito...
Uma nação grande ainda poderá ir
vivendo e
esperar por melhor tempo, apezar d'esta paralysia
que lhe pasma a vida d'alma na mais nobre
parte de seu corpo. Mas uma nação piquena,
é
impossivel; hade morrer.
Mais dez annos de barões e de regimen da
materia, e infallivelmente nos foge d'este corpo
agonizante de Portugal o derradeiro suspiro do
espirito.
Creio isto firmemente.
Mas ainda espero melhor todavia, porque o
povo, o povo povo, está são: os corruptos somos
nós os que cuidâmos saber e ignorâmos
tudo.
Nós, que somos a prosa vil da nação,
nós
não intendemos a poesia do povo; nós, que so
comprehendemos o tangivel dos sentidos, nós somos
extranhos ás aspirações sublimes do
senso-íntimo
[165]
que despreza as nossas theorias
presumpçosas,
porque todas veem de uma acanhada anályse
que procede curta e mesquinha dos dados
materiaes, insignificantes e imperfeitos;―em
quanto elle, aquelle senso-íntimo do povo, vem
da Razão divina, e procede da synthese transcendente,
superior, e inspirada pelas grandes e
eternas verdades que se não demonstram porque se
sentem.
E eu que escrevo isto serei eu demagogo? Não
sou.
Serei fanatico, jesuita, hypocrita? Não sou.
Que sou eu então?
Quem não intender o que eu sou, não vale a
pena que lh'o diga...
Perdoa-me, leitor amigo, uma reflexão última
no fim d'este capítulo ja tam seccante, e
prometto não reflectir nunca mais.
Jesu Christo, que foi o modêlo da paciencia,
da tolerancia, o verdadeiro e unico fundador da
[166]
liberdade e da egualdade entre os homens, Jesu
Christo soffreu com resignação e humildade
quantas
injustiças, quantos insultos lhe fizeram a elle
e á sua missão divina; perdoou ao matador,
á
adúltera, ao blasphêmo, ao impio. Mas quando
viu os barões a agiotar dentro do templo, não
se pôde conter, pegou n'um azorrague e zurziu-os
sem dor.
CAPITULO XLIII.
Partida de Santarem.―Pinacotheca.―Impaciencia e
saudades.―Sexta-feira.―Martyrio
obscuro.―A figura do peccado.―Estamos
no valle outra vez.―Evocação de incanto.―A
irman Francisca e Fr. Diniz.―A teia de Penelope.―E
Joanninha?―Joanninha está no ceo.―A mulher
morta a dobar esperando que a interrem.―A esperança,
virtude do christianismo.―Uma carta.
Estou devéras fatigado de Santarem; vou-me
embora.
Despedimo'-nos saudosos d'aquella boa e leal
[168]
familia que nos hospedára com tanto carinho,
com toda a velha cordialidade portugueza; partimos.
Apenas comecei a respirar o ar fresco da manhan
nos olivaes, senti desaffogar-se-me alma
d'aquella constricção cansada que se experimenta
na longa visita a um museu de antiguidades, a
uma galeria de pinturas.
Perdoem-me que não diga 'pinacotheca': bem
sei que é moda, e que a palavra é adoptavel
segundo
as mais strictas regras de Horacio, pois
'cai da fonte grega' direitamente e sem mistura:
mas soa-me tam mal em portuguez que não posso
com ella.
Santarem fatigou-me o espirito, como todas as
coisas que fazem pensar muito. Deixo-a porêm
com saudade, e não me heide esquecer nunca
dos dias que aqui passei.
De quê e como sou eu feito, que não posso
estar muito tempo n'um logar, e não posso sahir
d'elle sem pena?
[169]
Ja me está custando ter deixado Santarem.
Porque não haviamos de partir ámanhan, e ter
ficado
ainda hoje alli?
E hoje que é sexta-feira?... Mau dia para começar
viagem!
Sexta-feira! Era o dia aziago do nosso valle,
da pobre velha cega que ahi vivia sua triste vida
de dores, de remorsos e desconfôrto, esperando
porêm em Deus, conformada com seu martyrio:
martyrio obscuro, mas tam insanguentado
d'aquelle sangue que mana gotta a gotta e dolorosamente
do coração rasgado, devorado em silencio
pelo abutre invisivel de uma dor que se
não revela, que não tem prantos nem ais.
Era na sexta-feira que o terrivel frade, o
demonio vivo d'aquella mulher de angústias, lhe
apparecia tremendo e espantoso deante de seus
olhos cegos, elevado pela imaginação
ás proporções
descommunaes e gigantescas de um vingador
sobrenatural.
Era a figura tangivel, e visivel á vista de sua
[170]
alma, do enorme peccado que contra ella estava
sempre.
Creio que escuso dizer que não tenho eu ésta
superstição dos dias aziagos que tinha a
desgraçada
velha, que a sua Joanninha partilhava. Mas
confesso que, recordando as fatalidades d'aquella
familia e d'aquelle dia, não gostei de voltar n'elle
ao valle de Santarem.
Estavamos porêm no valle; e ja eu via de longe
aquellas árvores e aquella janella que tanto
me impressionaram, quando éstas reflexões me
acudiam ao espirito e m'o contristavam.
Affrouxei insensivelmente o passo, deixei tomar
larga dianteira aos meus companheiros de
viagem; e quando chegava perto da casa, tinha-os
perdido de vista.
Involuntariamente parei defronte da janella;
mordia-me um interêsse, uma curiosidade irresistivel...
Nem viva alma por aquelles arredores;
apeei-me e fui direito para a casa.
Apenas passei as árvores, um spectaculo inesperado,
[171]
uma evocação como de incanto me veio
ferir os olhos.
No mesmo sítio, do mesmo modo, com os
mesmos trajos e na mesma attitude em que a
descrevi nos primeiros capitulos d'esta historia,
estava a nossa velha irman Francisca...
Ella era, e não podia ser outra; sentada na
sua antiga cadeira, dobando, como Penelope tecia,
a sua interminavel meada. Não havia outra
differença agora senão que a dobadoira
não parava,
e que o fio seguia, seguia, inrollando-se,
inrollando-se contínuo e compassado no novêllo;
e que os braços da velha lidavam lentamente mas
sem cessar no seu movimento de authomato que
fazia mal ver.
Defronte d'ella, sentado n'uma pedra, a cabeça
baixa, e os olhos fixos n'um grosso livro
velho, que sustinha nos joelhos, estava um homem
sêcco e magro, descarnado como um esqueleto,
livido como um cadaver, immovel como
uma estátua. Trajava um non-descriptum negro,
que podia ser sotana de clerigo ou tunica
de frade, mas descingida, sôlta, e pendente em
[172]
grossas e largas pregas do extenuado pescosso do
homem.
Tambem não podia ser senão Frei Diniz.
Cheguei juncto d'elles; não me sentiu nenhum
dos dois; nem me viu elle, o que so via dos dois.
Sem mais reflexão, e continuando alto na serie
de pensamentos que me vinha correndo pelo espirito,
exclamei:
―'E Joanninha?'
―'Joanninha está no ceo':―respondeu sem
sobresalto, sem erguer os olhos do seu livro, a
sombra do frade―que outra coisa não parecia.
―'Joanninha, pobre Joanninha! Pois como
foi, como acabou a infeliz?'
―'Joanninha não é infeliz: foi ser anjo na
presença de Deus.'
―'E... e Carlos?' balbuciei eu hesitando,
porque temia a susceptibilidade do frade.
[173] ―'Carlos!' respondeu elle erguendo emfim
os olhos e cravando-os em mim...
E oh! que nunca vi olhos como aquelles, nem
os heide ver!
―'Carlos!... E quem é que m'o pergunta?
quem é que tanto sabe de mim e dos meus?..
Dos meus! Eu não tenho meus: sou so.'
―'So! Não está aqui, que eu vejo?..'
―'Ve essa mulher morta que ahi ficou, que
a matei eu, e que aqui está á espera que
dê a
hora de a eu interrar, mais nada. Eu estou
so e quero estar so. Morreu tudo. Que mais quer
saber?'
―'Venho de Santarem...'
―'Santarem tambem morreu; e morreu Portugal.
Aqui não, vive senão o meu
peccado, que
Deus não perdoou ainda, nem espero...'
―'A nossa religião fez uma virtude da
esperança.'
[174] ―'Fez.'
―'E n'isso se distingue das outras
todas.'
―'Pois ainda ha quem o saiba n'esta terra?'
―'Ha mais do que não houve nunca―pelo
menos ha mais quem o saiba melhor.'
―'Póde ser: os juizos de Deus são
incomprehensiveis.'
―'E infinita a sua misericordia.'
―'Mas a sua cholera implacavel, a sua justiça
tremenda.'
―'A misericordia é maior.'
―'Quem lhe insinou tudo isso?'
―'O evangelho, o coração, e minha mãe
que m'os explicou ambos.'
―'Sente-se aqui... aopé de mim.'
[175]
Sentei-me. O frade pegou-me na mão com as
suas ambas, e pôs-me os olhos com uma expressão
que nenhuma lingua póde dizer, nem
nenhum pincel pintar.
Esteve assim algum tempo, como quem me
observava. Vi-lhe apontar claramente uma lagryma,
vi-lh'a retroceder, e ficarem-lhe inchutos
os olhos. Senti-lhe estrangular um suspiro
que lhe vinha á garganta; percebi distinctamente
o estremeção que lhe correu o corpo; mas observei
que todo se serenou depois.
Disse-me então com voz magoada mas placida
e sem aspereza ja nenhuma:
―'Sabe a historia do valle?'
―'Sei tudo até á partida de Carlos para
Evora.'
―'Aqui tem a carta que elle escreveu.'
Tirou do breviario um papel dobrado, amarello
do tempo, e manchado, bem se via, de
muitas lagrymas, algumas recentes ainda.
[176] ―'Leia.'
Li.
Ésta era a carta de Carlos.
CAPITULO XLIV.
Carta
de Carlos a Joanninha.
Evora-monte...
de maio de 1834.
É a ti que escrevo, Joanna, minha irman, minha
prima, a ti so.
Com nenhum outro dos meus não posso nem
ouso fallar.
[178]
Nem eu ja sei quem são os meus: confunde-se,
perde-se-me ésta cabeça nos desvarios do
coração. Errei com elle, perdeu-me elle... Oh!
bem sei que estou perdido.
Perdido para todos, e para ti tambem. Não
me digas que não; tens generosidade para o dizer,
mas não o digas. Tens generosidade para
o pensar, mas não pódes evitar de o sentir.
Eu estou perdido.
E sem remedio, Joanna, porque a minha natureza
é incorrigivel. Tenho energia de mais,
tenho podêres de mais no coração. Estes
excessos
d'elle me mataram... e me matam!
Tu não comprehendes isto, Joanninha, não
me intendes decerto; e é difficil.
Es mulher, e as mulheres não intendem os
homens. Sempre o entrevi, hoje sei-o perfeitamente.
A mulher não póde nem deve comprehender
o homem. Triste da que chega a sabê-lo!..
E d'ahi... quando se tem de morrer, antes
[179]
saber a morte de que se morre, do que expirar
na ignorancia do mal que nos matou.
Tu es joven e inexperiente, a tua alma está
cheia de illusões doces; vou dissipar-t'as em
quanto se não condensam, que te offusquem a razão
e te deixem para sempre escrava cega do
maior inimigo que temos, o coração.
Quero contar-te a minha historia: verás n'ella
o que vale um homem.
Sabe que os não ha melhores que eu; e tam
bons, poucos. Olha o que será o resto!
Tu não ignoras ja hoje o porque fugi da casa
materna: sabía-a manchada de um grande peccado,
e imaginei-a polluida de um enorme crime.
Esse homem que é meu pae, não o podia
ver; hoje que sei o que me elle é... Deus me
perdoe, que ainda o posso ver menos!
Minha avó, julguei-a cumplice no crime; ella
so o era no peccado. Perdoe-lhe Deus; e bem
[180]
póde e bem deve, ja que a fez tam fraca. Minha
pobre mãe succumbiu por sua culpa, por
sua irremissivel complacencia...
Deus póde e deve, repitto... mas eu, como
lhe heide perdoar eu este rubor que sinto nas
faces ao nomear minha mãe?
Tem padecido e soffrido muito... coitada! A
sua penitencia é um martyrio, a sua velhice uma
longa paixão, e esse homem que a perdeu um
verdugo sem piedade. Mas tudo isso é com Deus,
não é commigo.
Eu sou filho; minha mãe morreu sem perdoar―não
posso perdoar eu.
E quem me hade perdoar a mim? Ninguem,
nem quero.
Não serás tu, minha irman; não, que
não
deves. Porque eu amei-te com um coração que
ja não era meu; acceitei o teu amor sem o merecer,
sem o podêr possuir, trahi quando te
amava, menti quando t'o disse, menti-te a ti,
[181]
menti-me a mim, e não guardei verdade a ninguem.
Mas espera, ouve; deixa-me ver se posso atar
o fio d'esta minha incrivel historia―incrivel
para ti, bem simples para quem conheça o
coração
do homem.
Sahi de Portugal, e posso dizer que não tinha
amado ainda. Inclinações de criança,
galanteios
de sociedade, ligações que nasceram da vaidade,
ou que so os sentidos alimentam, não merecem
o nome de amor.
Eu não tinha amado.
Ha tres especies de mulheres n'este mundo:
a mulher que se admira, a mulher que se deseja,
e a mulher que se ama.
A belleza, o espirito, a graça, os dotes d'alma
e do corpo geram a admiração.
Certas fórmas, certo ar voluptuoso criam o
desejo.
[182]
O que produz o amor não se sabe; é tudo
isto ás vezes, é mais do que isto, não
é nada
d'isto.
Não sei o que é; mas sei que se
póde admirar
uma mulher sem a desejar, que se póde desejar
sem a amar.
O amor não está definido, nem o póde
ser
nunca. O amor verdadeiro; que as outras coisas
não são isso.
Eu vivi poucos mezes em Inglaterra; mas foram
os primeiros que posso dizer que vivi. Levou-me
o acaso, o destino―a minha estrella, porque
eu ainda creio nas estrellas, e em pouco mais d'este
mundo creio ja―levou-me ao interior de uma
familia elegante, ricca de tudo o que póde dar
distincção n'este mundo.
Extranhei aquelles habitos de alta civilização,
que me agradavam comtudo; moldei-me facilmente
por elles, affiz-me a vejetar docemente
na branda atmosphera artificial d'aquella estufa
sem perder a minha natureza de planta extrangeira.
Agradei: e não o merecia. No fundo d'alma
[183]
e de character eu não era aquillo por que me
tomavam. Menti: o homem não faz outra coisa.
Eu detesto a mentira, voluntariamente nunca o
fiz, e todavia tenho levado a vida a mentir.
Menti pois, e agradei porque mentia. Sancto
Deus! para que sahiria a verdade da tua bôcca,
e para que a mandaste ao mundo, Senhor?
Havia tres meninas n'aquella familia. Dizer
que eram as tres graças é uma vulgaridade
cansada,
e tam bannal que não dá idea de coisa alguma.
Tres anjos seriam; tres anjos posso dizer
com mais propriedade. E quando em nossos
longos passeios solitarios, por aquelles campos
sempre verdes, por aquellas collinas coroadas
de arvoredo, tapessadas de relva macia, os
seus vestidos brancos, singelos, simples, trajados
sem arte, fluctuavam com a brisa da tarde...
e os longos anneis de seus cabellos―os de uma
eram loiros, os de outra castanhos, não ha nome
para a indefinida côr dos da terceira―quando
esses longos anneis descahiam de sua ondada
spiral com o orvalho humido do crepusculo―e
que a essa luz vaga e mysteriosa eu as contemplava
todas tres com adoração e recolhimento
[184]
devoto d'alma―sinceramente exclamava: 'São
tres anjos celestes que é forçoso adorar!..'
E assim é que os adorava os tres anjos, todos
tres, e não podia adorar um sem os outros.
Que me queriam ellas, é certo; que insensivelmente
se habituaram á minha companhia e
ja não podiam viver sem ella... ai! era preciso
ser um monstro para o não confessar com lagrymas
de gratidão e de remorso.
Os mais difficeis e delicados apices da perfeição
de sua tam caprichosa e tam expressiva
lingua, as bellezas mais sentidas de seus
auctores queridos, o espirito e tom difficil de
sua sociedade tam desdenhosa e fastienta, mas
tam completa e tam calculada para sublimar a
vida e a desmaterializar―isso tudo, e um indefinivel
sentimento do
gentil, que so com
natural
tacto se adquire, é verdade, mas que se não
alcansa com elle so―isso tudo o apprendi alli
das suaves licções que insensivelmente recebia a
cada instante.
Se valho alguma coisa, tudo valho por ellas;
[185]
se tenho merecido alguma consideração no mundo,
toda lh'a devo.
Ves que confesso a dívida, verás como a paguei.
O tom perfeito da sociedade ingleza inventou
uma palavra que não ha nem póde haver n'outras
linguas emquanto a civilização as não
aparar.
To flirt é um verbo
innocente que se conjuga
alli entre os dois sexos, e não significa
namorar―palavra
grossa e absurda que eu detesto―não
significa 'fazer a côrte'; é mais do que estar
amavel, é menos do que galantear, não obriga
a nada, não tem consequencias, começa-se,
acaba-se, interrompe-se, addia-se, continúa-se
ou descontinúa-se á vontade e sem
compromettimento.
Eu
flartava, nós
flartavamos ellas
flartavam...
E não ha mais doce nem mais suave intertenimento
d'espirito do que o
flartar com uma
elegante
e graciosa menina ingleza; com duas é prazer
angelico, e com tres é divino.
Para quem nasceu n'aquillo, não é perigoso;
[186]
para mim degenerou, breve, aquella placida
sensação
em mais profundo sentimento.
Veio a admiração primeiro.
E como as eu admirava todas tres as minhas
gentis fascinadoras!
E ellas conheciam-n'o, riam, folgavam e estavam
incantadas de me incantar.
Fizeram nascer os desejos!
Julguei-me perdido, e quiz fugir.
Não me deixaram e zombaram de mim, da
ardencia do meu sangue hespanhol, da vehemencia
das minhas sensações...
Em breve eu amava perdidamente uma d'ellas―queria
muito ás outras duas; mas amar,
amar devéras, d'alma cuidava eu, de
coração ia
jurá-lo, era a segunda―Laura, a mais gentil,
mais nobre, mais elegante e radiosa figura de
mulher que creio que Deus moldasse n'uma hora
de verdadeiro amor de artista que se dignou
tomar por esse pouco de greda que tinha nas
mãos ao formá-la.
CAPITULO XLV.
Carta
de Carlos a Joanninha:
continúa.
Laura não era alta nem baixa, era forte sem
ser gorda, e delicada sem magreza. Os olhos
de um côr-de-avelan diaphano, puro, avelludado,
grandes, vivos, cheios de tal majestade
[188]
quando se iravam, de tal doçura quando
se abrandavam, que é difficil dizer quando eram
mais bellos. O cabello quasi da mesma côr tinha,
demais, um reflexo dourado, vacillante, que
ao sol resplandecia, ou antes, relampejava,―mas
a espaços, não era sempre, nem em todas
as posições da
cabeça:―cabeça pequena, modelada
no mais classico da statuaria antiga, poisada
sôbre um collo de immensa nobreza, que harmonizava
com a perfeição das linhas dos hombros.
A cintura breve e estreita, mas sem exaggeração,
via-se que o era assim por natureza e
sem a menor contrafeição d'arte. O pé
não tinha
as exiguidades fabulosas da nossa peninsula,
era proporcionado como o da Venus de Medicis.
Tenho visto muita mulher mais bella, algumas
mais adoraveis, nenhuma tam fascinante.
Fascinante é a palavra para ella.
O rosto oval e perfeitamente symetrico, pallido;
so os beiços eram vermelhos como a rosa
de côr mais viva.
A expressão de toda ésta figura é que
se
[189]
não descreve. A bôcca breve e fina surria pouco;
mas quando surria, oh!..
Ve-la n'um baile, vestida e calçada de branco,
cingida com um cinto de vidrilhos pretos―toilete
inalteravel para ella desde certa epocha―sem
mais ornato, sem mais flores, apenas
um farto fio de perolas derramando-se-lhe
pelo collo―era ver alguma coisa de superior,
de mais sublime que uma simples mulher.
Tal era Laura, Laura que eu amei quanto
podia e sabía amar. Era pouco, sei-o agora;
entao parecia-me infinito.
Disse-lh'o a ella, disse-lh'o um dia que passeavamos
sós, e depois de andarmos horas e
horas esquecidas, sem trocar uma phrase. Pensavamos,
eu n'ella, ella não sei em quê.
Sería em mim?
Sería mas não m'o confessou.
E ouviu-me sem dizer palavra, sem olhar
para mim uma so vez, sem fugir com a mão
[190]
que lhe eu appertava, que lhe beijava, e que
sentia fria e humida nas minhas que escaldavam.
Era tarde, dirigimo'-nos para casa. Á porta
disse-me: 'Não entre'; e vi-a banhada em lagrymas.
Quiz segui-la, fez-me um gesto imperioso
que me confundiu. Pela primeira vez, depois
de tanto tempo, fui so, triste e melancholico
para a minha pobre habitação, onde passei
a noite.
Quando era madrugada quiz-me deitar. Não
dormi.
No dia seguinte recebi uma carta de Julia:
assim se chamava a mais velha, a mais sensivel
e a mais carinhosa das tres irmans.
O bilhete parecia indifferente; não continha
senão palavras usuaes, pedia-me que fosse almoçar
com ella... não fallava nas irmans.
Senti que era chegada a minha hora, pareceu-me
que ia ser expulso d'aquelle Eden de
innocencia em que tinha vivido. A lettra de Julia,
[191]
uma lettra linda, perfeita, natural, figurava-se-me
um aggregado de signaes caballisticos terriveis
que incerravam o mysterio da minha condemnação.
Vesti-me, fui, achei-me so com Julia no
parlour elegante de seu exclusivo
uso.
Era um pequeno gabinete de estudo, ornado
somente de umas
etagères
com livros e musicas,
uma harpa e um cavallete.
Sôbre o cavallete estava o meu retratto esboçado,
na estante da harpa uma romança franceza
a que eu tinha feito lettras portuguezas...
A urna asoviava sôbre a mesa, Julia fazia o
cha e não parecia attender a mais nada.
É preciso que eu te descreva a piquena Julia―Julietta
como nós lhe chamavamos―nós,
as duas irmans e eu que rivalizavamos a qual lhe
havia de querer mais...
Oh! que saudade e que remorso para toda a
[192]
minha vida n'estas recordações de fraternal
intimidade!
Julia era piquena, delicadissima, propriamente
infantina no rosto, na figura, na expressão e
no hábito de toda a sua incantadora e diminutiva
pessoa.
Nenhuma ingleza, desde o tempo da rainha
Bess, teve pé e
ancle
mais delicado. Nenhuma,
desde o rei Alfredo, se occupou tam elegantemente
dos elegantes cuidados de um interior britannico―gentil
quadro 'de genero' como não
ha outro.
Lady Julia R. era a mais piquena e a mais
bonita subdita britannica que eu creio que tenha
existido.
Vista á lua, no meio do seu parque, volteiando
por entre os raros exoticos que no curto verão
inglez se expoem ao ar livre, facilmente se
tomava pela bella soberana das fadas realizando
aquella preciosa visão de Shakspeare, o 'Midsumer
night's dream.'
[193]
Seus olhos de azul celeste, sempre humidos e
sempre doces, os cabellos de um claro e assedado
castanho todos soltos em anneis á roda da
cabeça e cahindo pelos hombros, espalhando-se
pelo rosto, que era uma lida contínua para os
tirar dos olhos, um corpo airoso, uma bôcca de
beijar, os dentes miudos, alvissimos e apertados,
a mão piquena estreita, e de cera―tudo
isto fazia de Julia um typo ideal de bondade, de
candura, de innocencia angelica.
E era um anjo... oh se era!
Contemplei-a muito tempo em silencio: ella
surria-me tristemente de vez em quando, mas
não fallava. Emfim almoçámos, levaram
o trem.
Ella disse á sua aia:
―'Phebe, eu estou so com Carlos; e quero
estar so. Em casa para ninguem.'
―'Sim, minha
senhora.' Resposta obrigada
do criado inglez a tudo.
E ficámos sos completamente.
CAPITULO XLVI.
Carta de Carlos a Joanninha: continúa.
Julia levantou finalmente para mim os seus olhos
humidos, assombrados das mais longas e assedadas
pestanas que ainda vi em olhos de mulher,
e disse-me:
[196] ―'Carlos, eu estou triste. Devia consolar-me;
diga-me alguma coisa que me console.
Falle-me.'
―'Que heide eu dizer?..'
―'É um cavalheiro, Carlos: diga-me que o
é, e desassombre-me d'este terror em que estou.'
―'Pois duvída, Julia?..'
―'Não duvido. Queremos-lhe todos muito
aqui... muito demais... receio: como havemos
de duvidar?'
―'Oh Julia, perdoe-me!' exclamei eu lançando-me
a seus pés, tomando-lhe as mãos ambas
nas minhas, e beijando-lh'as mil vezes n'um
paroxysmo de verdadeira contricção. 'Perdoe-me,
Julia: bem sei que fiz mal, e prometto...'
―'Não prometta nada, senão que hade ser
cavalheiro. Isso sei eu e sinto que o póde cumprir.'
―'Juro por... por ella.'
[197] ―'Ella!.. Ella ama-o, Carlos. É melhor dizer
a verdade de uma vez, e incarar todas as
consequencias de uma posição difficil, do que
illudir-se
a gente sem as evitar. Laura ama-o,
mas não deve nem póde amá-lo. Se fosse
livre,
não sei o que diria―não sei o que faria eu...
Mas não se tratta de mim'―proseguiu com volubilidade
febril―'não se tratta de mim, Carlos,
tratta-se d'ella. Laura não o póde amar,
está
compromettida. Hade partir em tres mezes
para a India.'
―'Para a India!'
―'Sim: é verdade: velo-ha. O seu noivo é
capitão ao serviço da companhia, e parte em
casando.'
Eu sentia-me morrer o coração dentro do peito:
foi a primeira dor verdadeira d'alma que
soffri... Aquelle era o primeiro amor sincero da
minha vida, e aquella foi tambem a primeira
excruciante pena d'amor por que passei.
Eu que de taes penas zombára sempre, que
as desterrava da realidade para os romances, eu!..
[198]
Ai! que poeta ou que novellista soube nunca pintar
um padecer como eu experimentei n'aquella
hora?
Não sei o que fiz nem o que disse; não me
recordo senão que senti as lagrymas de Julia cahirem-me
sôbre a face e misturarem-se com as
minhas que corriam em abundancia. Levantei os
olhos para ella, e a expressão que vi nos seus...
oh! como a heide esquecer nunca?
Quanto ha de piedade e compaixão no thesouro
infinito de um coração feminino se derramava
d'aquelles olhos celestes para me consolar. Lá
não ficava senão uma tristeza profunda,
desanimada
e mortal...
Não sei que vago pensamento, que idea louca...
ou antes, que presentimento indeterminado
e confuso me atravessou pelo espirito―ou
sería pelo coração?―n'aquelle
momento...
Se Julia?..
Mas não póde ser.
[199] ―'Julia, Julia' bradei eu 'quero vê-la: heide
vê-la uma vez ao menos. Não me negue este
último
favor. Sei que devo, que preciso, que é
forçoso fugir d'ella. Mas antes heide dizer-lhe...'
―'O quê?..'
―'Que a amo como nunca amei, como nunca
mais heide amar...'
―'Ai Carlos!'
―'Que para sempre, sempre...'
Julia levantou-se sem dizer palavra, e lançando
sôbre mim um olhar de ineffavel compaixão,
sahiu rapidamente do quarto.
Achei-me so, não sei o que pensei nem se
pensei. Sentia-me aturdido da cabeça, exhausto
do coração―n'uma depressão d'espirito
que tocava
na estupidez. Se me apontassem uma pistola
aos peitos, não levantava o braço para a
arredar...
Ja não sentia pena nem desejo. Parecia-me
que começava a morrer; e não achava que
morrer custasse muito.
[200]
N'este estado fiquei não sei que tempo; muito
não foi. Percebi que se abria a porta, não
tive fôrça para levantar os olhos. Até
que senti
uma doce e querida mão na minha... era Julia...
e era Laura tambem... sancto Deus! que estavam
aopé de mim ambas.
Julia tinha a minha mão na sua; e Laura incostada
ao hombro da irman, deixava cahir sôbre
mim aquelles olhos em que a severidade
habitual se tinha relaxado n'uma indulgencia tam
doce, n'uma compaixão tam celeste que, juro
por Deus, n'aquella hora acreditei firmemente
que tinha deante de mim dous anjos seus, baixados
nas azas da piedade divina para me trazer todo
o perdão, toda a misericordia do ceo á minha
alma.
Como te direi eu, Joanna, querida Joanninha,
como te direi a ti que me amas, a ti que
eu amo―porque te amo, e Deus me castigue
que deve! porque te amo, cegamente te amo
com este infame e abominavel coração que Elle
me deu―como te heide eu dizer a ti, e para
quê, as palavras que alli dissemos, os protestos
[201]
que alli fiz, os juramentos que alli se deram, as
promessas que alli foram trocadas?
Julia foi para a janella―indulgente chaperão
que nos não via e fingia não nos ouvir. O dia
passou-se assim, um longo dia de junho que tam
curto e rapido nos pareceu. Era noite quando
fomos jantar.
Á mesa Laura appareceu em trajos de viagem;
partia n'aquella noite para o paiz de Galles onde
tinha uma amiga, com quem ia estar até o dia
terrivel, e preparar-se para elle, me disse, longe
de mim, no seio da amizade.
Imagine-se aquelle jantar. Nem comer fingiamos.
Ao sahir da mesa achámos á porta da casa
a caleche posta, o cocheiro na almofada, e
o criado á portinhola. Montámos, as tres irmans
e eu.
Eram duas milhas d'alli á estalagem onde
tocava a malla-posta e onde Laura devia incontrá-la.
Fizemo-las sem proferir palavra nenhum
dos quatro.
[202]
A lua ia grande e bella com sua luz triste e
fria por um ceo sem nuvens. Era uma d'aquellas noites
raras, mas admiraveis do breve estio britannico.
A areia que rangia com o attrito das rodas
da carruagem nas lisas ruas do parque, os ramos
descahidos das árvores por que roçavamos
levemente
ao passar, os veados mansos que se levantavam
para nos ver―os phaesães que erguiam
seu rasteiro voo de moita para moita ao
sentir o estalido do chicote, com que o cocheiro
mais moderava do que excitava os seus cavallos,
tudo para mim eram impressões de nunca
sentida e inexplicavel tristeza. Ficava-me a alma
apoz tudo aquillo, sentia fugir-me a felicidade
para sempre, e que era eu que a affugentava,
e que me ia incontrar so, desamparado e proscripto
no deserto da vida.
Não me sentia fôrça para blasphemar,
para
maldizer de Deus, senão tinha-o feito.
Tinha: e outras ancias mais angustiadas e
mortaes me teem afflicto na vida; em nenhuma
[203]
me senti tam capaz de renegar de Deus e descrer
d'elle como n'esta.
Sería effeito de sua inexhaurivel piedade que
talvez quiz acudir á minha alma antes que se perdesse,
sería por certo―pois n'esse mesmo instante
distinctamente me appareceu deante dos
olhos d'alma a unica imagem que podia chamá-lo
do abysmo: era a tua, Joanna! Era a minha
Joanninha piquena, innocente, aquelle anginho
de criança, tam viva, tam alegre, tam graciosa
que eu tinha deixado a brincar no nosso valle:
o nosso valle rustico, tam grosseiro e tam inculto!
oh como as saudades d'elle me foram alcançar
no meio d'aquellas allinhadas e perfeitas bellezas
da cultura britannica! Os raios verdes de
teus olhos, faiscantes como esmeraldas, atravessaram
o espaço, e foram luzir no meio d'aquell'outros
lumes que me cegavam. A esteva brava, o tojo
aspero da nossa charneca mandavam-me ao longe as
exhalações de seu perfume agreste, e matavam o
suave cheiro do feno macio d'essas relvas sempre
verdes que me rodeavam. As folhas crespas, sêccas,
alvacentas das nossas oliveiras como que me
luziam por entre a espessura cerrada da luxuriante
vegetação do norte, promettendo-me paz
[204]
ao coração, annunciando-me o fim de uma peleja
em que m'o dilaceravam as paixões.
E tu, Joanna, tu, pobre innocente, e desvallida
criancinha, tu apparecias-me no meio de tudo
isso, extendendo para mim os teus bracinhos
amantes como no dia que me despedira de ti
n'esse fatal, n'esse querido, n'esse doce e amargo
valle das minhas lagrymas e dos meus risos,
onde so me tinham de correr os poucos minutos
de felicidade verdadeira da minha vida, onde as
verdadeiras dores da minha alma tinham de m'a
cortar e destruir para sempre...
Oh! de quê e como é feito o homem, para
quê e porque vive elle? Que vim eu, que vimos
nós todos fazer a este mundo?
Eu sentado alli nas almofadas de seda d'aquella
splendida e macia carruagem, rodeado de tres
mulheres divinas que me queriam todas, que eu
confundia n'uma adoração mysteriosa e
mystica―cego,
louco d'amores por uma d'ellas, no momento
de lhe dizer adeus para sempre... eu tinha o pensamento
fixo n'uma criança que ainda andava ao collo!―Revendo-me
nos olhos pardos de Laura que eu
[205]
adorava, eram os teus olhos verdes que eu tinha
n'alma! Os sentidos todos embriagados d'aquelle
perfume de luxo e civilização que me
cercava,―era
o nosso valle rustico e selvagem o que eu
tinha no coração...
Oh! eu sou um monstro, um aleijão moral
devéras, ou não sei o que sou.
Se todos os homens serão assim?
Talvez, e que o não digam.
Joanna, minha Joanna, minha Joanninha querida,
anjo adorado da minha alma, tem compaixão
de mim, não me maldigas. Não quero que me
perdoes,
nem tu nem ninguem, que o não mereço:
mas que tenhas dó e lástima de mim.
Ai! que isso mereço eu, oh sim.
Deixa-me parar aqui. Falta-me o ânimo para
me estar vendo a este terrivel espelho moral em
que jurei mirar-me para meu castigo, d'onde
estou copiando o horroroso retratto de minha alma
que te desenho n'este papel.
[206]
Sabía que era monstro, não tinha examinado
por partes toda a hediondez das feições que me
reconheço agora.
Tenho espanto e horror de mim mesmo.
CAPITULO XLVII.
Carta de Carlos a Joanninha: continúa.
Chegámos ao Inn (estalagem), triste casa solitaria
no meio dos campos á borda da estrada. A
malla chegava ao mesmo tempo quasi.
Eu dei a mão a Laura para sahir da caleche
[208]
e entrar no coche; e apenas tivemos tempo para
um convulsivo shake-hands e para nos dizer
adeus! adeus! com a affectada seccura que exige
a lei das conveniencias britannicas.
A malla partiu ao grande trote... E dir-te-hei
a verdade ou queres que minta? Não, heide dizer-te
a verdade. Pois senti como um alívio desesperado,
uma consolação cruel em a ver partir.
Senti o que imagino que deve sentir um infêrmo
depois da operação dolorosa em que lhe amputaram
parte do corpo com que já não podia viver,
e que era forçoso perder ou perder a vida.
Tambem deve de ser assim a morte: um descanço
apathico e nullo depois de inexplicavel padecer.
Era como morto que eu estava; não soffria
pois.
E ja não pensava em ti, ja te não via na minha
alma: eu não existia, estava alli.
Voltámos ao parque; apeei silenciosamente as
minhas duas gentis companheiras, e eu fui so,
[209]
apé, com passo firme e resoluto
para a minha habitação.
Nenhuma d'ellas me procurou retter, nem
me disse nada, nem tentou consolar-me. Paraquê?
L. William R. chegava, na manhan seguinte, de
uma de suas habituaes excursões a Londres. Veio
ver-me assim que chegou, e trazer-me cartas
de Portugal que eu esperava ha muito.―Disse-me
que partia no outro dia para Swansea, a
terra de Galles para onde Laura fôra; e que
me incarregava de fazer companhia ás duas filhas
que ficavam sos.
A mim!..
Estive tres dias sem as ver: em todos tres não
fiz mais do que escrever a Laura.
No quarto dia fui ao parque. Julia deu um
grito de alegria quando me viu: raro exemplo
de excepção ás formuladas regras que
tyrannizam
a vida ingleza, que prescrevem até a cara com
que se hade morrer, e teem graduado o tom em
que se deve exhalar o último suspiro.
Mas a natureza chega a triumphar ás vezes
até da propria etiqueta britannica.
[210]
Julia cuidava que eu não queria voltar áquella
casa, tinha-se resignado a não tornar a ver-me;
não pôde reprimir a alegria que lhe causou
a minha inexperada apparição.
Passámos todo o dia junctos e sos: quasi todo
se nos foi passeando no parque, ou sentados á
sombra de seus espessos arvoredos, ou mirando-nos
nas crystallinas aguas de uma vasta represa
povoada de aves aquaticas e rodeada d'aquelles
immensos mantos de velludo verde de que perpetuamente
se infeita a terra ingleza e que so
desapparecem quando vem o hynverno extender-lhe
porcima seus alvos lençoes de neve.
Quiz ver o que eu escrevia á irman; dei-lhe
a carta, leu-a, meditou-a, restituiu-m'a sem dizer
palavra.
Que horas passámos n'este silencio, n'esta eloquente
mudez que não vem senão do muito de
mais que a alma sente, do muito de mais que
diria se fallasse!
Á despedida, essa noite, deu-me uma bolsa
de rede que Laura tinha estado fazendo para mim
[211]
e que lhe deixára para me intregar. Senti que
tinha dentro o que quer que fosse a bolsa, não
quiz examinar. Achei, quando voltei a casa,
que era o
fadado cinto de vidrilhos
pretos que
eu tanto tinha admirado em certo baile onde foramos
junctos, e que Laura não deixára de pôr
nunca mais em se vestindo de branco e que fizesse
alguma toilette.
Ainda o conservo aquelle cinto precioso, Joanna;
ainda a tenho, no meu thesoiro mais guardado,
aquella joia, aquella reliquia. E amo-te,
e amo-te a ti so como realmente nunca amei nem
poderei tornar a amar. Mas aquelle cinto é uma
sorte, um talisman, um amuleto em que está o
meu destino.
Amei... isto é, amei... pois sim, amei,
ja que não ha outra palavra n'estas estupidas
linguas que fallam os homens; pois amei
outras mulheres, e nos dias de maior enthusiasmo
por ellas, não deixei nunca de beijar devotamente
aquelle cinto, de o appertar sôbre o
meu coração, de me incommendar a elle―como
o salteador napolitano se incommenda ao escapulario
da madona que traz ao peito, com as
[212]
mãos insanguentadas de matar, ou carregado do
roubo que acaba de fazer.
Ai, Joanna, não te digo eu que estou perdido,
sem remedio, e que para mim não ha, não
póde haver salvação nunca?
Vivi assim dois mezes. Laura não me escrevia:
recebia as minhas cartas e respondia a Julia:
por este modo nos correspondiamos. Julia era parte
de nós, era uma porção do nosso amor,
viviamos
n'ella a nossa vida. E ja as confundia ambas por tal
modo no meu coração que me surpreendia a
não
saber a qual queria mais. Julia parecia feliz d'este
estado; eu era-o. Insensivelmente me habituei
a elle, ja não tinha saudades do passado.
E quando se approximou o casamento de Laura,
que ella tinha de voltar de Galles, e que eu,
fiel ao que promettêra, devia pretextar negócio
urgentissimo em Londres que me obrigasse a ausentar-me
até á sua partida para a India, eu tive
uma pena, uma difficuldade em cumprir o que
promettêra que me invergonhava.
Parti porêm; e alli me demorei um mez. Julia
escrevia-me todos os dias e eu a ella. Na véspera
[213]
do dia fatal em que Laura ia ser de outro
homem, Julia escreveu-me éstas palavras sos:―'O
nosso romance acabou; começa uma historia
séria. Laura manda-lhe o seu último adeus.'
E nunca mais se escreveu nem se pronunciou
o nome de Laura entre nós dous.
O galeão que me levava para o Oriente as ruinas
de toda a minha esperança ha muito que navegava;
entrava outubro e o hynverno inglez
com suas mais asperas, e n'este
anno tam
precoces, severidades. Eu sentia-me morrer de
tristeza e de isolamento no meio da populosa e
turbulenta Londres, Julia percebeu-o, e mandou-me
voltar a ――shire. Voltei.
CAPITULO XLVIII.
Carta
de Carlos a Joanninha: continúa.
O que eu senti quando, apezar de tam desfigurados
pelos tres-altos de neve que os cubriam,
comecei a reconhecer aquelles sitios da vizinhança
do parque, e a confrontar as árvores, os pastios,
os casaes d'aquelles arredores!
[216]
Era outra a expressão de physionomia da paizagem,
mas as queridas feições eram as mesmas,
e uma a uma lh'as ia estremando.
Emfim o meu
stage parou á
entrada do parque,
e eu tomei apé pela longa avenida.
Eram
nove horas da manhan, e a manhan brumosa, fria,
mas o tempo macio, não estava
cru, segundo a
expressiva phrase do paiz.
Por entre a nevoa que me incubria a antiga
mansão e involvia as árvores circumstantes n'um
sudario cinzento e melancholico, fui caminhando,
quasi pelo tacto, até meia alameda talvez.
Parei a reflectir na minha posição e no que eu
ia ser n'aquella casa que de novo me abria
suas portas hospitaleiras, quando, atravez da neblina
brancacenta e onde ella era mais rara, descubri
um vulto que vinha a mim de entre as
árvores do parque.
O vulto era de mulher e parecia uma sombra,
uma apparição phantastica em meio d'aquella
scena mysteriosa, so, triste.
[217]
Na distancia figurava-se-me alto em demazia:
Julia não era nem podia ser; Julia a mais diminutiva
e delicada de quantas fadas bonitas e
graciosas teem trazido varinha de condão. Laura...
ai! Laura tam longe estava d'alli... Quem
sería pois? So se fosse!.. Quem?
Aquella elegancia, aquelle cabello sôlto e annellado,
aquelle ar gentil não podia ser senão d'ella...
D'ella, quem?
Ainda te não fallei, quasi, da última das tres
bellas irmans que me incantavam, não t'a
descrevi,
não t'a nomeei pelo seu nome. Repugnava-me
fazê-lo. Mas é preciso: custa-me, não
ha remedio.
Era Georgina...
Georgina que tu conheces, Georgina que...
era Georgina a que vinha a mim n'aquella―fatal
ou feliz?―manhan; Georgina que de todas
tres era a que menos me fallava, que eu
verdadeiramente menos conhecia.
[218]
Este meu coração, á
fôrça de ferido e de
mal
curado que tem sido, pressente e adivinha as
mudanças
de tempo com uma dor chronica que me
dá. Pressenti não sei quê ao ver
approximar-se
Georgina...
―'Como foi bom em vir! Estou realmente
feliz de o ver. E Julia, a pobre Julia, que alegria
que vai ter, hade curá-la de todo.'
―'Pois quê! Julia está doente?'
―'Não o sabía!... Ai! não, bem sei
que
não: ella não lh'o quiz dizer. Julia
está doente;
mas não é de cuidado. Eu sempre quiz advirti-lo
antes que a visse, por isso calculei as horas
do coche e vim para aqui esperá-lo.'
Éstas palavras eram simples, não tinham nada
que me devesse impressionar extraordinariamente,
e todavia eu sentia-me agitado como nunca
me sentira. Olhava para Georgina como se a visse
a primeira vez, e pasmava de a ver tam bella,
tam interessante.
É uma situação d'alma ésta
que não sei que
[219]
a descrevessem ainda poetas nem romancistas:
desprezam-n'a talvez, ou não a conhecem. Está
recebido que as subitas impressões causadas por
um primeiro incôntro sejam as mais interessantes,
as mais poeticas.
Eu não nego o effeito theatral d'essas primeiras
e repentinas sensações; mas sustento que
interessa mais ess'outra inesperada e extranha
impressão que nos faz um objecto ja conhecido,
que víramos com indifferença atéalli,
e que derrepente
se nos mostra tam outro do que sempre
o tinhamos considerado...
Mas ésta mulher é bella realmente! E eu que
nunca o vi! Mas aquelles olhos são divinos! Onde
tinha eu os meus atégora? Mas este ar, mas
ésta graça onde os tinha ella escondidos? etc.
etc.
Vão-se gradualmente, vão-se pouco a pouco
descobrindo perfeições, incantos; e o sentimento
que resulta é mil vezes mais profundo, mais fundado,
sôbretudo, que o das taes primeiras impressões
tam cantadas e decantadas.
Que mais te direi depois d'isto? Entrámos
[220]
em casa, vi Julia, fallámos de Laura muito e
muito. Mas eu ja o não fiz com o enthusiasmo,
com a admiração exclusiva com que d'antes o
fazia...
Julia recobrou, breve, a saude, e com ella o
equilibrio do espirito. Renovou-se toda a alegria,
todo o incanto das nossas conversações
íntimas,
dos nossos longos passeios. Laura lembrava com
saudade; mas suavizava-se, imbrandecia gradualmente
aquella saudade.
Georgina, que atéalli parecia
impenhar-se em
se deixar eclipsar pela irman, agora, ausente ella,
brilhava de toda a sua luz, em graça, em espirito,
por um natural singelo e franco, por uma exquisita
doçura de maneiras, de voz, de expressão, de
tudo.
Julia revia-se n'ella, e eu acabei pela adorar.
Vergonha eterna sôbre mim! mas é a verdade:
quiz-lhe mais do que a Laura, ou pareceu-me
querer-lhe mais... que tanto vale.
Eu sei?.. Não, não lhe queria tanto. Mas
amei-a.
[221]
Amei, sim, e fui amado!
Tres mezes durou a minha felicidade. É o
mais longo periodo de ventura que posso contar
na vida. Falsa ventura, mas era.
A imperiosa lei da honra exigiu que nos separassemos,
que partisse para os Açores. Fui.
Ninguem sacrificou mais, ninguem deu tanto como
eu para aquella expedição. A historia
fallará
de muitos serviços, de muitas
dedicações.
Quem saberá nunca d'esta?
A historia é uma tola.
Eu não posso abrir um livro de historia que
me não ria. Sôbretudo as
ponderações e adivinhações
dos historiadores acho-as de um comico
irresistivel. O que sabem elles das causas, dos
motivos, do valor e importancia de quasi todos
os factos que recontam?
Ainda não sei como parti, como cheguei, como
vivi os primeiros tempos da minha estada
n'aquelle escôlho no meio do mar, chamado a ilha
[222]
Terceira, onde se tinham refugiado as pobres reliquias
do partido constitucional.
Habituei-me porfim. A que se não affaz o
homem?
Levaram-me uma tarde á grade de um convento
de freiras que ahi havia. O meu ar triste,
distrahido, indifferente excitou a piedade das
boas monjas. Uma d'ellas, joven, ardente, apaixonada,
quiz tomar a empresa de me consolar.
Não o conseguiu, coitada! O meu
coração estava
em ――shire em Inglaterra, estava na India,
estava no valle de Santarem,
Pelo mundo em pedaços
repartido;
estava em toda a parte, menos alli, que nada
d'elle estava nem podia estar.
Era Soledade que se chamava a freirinha, e
com o seu nome ficou. Disseram o que quizeram
os falladores que nunca faltam, mas mentiram
como mentem quasi sempre, inganaram-se como
se inganam sempre.
Eu não amei a Soledade.
[223]
E comtudo lembro-me d'ella com pena, com
sympathia... Se eu sou feito assim, meu Deus,
e assim heide morrer!
Viemos para Portugal; e o resto agora da
minha historia sabes tu.
Cheguei porfim ao nosso valle, todo o passado
me esqueceu assim que te vi. Amei-te... não,
não é verdade assim. Conheci, mal que te vi
entre aquellas árvores, á luz das estrellas,
conheci
que era a ti so que eu tinha amado sempre,
que para ti nascêra, que teu so devia ser,
se eu ainda tivera coração que te dar, se a minha
alma fosse capaz, fosse digna de junctar-se
com essa alma d'anjo que em ti habita.
Não é, Joanna; bem o ves, bem o sentes,
como eu o sinto e o vejo.
Eu sim tinha nascido para gosar as doçuras da
paz e da felicidade doméstica; fui creado, estou certo,
para a glória tranquilla, para as delicias modestas
de um bom pae de familias.
Mas não o quiz a minha estrella. Embriagou-se
de poesia a minha imaginação e perdeu-se:
não me recobro mais. A mulher que me amar
[224]
hade ser infeliz por fôrça, a que me intregar o
seu destino, hade vê-lo perdido.
Não quero, não posso, não devo amar a
ninguem
mais.
A desolação e o oppróbrio entraram no
seio
da nossa familia. Eu renuncio para sempre ao lar
doméstico, a tudo quanto quiz, a tudo quanto
posso querer. Deus que me castigue, se ousa fazer
uma injustiça, porque eu não me fiz o que
sou, não me talhei a minha sorte, e a fatalidade
que me persegue não é obra minha.
Adeus Joanna, adeus prima querida, adeus
irman da minha alma! Tu accompanha nossa avó,
tu consola esse infeliz que é o auctor da sua e das
nossas desgraças. Tu, sim, que podes; e esquece-me.
Eu, que nem morrer ja posso, que vejo terminar
desgraçadamente ésta guerra no unico momento
em que a podia abençoar, em que ella
podia felicitar-me com uma balla que me mandasse
aqui bem direita ao coração, eu que farei?
Creio que me vou fazer homem politico, fallar
[225]
muito na patria com que me não importa,
ralhar dos ministros que não sei quem são, palrar
dos meus serviços que nunca fiz por vontade;
e quem sabe?.. talvez darei porfim em agiota,
que é a unica vida de emoções para
quem ja
não póde ter outras.
Adeus minha Joanna, minha adorada Joanna,
pela última vez, adeus!
CAPITULO XLIX.
De como Carlos se fez
barão.―Fim da historia de
Joanninha.―Georgina
abbadessa.―Juizo de Fr. Diniz sôbre a
questão dos frades e dos barões.―Que
não póde tornar a
ser o que foi, mas muito menos póde ser o que é.
O que
hade ser, Deus o sabe e proverá.―Vai o A. dormir ao
Cartaxo.―Sonho
que ahi tem.―Volta a Lisboa.―Caminhos
de ferro e de papel.―Conclusão da viagem e d'este livro.
Acabei de ler a carta de Carlos, intreguei-a a
Fr. Diniz em silencio. Elle tornou-me:
―'Leu?'
[228] ―'Li.'
―'Que mais quer saber? Sinto que lhe posso
dizer tudo: não o conheço, mas...'
―'Mas deve conhecer-me por um homem
que se interessa vivamente...'
―'Em quê? nas eleições, na agiotagem,
nos
bens nacionaes?'
―'Não senhor. Fui camarada de Carlos, não
o vejo ha muitos annos e...'
―'Nem o conhecia se o visse agora: ingordou,
inriqueceu, e é barão...'
―'Barão!'
―'É barão, e vai ser deputado qualquer
dia.'
―'Que transformação! Como se fez isso,
sancto Deus! E Joanninha e Georgina?'
―'Joanninha inlouqueceu e morreu. Georgina
[229]
é abbadessa de um convento em Inglaterra.'
―'Abbadessa?'
―'Sim. Converteu-se á communhão catholica;
era ricca, fundou um convento em ――shire e lá
está servindo a Deus.'
―'E ésta pobre senhora, a avó de Joanninha?'
―'Ahi está como a ve, morta de alma para tudo.
Não ve, não ouve, não falla, e
não conhece
ninguem. Joanninha veio morrer aqui n'esta
fatal casa do valle, eu estava ausente, expirou
nos braços d'ella e de Georgina. Desde esse instante
a avó cahiu n'aquelle estado. Está morta,
e não espero aqui senão a
dissolução do corpo
para o interrar, se eu não for primeiro, e
Deus queira que não! quem hade tomar conta
d'ella, ter charidade com a pobre da demente?
Mas depois... oh! depois... espero no Senhor que se
compadeça emfim de tanto soffrer e me leve
para si.'
―'Mas Carlos?'
[230] ―'Carlos é barão: não lh'o disse ja?'
―'Mas por ser barão?..'
―'Não sabe o que é ser barão?'
―'Oh se sei! Tam poucos temos nós?'
―'Pois barão é o succedaneo dos...'
―'Dos frades... Ruim substituição!'
―'Vi um dos taes papeis liberaes em que isso
vinha: e é a unica coisa que leio d'essas ha
muitos annos. Mas fizeram-m'o ler.'
―'E que lhe pareceu?'
―'Bem escripto e com verdade. Tivemos
culpa nós, é certo; mas os liberaes
não tiveram
menos.'
―'Errámos ambos.'
―'Errámos e sem remedio. A sociedade ja
não é o que foi, não póde
tornar a ser o que
[231]
era;―mas muito menos ainda póde ser o que é.
O que hade ser, não sei. Deus proverá.'
Ditto isto, o frade benzeu-se, pegou no seu breviario
e poz-se a rezar. A velha dobava sempre,
sempre. Eu levantei-me, contemplei-os ambos alguns
segundos. Nenhum me deu mais attenção
nem pareceu conscio da minha estada alli.
Sentia-me como na presença da morte e atterrei-me.
Fiz um esfôrço sôbre mim, fui
deliberadamente
ao meu cavallo, montei, piquei desesperado
d'esporas, e não parei senão no Cartaxo.
Incontrei alli os meus companheiros; era tarde,
fomos ficar fóra da villa á hospedeira casa
do Sr. L. S.
Rimos e folgámos até alta noite: o resto dormimos
a somno sôlto.
Mas eu sonhei com o frade, com a velha―e
com uma enorme constellação de barões
que
luzia n'um ceu de papel, d'onde choviam, como
[232]
farrapos de neve, n'uma noite pollar, notas azues,
verdes, brancas, amarellas, de todas as côres e
matizes possiveis. Eram milhões e milhões e
milhões...
Nunca vi tanto milhão, nem ouvi fallar de
tanta riqueza senão nas mil e uma noites.
Acordei no outro dia e não vi nada... so uns
pobres que pediam esmola á porta.
Metti a mão na algibeira, e não achei
senão
notas... papeis!
Parti para Lisboa cheio de agoiros, de inguiços
e de tristes presentimentos.
O vapor vinha quasi vazio, mas nem por isso
andou mais depressa.
Eram boas cinco horas da tarde quando desimbarcámos
no Terreiro-do-Paço.
Assim terminou a nossa viagem a Santarem: e
assim termina este livro.
[233]
Tenho visto alguma coisa do mundo, e apontado
alguma coisa do que vi. De todas quantas
viagens porêm fiz, as que mais me interessaram
sempre foram as viagens na minha terra.
Se assim o pensares, leitor benevolo, quem
sabe? póde ser que eu tome outra vez o bordão
de romeiro, e va perigrinando por esse Portugal
fóra, em busca de historias para te contar.
Nos caminhos de ferro dos barões é que eu
juro não andar.
Escusada é a jura porêm.
Se as estradas fossem de papel, fa-las-iam,
não digo que não.
Mas de metal!
Que tenha o govêrno juizo, que as faça de
pedra, que póde, e viajaremos com muito prazer
e com muita utilidade e proveito na nossa
boa terra.
NOTAS
NOTAS
AO LIVRO SEGUNDO.
Nota A.
Collecção de antigas rhapsodias germanicas
contendo
o maravilhoso e poetico de suas origens historicas
e que é para os povos theutonicos o que era a
Ilíada
para os hellenos. So se não sabe o nome do Homero
[238]
allemão que as redigiu e uniformizou como hoje se
acham.
Nota B.
Caranguejar para as
Lamas
Fundo baixo do Tejo, ao longo da praia de Sanctos,
que tem este nome e é onde vão apodrecer as
carcassas
dos navios velhos e ja inuteis.
Nota C.
Fender se chama em inglez a pequena e baixa tea
de metal que defende o fogão nas salas, paraque
não
caiam brazas nos sobrados. Descançam n'elle os
pés
naturalmente quando a gente se está confortavelmente
aquecendo em liberdade.
Nota D.
Perfumados resplendores do
Old
sack
Tem-se disputado muito sôbre qual seja a bebida
espirituosa celebrada por Shakspeare tantas vezes
com este nome. A opinião mais acceita é que fosse
boa e velha aguardente de França.
[239]
Nota E.
Renegaram de San'Tiago por
castelhano
O grito de guerra commum a todas as nações
christans
hespanholas era: San'Tiago! Quando na accessão
da casa de Avis nos alliámos intimamente com a
Inglaterra contra Castella, começámos a invocar
San'Jorge.
Nota F.
Vacca e riso de Fr. Bartholomeu dos
Martyres
Singela e original expressão do sancto arcebispo
n'uma carta de convite a um seu amigo. Fez-se, como
devia ser, proverbial ésta phrase.
Nota G.
Feliz expressão do Sr. Conde de
Raczinski
Na sua obra intitulada 'Les arts en Portugal', Paris
1845.
Nota H.
O centro perde o centro de gravidade, o barbas arrepella
as barbas
Centro e barbas são qualificações e
nomes de impregos
theatraes.
INDICE.
Capitulo XXVI―Modo
de ler os
auctores antigos,
e os modernos
tambem.―Horacio na
sacra-via.―Duarte Nunes iconoclasta da nossa
historia.―A policia e os barcos de vapor.―Os
vandalos do feliz systema que nos rege.―Shakspeare
lido em Inglaterra a um bom fogo,
com um copo de old-sack
sôbre a banca.―Sir
John Falstaff se foi maior homem
que
Sancho-Pansa?―Grande
e importante descuberta archeologica
sôbre San'Tiago, San'Jorge e Sir
John Falstaff.―Próva-se a vinda d'este último
a Portugal.―O enthusiasta britannico no
tumulo
de Heloisa e Abeillard no Père-la-Chaise.―Bentham
e Camões.―Chega o auctor á sua
janella, e pasmosa miragem poetica
produzida
por umas oitavas dos Lusiadas.―De como em
fim proseguem éstas viagens para Santarem, e
que feito será de
Joanninha. |
|
1 |
Capitulo XXVII―Chegada
a
Santarem.―Olivaes
de Santarem.―Fóra-de-Villa.―Symetria que não
é para os olhos.―Modo de medir os versos da
biblia.―Architectura pedante do seculo XVII.―Entrada na
Alcáçova. |
|
11 |
Capitulo XXVIII―Depois
de muito procurar acha em fim o auctor a egreja de Sancta-Maria
d'Alcáçova.―Stylo da architectura nacional
perdido.―O terremoto de 1755, o marquez
de Pombal e o chafariz do Passeio-público de
Lisboa.―O chefe do partido progressista portuguez
no alcassar de D. Affonso Henriques.―Deliciosa
vista dos arredores de Santarem observada
de uma janella da Alcáçova, de
manhan.―É
tomado o auctor de ideas vagas,
poeticas, phantasticas como um
sonho.―Introducção
do Fausto.―Difficuldade de traduzir
os versos germanicos nos nossos dialectos
romanos. |
|
19 |
[242]
Capitulo XXIX―Doçuras
da vida.―Imaginação
e sentimento.―Poetas que morreram moços
e poetas que morreram velhos.―Como são
escriptas éstas viagens.―Livro de pedra. Criança
que brinca com elle.―Ruinas e reparações.―Idea
fixa do A. em coisas d'arte e litterarias.―Sancta
Iria ou Irene, e Sanctarem.―Romance
de Sancta Iria.―Quantas sanctas ha
em Portugal d'este
nome? |
|
29 |
Capitulo XXX―Historia
de Sancta
Iria segundo
os chronistas e segundo o romance
popular. |
|
39 |
Capitulo XXXI―Quommodo
sedet sola
civitas.―Santarem.―Portugal
em verso e Portugal
em prosa.―Exquisito lavor de umas portas e
janellas de architectura mosarabe.―Busto de
D. Affonso Henriques.―As salgadeiras de Affrica.―Porta
do Sol.―Muralhas de Santarem.―Voltemos á historia de Fr.
Diniz e da menina
dos olhos verdes. |
|
49 |
[243]
Capitulo XXXII―Tornâmos
á historia do Joanninha.―Preparativos
de guerra.―A morte.―Carlos
ferido e prisioneiro.―O hospital.―O
infermeiro.―Georgina |
|
55 |
Capitulo XXXIII―Carlos
e
Georgina. Explicação.―Ja
te não amo! palavra terrivel.―Que
o amor verdadeiro não é cego.―Frade no caso
outra vez. Ecce iterum Crispinus; ca
está o
nosso Fr. Diniz
comnosco. |
|
69 |
Capitulo XXXIV―Carlos,
Georgina e
Fr. Diniz.―A
peripecia do drama. |
|
79 |
Capitulo XXXV―Reunião
de toda a familia.―Explicação
dos mysterios.―O coração da
mulher.―Parricidio.―Carlos beija emfim a mão
a Fr. Diniz e abraça a pobre da
avó. |
|
87 |
Capitulo XXXVI―Que
não
se acabou a historia
de Joanninha.―Processo ao coração de
Carlos.―Immoralidade.―Defeito de organização
não é immoralidade.―Horror, horror,
maldicção!―Um barão que
não pertence á
familia lineana dos barões propriamente dittos.―Porta
de Atamarma.―Senatus consulto santareno.―Nossa
Senhora da Victoria
afforada.―Threnos
sôbre
Santarem. |
|
99 |
Capitulo XXXVII―A
Graça e sua bella fachada gothica.―Sepultura de
Pedr'alvares Cabral.―Outro
barão que não é dos
assignalados.―Egreja
do Sancto-milagre.―Bellos medalhões
mosarabes.―De como, chegando o
prior e o juiz, houve o A. vista do Sancto-milagre,
e com que solemnidades.―Monumento
da muito alta e poderosa princeza a infanta
D. Maria da Assumpção.―Casa onde
succedeu o milagre convertida em capella de
stylo philippino.―O homem das botas, e o
que tem elle que haver com o Sancto-milagre
de Santarem.―Admiravel e graciosa esperteza
da regencia do Rocio.―Aaroun-el-Arraschid:
e theoria dos governos folgasões, os melhores
governos possiveis.―Volta o paladio
scalabitano de Lisboa para
Santarem. |
|
111 |
[244]
Capitulo XXXVIII―Jantar
nos reaes
paços de
Affonso Henriques.―Sautés e salmis.―Desce
o A. á Ribeira de Santarem em busca da
tenda do Alfageme.―A espada do Condestavel.―Desappontamento.―O
salão elegante. Dissipam-se as ideas archeologicas. Os
fosseis.
Tudo melhor quando visto de longe.―O
baile público.―Soirée de piano
obrigado.―Theatro.
Desaffinações da prima-dona.―Syphlis
incuravel das traducções. Destempêro
dos originaes.―A xácara de rigor, o subterraneo
e o cemiterio.―Sublime gallimathias
do ridiculo.―A bella e necessaria palavra
'gallimathias.'―Se as saudades matam.―Perigo
de applicar o scalpello ou a lente ao
mais perfeito das coisas humanas.―De como
a logica é a mais perniciosa de todas as
incoherencias. |
|
121 |
[245]
Capitulo XXXIX―Processo
de
scepticismo em
que está o auctor.―Moralistas de
requiem.―O
maior sonho d'esta vida, a logica.―Differença
do poeta ao philosopho.―O coração de
Horacio.―O collegio de Santarem.―Jesuitas
e templarios.―O alliado natural dos reis:―'Ficar
na gazeta' phrase muito mais exacta
hoje do que 'Ficar no tinteiro'.―San'Frei
Gil e o Doutor Fausto.―De como o A. foi ao
tumulo do sancto bruxo e o achou vazio.―Quem
o roubaria? |
|
131 |
Capitulo XL―As
Claras.―Aventura
nocturna.―Se
as freiras mettem medo aos liberaes?
O Psalmo.―Tres frades.―Práctica do franciscano.―O
corpo de San' Fr. Gil.―Que se
hade fazer das freiras?―Mal do govêrno que
deixar comer mais aos
barões. |
|
141 |
Capitulo XLI―O
roubador do corpo
do sancto
descuberto pela arguta prespicacia do leitor
benevolo.―Grande lacuna na nossa historia.―Porque
se não preenche?―Página preta
na historia de Tristam Shandy.―Novellas e
romances, livros insignificantes.―O adro de
San'Francisco e as suas acacias.―Que será
feito de Joanninha?―O peito da mulher do
norte.―Vamos embora: ja me infada Santarem
e as suas ruinas.―A corneta do soldado
e a trombeta do juizo final.―Eheu, Portugal, eheu! |
|
151 |
[246]
Capitulo XLII―Protesto
do
auctor.―Desaffinação
dos nervos.―O que é preciso para que
as ruinas sejam solemnes e sublimes.―Que
Deus está no Colliseu assim como em San'Pedro.―Quer-se
o auctor ir embora de Santarem.―Como,
sem ver o tumulo d'elrei D.
Fernando?―Em que estado se acha este.―Exemplar
de stylo byzantino.―Coroa real sôbre
a caveira.―O rei d'espadas e o symbolo
do imperio.―Quem nunca viu o rei cuida que
é de oiro.―Brutalidades da soldadesca n'um
tumulo real.―O que se acha nas sepulturas
dos reis.―A phrenologia.―Vindicta pública,
tardia mas ultrajante.―Camões e Duarte Pacheco.―A
sombra falsa da religião.―Regimen
dos barões e da materia.―A prosa e a
poesia do povo.―Synthese e anályse.―O senso
íntimo.―Se o auctor é demagogo ou Jesuita?―Jesu
Christo e os
barões |
|
157 |
Capitulo XLIII―Partida
de
Santarem.―Pinacotheca.―Impaciencia
e saudades.―Sexta-feira.―Martyrio
obscuro.―A figura do peccado.―Estamos
no valle outra vez.―Evocação
de incanto.―A irman Francisca e Fr. Diniz.―A
teia de Penelope.―E Joanninha?―Joanninha
está no ceo.―A mulher morta a dobar
esperando que a interrem.―A esperança,
virtude do christianismo.―Uma
carta. |
|
167 |
Capitulo XLIV―Carta
de Carlos a
Joanninha. |
|
177 |
[247]
Capitulo XLV―Carta
de Carlos a
Joanninha:
continúa. |
|
187 |
Capitulo XLVI―Carta
de Carlos a
Joanninha:
continúa. |
|
195 |
Capitulo XLVII―Carta
de Carlos a
Joanninha:
continúa. |
|
207 |
Capitulo XLVIII―Carta
de Carlos a
Joanninha:
continúa. |
|
215 |
Capitulo XLIX―De
como Carlos se
fez barão.―Fim
da historia da Joanninha.―Georgina
abbadessa.―Juiso de Fr. Diniz sôbre a questão
dos frades e dos barões.―Que não póde
tornar a ser o que foi, mas muito menos póde
ser o que é? O que hade ser, Deus o sabe e
proverá.―Vai o A. dormir ao Cartaxo.―Sonho
que ahi tem.―Volta a Lisboa.―Caminhos
de ferro e de papel.―Conclusão da viagem
e d'este livro. |
|
227 |
Notas |
|
237 |
Notas:
[1]
Transcrevemos aqui o original allemão, para
se
avaliar o que fica ditto no texto.
Ihr naht euch wieder, schwankende
Gestalten,
Die früh sich einst dem trüben Blick gezeigt.
Versuch ich wohl euch diesmal fest zu halten?
Fühl' ich mein Herz noch jenem Wahn geneigt?
Ihr drängt euch zu! nun gut, so mögt ihr walten
Wie ihr aus Dunst und Nebel um mich steigt;
Mein Busen fühlt sich jugendlich erschüttert
Vom Zauberhauch, der euren Zug umwittert.
Ihr bringt mit euch die Bilder froher Tage,
Und manche liebe Schatten steigen auf;
Gleich einer halbverklungen Sage
Commt erste Lieb' und Freundschaft mit herauf;
Der Schmerz wird neu, es wiederholt die klage
Des lebens labyrintisch irren Lauf,
Und nennt die Guten, die, um schöne Stunden
Vom Glück getäuscht, vor mir hinweggeschwunden
[2] Nas notas
a
Adozinda,
vol. I do 'Romanceiro,'
nota N,
citei differentemente ésta copla pela
imperfeita licção
de um Ms. do Minho, unico que tinha á mão.
[3] Outra
licção, e talvez melhor diz
a coitada.
[4] Thomar.
[5] De frades
e de freiras.
[6] Deus,
venerunt gentes in hereditatem tuam. Ps. 78.
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
*
correcções feitas com base na errata do
próprio livro.
Shakespeare, San' Thiago e Joanninha surgem neste livro como
Shakspeare, San'Tiago e Joaninha respectivamente.
Dada a repetitividade constante, decidi
manter de acordo com o original.