Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº 01 (de 12)
Author: Camilo Castelo Branco
Release date: January 31, 2008 [eBook #24463]
Language: Portuguese
Original publication: Porto: Typographia de Antonio José da Silva Teixeira 62--Rua da Cancella Velha--62, 1874
Credits: Produced by Pedro Saborano
BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA
NOITES DE INSOMNIA
OFFERECIDAS
A QUEM NÃO PÓDE DORMIR
POR
Camillo Castello Branco
PUBLICAÇÃO MENSAL
N.o 1--JANEIRO
LIVRARIA INTERNACIONAL DE |
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ERNESTO CHARDRON
96, Largo dos Clerigos, 98 PORTO |
EUGENIO CHARDRON 4, Largo de S. Francisco, 4 BRAGA |
1874
PORTO
TVPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA
68--Rua da Cancella Velha--62
1874
BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA
NOITES DE INSOMNIA
SUMMARIO
Proemio -- Consolação a santos Nazareth -- As ostras -- Rehabilitação do snr. visconde de Margaride -- A Rival de Brites de Almeida -- Egas Moniz -- Dous poetas ineditos do Porto -- D. João 3.o, o principe perfeito -- Subsidio para a historia de um futuro santo -- O livro 5.o da Ordenação, titulo 22 -- Problema historico a premio -- Desastre do santo officio no Porto -- Rancho do Carqueja.
TRABALHOS
DO
EXC.mo SNR.
CAMILLO CASTELLO BRANCO
DE QUE É EDITOR ERNESTO CHARDRON
O carrasco de Victor Hugo José Alves, romance. 1 vol. ... 500
A freira no subterraneo, romance historico (traducção). 1 vol. ... 500
Os amores do diabo, romance (traducção). 1 vol. ... 800
Mosaico e silva de curiosidades historicas. 1 vol. ... 500
Memorias do bispo do Pará. 1 vol. ... 500
Poesias e prosas de Soropita. 1 vol. ... 500
A espada de Alexandre. Córte profundo na questão do homem-mulher e mulher-homem, por um socio prendado de varias philarmonicas. ... 240
Carta de guia de casados, para que pelo caminho da prudencia se acerte com a casa do descanço, a um amigo, por D. Francisco Manoel. Nova edição, com um prefacio biographico, enriquecido de documentos ineditos. ... 360
Vida d'el-rei D. Affonso VI, escripta no anno de 1684. Com um prefacio. ... 400
Diccionario universal de educação e ensino, traduzido e muito ampliado nos artigos relativos a Portugal e Brazil. 2 grossos volumes, de 800 paginas cada um, a 2 columnas. ... 6$000
Esta serie de livrinhos ha de ser uma cadêa com elos de bronze rijos e toscos, e elos de pechisbeque flammantes e quebradiços. O bronze é a porção prestadía do opusculo; é a pagina que não seria descabida em livro de estudo; é a pretenção do author a que a sua obra perdure mais de vinte e quatro horas no espirito de quem a lêr.
O pechisbeque é a futilidade que, ao nascer, é acolhida por um sorriso do leitor; e, apenas o sorriso esmorece, a impressão [6] esvaíu-se; e a idéa fulge e apaga-se sem deixar mais signal que o relampago das noites de agosto, e o arrancar da aguia no seio das nuvens.
Ambas as especies pertencem ás minhas noites de insomnia. N'esta deploravel enfermidade, que ha seis annos me estila no cerebro gota a gota a peçonha da morte, achei traça de me vingar do acaso que embala o regalado dormir do meu cão, e me estrondeia nos ouvidos o marulhar das vagas entre penhascos. Vou ao jazigo das minhas illusões, exhumo os esqueletos, visto-os de truões, de principes, de desembargadores, de meninas poeticas á semelhança das que eu vi quando a poesia era o aroma dos seus altares. Visto-me tambem eu das côres prismaticas dos vinte annos, aperto a alma com as garras da saudade até que ella chore abraçada ao que foi. E, depois, n'este festim de mortos, conversamos todos; e eu, no alto silencio da noite, escrevo as nossas palestras. Ás vezes, entre muitos estridores que [7] me resoam nos ouvidos, o mais distincto é o dobre a finados. É quando a aurora reponta: a luz espanca as imagens cujo meio de vida é a treva e o silencio.
Venho então sentar-me a esta banca, dou fórmas dramaticas ao dialogo dos meus phantasmas, e convenço-me de que pertenço bem aos vivos, ao meu seculo, ao balcão social, á industria, mandando vender a Ernesto Chardron as minhas insomnias.
Eis a minha vingança, que abrangeria o leitor, se estes livros lhe não abonassem horas de somnolenta digestão de alguns artigos substanciosos. Estes artigos constarão da nobre sciencia da historia, nomeadamente de historia nacional, e muito das cousas pertencentes á fidalguia de raça que vai extinguir-se. É tempo de esgaravatar entre as ruinas do edificio derruido algumas reliquias aproveitaveis para a comedia humana. Mas nem tudo será escavar no lixo. Não vaguearemos sempre ao través dos pardieiros dos [8] antigos solares. Alguma vez nos sentaremos na testada da serenissima casa de Bragança conversando com os seus duques e monarchas n'aquella sem ceremonia permittida á arraia miuda de hoje em dia; mas escreveremos as nossas considerações, como lá dizem, de luva branca e penna de diamante. Desejamos que a posteridade se entretenha comnosco, e com o snr. conselheiro Viale. Elle e nós levaremos aos evos uma sincera historia de Portugal, e andaremos os dous, á compíta, a vêr quem maiores emborcações de morphina injecta nos nervos das gerações porvindouras.
[9]Beati qui lugent, e não pagam.
A BIBLIA E EU.
Amigo!
Sensibilisou-me até ás lagrimas a noticia da sua prisão no theatro de S. Carlos, n'aquella funesta noite da sua citada prisão, como diria o nosso collega Jayme José Ribeiro de Carvalho.
Não foi a razão que motivou esta ternura: foi a amizade.
Vossê devia ser preso. Dizer que o espectador póde patear um espectaculo desagradavel e caro é duvidar que o espectaculo é que tem direito de patear o espectador.
Santos Nazareth ignora as leis do reino expungidas da jurisprudencia do Manique, e não tem [10] talvez opinião bem assente ácerca da transmigração das almas.
A metempsychose do famoso intendente geral da policia fez-se ha 60 annos, pouco mais ou menos, na pessoa d'esse alcaide do real alcaçar que enviou o meu amigo ao Limoeiro como enviaria Mattos Lobo e Diogo Alves, se os colhesse no theatro de S. Carlos em flagrante banzé. Admitta o plebeismo que tem o fartum fadista da cazerna e da guitarra, que ainda hoje chora saudades da Severa, e disputa ás trombetas bastardas de Pedro I as reaes delicias da sua progenie.
Quando a imprensa rugiu pelas suas guelas de zinco um rugido grande a favor de vossê, as minhas palpebras exsudaram perolas, na hypothese de que a intendencia da policia o obrigára a pagar aos quadrilheiros as despezas de o conduzirem aos ferros d'el-rei.
É que eu considerando-me em plena monarchia do Pina Manique, lembrou-me um caso acontecido ha 89 annos.
Raphael da Silva Braga, na noite de 2 de outubro de 1795, pateou uma cantora no theatro de S. Carlos.
O corregedor Pedro Duarte da Silva mandou dous quadrilheiros agarrar o espectador desgostoso, e mettel-o no Limoeiro.
[11]No dia seguinte participou o successo ao Manique.
O intendente, informando-se das condições do preso, soube que era pobre e tinha familia; e, além d'isso, pateára com tal conhecimento da arte. Em consequencia do que, ordena que Raphael seja solto, pagando 3$200 reis de diligencia para os officiaes.
Se alguma vez é permittido a um homem da minha idade soluçar de commoção, é agora. Dar a liberdade a um homem pobre, mediante 3$200 reis, em attenção á sua pobre e consternada familia, é uma cousa bonita e lacrimavel!
Aqui lhe dou o traslado d'esta pagina de ouro do Manique, e lhe envio a original pela posta, a fim de vossê regalar os seus amigos vaidosos de serem de um paiz onde ha isto:
«Snr. Pedro Duarte da Silva. Louvo o procedimento que v. m.ce teve contra Raphael da Silva Braga, por ser um dos que hontem á noite deram a pateada no theatro de S. Carlos: attendendo porém á sua pobre familia, que está em consternação, e a outros motivos justos, que concorrem, v. m.ce o haverá por corrigido, e o mandará soltar, pagando tres mil, e duzentos de diligencia para os officiaes. Deus guarde a [12] v. m.ce Lisboa, 3 de outubro de 1795.--Diogo Ignacio de Pina Manique.»
No rodar de 90 annos, desde 1795 até 1874, a poesia do direito, graças ás insomnias do doutor Theophilo, defecou os Maniques da prosa dos 3$200 reis, de modo que vossê não pagou nada, segundo me consta. Isto me faz cogitar que o progredir é fatal, e que o snr. barão de Zezere, o longobardo,--chrysalida de outra transmigração,--ha de passar a fuzil mais polido na cadêa dos intendentes geraes da policia; por maneira que, na sua futura metempsychose, já se não distingam vestigios do corregedor Marques Bacalhau, façanhoso magistrado de D. João V.
Entretanto, meu amigo, pois que a raça dos Maniques ainda referve nas retortas depurantes, aceite o meu conselho:
Antes de entrar na platéa, vá ao camarote das authoridades, e pergunte-lhes:
--Com quaes dos quatros pés manifestam v. exc.as, esta noite, a sua opinião lyrica?
E governe-se, consoante a resposta.
[13]No Porto, as commoções que sacodem os nervos da grande cidade, são raras; mas, se rebentam, são a valer!
No principio d'este anno, estavamos todos quietos, com estas nossas caras cheias de ideal, gravidos de philosophias, hypocondriacos, ares inglezes, indigestos; mas, sobre tudo, bons visinhos e inimigos de novidades.
A quarta pagina das gazetas andava, ha muito, alugada aos varios barateiros, que se denominam numericamente como as dynastias, traspassando a sua qualidade de barateiros n.o 1, n.o 2, etc., á proporção que quebram, e vão transmittindo a genealogia dos epithetos, maneira discreta de esconder os nomes.
Eis que, inesperadamente, se annunciam em letras colossaes as ostras.
E os litteratos, encarregados de guiarem a corrente da opinião publica, escolhendo no seu guarda-joias a mais nitida pedraria de estylo, apregoaram as ostras como ha dezenove seculos o fazia [14] Horacio quando as afogava no falerno de Mecenas.
O localista do Primeiro de Janeiro, com pulso febril, e ternura pelo marisco, exclamou: «Abençoado o nome de quem quer que em tempos tão doentios nos trouxe medicina tão efficaz e preconisada!... Não são de Ostende as ostras que se nos offerecem, frescas, saborosas e provocadoras, pela manhã como leite de cabra, ao meio dia como o lunch á ingleza, á noite como um restaurador das forças perdidas no labutar diurno. São de Montijo, igualmente boas, e igualmente irritantes. Vamos a ellas!»
Vamos lá! conclamou toda a gente doentia, toda a gente em uso de leite de cabra, toda a gente que lunchava á ingleza, e, em summa, toda a gente que á noite costumava restaurar as forças, deitando-se a dormir, ou extrahindo do goraz cozido o phosporo necessario á sua vida intellectual e physica.
Desde o alvorejar das gazetas, confluiram á praça de D. Pedro todos os servos que superintendem na culinaria das familias. As massas que desembocavam das ruas circumjacentes davam a lembrar os comicios d'aquelles dias de vertigem civica, lá quando os irmãos Passos abriam na viella da Neta os relampagos do Sinay, e a turbulencia [15] da liberdade alli vinha soltar um rugido e ameaçar os tyrannos.
Não assim agora n'estes dias em que o paiz, podre de feliz e anemico da sua indigestão de prosperidade, procura restaurar-se pelo marisco.
De mais a mais, os diarios tinham annunciado que as ostras eram gordas; e, sobre gordas, dizia o Primeiro de Janeiro, irritantes. Pela qualidade de gordas, o sorriso que brincava nos meus labios, quando mandei o meu gallego comprar doze vintens d'aquelle remedio, era um sorriso de tão legitima candura como o leitor os tem visto nas bentas bochechas dos seraphins que sobem de gatinhas pelas columnas dos altares. Quanto a irritantes, como essa virtude me não parecesse a mais sadía, mandei ao mesmo tempo comprar a linhaça correspondente.
E, em quanto o criado ia e vinha, consultei, para illudir a impaciencia, os meus livros no que havia, através dos seculos, mais averiguado ácerca das ostras. Li em Chernoviz que póde uma pessoa comer oito duzias sem experimentar o minimo incommodo. Oito duzias--noventa e seis ostras, de manhã, como leite de cabra; noventa e seis, como lunch á ingleza; noventa e seis á noite para restaurar as forças: ao todo, duzentas [16] e oitenta e oito ostras quotidianas que custam no deposito da praça de D. Pedro 3$840 reis.
É uma alimentação economica e boa para fortalecer o estomago de um paiz pobre. Qualquer sujeito anemico, pallido, que não possa com um gato por qualquer parte do mesmo, deve nutrir esperanças de que, no fim de um anno, tendo comido cento e cinco mil cento e vinte ostras gordas da praça de D. Pedro, que lhe custam um conto quatrocentos e um mil e seiscentos reis, póde gozar uma saude mais ou menos gallega.
Assim que o meu criado chegou com dezoito ostras por 240 reis, atadas na ponta de um lenço, á guisa de biscoutos de revalenta, duvidei da gordura do testaceo, mas afaguei a charneira da concha bivalve, porque só de per si a concha tem virtudes medicinaes cuja noticia eu envio aos risos jubilosos dos meus amigos. Tenho aqui a Anchora medicinal do grande medico Francisco da Fonseca Henriques, e n'ella a pag. 247, mihi, artigo Ostras, leio com estremeções de gaudio: As conchas das ostras queimadas são boas para as queixas das almorreimas.
Isto é o que o Primeiro de Janeiro sabia de fundamento quando abençoou o inventor de remedio tão conveniente ás doenças do tempo. Faz-se mister grande intuição medica de entranhas a [17] dentro para diagnosticar hemorrhoidas universaes na nação.
Das alegrias externas, passei a averiguar a gordura annunciada do testaceo hermaphrodita.
Não me pareceu tão gorda a ostra espalmada na concha que podesse disputar vantagens a um jantar do Ugolino de Dante na Torre de Piza.
Authorisado pelas idéas que fórmo de gordura, suspeito que o empresario d'estas ostras descobriu o segredo de repartir dez por cada casca; ou, negociando as cascas em Montijo, as encheu com ameijoas do Cabedelo. É uma falsificação engenhosa que merece desculpa em quanto se conservar na familia dos testaceos; mas desde que o unico depositario das ostras portuenses começar a introduzir nas conchas das ostras pedacinhos de bucho de safio, carochas e grillos de salmoura, quer-nos parecer que uma duzia d'estes covilhetes por oito vintens não é barato, nem me garante a renovação do meu sangue depauperado.
Não obstante, o consummo de ostras no corrente mez, no Porto e arrabaldes, tocou uma cifra que seria fabulosa, se as consequencias da irritação, previstas pelo Primeiro de Janeiro, se não manifestassem formidaveis, nos geitos, nos ademanes, nos esgares, nas crispações electricas que faiscam dos olhos de toda a gente saturada das [18] ostras do unico deposito. Conhece-se que os insultos inferiores, que o pó da concha combate, se deslocaram, e evadiram a cupula do edificio humano. Os systemas nervosos, levados pela irritação a electróphoros, tornaram-se engenhos luminosos que transcendem as mais phantasticas idealisações da pyrotechnica. Esta galvanisação de organismos extenuados é realmente um espectaculo que honra muito a ostra; mas que tambem póde vir a ser nocivo á saude das almas.
Sei que temos recursos antiphlogisticos para combater as irritações, desde as cataplasmas de fecula até ás ventosas sarjadas; mas o emprego d'estes meios therapeuticos obriga as pessoas timidas a andarem na rua com um alforge de drogas, como os antigos physicos, ministrando capilés e orchatas a todos os sujeitos que denunciem instinctos inflammados no ultimo grau de irritação.
Em nome da moral publica, pedimos ás pessoas irritaveis que se abeberem em agua de cevada, quando sentirem que a ostra se lhes insinua perfidamente nos seios do coração.
[19]S. exc.a festejou o seu natalicio com um baile, em um dia de jejum, por uma noite de janeiro, breve e esplendorosa. O dia era de abstinencia carnal, note-se. Creio que o preceito começava á meia noite, pontualmente á hora em que a restauração das forças, esvaídas na vertigem dos bailados, reclamava varios phenomenos reparadores desde a trituração até ao filtramento do chylo no systema sanguineo. Se eu não odiasse o palavriado vulgar, diria que os hospedes do snr. visconde precisavam de comer.
Á magnitude do appetite correspondeu a magnificencia dos acipipes. Era já soada a hora da abstinencia do boi, do perú, da gallinhola, do salmagundy. E, não obstante, as iguarias condimentosas, a febra, a alimentação rija lourejava nos pratos e nas terrinas entre ondulações de perfumes. Alguns dos convivas sabiam que o dia ou a noite era de peixe. Senhoras de idade canonica, respeitaveis por seus principios e observantes das disciplinas da igreja, não vendo alvejar a pescada [20] ou o rodovalho entre coxins de batata e cebola, tantalisavam a perdiz em molho de villão; mas, cerrando os dentes á invasão do peccado, esquivavam-se a sahir do baile com o bolo alimenticio azedado por escrupulos. N'este comenos, alguem disse o que quer que fosse a meia voz ás pessoas perplexas entre a gallinhola truffée e a religião dos Affonsos.
Umas pessoas, depois que ouviram a nova, sorriram, como vencidas de tentação deliciosa, e comeram carnes. Outras, invulneraveis e inflexas na sua abstinencia, martyrisaram-se com trutas e salmões. Como quer que fosse, houve escandalo. Comeu-se volateria e ruminantes em sexta feira. Algumas consciencias sahiram do baile do snr. visconde, ás 8 horas e meia da manhã, com o peso do estomago sobre si.
A opinião publica, já em Guimarães, já em Braga, ergueu-se á altura dos principios, e murmurou. Eu fiz parte d'esta opinião adversa ao magistrado superior do districto a quem corre o dever de penitenciar os seus hospedes com trutas e salmão em dias de peixe, em memoria dos augustos mysterios do christianismo.
Quanto a mim, o snr. visconde era um atheu e os seus hospedes uma cafila de heresiarcas. Eis senão quando a imprensa do Porto divulga uma [21] noticia que bafejou um halito de jubilo na face de Braga, no perfil de Guimarães, e nos tres quartos do paiz. Apresso-me a repetil-a em grifo com uma consolação catholica, e tanto ou quê apostolica: O snr. visconde de Margaride tinha obtido dispensa do prelado bracharense para que os seus hospedes podessem comer carne.
Orvalhe-se de lagrimas de alegria o rosto da christandade portugueza; que eu por mim, quanto um abraço cabe nas potencias da phantasia, aqui aperto contra o coração o snr. visconde de Margaride, e felicito os catholicos que digeriram innocentemente as suas vitualhas.
A façanhosa forneira de Aljubarrota resiste á incredulidade da critica, abordoando-se ás muletas do patriotismo e á pá. Sabe-se pouco das proezas de Nuno Alvares e Mem Rodrigues. Nada referem os historiadores das apostas e porfias dos [22] cavalleiros do Mestre de Aviz. Porém, que a forneira matou sete hespanhoes ebrios, feridos ou prostrados de fadiga, isso, que não póde ser honroso porque é vil, aprendem-o as crianças, e repetem-o adultos com desvanecimento e orgulho. Por honra da minha patria, quero crêr que a lenda da padeira de Aljubarrota é tão authentica e verdadeira como a do caldeirão de Alcobaça, apresado no arraial de D. João I de Castella. Dêem-se-me honras de Niebuhr n'esta cousa do caldeirão de Alcobaça.
Houve outra heroina, mais digna de lembrança, e, todavia, ignorada. Essa praticou um feito de nobre coragem, defrontando-se a rosto com o inimigo, e derrubando-o.
Foi o caso que em 1762 os hespanhoes, commandados pelo marquez de Sarria, invadiram Portugal pela provincia de Traz-os-Montes. A cidade de Miranda foi das terras d'aquella provincia a que mais soffreu as arremettidas do exercito invasor. Alli perto, passa o rio Fresno, cujas margens se communicam por uma ponte. Na extrema esquerda d'esta ponte vivia uma mulher casada, cujo marido se alistára nas guerrilhas dispersas pelas empinadas penedias do Douro. Um piquete de hespanhoes, com seu sargento, passou a ponte do Fresno. O sargento viu a mulher do guerrilheiro, [23] que era a mais esbelta e donosa moça da comarca. Postou os soldados de atalaia a pequena distancia da ponte, e voltou de noite, acompanhado de dous, com o proposito de se fazer amar da aldeã por meio do assalto.
Este sargento, em tempo de guerra, não usava das artes maviosas do seu patricio Tenorio. Em vez da guitarra e da escada de corda, fiava na suspensão das garantias, na quebra do direito internacional, na cronha da escopeta, e na pujança de seis rijas espadoas atiradas á porta d'aquella Elvira montezinha.
A rapariga, votada ao saque, se não tinha commendador em casa, tinha cousa mais infesta ao sargento: era o marido que, por saudade ou receio, debandára da horda guerrilheira e fôra, encoberto por entre penhascos, pernoitar a casa.
Alta noite, os tres castelhanos bateram á porta.
O portuguez não respondeu; foi ella que assomou na adufa do sobrado, perguntando o que pretendiam áquella hora.
O sargento, depois de inutilisar algumas phrases lyricas, tomou o pulso á timidez da moça, intimando-a a entregar a praça.
O marido estava ouvindo, e perguntou muito de manso á mulher:
--Quantos são?
[24]--Tres--respondeu ella.
--Deixa-me lá ir, antes que venham mais. E ella, sahindo da janella, disse:
--Então vamos lá.
--Tu não venhas.
--Não? isso lá, hei de ir, quer queiras, quer não.
O sargento no entanto voltou-se aos dous soldados e disse:
--A praça rende-se.
D'ahi a minutos, abriu-se a porta da rua.
O guerrilheiro deu uma guinada de tigre para a testada da porta, e desfechou um arcabuz em um dos tres, que foi a terra. Dous pelouros ao mesmo tempo lhe bateram no peito; mas o portuguez, ao cahir morto, levava debaixo de si um dos dous com uma navalha hespanhola embebida nas entranhas. Sobrevivêra o sargento aos companheiros, mas sómente o tempo indispensavel para que ella o varasse do peito ás costas com o espeto da cozinha.
Depois, como sentisse o tropel da soldadesca, travou do marido, desceu por um algar escuro e pedregoso á ourela do rio, e cahiu prostrada de afflicção, quando conheceu que levava um cadaver. Ao romper da manhã, galgou á cumiada da serra, onde estanciavam os camaradas de seu marido, [25] e viu de lá as ultimas fumaças da sua casinha, que os soldados castelhanos haviam queimado.
Nada mais se sabe d'esta mulher. Não consta, sequer, que o governo de D. José I lhe mandasse reconstruir o casebre, acabada a guerra.
Houve um poeta contemporaneo, que a descantou em um soneto jocoso, avantajando-a á Brites de Aljubarrota. As musas sérias não acharam a heroina digna de poesia grave.
E esse mesmo soneto chocarreiro ninguem o conheceria, se lh'o não publicassemos aqui, precedido de um interrogatorio académico:
Qual acção é mais memoravel: a da forneira de Aljubarrota, matando os castelhanos com a sua pá; ou a da mulher de Traz-os-Montes, matando o sargento castelhano com o espeto?
SONETO
É problema que deve disputar-se,No principio d'este artigo, fallamos de apostas, porfias e promessas de cavalleiros, antes de se desfraldarem os guiões e bandeiras na batalha de Aljubarrota. Vasco Martim de Mello prometteu pôr as mãos no rei D. João I de Castella; Gonçalo Annes de Castello de Vide prometteu ser o primeiro que lhe enristasse a lança ao rosto. Estas promessas são heroicas; mas houve uma de Martim Affonso de Sousa Chichorro extremamente original pela deshonestidade. Vejam com que limpeza de alma este fidalgo se preparava para um conflicto de morte, e deprehendam d'ahi o que eram as crenças da immortalidade no seculo do cavalleiroso Mestre de Aviz.
Na hoste de D. João assignalava-se João Rodrigues de Sá, o das Galés, aquelle heroico perfil [27] tão portuguezmente desenhado pelo snr. A. Herculano no Monge de Cistér.
João Rodrigues de Sá, ainda moço n'aquelle tempo, tinha uma bella irmã, abbadessa do mosteiro benedicino de Rio Tinto chamada Aldonsa Rodrigues. Martim Chichorro queria muito á gentil prelada, e não resguardava da censura os seus amores adulterinos com a esposa do Senhor. Na vespera da batalha perguntaram-lhe os fidalgos namorados da ala de Mem Rodrigues que promessa era a d'elle.
--Prometto, se escapar da batalha--respondeu o amoroso selvagem--ir ter uma novena com a abbadessa de Rio Tinto.
Grande cascalhada de riso, naturalmente. Houve logo um bisbilhoteiro que denunciou ao das Galés a fatuidade de Martim, quinto neto por bastardia d'el-rei D. Affonso III.
--Pois eu--disse João Rodrigues serenamente--prometto ir atraz d'elle, e bater-lhe.
Deu-se a batalha. Vasco Martim de Mello morreu no empenho de pôr a lança no rei. Gonçalo Annes sahiu illeso do voto cumprido. E Martim de Sousa, tão extensamente cumpriu a sua--as novenas succederam-se em tanta copia--que a peregrina Aldonsa houve do seu pontual servidor dous filhos que se chamaram Martim e Pedro. O [28] que os genealogicos esconderam á posteridade, edificada com as virtudes das abbadessas e dos Chichorros, foi o genero de sova que o das Galés deu no pai dos seus sobrinhos.
Talvez se desforrasse, consoante o gosto do tempo, em o fazer tio dos seus numerosos bastardos. As preladas formosas eram as conciliadoras em contendas d'esta natureza. D. João I morigerava os mosteiros, mandando vestir o habito de commendadeira de Santos a Ignez Pires, depois de a condecorar com a dupla virtude da maternidade. Os nossos reis, quando se enfastiavam das mulheres, davam-as de presente a Deus.
Representa-se no Porto um drama chamado Egas Moniz. Não louvo nem censuro a composição, nem discuto se melhores interpretes a realçariam no palco. Tambem não levanto a já debatida questão da veracidade do facto. O snr. Alexandre [29] Herculano crê que o aio de Affonso Henriques praticou o feito heroico. É o bastante.
Quando o drama se annunciou, a primeira vez, nos cartazes, um homem de sessenta annos, vestido de preto, sobrecasaca no fio, o velludo da gola rapado, as calças recortadas e lamacentas á volta das botas azuladas de velhice, parou á esquina da rua Formosa, a lêr o cartaz grudado no cunhal da igreja das Almas.
Eu reconheci-o a distancia, avisinhei-me, e parei, por detraz d'elle, em frente do cartaz, meditando.
E meditava isto:
Egas Moniz gerou Lourenço Viegas, o espadeiro;
Lourenço Viegas gerou Egas Lourenço;
Egas Lourenço gerou Sueiro Viegas Coelho;
Sueiro gerou João Soares Coelho, valido de D. Affonso III;
João Soares Coelho gerou Pedro Annes Coelho;
Que gerou Estevão Coelho;
Que gerou Pedro Coelho, o matador de D. Ignez de Castro;
Pedro Coelho gerou Gonçalo Pires Coelho;
E assim se foram gerando uns dos outros com uma constancia digna da nossa admiração, até que uma senhora da casa dos Coelhos, senhores de [30] Vieira e Felgueiras, casou na casa dos senhores da Teixeira e Sergude, e d'este consorcio gerou-se:
Gonçalo Pinto Coelho, que gerou:
Martim Teixeira Coelho, que gerou:
Bernardo José Teixeira Coelho, que gerou:
Gonçalo Christovão Teixeira Coelho de Mello Pinto de Mesquita, senhor da Teixeira, de Sergude e do Bom Jardim, pai d'aquelle homem pobremente vestido que lia o cartaz do drama Egas Moniz, na esquina da rua Formosa.
Aproximei-me d'elle, puz-lhe a mão no hombro, e disse-lhe:
--Está o meu amigo regosijando-se de lêr em letras enormes o tio de seu decimo oitavo avô Egas Moniz...
--Não, senhor--respondeu elle sorrindo--estava a scismar n'uma cousa que me não regosija absolutamente nada...
--Bem sei--acudi eu com a minha notoria esperteza--estava v. exc.a meditando que já não ha portuguezes que, á semelhança do seu avô, fossem de corda ao pescoço dar satisfação da palavra mal cumprida.
--Não, senhor; pensava em outra cousa...
--Bem sei... pensava no apagado luzimento d'esta heroica estirpe dos Viegas, dos Coelhos, dos...
[31]--Não, senhor; pensava em ir vêr ao theatro Baquet representar a façanha d'este meu illustre avô; mas vejo aqui escripto que um lugar da galeria custa duzentos reis; e eu, decimo oitavo neto de Egas Moniz, se tivesse dous tostões, iria empregal-os no jantar de meus filhos, que estão em jejum.
Snr. Antonio Moutinho de Sousa, dê no seu theatro um beneficio a favor de alguns netos do aio de D. Affonso I, e convide-os a levantar o obolo que os admiradores de seu avô d'elles depositarem na bandeja dos pobres.
Os descendentes do fidalgo, que ensinou o primeiro rei portuguez a ser honrado, não deviam ter fome e frio, quando as plateias desbordam de gente jubilosa de bom patriotismo e de melhor jantar.
[32]Na segunda metade do seculo XVII floreceram no Porto dous doutores, acariciados das musas, e por isso mesmo rivaes e inimigos: eram João de Assucarello (ou Sucarello) Claramonte, e Christovão Alão de Moraes, desembargador da Relação e mais tarde corregedor do civel do Porto. Do primeiro temos algumas poesias deshonestas, e diminutas noticias, e essas em referencias dos poetas seus contemporaneos, nomeadamente o padre Jeronymo Bahia. Do segundo encontra o leitor ampla noticia no Panorama de 1854, n.os123 e 127. Distinguiu-se como poeta e genealogico. Não sei onde param oito volumes em folha escriptos de sua mão, intitulados Genealogia das familias de Portugal. Sei que o duque de Lafões, no seculo passado, os não quiz comprar porque lhe não respeitavam a pureza do sangue dos avós; e a bibliotheca publica de Lisboa tambem os não adquiriu, ha poucos annos, «por incuria ou capricho do ex-bibliotecario Canaes», diz o snr. Innocencio Francisco da Silva.
[33]O doutor João de Assucarello satyrisava o Porto, representado nas pessoas de mais importancia, algumas das quaes nos são hoje desconhecidas, e difficilmente lhes rastrearemos as familias que as representam.
Eis-aqui o maledicente soneto do medico, émulo de Christovão Alão:
Não se percebem alguns epigrammas do soneto; mas aquelle verso que rescende ao ambar da Maya não seria ainda hoje um anacronismo.
Respondeu Christovão Alão, pelas mesmas rimas, do seguinte feitio:
Este soneto é bom.
Desculpa-se ao poeta fidalgo a arrogancia com que desdenha o plebeismo do Assucarello, appellido que nenhum linhagista condecora; dado que este medico já então tivesse o habito de cavalleiro da ordem de Christo. Ora os Alões são mais antigos em Portugal que os seus monarchas. D. Mendo Alão era senhor de Bragança, antes da vinda do conde D. Henrique a Hespanha. Alguns genealogicos lhes dão como antepassados os reis álanos. Na igreja de S. Bartholomeu de Lisboa existiu o morgado de Santo Eutropio instituido por D. João Alão, bispo do Algarve. Esta familia está representada no Porto por descendentes que não desdouram tão nobre appellido.
[1] Não ha no Porto alguem que use este appellido; mas a familia que o teve ainda aqui vivia honradamente no meiado do seculo passado, e se obscureceu no Alemtejo e Minho por onde se ramificára. Prende com esta familia do Porto Antonio Fogaça, aqui nascido. D. Sebastião o mandou como seu residente para Inglaterra, onde permaneceu largos annos, em serviço dos Philippes, enviando de lá importantes noticias em tempo de Henrique VIII. Seguiu a facção da rainha Catharina, e gastou o mais grosso dos seus grandes cabedaes n'esse brioso empenho. Succedendo no throno a rainha Isabel, foi Antonio Fogaça preso e duas vezes trateado na Torre de Londres, vindo a morrer das torturas, quando recobrou a liberdade. Por sua morte, foi-lhe confiscado o restante dos bens. Antonio Fogaça teve de sua mulher Isabel Ribeira de Vabo uma filha que se chamou D. Maria, e casou com Braz Rodrigues Anhaya. D'estes nasceu outra D. Maria do Vabo Pimentel, que casou com o capitão Manoel Soromenho Dias, de quem foi filho Luiz do Vabo Pimentel, governador da praça de Albufeira. Em 1750 ainda existia em elevada categoria um filho d'aquelle ultimo. Era capitao-mór de Alvor, e chamava-se Antonio Pimentel do Vabo. Nas provincias de Traz-os-Montes e Minho, nomeadamente no Paço de Carude e Torre de D. Chama, existiram Vabos e Soromenhos. De todas estas familias descende o snr. Augusto Soromenho, erudito professor do curso superior de letras, e que, ha quinze annos, com legitimo fundamento, usou em documentos publicos dos seus appellidos Vabo e Anhaya.
Não me recordo se os chronistas d'este rei nos contam que os resplendores da graça divina lhe aureolaram o rosto, quando a alma se desatou d'aquella infame caverna, e foi receber o galardão dos milhares de hebreus queimados em obsequio á religião da fé, esperança e caridade. O snr. A. Herculano capitula este rei de fanatico, ruim de condição e inepto; mas isto não faz implicancia á salvação do monarcha, antes a confirma; porque o grande historiador, sabendo como se fazem optimos livros, de certo ignora os processos da formação da glottica e dos santos. Afóra isto, sabe tudo, excepto que D. João III, quando expirou, causava medo aos que lhe viram a horrendissima cara.
As pessoas medianamente cultas não ignoram que houve um frade de grandes virtudes e letras chamado frei Thomé de Jesus, da ordem de Santo Agostinho. D. Sebastião o levou comsigo á batalha de Alcacerquibir. Não sabemos se o frade pelejou; mas temos de certeza que ficou ferido, [37] captivo, e encarcerado nas masmorras de Maquinez. Transferido para Marrocos, por diligencia do embaixador de Portugal, rejeitou o resgate, que seus irmãos, fidalgos de primeira plana, lhe offereceram, preferindo a escravidão alli onde eram muitissimos os captivos carecidos de confortações e exemplos de paciencia. E, ao cabo de quatro annos de servidão, morreu em Marrocos, aos 17 d'abril de 1582, na idade de cincoenta e tres annos, legando-nos um livro lá escripto e muito apreciado com o titulo Trabalhos de Jesus.
D'este escriptor mystico possuimos uma carta inedita, motivada pelo trespasse de D. João III, e escripta desde Lisboa a certa communidade religiosa. O esclarecido bibliographo F. Innocencio da Silva sente que esta carta, principiada a imprimir no Murmurio, periodico bracharense, ficasse incompleta. Nós, que tambem possuimos d'ella um traslado da mão de D. fr. Manoel do Cenaculo, arcebispo de Évora, vamos dal-a integral e textualmente, na certeza que revivemos um documento historico, lavrado por testemunha presencial, e, além d'isso, por um dos mais abalizados escriptores do seculo aureo da lingua portugueza.
Reza assim:
[38]«Amantissimos Padres. O Spirito Sancto cosolador, e emparo dos atribulados console suas almas, que creio estarão já com a dor, que nós temos da morte de nosso Pai, Rei, e Senhor, taõ supita, e taõ inopinata, como foi, e lhes dê o emparo espiritual de sua graça, e temporal de cabeça tal, qual foi a que perdemos. Amen.
«Ainda que creio, que já teraõ a certeza da morte del Rei Nosso Senhor, porem por mo mandar nosso Padre, e eu o ter já assim determinado de fazer, e porque muitas cousas se dizem lá, e cá, que naõ foraõ assim, pera saberem a certeza do que passa lhes quero contar por ordem tudo: ainda que folgára eu muito de ter antes perdidas as virtudes, e forças naturaes do corpo, que te-las pera aver de escrever o que agora ouvirão.
Quarta feira infra octavas Penthecostes, sahio El Rei Nosso Senhor, que santa gloria aja, a ouvir missa á Misericordia, quasi indo em pessoa a chamar a Misericordia, que d'ahi a pouco tempo o avia de levar á sepultura, e assim foi esta derradeira sahida só, pera seu costume, e hia ainda muito bem disposto. Ouvida a missa se tornou muito de pressa ao Paço com muita, infinda gente, mal disposto de huma perna, mas pouca cousa, e tudo isto vio hum Padre desta casa. Chegando [39] ao Paço se encerrou em huma camara só sem ninguem, onde esteve muito grande espaço, depois do qual chamou, e pedio agoa rosada, com a qual lavou o rosto, e mãos, e tornou a estar só outro pedaço, donde sahio a jantar muito melenconisado, e jantou mal, e á tarde teve huma febrezinha muito pequena.
«Quinta feira se alevantou, e andou hum pouco achacoso, diziaõ que era de naõ dormir com cuidado do Principe[2] que tivera huma febre, e arrevesava, e naõ dormia. Mas Deos sabe o que era. Com tudo não tinha doença que o fizesse estar em cama.
«Á sexta feira se alevantou tarde, e ouvio missa em casa, e jantou muito bem assombrado, e assim esteve toda a sésta, que ao parecer estava bem, até as quatro horas, as quaes dadas nos chamárão á procissão praecipue pelo Principe, que Deos guarde, a qual sahia da Sé á Misericordia. Sahindo nós da Sé chegou hum recado que fossemos a Jesu de Saõ Domingos com a procissaõ por el Rei, que estava muito mal, e assim se fez, e ouve pregaçaõ. De maneira que perto das cinco horas se começou el Rei de agastar, e chamou Confessor, que estava na Mesa da Consciencia, e [40] confessou-se das cinco até as oito. E logo do Saõ Giaõ lhe leváraõ o Senhor, e chegando nós ao Rossio, nos deraõ novas, que lhe naõ achavaõ pulso. Acabando de comungar começou a concertar seu testamento, o qual naõ acabou de fazer com as mezinhas, e com os agastamentos; mas segundo me dixe o Confessor da Rainha o substancial delle fez, e assinou. Ás dez horas se achou mais leve, e despejou[3] para repousar, e ás onze chamou, e vendo que carregava o accidente pedio a Unçaõ, a qual lhe trouxeraõ logo, e quando já chegou naõ fallava, mas recebeo-a vivo, a qual recebida, sendo já meia noite, em quanto podiaõ dizer huma terça rezada, expiravit levemente, e sem movimentos, nem trabalho mais, que o mortal, que he o mór de todos. De maneira que em sete horas, a saber des das cinco ás doze acabou. A isto naõ estive eu presente, mas soube-o do Confessor da Rainha, e de Luiz Gonçalves, que ahi se achavão presentes, e delles soube que quando el Rei pedio a Unçaõ, que se recolheo o Cardeal, e os outros Senhores, e só a Rainha se foi pera el Rei, e com elle esteve até espirar sem botar lagrima, e acenando a [41] todos que ninguem chorasse alto por não inquietar a el Rei, ella o consolava, e animava a passar alegremente aquelle passo com muitas palavras christãs e devotas: ella lhe teve com grande coraçaõ a candeia em a maõ, e lhe fechou os olhos, e acabando elle de espirar se foi cobrir de dó, e se poz em hum oratorio com quatro vellas no altar, e frontal, e dorsel de veludo carmesi, com o braço de Saõ Sebastiaõ, onde o Padre Montoya a visitou, e consolou, ou para melhor dizer ella consolou ao Padre, que ainda que com muitas lagrimas, com tudo mui inteira na rasaõ, e na modestia exterior, sem nenhum estremo, mostrou estar muito conforme com a vontade do Senhor Deos, e receber tudo de sua maõ, e que rogava muito aos Padres, que a encomendassem a Nosso Senhor.
«Agora o que vi com meus olhos lhes contarei, e o que tratei com minhas mãos: querendo ungir el Rei mandáraõ chamar Padres de todallas Ordens, os quaes todos chegáraõ tendo elle já espirado, e assim o nosso Padre, cujo companheiro fui eu, correndo quanto podiamos fomos quasi todo o caminho, porque não cuidavamos que se fosse taõ asinha. Achámos pelas ruas e Ribeira tudo cheio de pranto, e de gritos, e de muita gente, que com trabalho entrámos. Entrados vidimus [42] coronam capitis cecidisse, et obiisse:[4] ninguem se ouvia com gritos, e soluços, huns em pé, outros de giolhos, outros por esse chaõ: huns chorávaõ, outros gemiaõ, outros amarellos estavaõ pasmados com ver morte taõ supita e com desemparo taõ de repente, e de improviso, estavaõ todos attonitos, e sentidos: ninguem se ouvia, e escassamente podiaõ os Religiosos rezar com lagrimas, até que ás duas, ou tres depois da meia noite entrou o Cardeal ainda de vermelho a despejar a camara, rogando, e chamando a todos senhores, sem lagrima nenhuma, e com el Rei ficáraõ os Religiosos, e alguns Fidalgos, e assim estivemos até as cinco rezando muitos Officios de defunctos, e muitas orações. Ás cinco depois de visto o testamento em conclavi, o Arcebispo despejou a camara sem deixar mais que de cada Ordem hum ou dous Religiosos para o amortalharem, e o Pinheiro com o Confessor del Rei a hum canto rezando: e assim cobertas as cortinas do leito dous Padres de Saõ Francisco, e hum do Carmo, e Frei Jeronimo d'Azambuja de Saõ Domingos, e eu o amortalhámos, ministrando-nos [43] hum Clerigo Fidalgo, de maneira que estas tristes maõs o laváraõ, e alimpárão, e amortalhárão: Bendito seja Deos. Seu corpo ainda que ficou bem assombrado acabando de espirar, com tudo pelo muito que esteve por amortalhar quando o descobrimos estava mais feio, e mais preto do rosto, e mãos, o mais sujo, e o mais nojento, e em fim o mais mortal e terreno, que eu vi outro, e eu tive aquelle pelo mór espectaculo, e pera todo Religioso ver, pera doctrina, e edificaçaõ, que podia ser: Non potuimus continere lachrimas[5] com pranto, e lagrimas rezando o Officio de Defunctos lhe posemos huma toalha na cabeça e rosto mal lavada, e despida huma camiza suja de sangue que botava pela boca, e cousa verde depois de morto, lhe vestimos outra lavada, e lhe posemos o Bentinho de Christo, e o emburilhamos em hum lençol, e cozemos com barbante, sem outra cousa, nem vestido, nem mais habito, e o posemos em hum catele sem alcatifa, nem nada, onde esteve ate trazerem o ataude. Nisto acabou o estado, o fausto, as riquezas, as pompas, as cortezias, os serviços, as adorações reaes, nem em tudo isto se aqueixou dos que isto lhe faziaõ, aquelle que com só a vista fazia [44] tremer o mundo. Dahi a pouco lhe poseraõ hum estrado grande em o meio da camara coberto de veludo preto, rodeado de alcatifas, e sobre elle hum ataude forrado de veludo preto por fóra com huma cruz de damasco branco, e de linho de dentro, aonde o Bispo de Leiria, e o do Funchal, e o Arcebispo, e o Priol de Palmella, e o Bispo D. Pedro e eu com dous Frades o metemos, onde lhe beijáraõ a maõ por sima do lençol estes que ahi estavaõ, lançando-se todos sobre elle com muitas lagrimas, começando novo pranto, e pregado o ataude lhe botáraõ por sima hum panno de veludo preto muito grande com cruz de damasco branco, e aos pés poseraõ huma mesa coberta com hum panno de damasco preto, na qual estava huma cruz da capella, e dous castiçaes com suas vellas, e caldeira de agua benta, e ao rededor quatro tochas em suas tocheiras de prata. E he muito pera notar, que assim como el Rei, que santa gloria aja, foi em vida muito amigo dos Frades, assim des que espirou até o levarem, elles o acompanháraõ, porque até o amortalharem, como já dixe: estiveraõ com elle Frades de todallas Ordens, Frades o amortalháraõ, e meteraõ no ataude, e concertáraõ, e metido cada Ordem vinha sobre si com cruz alevantada, e estava com elle duas horas dizendo hum Officio de Defunctos entoado. [45] Convem a saber os de Saõ Domingos das sete até as nove; os do Carmo das nove até as onze; os de Saõ Francisco das onze ás doze e meia; depois os da Trindade até quasi as duas; depois nós até as tres, e idos todos ficáraõ huns poucos de cada Ordem com a capella até as quatro sempre rezando. Ás quatro entrou o Cardeal, já de roxo, e de giolhos, sem lagrimas, beijou o estrado, e repartio as toalhas do ataude, convem a saber da maõ direita á cabeceira o Senhor Dom Duarte, logo Dom Constantino, logo outro que naõ conheci, logo o Conde da Castanheira: da banda esquerda ad caput o Duque d'Aveiro, logo tres que naõ conheci, os quaes escassamente podiaõ levar o ataude, e aberta a porta da camara por onde o haviaõ de tirar, que estava na varanda, se alevantou hum pranto taõ grande que era cousa de pasmo. Eu nunca vi tanta gente junta, nem tanto grito e choro, nem faces ensanguentadas e arranhadas, nem barbas depennadas, como entaõ vi, tanto que nem havia forças pera andar, nem pera bulir o corpo lugar, até que o Cardeal rogou, que andassem, e recolhendo-se começarão a andar, e passadas duas portas não podéraõ mais, e chamaraõ Religiosos que os ajudassem, dos quaes fui eu hum, de maneira que eu o amortalhei e meti no ataude, e levei até o meterem [46] nas andas; a aquelle que a mim, e a toda a Ordem deo sustentaçaõ, e vida, e com tanto trabalho de meu corpo, que ando agora muito mal tratado por pesar muito, e porque descendo pela escada me ficou sobre mim só todo da banda dos pés, sem me poderem valer com a muita gente, onde cuidei de ficar; mas certo que entaõ naõ senti este trabalho, nem me lembrava repouso, nem sono, nem comer, no que tinha muitos infindos companheiros. Assim nas andas forradas por dentro de veludo preto, com hum panno por sima muito grande do mesmo, com cruz branca, o levou a Misericordia, e a Capella, e o Cabido, sem mais cruz que a da Capella, todos com tochas a cavallo, em duas azemolas, que bem tinhaõ que fazer em o levar, que tanto pezava, e levaraõ-no a Belem, e enterraraõ-no á cabeceira de seu Pai com hum Responso, que pera mais nem lagrimas, nem gritos, nem gente davaõ lugar, que segundo se conjeiturava se ajuntáraõ ao levar, assim na cidade, como fora, até Belem entre homens, mulheres, e meninos por todos bem quarenta, ou cincoenta mil almas, o que crê facilmente quem presente se achou, e o via por seu olho, e naõ foraõ com elle Ordens por rasaõ da Festa da Trindade, nem sabemos ainda quando iraõ, porem todollos Moesteiros se naõ occupaõ agora senaõ em [47] dizer Officios por elle, e em fim os Padres de Saõ Jeronimo o botáraõ á terra, onde jaz descansando, e tornando-se naquillo, que he, aquelle que na vida era Pai, Rei, Senhor, Emparo, e Soccorro, a quem naõ faltava nada pera ser o mais illustre Principe da Christandade: praza a Nosso Senhor que lhe dê na outra vida a gloria, que todos lhe desejamos, e que elle com suas boas obras creio, que merece. Amen.
«Hoje se quebráraõ nesta cidade os Escudos, que he o terceiro dia, e ámanhã terça feira juraraõ o Principe, e cremos que passada a Festa se faraõ os Saimentos Reaes. Do estado do Reino, e quem fica por Governador nulli narranti credatis, porque ainda tudo está secreto, nem se saberá ut creditur taõ cedo. Isto que lhes escrevi he o certo do que passa, tudo o ai tenhaõ por incerto. Resta que o encomendem muito a Nosso Senhor, e a Rainha, e ao Principe, o qual fica bem disposto, e eu o vi sabbado em pé, e bom, e nosso Padre lhe dixe missa depois del Rei amortalhado, e lhe dixe hum Evangelho.
«Esta carta tenhaõ cada hum por sua, e encomendem-me a nosso Senhor todos, porque eu naõ tenho tempo, nem disposição pera escrever particularmente a todos, ainda que sim vontade grande. As ceremonias da cidade já naõ se [48] fazem nos dias ordenados, mas a outro tempo. De Lisboa a 14 de Junho de 1557. Irmaõ de todos, e filho em Christo. Frei Thomé de Jesus.»
Está visto que o principe perfeito, flagello dos israelitas, morreu bastantemente fedorento, revessando postema esverdinhada, e envolto em uma camisa chagada e esqualida, que fez engulhos ao bom do frade. No discurso da vida, D. João II soffreu sempre de uma erysipela nas pernas, que ás vezes lhe não consentia o uso das piugas; por maneira que trazia as botas estremes sobre a pelle esgarçada de sorosidades. Era uma cousa immunda em corpo e alma este scelerado real! Vem de molde o extracto de umas antigas Memorias ineditas de Diogo de Paiva e Andrade:
«D. João III costumava dormir a sesta depois de jantar em uma casa que tinha janellas para o Tejo, assistindo nos Paços da Ribeira, sendo poucas as pessoas a quem permittia licença de entrar n'ella em quanto descançava. Succedeu, uma tarde, abrir a porta uma d'aquellas a quem tinha permittido a dita faculdade, e viu el-rei não deitado, mas em uma cadeira sustentando com ambas as mãos a cabeça e com os braços encostados sobre uma banca; e, não lhe dando palavra, retirou-se para a casa immediata, e com os mais que estavam [49] n'ella se principiou a discorrer sobre qual seria o motivo que obrigava sua alteza a tanta consideração. Achava-se tambem presente o marmanjo-mór, um chocarreiro do paço, castelhano, chamado D. Fernando de Roxas, homem que tinha siso, o qual, depois de observar muito tempo a conversação, disse para os que fallavam:--Senhores, el-rei não quiz dormir, e não considera em cousa de substancia--e, entrando logo na camara em que estava, perguntou-lhe em que cuidava; ao que el-rei respondeu: «Estou considerando como se me farão umas botas menos largas do que uso, sem padecerem as pernas.» Voltou o chocarreiro para fóra, e, contando o que passava, acabaram os discursos, entrando-se em outros, que merecia o assumpto. N'este tempo foi mui frequente o calçado de botas, ainda em dias de grande funcção, por imitação a el-rei, que quasi sempre as trazia, por ser muito soroso das pernas, e tão grossas as tinha que poucas vezes se servia de meias.»
Até aqui o author do Casamento perfeito.
Quando se escrever sincera historia de Portugal, não se repita sómente o que o snr. A. Herculano escreveu da inepcia, do fanatismo, e das ruins entranhas de D. João III. Refira-se que a alma lhe exsudava o pus na epiderme das pernas, [50] e attribua-se ás angustias da sua suja enfermidade o phrenesi que rebentava em raivas contra os judeus, a diabetes que se dessedentava em sanque. Se Byron satyrisou os bons costumes e as virtudes inglezas porque tinha um calcanhar desengonçado, que muito que D. João III queimasse trinta mil innocentes, se as pernas lhe esvurmavam peçonha?
Ao proposito do marmanjo-mór D. Francisco de Roxas, occorre-nos acrescentar que elle teve uma filha chamada D. Maria, que casou com André de Sousa Chichorro, descendente de Affonso III e de uma formosa moura. D'este neto do rei e da filha do chocarreiro ha descendentes, a quem não é hoje permittido saudar como netos do marmanjo-mór do paço d'el-rei D. João, o principe perfeito.
[2] Este principe era seu neto D. Sebastião.
[3] Despejar, quer dizer que mandou sahir da camara os que lhe assistiam.
[4] Vimos que a corôa lhe resvalára da fronte, e era morto.
[5] Não podémos reter as lagrimas.
Falla-se na canonisação do arcebispo de Braga D. fr. Caetano Brandão.
Li as Memorias para a historia da vida d'este insigne prelado, colligidas por Antonio Caetano do Amaral. Não desconheço os louvores que lhe teceu o insuspeito José Liberato Freire de Carvalho nas suas Memorias. Li com mais prazer a biographia que lhe encarece as virtudes, escripta pelo snr. Innocencio Francisco da Silva. Commoveu-me a leitura do drama do doutor Silva Gayo, aquelle optimo coração que já não pulsa cheio do amor de seus filhos.
Inferi d'estas variadas leituras que o arcebispo não tivera em vida quem lhe suspeitasse da probidade, nem por tanto, no acto da canonisação, lhe sahiria com libello infamatorio aquelle personagem que, no processo da santificação, se chama o advogado do diabo.
Illusão que me desluz outras muitas fundadas em bases de vento e poeira.
[52]O primeiro advogado do diabo que enrosca a hirta cauda e se amezendra n'ella, ao tribunal dos cardeaes, é o ministro do principe regente, José de Seabra da Silva; e o pio João é citado tambem para ouvir da lingua do seu ministro o depoimento que elle authorisou. Quem duvidar do que vai lêr, dirija-se ao archivo da secretaria do reino, e peça que lhe deixem examinar o copiador dos Avisos expedidos no anno 1794, e lá encontrará o seguinte:
«Ao arcebispo de Braga. Sua magestade, sendo informada dos procedimentos e amontoados crimes que v. exc.a tem perpretado contra a disciplina da igreja, e ainda das mesmas leis, usando de sua regia piedade por esta vez (pois devia ser outro o exemplo), é servida que logo, sem perda de tempo, mande restituir por seus despachos a abbadessa do convento de Santa Clara de Villa Real á sua occupação, e as mais religiosas aos seus respectivos cargos, e as noviças continuem o seu noviciado, levantando a supposta excommunhão, e dando conta ao confessor do principe, o padre frei Mathias, incumbido dos negocios das religiosas, de tudo o que obrou, declarando n'ella o motivo porque assim tinha praticado, e outra á secretaria para constar da sua execução. Palacio de [53] Nossa Senhora da Ajuda 10 de fevereiro de 1794.--José de Seabra da Silva.»
Quem viu no começo do aviso o prelado arguido de amontoados crimes perpretados contra a disciplina da igreja, e logo adiante encontra uma ordem de restituir a abbadessa e as religiosas, e de mais a mais, as noviças aos seus officios no convento de Santa Clara, cuida que D. frei Caetano Brandão estava na sacrilega posse da abbadessa, das outras freiras e--o que mais é de censurar e invejar--das noviças!
Apresso-me a desfazer a hypothese que se encosta á equivoca redacção do Aviso. O arcebispo não tinha freira nenhuma desgarrada do divino redil.
O que elle tinha era a santa e serena coragem de responder áquelle hypocrita de frei Mathias em termos que revêem o socego de alma invulneravel ás phrases insultuosas do ministro que em 1778 se havia recolhido de Angola com aquelle luxo de cortezia.
A razão do insulto é simplesmente miseravel. O arcebispo, fundado no seu direito, prohibiu que no convento de franciscanas de Villa Real professassem religiosas. A relaxação d'aquella communidade ia na vanguarda dos mosteiros onde [54] os vicios se rehalçavam mais soltamente. D'ahi a prohibição que punha a mira em desviar d'aquella gafaria as meninas ainda incontaminadas.
O vigario geral da terra era amante da prelada, bem aparentado na côrte, caprichoso e rico.
Foi a Lisboa, insinuou-se na estima de frei Mathias da Conceição, confessor do principe, e alcançou, por intermedio do frade, licença para professarem religiosas, directamente enviada á sua Heloisa d'elle vigario geral, que se parecia tanto com Pedro de Abeillard como com Origenes.
O arcebispo, avisado da desobediencia, excommungou a prelada, a escrivã, a rodeira, a boticaria, as cantoras, a organista, as noviças, todo aquelle harém, sujeito a um califado numeroso de padres, de fidalgos, de poetas, de todos os freiraticos da provincia. Uma balburdia!
Voltou a Lisboa o vigario geral, depois da excommunhão, posto que as excommungadas não tivessem fastio, nem extraordinarios ataques esthericos.
D'esta segunda ida, resultou o Aviso ultrajante que o leitor leu com assombro e indignação.
D. Caetano respondeu ao confessor e ao ministro do regente, que garganteava canto-chão em Mafra devotamente. As cartas são longas e a [55] vida é breve. Da resposta enviada ao padre Mathias, trasladamos um periodo energico:
«... Espero que v. s.a se capacite de que não é o espirito de teima o que me anima ao presente lance; mas o desejo sincero que tenho de dar boa conta da minha administração ao supremo juiz dos vivos e mortos. Respeito com profunda submissão as ordens dos meus soberanos, e d'esta disposição creio tenho dado as provas menos equivocas em doze annos que vou contando de bispo, como podem attestar assim na America como no reino todos os que tem ouvido ou lido as minhas instrucções pastoraes. Mas esta obediencia ás reaes ordens sabe v. s.a perfeitamente que nunca deve extinguir no coração de um bispo o zelo que d'elle reclamam os legitimos direitos da igreja, sobre tudo quando se enlaçam tão apertadamente com a salvação das almas. O contrario seria transtornar a ordem que Deus tem estabelecido entre o sacerdocio e o imperio; é querer fazer a igreja captiva dos reis da terra convertendo-a em corpo politico, o que sem difficuldade, diz Bossuet, arguiria a mais inaudita lisonja que póde entrar no espirito humano... Uma cousa quero pedir mui confiadamente a v. s.a, e é que no caso que as razões expendidas lhe não pareçam sufficientes [56] para sustentar o meu designio relativamente aos mosteiros d'esta diocese, como para mim tem força, e tal que liga invencivelmente a minha consciencia, haja de expor a sua alteza a impossibilidade em que me acho de condescender com a vontade d'aquellas religiosas, em quanto se me não fornecerem novas luzes por onde venha no conhecimento do meu erro... Braga 13 de março de 1794.»
Na resposta ao ministro é humildissimamente um apostolo da primitiva christandade. Alludindo ao vigario geral que o detrahe e impugna na carta, escreve mansamente:
«... Só um pequeno numero de espiritos, de que não era difficil conhecer as intenções, pelo interesse que tinham de vêr deprimida e mesmo extincta a authoridade de quem os dessocega na falsa paz da sua relaxação e desordem (entre os quaes sobresahe com grande vantagem um clerigo que se acha n'essa côrte com ar de requerente, homem que sempre representou no theatro das intrigas que são manejadas com arte), só este pequeno numero que a abbadessa se tinha associado para as suas frequentes conferencias, é quem podia lisonjeal-a em tão estranho projecto.»
[57]E, a final, quem venceu?
Venceu o vigario geral, e a abbadessa, e a rodeira, e a organista, e a escrivã, e a boticaria. Houve luminarias no adro do mosteiro. Versejou o poeta da organista, que era padre, e se chamava o Mormo, alcunha de molestia que lhe pegára o pegazo das cavallariças monasticas. Recitou o poeta da boticaria, que se chamava o padre Mesquita, que lidava em torneio de murros com o Mormo em todos os outeiros. O vigario geral fez córar a abbadessa com uma ode em que ella era comparada á Venus callipygia; em fim, até os tachos, que assim lá chamavam ás criadas, deram motes e pasteis--os celebrados pasteis de Santa Clara--a muita somma de sapateiro que n'aquella noite converteu a tripeça em lyra e a sovella em plectro.
D. frei Caetano Brandão áquella hora pedia, talvez, a Deus que lhes perdoasse a ellas e aos poetas porque não sabiam ellas o que faziam, nem elles o que diziam. Era santo, em fim!
Quem poder imital-o, faça a mesma oração a favor de alguns poetas de hoje em dia, e não se esqueça de mim, que sou dos mais necessitados.
[58]O desembargador do paço e conselheiro real Ignacio da Costa Quintella falleceu em 2 de janeiro de 1752, deixando o seu nome perpetuado na Bibliotheca Jurisconsultorum lusitanorum, em quanto na face da terra se souber latim.
Além da Bibliotheca, deixou uma viuva e dous filhos. A viuva chamou-se D. Maria Michaela de Sousa; o filho era Ignacio Pedro Quintella, e a filha chamou-se D. Isabel Thereza de Sousa Quintella.
Em casa da viuva ficou, por morte do desembargador, um escripturario habilissimo, chamado Felix Tavares de Almeida, de familia limpa, bem figurado, intelligente, poeta, e, pelo conseguinte, namoradiço.
D. Maria Michaela encarregou-o de todos os negocios de sua grande casa, incumbindo-o especialmente de correr com o inventario do casal; mas nem por isso lhe indultou a audacia de requestar-lhe a filha.
Assim, pois, que teve denuncia dos amorios [59] de Isabel com o seu criado, como ella o denominava para aviltal-o aos olhos da filha, despedia Felix Tavares, com ameaças de o mandar prender, se teimasse em deshonrar a estirpe dos Quintellas--estirpe que, a fallar verdade, ainda estava muito em vergontea verde.
Isabel, com o seu amor, impunha ao escrevente expulso a obrigação de ter coragem. A correspondencia epistolar continuou, apesar de todas as vigilancias da mãi e do irmão de Isabel, que já era casado áquelle tempo.
Queria muito a viuva dar querela contra o seductor, mas carecia de prova escripta. A menina queimava as cartas assim que as lia, e não tinha confidente que a trahisse, porque o medianeiro das cartas era um fio de sêda, e as testemunhas eram a lua discreta e as estrellas silenciosas da alta noite.
Acudiu o filho á inquietação da mãi com este alvitre: «Eu queixo-me de que Felix Tavares, quando sahiu do nosso serviço, me roubou dinheiro, e requeiro que se lhe passe revista á casa. As cartas, que Isabel lhe tem escripto, hão de apparecer, se o apanharmos de sobresalto. Uma carta só que appareça, é prova bastante.»
D. Maria approvou a idéa, applaudindo a esperteza do filho.
[60]Feita e despachada a petição, o corregedor do bairro de Andaluz entrou de subito na humilde casa do moço arguido de ladrão, fez-lhe abrir um bahú, depois de revistar as gavetas, e achou um massete de cartas que, n'um volver de olhos, reconheceu serem de amores. Metteu as cartas na algibeira, repulsando com desabrimento as supplicas de Felix Tavares, e sahiu.
O atribulado rapaz não soube que o infamavam de furto, porque o magistrado fizera a diligencia sem proferir palavra nem explicar a razão da visita.
Percebeu que as cartas de Isabel iam ser instrumento de processo. Conhecia bem os homens do seu tempo, e escondeu-se.
O corregedor enviou parte das cartas mais lyricas de Isabel ao duque regedor das justiças; e este, depois que se regalou e mais a familia com os requebros delambidos da filha do desembargador, enviou-as a D. Maria Michaela.
Esta, quando viu as cartas, perdeu os sentidos, porque do conteudo das mesmas deprehendeu que, passados alguns mezes, seria avó. Quando tornou á sua razão, envergonhou-se de pôr em juizo tão deshonrosos papeis.
N'este tempo, a viuva e a filha viviam em uma quinta nos arrabaldes de Lisboa, esperando que [61] se reedificasse o seu palacete aluido pelo terremoto de 1755.
Felix Tavares, certificado do silencio da viuva e da segurança da sua pessoa, continuou a frequentar os muros da quinta.
Instado por Isabel, e alentado para todo o risco, requereu ao vigario geral, juntamente com ella, que lhe admittisse fiança a banhos, fundando a petição em razões de honra, de pudor e de religiosidade. O vigario geral dispensou-os de licenças e pregões.
Uma noite fugiram; e, ao amanhecer do dia seguinte, casaram-se.
D. Maria, quando deu falta da filha, sahiu para Lisboa, e fez espectaculo das suas lagrimas na presença dos desembargadores amigos de seu defunto marido. Comprometteram-se todos unanimemente a vingar a viuva do conselheiro desembargador do paço Ignacio da Costa Quintella.
Isabel conhecia o genio iracundo da mãi. Apesar de haver legitimado com o sacramento o seu erro, pediu ao marido que evitasse os primeiros impetos da colera dos seus. Esconderam-se, pois, mudando o nome, no sitio de Alcantara, e ahi viveram com o seu filhinho pobremente do producto de algumas joias, até 1758.
No fim d'este anno, que era o terceiro de casados, [62] persuadiram-se que o coração da mãi devia estar aplacado pela acção do tempo. Isabel escreveu-lhe, e não teve resposta; escreveu novamente, e recebeu a carta fechada, e um insulto de viva voz. Apesar d'estes ruins presagios, Felix Tavares de Almeida, forçado pela necessidade, mudou para Lisboa, a fim de grangear sua subsistencia no trabalho da escripta ou agencia de causas em que era versado.
Principiava a melhorar de posição, quando, ao sahir de sua casa, na manhã de 2 de junho de 1760, foi preso á ordem do corregedor, e conduzido ao Limoeiro.
Pouco tempo depois, D. Isabel Thereza de Souza Quintella era tambem, com ordem de captura, conduzida á quinta de sua mãi nos arrabaldes de Lisboa. Levava o filho nos braços.
Foi aquella criança que a defendeu do suicidio ao vêr-se sósinha na quinta, com uma criada que nunca vira, e um escudeiro que a encarava de esconso com tregeitos de menospreço.
No mesmo dia em que entrou no Limoeiro, Felix Tavares foi chamado á sala para ouvir lêr a sua sentença.
--A minha sentença!--exclamou elle.
Não lhe respondeu o meirinho. Foi, e ouviu lêr o seguinte ao escrivão da correição do crime [63] da côrte, Loureiro, sujeito que lia uma sentença no tom lugubre em que os frades entoavam os threnos de Jeremias:
«Vistos estes autos, libello da A. (authora), provas e documentos juntos, mostra-se que, sendo o réo criado de escada acima...
--Criado!--interrompeu o preso.
--Ouça e cale-se!--respondeu asperamente o escrivão.
E continuou:
«Criado de escada acima assalariado do desembargador do paço Ignacio da Costa Quintella, e da A. sua mulher, continuou no mesmo serviço de casa até alguns dias depois do memoravel terremoto do 1.o de novembro de 1755, no qual tempo foi visto por muitas pessoas solicitar escandalosamente de amores a filha da A. sua ama, D. Isabel Thereza de Sousa Quintella, menor de 25 annos, escrevendo-lhe escriptos amatorios com expressões de grande e estranhavel confiança, dos quaes, muitos d'estes e reciprocamente d'ella foram achados pelo juiz do crime do bairro de Andaluz no bahú do réo, indo em diligencia de furto de dinheiro...
--Que é!--bradou Felix Tavares--que aleivosia é essa de furto de dinheiro?
[64]--Já lhe disse que me não interrompa!--sobreveio o escrivão.
--Hei de interrompel-o em quanto me não disser quem é o infame que me chama ladrão!
--Eu não sou--disse o Loureiro, olhando-o por cima dos oculos de tartaruga.--Escute lá o resto, que vm.ce não é sentenciado por ladrão...
O preso não pôde replicar suffocado pelos soluços; o escrivão proseguiu:
«De furto de dinheiro feito ao filho mais velho da A. já casado...
--O villão mentiu!--exclamou Felix Tavares, estendendo os braços convulsos ás pessoas que o rodeavam, como se lhes pedisse que o defendessem da calumnia.--O villão mentiu, senhores! Acreditem que eu não furtei dinheiro algum!
--Já lhe disse que não furtou...--volveu o escrivão.--Isto são palavras que não tiram nem põem...
--Não tiram nem põem!--replicou o sentenciado.--Oh! que infames! que infames!...
E cobria o rosto com as mãos, balbuciando vozes inintelligiveis.
O escrivão continuou a lêr:
«E se reconheceram as letras serem suas, que [65] o dito ministro queimou, reservando algumas, que entregou ao duque regedor, para dar parte d'esta aleivosia á dita A.; e outro sim foi visto por varias pessoas na quinta da A., já depois de ultimamente despedido da dita casa, fallando só com a filha da A. em sitio suspeitoso para acções lascivas, tendo assim havido tratamento e ajuste occulto de se casarem, e ser ella tirada por justiça contra vontade da A. sua mãi, para o que supplicou ao vigario geral do patriarchado, e obteve fiança a banhos com o fundamento de causas occultas que facilitaram a sua dispensa, do que se não quiz passar a certidão pedida, fl. 235, de modo que sendo necessarios todos estes requerimentos antecedentes e prova d'elles, em que certamente se havia de gastar tempo, chegaram com effeito a receber-se em 23 de novembro do dito anno, pouco depois de ter sido expulso de criado, retrotrahindo-se todo o facto da solicitação e aleivoso ajustamento de casarem ao tempo do famulato, e da quinta em que ella assistia com a A. sua mãi, como tudo se mostra das certidões fl. 224 e 322.
«N'estes termos...--proseguiu o escrivão descarregando na venta direita a pitada do simonte que esperava a suspensão de novo periodo--«n'estes termos, sendo a filha da A. menor de 25 [66] annos, conforme a certidão fl. 232, que o réo não podia ignorar pelo tratamento e serviço domestico de muitos annos, e incumbencia de correr com o inventario do casal, que se fez por fallecimento do marido da A., não sómente se acha incurso na pena da Ordenação, livro 5.o, titulo 22 por ser indisputavel a illustre qualidade da filha de um desembargador do paço e do real conselho, além de outros honrosos empregos litterarios que tinha exercitado n'este reino e côrte, e o réo apenas póde reputar-se em um estado indifferente ou medio entre as pessoas da sua patria, em cuja camara e officios pouco servem quaesquer pessoas desoccupadas[6], e como tal não convinhavel, nem civilmente digno d'este casamento; mas tambem se acha comprehendido na pena da Ordenação, tit. 24. Por tanto, attendendo a não concorrer a prova e circumstancias para se impor a pena capital ordinaria, o condemnam em seis annos de degredo, sem açoutes, para o reino de Angola, e 20$000 reis para as despezas da relação, e no perdimento de toda a sua fazenda para a A. na fórma da lei e custas dos autos. E o escrivão não fará publica esta sentença sem primeiro se passarem as ordens necessarias para o dito réo ser preso, e [67] com effeito se achar na cadêa da côrte. Lisboa 31 de maio de 1760.==Giraldes, Franco, Xavier da Silva, Vidigal, doutor Cunha, Silva.»
--Agora--disse o escrivão embocetando os oculos--snr. Felix, seja homem, tenha paciencia, e dou-lhe de conselho que não perca tempo em appellações. Seis annos passam depressa. Em toda a parte se come o pão de Deus ou do diabo. O que se quer é que seja pão.
E como o condemnado lhe divisasse nos olhos um geito de piedade, animou-se a perguntar-lhe, debulhado em lagrimas:
--Poderei levar minha mulher?
--Se ella quizer, ninguem a póde privar. Adeus, infeliz. Tenha alma...
Quando o escrivão sahia, encontrou no pateo da cadêa D. Isabel Quintella, com o menino no collo, coberta de pó e extenuada de fadiga. Loureiro, conhecendo-a, chamou-a de parte, precaviu-a do succedido para que a sua chegada ao quarto do marido não exacerbasse a agonia do preso. Reanimou-a com a esperança de o acompanhar ao degredo, e prometteu-lhe servil-a em tudo que podesse, pois que já agora o erro do casamento era irreparavel.
Entrou Isabel no quarto do esposo com o semblante constrangidamente sereno; mas elle, apenas [68] a viu, rompeu em alto choro, e, tomando o filho nos braços, pedia a Deus que lhe valesse por amor d'aquelle innocentinho.
A vinda de D. Isabel ao carcere fôra um logro ás espias que a mãi lhe pozera. O escudeiro ainda a perseguira na estrada de Bemfica, ao passo que ella se evadira por atalhos, esbofada de cansaço com o peso da criança.
Quando o carcereiro a intimou a sahir, resistiu, dizendo que havia de saber alli quem ordenára a sua prisão na quinta. A mulher do carcereiro compadecida da pobre esposa e mãi, deu-lhe agasalho n'aquella noite.
No dia seguinte, D. Isabel Quintella, bem ou mal avisada, procurou o ministro conde de Oeiras, que havia sido particular amigo de seu pai.
O ministro ouviu-a attentamente, sem lhe improperar a escolha de marido, e disse-lhe que se recolhesse a sua casa que ninguem a lá iria incommodar.
E, perguntando Isabel se poderia acompanhar ao degredo seu marido, o conde de Oeiras compungiu-se, e respondeu:
--Se o ama, vá; que a sua vida aqui não ha de ser melhor.
Maria Michaela, sabendo que a filha estava na casa do marido e o visitava na cadêa, sahiu de [69] novo a solicitar a justiça em nome do seu defunto. Corregedores e desembargadores, encolhendo os hombros, davam a perceber que sentiam nas orelhas os beliscões do conde de Oeiras. Volveu outra vez a viuva a pedir providencias que impedissem a ida da filha para Angola. Responderam-lhe os letrados e os juizes que a lei não a embaraçava.
Em junho d'aquelle anno de 1760 sahiu o degredado com a mulher e filho. O conde de Oeiras mandára pelo mesmo navio uma breve carta ao governador Antonio de Vasconcellos. Horas depois do desembarque, Felix Tavares de Almeida recebia ordem de se apresentar ao governador, em separado dos outros degredados. Recebeu-o Vasconcellos com bom rosto e desusada cortezia. Nomeou-o fiscal das obras do palacio dos governadores, que se andava então edificando, e coucedeu-lhe na porção já construida moradia muito decente. Algum tempo depois, deu-lhe dragonas de capitão, sem consultar a lei que inhibia os degredados de tão elevada patente. Felix Tavares houve-se corajosamente n'um encontro com o sova Quiandala, que expulsou do Libôllo, aprisionando os mussões que infestavam a provincia de Cahenda.
Este governador, sobre ser severo, era cruel [70] com os criminosos. Um historiador dos governos de Angola diz que Antonio de Vasconcellos por qualquer desordem fazia trabalhar o sarilho da polé, e acrescenta: esta inflexivel severidade, que tanto refreava os maus, deu origem a intentarem elles um dos mais horrendos e temerarios crimes que se podem imaginar[7].
Desde o anno de 1756 que as levas de degredados eram extraordinariamente numerosas. Sentenciados quasi todos por ladrões, eram esses os que o conde de Oeiras não vingára pendurar nas forcas erguidas em Lisboa, depois do dia do terremoto. Entre os quaes levára pena de degredo perpetuo um cigano de Torres Novas, chamado José Alvares, facinoroso que o conde de Obidos, notavel protector de ciganos, salvára do patibulo em paga de serviços particulares.
José Alvares de Oliveira, que não incutira medo a Antonio de Vasconcellos, e experimentára o citado sarilho da polé, traçou matar o governador, a officialidade, os ministros e pessoas mais gradas de Loanda, saqueando depois as casas, e abalando d'alli para o Brazil em navio que estava [71] prompto a sahir com despachos. Um dos conjurados, diz o referido historiador, descobriu tudo ao seu capitão.
O capitão era Felix Tavares de Almeida que simultaneamente avisava o governador, e prendia José Alvares.
O cigano foi aspado; quebraram-lhe os braços e pernas em vida. Os outros em numero de dezenove, foram estrangulados. O governador de uma das janellas do palacio assistiu ás execuções.
Em janeiro de 1764 tornou o governador ao reino. Na mesma monção voltou Felix Tavares com o indulto de dous annos da sua sentença: tão valiosas haviam sido as informações que Vasconcellos mandára do seu capitão ao conde de Oeiras.
Em junho d'aquelle anno já o marido de Isabel Quintella exercia um emprego liberalmente estipendiado na mesa da consciencia e ordens.
D. Maria Michaela, que ainda vivia para maiores zangas, foi obrigada por sentenças successivas a dar a sua filha o patrimonio que lhe cabia por inventario.
*
* *
Deixemos agora rodar 71 annos, ao cabo dos quaes tambem eu figuro n'esta historia.
[72]Conheci em 1835 um desembargador da supplicação, quasi octogenario, chamado José Pedro Quintella. Era o filho de Felix Tavares e D. Isabel--aquella criancinha cujas supplicas o preso offerecia a Deus como resgate de seu infortunio. O desembargador Quintella, que muitos annos o foi da Relação do Porto, suspeito que casou n'esta cidade.
Conheci tambem uma filha d'este magistrado casada com um bacharel transmontano chamado José Cabral Teixeira de Moraes, que advogou alguns annos em Lisboa na rua Nova do Carmo.
Vi, recentemente nascida, em 1835 uma menina filha d'aquella senhora, que então morava em uma rua que liga o largo do Carmo ao largo da Abegoaria. Em 1861, o nervoso poeta Raymundo de Bulhão Pato mostrou-me no theatro de D. Maria uma formosa senhora, que era a criancinha que eu vira ao lado de sua mãi, no dia seguinte ao do seu nascimento; contemplei-a através de lagrimas, porque a imagem de meu pai cobriu de luto estas reminiscencias da minha infancia.
N'esse tempo, ainda vivia em Lisboa o filho d'aquelle irmão de D. Isabel que aleivosamente arguira de ladrão seu futuro cunhado. Chamava-se, como seu avô, Ignacio da Costa Quintella. Era [73] grão-cruz da ordem da Torre-Espada, vice-almirante, ministro e secretario de estado honorario, porque havia sido ministro do reino no Brazil e da marinha em Portugal nos annos de 1821 e 1826. Além d'isso era escriptor distincto porque escreveu os Annaes da marinha portugueza, e notavel poeta porque verteu as odes de Horacio publicadas nos Annaes das sciencias e artes.
Seu primo, o filho de Felix Tavares, posto que mais obscuro socialmente, hombreava com elle nas graças do talento. Traduziu uma ecloga de Pope publicada no Jornal de Coimbra, e escreveu originalmente O Redactor, ou Ensaios periodicos de litteratura e conhecimentos scientificos, destinados para illustrar a nação portugueza (1803).
Como sabem, os descendentes de Felix Tavares eram mui proximos parentes de Farrobos, gerados de Quintellas; mas, entre as duas familias, corriam ainda litigios de partilhas que contavam setenta annos. Odiavam-se reciprocamente. Uns viviam opulentissimos, outros em mediania decente. Hoje, parte dos que então estadeavam fausto de principes, vive da caridade da defunta viuva do imperador do Brazil. Os outros não sei o que são. Creio que é viva ainda a bisneta de D. Isabel Thereza de Sousa Quintella. Se este livrinho lhe chegar ás mãos, indulte o peccado de [74] murmuração da vida alheia a um velho que, tendo sete annos de idade, a beijou na face quando s. exc.a contava algumas horas de existencia.
Oh!... mas, a final, que immensa tristeza me deixam no coração estas paginas!...
[6] Não percebemos esta salgalhada.
[7] Memorias contendo a biographia do vice-almirante Luiz da Motta Fêo e Torres, etc, por J. C. Fêo Cardoso de Castello Branco e Torres. Paris, 1825, pag. 260 e seg.
(O premio offerecido a quem dilucidar a escuridade do caso é uma collecção de Fados, encadernada em marroquim, de parçaría com os Musicos, do snr. Joaquim de Vasconcellos, edição quasi em esgoto).
O snr. Miguel Dantas escreveu um livro cheio de noticias ácerca de cada impostor que se intitulou D. Sebastião, rei de Portugal.
O ultimo chamou-se Marco Tullio Catizone, da Calabria. A respeito d'este, o snr. Dantas exhibe documentos desconhecidos; e, na opinião do snr. Pinheiro Chagas, não ha mais que dizer.
[75]Ha.
Affirma o snr. Dantas, fundado em provas, que Marco Tullio, o embusteiro, foi condemnado ao córte da mão direita, á forca, e á exposição do cadaver feito pedaços, sentença executada em S. Lucar de Barrameda, aos 23 de setembro de 1603.
Essas provas, se bem me recordo, não tem maior canção que a devida ao nome do historiador sério.
O documento que s. exc.a não viu nem indicou é a sentença de Clemente VIII a favor d'esse homem, que se intitulava D. Sebastião.
Este importantissimo depoimento na causa do pretendido rei nunca foi impresso. É o seguinte:
«Clemente VIII, por Divina Providencia servo dos servos de Deus: Saude e paz em Jesus Christo Nosso Senhor, que de todos é verdadeiro remedio e salvação. Fazemos saber a todos nossos filhos carissimos, que debaixo da protecção do Senhor virem com fervorosa fé em especial aos do reino de Portugal, que o nosso mui amado filho D. Sebastião Rey de Portugal se apresentou pessoalmente n'esta Curia Romana no sacro Palacio, fazendo-nos com muita instancia e supplica o mandassemos meter na posse do seu reino de Portugal [76] pois era o verdadeiro e legitimo Rey delle; que por peccados seus e juiso divino se perdera em Africa indo peleijar com ElRey Maluco no campo de Alcacere quibir, e the agora estivera oculto e não quizera dar conta de si por meter tempo em meio dos males que succederam por seu conselho, e que para justificar ser o proprio estava prestes para dar toda a satisfação que lhe fosse pedida: E considerando nós o cazo, como somos juiz universal entre os principes catholicos, mandamos por conselho dos cardeaes em conclave que apparecesse; e, feito, se fez examinar com muita miudeza como convinha a tal cazo[8] de que se fizeram processos em varias naçoens e no dito [77] Reyno de Portugal por pessoas qualificadas, assim dos signaes do seu corpo, como de outros mais miudos do seu reino, ajunctando as partes por onde andou, e de sua vida e costumes, como outras particularidades importantes para a verdade ser mui claramente sabida, não nos fiando por uma só vez, mas por muitas, e por pessoas constituidas em dignidade sacerdotal, e por seculares titulares, do que se fizeram os processos que no Archivo desta curia se pozeram, e que uns e outros se conferiram; e visto em Conclave e perante nós se verificar ser o proprio Rey D. Sebastião e lhe pertencer o dito Reyno, como unico herdeiro d'elle, e assim todas as rendas des a data d'este para se investir de posse; pelo que, Authoritate appostolica, por tal o declaramos, e sentenceamos, e mandamos ao muito Catholico Filipe terceiro de Hespanha que largue o Reyno em pax, sob pena de excommunhão mayor ipso facto incurrenda reservada a nós, não permitindo dilações; como filho obediente aos mandados Appostolicos deve temer a ira do Senhor fazendo o contrario; nesta Curia sob o nosso signal do Pescador a 23 de Dezembro de 1598.»
Este documento não desfigura nem contraria a historia de Marco Tullio, referida pelo snr. Miguel [78] Dantas. O que d'ahi se deprehende é que Marco Tullio enganára Clemente VIII, depois de ter enganado os sacerdotes e titulares que depozeram de sua authenticidade na curia, se é que os depoentes não mentiram ao summo pontifice para resuscitarem fraudulentamente D. Sebastião.
De qualquer modo, se o impostor foi enforcado em 1603, segundo affirma o snr. Dantas, é impossivel que esse mesmo, que Clemente VIII sentenciou como rei em 1598, seja como rei sentenciado em 1617 por Paulo V.
Aqui está a sentença de Paulo V:
«Paulo V, Bispo de Roma, servo dos servos de Deus: Ao nosso mui amado filho Phelipe 3.o[9] Rei de Hespanha, Saude em Jesus Christo Nosso Senhor, que de todos é verdadeiro remedio e salvação: Fazemos saber que por parte de ElRey D. Sebastião, que se dizia ser de Portugal, nos foi apresentada uma sentença Appostolica de nosso antecessor Clemente outavo, de que constou estar julgado pelo verdadeiro Rey e legitimo de Portugal, nos pedia humildemente mandassemos por nosso Nuncio assim o declarasse para effeito [79] de se lhe dar a posse pacifica que convinha á boa Christandade e exemplo dos infieis para que não tomassem motivo de uzurparem o alheio, e que mandassemos consultar por nossos Cardeaes, vêr e examinar a dita sentença com nova justificaçaõ, e como era o proprio contheudo n'ella: movidos do Amor Paternal, para evitar escandalos que podiam resultar, e guerras entre christaõs, nos pareceu para mais suave meio, mandar-vos avizo por nosso Nuncio, não permitindo dardes ocaziaõ para que se valesse das Armas da Igreja, antes logo com effeito largareis o Reyno a seu dono, como estava mandado pela sentença junta, na qual não houve satisfação, cousa estranha entre os Principes; pelo que authoritate appostolica, e que nesta parte uzamos, mandamos a vós Philipe 3.o, Rey de Hespanha, em virtude da sancta obediencia que dentro de nove mezes, depois da notificação d'esta, largueis o dito Reyno de Portugal a seu legitimo successor D. Sebastião mui pacificamente sem efuzaõ de sangue e sob pena de excommunhão maior lata sententia da maneira que está julgada: Dada em esta Curia Romana sob o signal do Pescador a 17 de março de 1617.»
Temos, por tanto, segunda sentença a favor do mesmo que a obteve em 1598, e que a historia [80] melhor documentada e estudo definitivo, no conceito do snr. Pinheiro Chagas, dá como enforcado em 1603.
Mas este mesmo homem impetrou terceira sentença do papa Urbano VIII. Se fosse D. Sebastião devia, a esse tempo, orçar pelos setenta e seis annos. A sentença de Urbano é mais pathetica por que ahi já o decrepito exul pede que o não esbulhem do seu direito porque tem mulher e filhos.
A terceira sentença reza assim:
«Urbano VIII por Divina Providencia Bispo de Roma, Servo dos Servos de Deus. A todos os Arcebispos e Bispos e pessoas constituidas com dignidade que vivem debaixo do amparo da Igreja Catholica, em especial aos do Reyno de Portugal e suas conquistas, saude e paz em Jesus Christo nosso Salvador que de todos é verdadeiro remedio e salvaçaõ: Fazemos saber que por parte do nosso filho D. Sebastião Rey de Portugal nos foi aprezentado pessoalmente no Castello de Sancto Angelo duas sentenças de Clemente Outavo e Paulo Quinto nossos antecessores, ambas encorporadas, em que constava estar justificado largamente ser o proprio Rey e nesta conformidade estava sentenciado para lh'o largar Felipe 3.o Rey de [81] Hespanha, ao que não quiz nunca satisfazer; pedindo-nos agora tornassemos de novo a examinar os processos, e constando ser o proprio o mandassemos com effeito investir da posse do Reyno, pois tinha filhos e mulher, e não podia perder seus direitos, que prejudicava a seus herdeiros, o que mandamos brevemente e por extenso vêr como convinha em cazo de tanta importancia; e considerando como nos convem julgar e detreminar a cauza dos Principes christãos, mandando dar vista a Felipe Quarto que hoje vive, cometendo a cauza ao Imperador, e a ElRey de Inglaterra e a ElRey de França, com o que se passou e se resolveu que lhe desse posse do Reyno de Portugal; e hora por parte do dito Rey D. Sebastião nos foi pedido pozessemos o cumpra-se na sentença, e mandassemos passar nosso Breve Appostolico com excommunhão rezervada a nós para que nenhum fiel christaõ lhe impida sua posse, nem tome armas offensivas contra elle e seus soldados e Ministros; e vendo nós com os nossos Cardiaes do nosso Conselho sua justiça, com maduro conselho lh'o concedemos: pelo que vos mandamos que depois da notificação desta a nove mezes primeiros seguintes que assignamos pelas trez canonicas admoestaçoens, dando repartidamente trez mezes por cada canonica admoestaçaõ, [82] termo peremptorio, tanto que vos for apresentado e da minha parte mandado, façaes por vossos religiosos assim Seculares como Regulares publicar-se nos pulpitos das egrejas e praças publicas que.....[10]. Dada em esta Curia Romana sob o signal do Pescador aos 20 de outubro de 1630.»
Ahi está o problema.
Quem era este homem?
Não podia ser o rei da Ericeira, nem o rei de Penamacor, nem o pasteleiro do Escurial, nem Marco Tullio Catizone. Os quatros impostores eram já mortos.
Então quem era?
Ferdinand Denis, quando relata o caso de Marco Tullio, diz que este homem é um dos problemas insoluveis da historia.
Mas o snr. Dantas desatou o nó. O aventureiro foi enforcado em 1603.
Houve um quinto Sebastião falso?
Onde iremos buscar-lhe o rasto na historia?
É possivel que o snr. Dantas não escrevesse [83] a palavra definitiva a respeito do homem sentenciado por tres pontifices que o viram?
Ahi fica o problema.
[8] Os signaes que D. Sebastião tinha no corpo eram estes: A mão direita maior que a esquerda; o braço direito maior que o esquerdo; o tronco dos hombros até á cinta desproporcionalmente curto e curvado, de modo que os seus gibões não cahiam bem n'outro corpo; da cinta aos joelhos muito comprido; a perna e o pé direitos maiores que os esquerdos; os dedos dos pés quasi iguaes. No dedo minimo um calo grande; na espadoa esquerda um signal pardo e cabelludo; outro signal preto na espadua direita; sardas pouco perceptiveis em rosto e mãos; faltava-lhe um dente no queixo inferior, que lhe fôra tirado por Sebastião Netto; o beiço grosso da parte direita, pés pequenos, pernas algum tanto tortas.
O que ha mais importante historicamente n'esta nota é ter sido o dente de sua alteza extrahido por Sebastião Netto.
[9] As alterações orthographicas constam do texto, que trasladamos quasi pontualmente.
[10] Seguem-se algumas linhas que a humidade tornou inintelligiveis.
A inquisição de Portugal, em 1704, confiava tanto na espada flammejante de S. Domingos, que nem as esquadras britannicas lhe incutiam pavor.
N'aquelle anno, morava no Porto uma familia ingleza de appellido Fiuza. Não assevero que assim se escrevesse ou pronunciasse o appellido; mas assim o acho escripto em documento coevo, extrahido de um processo do santo officio. Esta familia era catholica romana.
Havia no Porto outra familia ingleza herege. Appellidava-se Mosheim, que os escreventes do tribunal dominicano escrevem Mossão.
Á familia catholica pertencia uma menina chamada Isabel. Á protestante um moço chamado Thomaz.
[84]Amavam-se os dous contra vontade de seus paes. Eram ambos abastados e bem procedidos; mas tinham de permeio o inferno. Na opinião dos Fiuzas a familia Mosheim estava condemnada ás penas eternas. Os Mosheim, por sua parte, diziam que os Fiuzas eram lenha secca para as fornalhas infinitas.
O pai de Thomaz consentia no casamento, se Isabel apostatasse do catholicismo. O pai de Isabel cedia ás supplicas da filha, se Thomaz se convertesse á verdadeira e unica religião.
Eram irreconciliaveis os dous inglezes.
Mas a paixão de Isabel pôde mais que o pai e que o esteio da fé.
Uma noite, fugiu de casa. Morava em uma das tres quintas de João Pedróssem, a Villar. Desceu a Miragaya, e entrou em uma lancha ingleza, onde a esperavam Thomaz Mosheim e um padre protestante.
Ao repontar da manhã, o padre abençoou o casamento dos dous contrahentes, alli, sobre as aguas do Douro, em uma formosa alvorada de agosto, com quatro marinheiros por testemunhas.
Feito isto, o sacerdote lutherano foi em demanda do inglez catholico, e disse-lhe que acabava de abençoar o casamento de Isabel com Thomaz, e lhe ia pedir que perdoasse a sua filha [85] pelo amor de Deus. O velho inglez arrepellou as barbas, injuriou o padre, e bradou tres maldições á filha e á sua posteridade.
Divulgou-se o successo na cidade.
Ao outro dia, Carlos da Rocha Pereira, commissario da santa inquisição, no Porto, acompanhado de alguns officiaes, entrou em casa de Thomaz Mosheim, e prendeu Isabel em nome do santo officio. Ella, traspassada de terror, seguiu aquelle homem que tinha nas palavras a rijeza de uma tenaz de tortura. Foi conduzida ao aljube ecclesiastico, e interrogada.
A colonia inglesa, assim que soube da prisão de Isabel Fiuza, reuniu-se em casa do seu consul. Sahiu o magistrado á frente dos queixosos, e pediu audiencia ao vigario geral. Reclamou a ingleza em termos solemnes com ameaças. O vigario geral amedrontou-se; mas disse que não podia soltar a herege, sem ter consultado os inquisidores de Coimbra.
E, no em tanto, a noiva chorava incommunicavel no aljube ecclesiastico.
Foi encarregado o commissario Carlos da Rocha Pereira de consultar os inquisidores de Coimbra. Estes, vacillando na resposta, consultaram o conselho geral, que residia em Lisboa, no seguinte officio, que lá chamavam Conta:
[86]«O commissario do Porto Carlos da Rocha Pereira nos dá conta pela carta inclusa do matrimonio que celebrou Isabel Fiuza, catholica romana, ingleza, com Thomaz Mossão, inglez herege, no rio Douro, em uma lancha ingleza; e nos remette o auto de perguntas, que lhe fez, depois de presa no aljube ecclesiastico da mesma cidade, em que confessa o mesmo matrimonio; e, no mesmo correio, dá conta aos inquisidores Affonso Cabral Botelho, e deputado Francisco Carneiro de Figueirôa, pela carta junta, do reparo que na dita cidade faziam os inglezes da prisão do ordinario; e que ouvira que o seu consul se queria queixar a sua magestade; e, posto nos pareceu que deviamos proceder contra a dita Isabel Fiuza, na forma da disposição do Regimento, liv. 3.o tit. 16, §. 2.o, o duvidamos fazer pelas circumstancias referidas, e reparo do consul; e assim recorremos a v. ill.ma para nos ordenar o que devemos obrar n'esta materia. Coimbra em mesa 18 de agosto de 1704.==Antonio Portocarreiro, Affonso Cabral Botelho.»
O conselho da santa inquisição, desdenhando as ameaças do consul e a opinião dor rei a tal respeito, respondeu, passados quarenta dias:
[87]«Os inquisidores responderam ao vigario geral que, suppostas as circunstancias, póde conhecer do caso de que se faz menção na fórma que lhe parecer. Lisboa 26 de setembro de 1704.==Carneiro, Moniz, Hasse, Monteiro, Ribeiro, Rocha.»
E, no em tanto, Isabel conseguira receber no aljube ecclesiastico alguns padres de notoria virtude que a reduzissem á religião catholica e a desatassem do marido herege.
O vigario geral lisonjeára-se grandemente com a confiança delegada pelo conselho geral; mas via-se entalado entre a fé catholica e o consul inglez.
Depois de grandes prelios que as duas potencias lhe travaram na consciencia, o magistrado ecclesiastico resolveu processar Isabel, visto que ella, impenitentemente e contumaz, persistia em querer o seu marido assim herege e condemnado ao sempiterno horror onde ha o perpetuo ringir de dentes.
Esta deliberação foi communicada ao consul, que a ouviu com um sorriso que o vigario geral não percebeu porque era sincero, virtuoso e bonacheirão.
N'esse mesmo dia, o consul teve uma conferencia [88] secreta com quatro capitães de navios inglezes, ancorados no Douro.
Á volta das onze da chuvosa noite de 7 de outubro, pela porta da Lingueta e pela dos Banhos entraram os muros da cidade trinta marinheiros que por diversos pontos confluiram ao aljube ecclesiastico, situado na visinhança da Sé.
A guarda d'este carcere era indigna de hoste ingleza tão numerosa. O santo officio confiava muito dos ferrolhos, e dispensava as escopetas da milicia; mas nunca lhe negrejára na mente a hypothese de que os esbirros e carcereiros, tangidos por valentes sôcos britannicos, iriam libertar da masmorra um dos seus presos.
Foi o que aconteceu n'aquella noite funesta para os fastos do santo officio, e para os queixos dos quadrilheiros. Isabel que não podera ser prevenida, quando ouviu a deshoras o rodar de portas nos gonzos, cuidou que ia ser transferida aos carceres de Coimbra ou Lisboa. Estava em joelhos com as mãos postas, quando Thomaz Mosheim, ladeado de marujos athletas, entrou no recinto, e a custo a viu ao clarão de uma lampada que alumiava um crucifixo.
E ella, reconhecendo-o, lançou-se-lhe nos braços, e perdeu o alento.
Um dos quatro colossos vermelhos, que o seguiam, [89] tomou-a nos braços, como quem aconchega do peito uma pomba assustada.
Depois, era triste de vêr-se como aquelles poucos guardas do aljube, porque não percebiam o regougar dos saxonios, em vez de palavras eram intimados a pontapés para que entrassem no carcere devoluto da ingleza. E, todos elles--digamol-o com dôr de portuguezes e de catholicos--lá ficaram fechados, apalpando as partes contusas.
Antes do arraiar da aurora, uma escuna ingleza balouçava-se defronte do castello da Foz, á bocca da barra. Assim que amanheceu, as velas trapejavam com prospero vento.
Isabel, ainda prostrada no seu beliche, pedia ao esposo que a convencesse de que ella não estava louca nem sonhava. E elle, o doudo de paixão e alegria, lá conseguiu convencel-a de que o Deus do céo e da terra, que era o Deus de ambos, a tinha alli bem acordada para a suprema felicidade d'este mundo.
Que fez o vigario geral depois de tão insolito ultrage? Consultou os inquisidores de Coimbra. Os inquisidores de Coimbra consultaram o conselho geral. O conselho geral consultou o rei. Fez-se um profundo silencio. Ninguem fallou mais d'este caso, senão eu.
[90]Já que estou com as mãos nas cinzas ensanguentadas do santo officio, hei de dizer ao leitor a razão que assistiu aos inquisidores que em 1601 mandaram ensambenitar e queimar uma rica e gentil dama, chamada Violante Mendes e seu marido Francisco Borges, ambos de Chaves.
E, trasladando a denunciação, que é a primeira peça do processo, dou aos curiosos noticia do modo como semelhantes instrumentos se lavraram.
Estamos em Chaves, no dia 28 de maio de 1591, em casa do vigario geral, onde são inquiridos os denunciantes, que são tres, e todos sacerdotes. O escrivão James de Moraes escreve o seguinte:
«Anno do nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de 1591, aos 28 dias do mez de maio do dito anno, na Villa de Chaves, nas pousadas do licenciado Gaspar da Rocha Paes, vigario geral no temporal e espiritual n'esta vigararia comarca da dita villa, pelo ill.mo snr. D. fr. Agostinho de Jesus, pela mercê de Deus e da santa sé apostolica, arcebispo, senhor de Braga, primaz, etc. Presente elle appareceu o padre João de Mattos, morador [91] em a dita villa, o qual trouxe a mostrar a elle vigario uma peça de marfil (marfim), que mostrava ser de feição de uma bezerrinha, e sómente lhe faltava as pernas, e braços que estavam quebrados, e assim os corninhos espontados, o qual disse que a achára na mão de André, moço de 16 annos, filho de João Rodrigues do Campo, arrabalde d'esta villa; que por lh'a vêr na mão lh'a pediu que lh'a mostrasse, o qual lh'a mostrou; e por a dita bezerrinha ser tal como dito é, e além d'isso cheirar muito a almiscar, e parecer estar em parte...[11], e lhe não parecer bem, lh'a trazia a mostrar por a pedir ao dito moço André. O qual André presente disse que era verdade que aquella peça, indo elle André hoje n'este dia a casa de Pero Fernandes, escrevente d'esta villa, á escóla, para o ensinar a lêr, a achou debaixo de uma arca, e ao tempo que a achou sem ninguem o vêr a guardou, e levou, e andou mostrando a algumas pessoas entre as quaes foi ao dito padre João de Mattos, e a Mathias de Barros cavalleiro d'esta dita villa; e lh'a tomaram. E logo outro sim appareceu Pedro moço de 16 annos, filho do dito Pero Fernandes escrevente acima dito, e por elle foi dito que era verdade que aquella bezerrinha [92] elle dito Pedro a achára na rua do Sol, d'esta villa, no meio da rua defronte da casa de Francisco Borges, em que hora (agora) elle vive, que é de Diogo Ferreira d'esta mesma villa, o que poderia haver um mez pouco mais ou menos, e lh'a viu achar Lazaro, filho que ficou de Gaspar de Magalhães. E depois de assim a achar a levára para casa como dito tem sem outra cousa alguma, e a trazia em casa sem entender o que era; e andava ahi em casa por detraz das arcas. E estando assim para se fazer este auto chegou o padre Gaspar Dias, e o padre Antonio de Magalhães, ambos d'esta dita villa, e disseram, que estando ambos juntos, e vindo pela porta do dito Francisco Borges acima dito, estando Gaspar Teixeira Chaves á sua janella, lhes disseram elles que se achára uma bezerra, não sabendo onde, como na verdade não sabiam; e, estando n'esta pratica da dita bezerra, disse uma moça que se chama Maria de Villar de Nantes, e criada do sobredito Francisco Borges, e outra moça pequena, outro sim criada de casa por nome Madanella, disse a grande rindo-se: Senhores, isso é de cá. E elles ambos passaram seu caminho sem responder nada. E logo veio atraz d'elles a dita moça Madanella, e elles a chamaram, e não quiz vir, e foi a casa do dito Francisco Borges, e tornou logo a sahir, e [93] veio ter com elles ditos padres, e pediu a elle dito padre Antonio de Magalhães que lhe desse a vaquinha, e elle lhe perguntou se era sua, e a dita moça que sim era sua, que viera de Lisboa e que a trazia o menino na mão, e que em algum tempo elle dito padre Gaspar Dias ouviu dizer aos antepassados que uma Branca Manoel em Lisboa fôra queimada, a qual fôra bredona (?) de Violante Mendes mulher do dito Francisco Borges, e o vinha denunciar e dizer. Estando assim elles ditos padres, presente elle vigario, chegou a dita moça Madanella duas vezes, e na primeira disse a elle vigario que a sobredita Violante Mendes sua senhora mandava pedir a vaquinha que era do seu menino; e da segunda que tornou disse, que a sobredita sua senhora a tornava a mandar que por amor de Deus lhe désse a vaquinha que era do seu menino que a perdera havia quatro dias. E de tudo mandou elle vigario fazer este auto, e assignou com os ditos padres aos quaes todos tres deu juramento dos Santos Evangelhos que n'esta parte tivessem todo o segredo como cousa do santo officio, e elles assim o prometteram e juraram e assignaram que a tudo se achavam presentes ás perguntas que se fizeram aos sobreditos moços, que elle vigario não quiz estivessem presentes ao fazer do auto, nem que assignassem por não serem [94] capazes de segredo. E eu James de Moraes o escrevi, e a sobredita vaquinha ficou em poder d'elle vigario. E eu sobredito escrevi.==Rocha, Gaspar Dias, Antonio de Magalhães, João de Mattos.»
Ahi está o corpo de delicto que levou á morte um homem e uma senhora que tinham um filhinho, o qual brincava com uma bezerra de marfim sem pontas nem pernas. Tres ungidos do Senhor, tres padres denunciantes lá estão na gloria eterna revendo-se na bemaventarança das duas almas que elles purificaram no fogo.
[11] Palavra inintelligivel: parece dizer degolada.
Ha 153 annos que um bando de estudantes, em Coimbra, acaudilhado pelo mais intrepido e de peores entranhas, começando por espancar os archeiros e rondas nocturnas, acabou por matar quem lhe offerecesse reacção. Chamavam-se do e [95] não da Carqueja, como escrevem todos os que relembram a funesta existencia d'aquelles rapazes perdidos. Carqueja e Estopa haviam sido, por aquelle tempo, dous facinorosos de Vizeu, chefes dos salteadores. Em honra do primeiro, escolheram os estudantes o sinistro baptismo do seu bando. E é de notar e deplorar que alguns da quadrilha eram padres que cursavam theologia. Depois de repetidas atrocidades, o governo, a rogos dos habitantes de Coimbra e lentes da universidade, enviou a marchas forçadas tropa de infanteria com alguns esquadrões que chegaram de madrugada e colheram de sobresalto os criminosos.
Alguns, bem que não reagissem, entraram acutilados no carcere, e foram depois morrer no Limoeiro, em Lisboa. Aqui damos a relação dos seus nomes:
O capitão do bando era da Terra da Feira; chamava-se Francisco Jorge Ayres. João Pedro Ludovice, natural de Lisboa; o padre Vicente Gomes Alvares Lobo, do Algarve; Manoel Antonio Ramos, José Rodrigues Esteves, José Antonio de Azevedo, Antonio da Costa e Silva, o Pescada; o padre José da Silva Couto, Miguel Pereira Coelho, Roque Monteiro Paim, José de Horta, D. Manoel Alexandre da Costa, todos de Lisboa; Jacintho de [96] Figueiredo, natural de Almeida; José Pereira Manojo, brazileiro; o padre Francisco Pereira Goes, natural de Pereira; José da Cunha Borges, do Alemtejo; Pedro Gomes Barbosa, de Salvaterra; Lourenço Pimenta, Antonio Maceiro, Thomaz da Silva, João dos Santos, todos de Coimbra. Estes foram os presos conduzidos a Lisboa, afóra um estudante de Aveiro, cujo nome não sabemos, e um filho do confeiteiro de Loures, muito conhecido n'aquelle tempo. Um dos mais façanhosos, Francisco de Sá, natural de Evora, pôde evadir-se de Coimbra para aquella cidade, e d'alli para Hespanha. O juiz dos orphãos de Evora, a quem fôra recommendada a captura de Francisco de Sá, procedeu negligentemente, d'onde lhe resultou ir por ordem de el-rei carregado de ferros para o Limoeiro.
O estudante Francisco Jorge Ayres, capitão da malta, foi degolado no Pelourinho de Lisboa em junho de 1722.
Antonio da Costa e Silva, de alcunha o Pescada, e José de Horta morreram na cadêa.
A maior parte dos outros cumpriu sentença de degredo.
Entre os presos havia um poeta, D. Manoel Alexandre da Costa, neto do primeiro conde de Soure, filho de D. Rodrigo da Costa, viso-rei da [97] India. Este fidalgo, ao saber que seu filho fôra preso na cáfila dos scelerados, adoeceu de vergonha, e morreu n'esse mesmo anno de 1722, aos 16 de novembro, quando o filho ainda estava no Limoeiro, esperando a sentença.
O protector deste moço era o marquez de Marialva, a quem o estudante, desde que o prenderam relatou em toantes, á moda do tempo, as suas desventuras. É longo o poema, e fastidioso, sem impedimento do interesse inspirado pela tragedia do assumpto. Não me dispenso, porém, de trasladar as quadras que dizem mais ao intento. Refere o incidente imprevisto da prisão:
Até aqui, não ha razão para grandes piedades; mas, ao diante, as trovas exhoram a compaixão; e o caso foi que o marquez de Marialva salvou do degredo o supplicante poeta; mas não pôde arrancar o viso-rei das presas do opprobrio que o mataram.
Quem visse dezesete annos depois D. Manoel Alexandre da Costa, obeso doutor em canones, prior da igreja de Santa Cruz no Minho, e principal da santa igreja de Lisboa, devia lembrar-se do socio bastantemente prendado do rancho do Carqueja, e recommendar á justiça de Deus os juizes que degolaram Francisco Jorge Ayres, e absolveram o afilhado do marquez, e sobrinho do segundo conde de Soure!...