Title: Viriatho: Narrativa epo-historica
Author: Teófilo Braga
Release date: October 9, 2008 [eBook #26850]
Most recently updated: January 4, 2021
Language: Portuguese
Credits: Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
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OBRAS COMPLETAS
ALMA PORTUGUEZA
VIRIATHO
ALMA PORTUGUEZA
Rhapsodias da grande Epopéa de um pequeno Povo
I. |
VIRIATHO—Narrativa epo-historica. | ||||||
II. |
FREI GIL DE SANTAREM—Drama-lenda. | ||||||
III. |
LINDA IGNEZ—Tragedia classica
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IV. |
OS DOZE DE INGLATERRA—Poema. | ||||||
V. |
O PEITO LUSITANO—Rhapsodias cyclicas das Navegações. | ||||||
VI. |
CAMÕES—Poema
epo-lyrico. |
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VII. |
GOMES FREIRE—Drama em cinco actos. |
ALMA PORTUGUEZA
VIRIATHO
Narrativa epo-historica
POR
THEOPHILO BRAGA
PORTO
LIVRARIA CHARDRON
Lello & Irmão, editores
1904
Todos os direitos reservados.
Porto—Imprensa Moderna
A Alma portugueza caracterisa-se pelas manifestações seculares persistentes do typo anthropologico e ethnico, que se mantêm desde as incursões dos Celtas e luctas contra a conquista dos Romanos até á resistencia diante das invasões da orgia militar napoleonica. São as suas feições:
A tenacidade e indomavel coragem diante das maiores calamidades, com a facil adaptação a todos os meios cosmicos, pondo em evidencia o seu genio e acção colonisadora;
Uma profunda sentimentalidade, obedecendo aos impulsos que a levam ás aventuras heroicas, e á idealisação affectiva, em que o Amor é sempre um caso de vida ou de morte;
Capacidade especulativa prompta para a apercepção de todas as doutrinas scientificas e philosophicas, como o revelam Pedro Julião (Hispano), na Edade Media, Francisco Sanches, Garcia d'Orta, Pedro Nunes e os Gouvêas, na Renascença;
Um genio esthetico, synthetisando o ideal moderno da Civilisação occidental, como em Camões, reconhecido por Alexandre de Humboldt como o Homero das linguas vivas.
O cantor das grandes Navegações foi quem teve a mais alta comprehensão do genio nacional; a ALMA PORTUGUEZA achou no seu Poema a incarnação completa. Quando Camões descreve nos Lusiadas, geographica e historicamente Portugal, referindo-se á tradição da antiga Lusitania, relembra o vulto que symbolisa a sua vitalidade resistente, diante da incorporação romana da peninsula hispanica:
Eis aqui, quasi cume da cabeça
Da Europa toda, o reino Lusitano,
Onde a terra se acaba, e o Mar começa,
E onde Phebo repousa no Oceano.
Esta é a ditosa Patria minha amada,
Esta foi Lusitania...................
D'esta o PASTOR nasceu, que no seu nome
Se vê que de homem forte os feitos teve;
Cuja fama ninguem virá que dome,
Pois a grande de Roma não se atreve.
(Cant. III, st. XX a XXII.)
Deixo ... atraz a fama antiga
Que co'a Gente de Rómulo alcançaram,
Quando com VIRIATHO na inimiga
Guerra romana tanto se afamaram.
Tambem deixo a memoria, que os obriga
A grande nome, quando a levantaram
Um por seu Capitão, que, peregrino,
Fingiu na Cerva espirito divino.
(Cant. I, st. XXVI.)
No tempo do grande épico ainda se não tinha perdido o conhecimento da relação de continuidade historica entre Portugal e a antiga Lusitania, mais vasta e por isso mais violentamente retalhada pela administração imperial romana. Esse conhecimento, embora confundido com as lendas syncreticas dos falsos Chronicões, influiu na consciencia do nosso individualismo ethnico e nacional. O esforço de desnacionalisação de Portugal pela politica da unificação iberica, veiu até reflectir-se nos proprios historiadores patrios, levando-os a considerar Portugal uma formação recente, adventicia, sem individualidade, e a Lusitania quasi como uma ficção banal dos eruditos da Renascença! Mas o caracter persistente do typo portuguez, a resistencia tenaz contra todos os conflictos da natureza e pressões da vida, que tanto o distingue entre os povos modernos, é a prova manifesta da raça lusitana como a descreveram os geographos gregos e romanos. Nas luctas pela liberdade territorial a Lusitania deixou nos historiadores greco-latinos o ecco da sua resistencia indomavel, sobretudo no Cyclo das Guerras viriathinas, que se reaccenderam ainda sob o commando de Sertorio.
Pela sua genial intuição teve Garrett a comprehensão d'este caracter resistente e soffredor da nossa raça lusitana: «Os Portuguezes são naturalmente soffredores e pacientes: muito arrochada hade ser a corda com que de mãos e pés os atam seus oppressores, antes que rompam em um só gemido os desgraçados. Um murmurio, uma queixa... nem talvez no cadafalso a soltarão! Vendem-nos os desleaes pegureiros de quem nos deixamos governar; vendem-nos, enxotam-nos para a feira a cajado e a latido e mordedella de seus mastins; e nós vamos e nem gememos. Se um clamor de queixumes, se uma voz de desconfiança acaso surde, aqui os clamores de rebeldes, os alcunhas de demagogos... e a nação (o rebanho, direi antes) que se resigna e soffre, e continua a caminhar para o exicio! Tal é, com as differenças de variados nomes e datas, a historia de Portugal quasi desde que a revolução ou restauração (restauração seria?) de 1640 fez da nação portugueza o patrimonio de meia duzia de familias privilegiadas e de seus satelites e parasitos.» (Carta de M. Scevola, 1830.)
Symbolisamos esta resistencia, vivificando o typo de VIRIATHO, reconstruindo poeticamente as situações laconicas referidas nos historiadores classicos; representamos artisticamente essa fibra que ainda hoje pulsa em nós, e pela qual, perante a marcha da Civilisação se affirma através dos cataclysmos politicos a ALMA PORTUGUEZA.
Assuetum malo Ligurem, disse Virgilio (Georg., II, 102) d'essa poderosa raça, de que o Lusitano foi um dos ramos mais activos; as terriveis desgraças que nos têm acompanhado desde a romanisação da peninsula até á subserviencia ingleza, como acostumados ao mal, não nos têm alquebrado: não apagaram a constituição da Nacionalidade, não embaraçaram as iniciativas dos Descobrimentos maritimos; não abafaram a expressão das altas capacidades estheticas. Pela expressão artistica se fixou a lingua portugueza, orgão reconhecido da nacionalidade, cujo sentimento se manteve pela idealisação poetica, em Camões. Seja ainda esse recurso poetico o meio de acordar a consciencia do passado de um Povo, no qual estão implicitos a sua rasão de ser presente, e o ideal do seu destino futuro.
Um dos fins da Arte moderna é a representação da vida dos povos e dos aspectos da natureza dos paizes longinquos, e tambem a evocação das edades passadas, vencendo por este exotismo o apagamento das impressões de tudo quanto nos cérca; assim se inicia a phase esthetica constructiva. Pela evocação da Raça penetra-se o sentir da fibra nacional, e por esta o drama das luctas das Instituições que se fundaram, o vinculo das Tradições, que foram germens e impulsos da missão historica e das creações artisticas que reflectiram a consciencia da collectividade.
No anno de DCIII da éra da fundação da Cidade de Roma, sendo Consules L. Licinio Lucullo e A. Postumio Albino, acontecimento inopinado suscitou nos espiritos um extraordinario alvorôço: O Senado fôra convocado repentinamente, com urgencia, sem ser pela fórmula usual de um Edito, mas pela peremptoria chamada nominal ordenada pelo velho e integerrimo Catão, denominado o Censor.
A gravidade do acontecimento forçára por certo o venerando presidente do Senado a simplificar essa fórmula da convocação? Algum grande crime perturbava ou ameaçava o governo da Republica! A curiosidade era immensa, e antecipadamente sabia-se que a voz austera de Marco Catão, o Censor, se ergueria no Senado contra o patricio o mais opulento dos romanos, que dispunha de riquezas bastantes para corromperem os juizes aos quaes se confiasse o seu julgamento.
Galba! era este o nome que soava de bocca em bocca, mais com inveja do que hostilidade, desde que o Tribuno do Povo Aulo Scribonio o citára para comparecer em justiça pelas depredações e carnificinas que praticára contra as Tribus e cidades tributarias da Lusitania, que como Provincia senatorial estava sob a égide da lealdade romana.
Era de um crime contra a magestade do Povo romano, que versava a accusação do Proconsul Servio Sulpicio Galba, ao qual fôra confiado o governo e administração da Hespanha Ulterior, essa parte occidental da peninsula em que se comprehendia a vasta Lusitania. Ninguem se atrevia a pôr em duvida a valentia do tribuno militar, que fôra á Hespanha com a missão especial de combater e submetter os Celtiberos; mas, sendo conhecida no mundo a gloria do Senado, que, vae para quatro seculos, dirige com um tino incomparavel as guerras de incorporação dos povos barbaros, como poderá consentir que no exercicio d'essa missão civilisadora lhe infamem a inviolavel auctoridade?
A voz de Catão ergueu-se no meio de um religioso silencio com a acuidade de um látego de fogo:
—Como velho octogenario, ninguem comprehende como eu o poder dos Costumes dos Antepassados representados hoje no Senado, como um tribunal permanente, de acção executiva, e com consciencia das necessidades publicas expostas pela palavra em discussão aberta. É d'esses Costumes dos Antepassados que deriva a Soberania com que nós todos aqui presentes, dando fórma á opinião publica, intervimos no organismo social de Roma. Diante de mim, e entre os trezentos membros aqui reunidos, vejo ainda os antigos chefes da Familia romana, os Patres, que pela edade fôram os Seniores, os quaes deram o nome a este Tribunal sacrosanto de Senado; tambem vejo os Conscripti, que a pouco e pouco fôram chamados a completarem o numero, que a morte ou a extincção das familias ia diminuindo. Emfim, aqui estamos constituidos tanto a Ordem senatorial como a Equestre, para deliberarmos sobre o que interessa á Republica. D'entre vós, uns exercem um poder temporario, e outros são inamoviveis desde que se reconheceram os seus serviços, e por sua vida incorruptivel são proclamados Censores. É pois no exercicio d'esta dignidade que eu fallo e conto ser ouvido, porque foi confiada á protecção da minha vigilancia essa uberrima provincia da Hespanha. Tendo eu, como Censor, cooperado sempre, todos os cinco annos, pela confecção do registo do Censo, na nomeação dos Senadores tirados dos antigos magistrados, raro será aqui o Senador que não deva á minha confiança a honra d'essa escolha confiada a Senadores consulares, a Senadores pretorianos, segundo as magistraturas, e cargos curues, em que se dignificaram. E tendo eu exercido este direito supremo dos Censores, compete-nos mais um, que é o da exclusão dos indignos do Senado...
Sentiu-se um vago rumor entre os trezentos membros da assembleia; Catão, quasi sem notar que o seu longo exordio já fatigava a attenção, proseguiu:
—É esse direito, que hoje me traz aqui, apoiado pela propria consciencia e pelo meu juramento. Eu bem sei que as attribuições dos Censores são constantemente diminuidas, e que virá tempo em que desapparecendo esta magistratura, irromperão as guerras civis. Deixemos o futuro, e perdoae as digressões proprias da provecta edade. Em gravissimas circumstancias, sabidas por nós todos, foi Servio Sulpicio Galba mandado á Hespanha como Pretor. E se a situação difficil reclamava todas as virtudes militares para a magestade de Roma se mantêr illeza, mais necessario era o espirito de uma intelligente politica, para perpetuar por bons tratados o que a espada nem sempre conseguiu. Galba deu primeiramente uma prova deploravel de militar incompleto, quando invadindo a Lusitania, perdeu sete mil e quinhentos legionarios, indo refugiar-se em uma situação ignobil em Carmona. Destemido, mas inconsiderado, é este homem por isso perigoso para a Republica. E ainda mais: é de um caracter falso, violando com descaro a palavra de um Tribuno, que vale tanto como um tratado escripto, rebaixando perante o mundo o poder romano sempre inquebrantavel, quando se trata de um dever moral. É certo que as trinta e seis cidades tributarias da Lusitania, sempre irrequietas e luctando pela sua autonomia e independencia local, tambem violaram o tratado concluido com Attilio, infestando as Colonias romanas, e as Cidades federadas e immunes, favorecidas com o regimen municipal. N'esta angustia, em que Roma tinha de impôr a sua auctoridade, bem comprehendera que já não devia empregar o systema da devastação; mas Galba, desgraçadamente não comprehendeu este pensamento governativo! Mandado á Hespanha, ahi chegou com um exercito cansado e exhausto; em vez de limitar-se á defeza immediata dos subditos romanos, encetou logo combates contra as tribus lusitanas, que nas suas emboscadas continuas, em assaltos repentinos o fôram estafando e enfraquecendo até encontrarem o momento azado em que se atreveram a dar-lhe uma batalha campal, em que ficaram trucidados sete mil legionarios. Os brios de Galba ficaram diminuidos perante a estupenda calamidade; Galba teve de collocar-se na defensiva, aproveitando a epoca das grandes invernias para se fechar cautelosamente nos quarteis de Conistorgis! As Aguias romanas, como bem diria ahi qualquer poeta satirico, estavam fechadas na capoeira.
O Senado permaneceu imperturbavel diante da ironia caustica do orador, que continuou no mesmo espirito:
—E de facto Galba, durante essa inacção, chocava uma tremenda infamia! Logo no principio da primavera do anno DCIII da fundação da Cidade eterna, que ficará affrontosamente assignalado nos Fastos Consulares, Galba poz-se em marcha para a Lusitania, devastando inconsideradamente Cidades immunes ou federadas, estipendiarias ou contributas d'aquella opulenta região, d'onde Roma tem haurido montanhas de prata. Esses povos da Lusitania, embora tenazes e inquebrantaveis, pelo natural bom senso reconheceram que era melhor gosarem os privilegios que Roma lhes concedia, do que envolverem-se em uma guerra interminavel, que com certeza visaria á sua destruição. Resolveram mandar a Galba enviados com a declaração, que se confessavam arrependidos da revolta a que tinham sido arrastados, e promptos a cumprirem integralmente o tratado firmado com Attilio. A uma tal proposta, Galba manifestando-se benevolente, elle mesmo respondeu aos enviados das tribus lusitanas: «Que era o primeiro a reconhecer a força das circumstancias, que os obrigára pela tremenda crise da fome e da miseria a quebrantarem a lei romana, e a entregarem-se por vezes a incursões e rapinas em logares que gosavam quasi os direitos da metropole. Mas, em vez de tomar directamente a responsabilidade d'esses actos, e sabendo a causa intima que os motiva, eu farei que finde a situação violenta das Cidades estipendiarias, acabando com os tributos pezadissimos que as oneram, eximindo-as dos pagamentos ás legiões romanas e ás provisões de viveres fornecidos ás tropas em passagem. Para se effectuar isto, passareis á cathegoria de Cidades municipaes, com o vosso territorio livre, sem pagamento de tributos, com magistrados eleitos livremente, e fóra da jurisdicção do governador da Provincia.» Diante d'esta perspectiva, Galba, traiçoeiramente apontou as terras que lhes reservava, e que dividia em tres cantões, e tratou de convocar para um determinado dia na margem direita do Tejo as tribus lusitanas, exigindo como prova da mutua confiança que se appresentassem desarmadas, para que em Roma se não dissesse, que a generosa concessão do Jus italicum era extorquida.
Catão, como que vencendo uma oppressão de momento, salientou o facto monstruoso:
—Á convocação feita por Galba concorreram os povos confiados na palavra que representava o poder romano; e logo que Galba apanhou as tribus desmembradas e desarmadas na planicie para onde as convocára, envolveu-as nas Legiões que subitamente se appresentaram fortificando a linha dos Hastatos e Triarios com toda a Cavalleria, que atropellando a multidão inerme, fez passar ao fio da espada para mais de trinta mil pessoas, entre homens validos, velhos e crianças, e até mulheres! Nada mais execrando, porque esta traição vilissima deslustra as victorias romanas! E se este instincto traiçoeiro é a base da sua tactica de guerra, é egualmente a feição do seu caracter no tempo de paz; e com taes recursos se defenderá da justiça implacavel, perante a qual seja chamado a responder, porque no meio de tantas carnificinas e depredações, Galba apoderou-se de assombrosas riquezas, com que de certo conta eximir-se de toda a pena. Mas a deshonra do individuo, ou o seu castigo, não ressarce os males da Patria! O poder de Roma está n'este momento abalado na Lusitania, que se debate em um levantamento geral contra uma tão inaudita monstruosidade. E se eu, como Censor, accuso o homem indigno, e defendo os meus clientes de Hespanha contra o sanguinario e iniquo prevaricador, perante o Senado tambem reclamo que um General intelligente com novas tropas vá promptamente restabelecer a paz e o direito ás povoações alvoroçadas da Lusitania.
A voz de Catão, o Censor, fôra escutada com assombro. Elle tinha alliada á veneração devida aos seus outenta e cinco annos de edade uma longa vida intemerata, que triumphára brilhantemente de todas as calumnias, com que por vezes procuraram minar o seu ascendente moral.
N'esta mesma sessão memoranda do Senado resolveu-se que immediatamente fôsse mandado a Hespanha o Pretor Caio Vetilio com novas Legiões e Cavalleria para reforçar o Exercito provincial. Determinou mais o Senado, que Servio Sulpicio Galba e o Consul Lucio Licinio Lucullo regressassem a Roma para prestarem contas estrictas pelos seus roubos, expoliações e crueldades affrontosas.
O Tribuno da plebe Aulo Scribonio, estimulado pela accusação de Galba no Senado, convocou o povo de Roma para o Forum, para pedir-lhe o julgamento do Proconsul pelo crime de infanda traição. O concurso foi enorme, tanto mais que desde muitos annos a competencia judiciaria dos Concilios estava cerceada pela delegação d'esses poderes a um jury ou Conselho perpetuo.
O Tribuno fallou á multidão, com nitidez e segurança:
—Sabeis que ao Senado, como corpo dirigente da Republica, pertencem os poderes sobre o Culto, sobre a administração das riquezas do Estado e principalmente a administração das Provincias. Competia-lhe por isto a iniciativa da accusação de Galba; mas é obrigação do Tribuno impulsionar a acção publica, sobretudo quando se trata do crime de alta traição, como agora, em que é réo Servio Galba! Eis o facto na sua espantosa crueza: numerosas cidades da Lusitania, que estavam na situação angustiosa de estipendiarias, vexadas pelos pezados impostos extorquidos pelos magistrados romanos, tinham requerido ao Senado para lhes ser concedida em premio de sua fidelidade a situação de confederadas ou immunes, podendo assim governar-se pelas suas leis consuetudinarias, pelas suas magistraturas locaes, sem comtudo aspirarem ao goso dos direitos politicos de cidadãos romanos. Era a base da pacificação da Lusitania! O Proconsul Galba servindo-se da magestade do povo romano garantindo esse pedido, convocou as povoações desarmadas para lhes communicar o Edito do Senado que o legislava, e envolvendo-as nas suas legiões trucidou traiçoeiramente para mais de trinta mil pessoas, em que a par dos homens validos estavam velhos, crianças e até mulheres!
O povo permaneceu mudo, sem mostrar commoção alguma pelo quadro da horrenda carnificina. O advogado Fulvio Nobilior, que fôra encarregado da defeza de Galba, notou esta circumstancia da insensibilidade moral da plebe. O Tribuno continuou:
—Para o julgamento d'este attentado contra a magestade do Povo romano, bem sei, é preciso um exame dos factos, e por felicidade das nossas instituições sempre perfectiveis, o processo de Galba será formado pelos Questores, que appresentarão ao Concilio da plebe os seus quesitos, sobre os quaes effectuareis a votação. O que outr'ora fôra um motivo de discordia entre o Povo e o Senado é hoje uma harmonia social, por que se reconhece, que assim como os negocios judiciaes carecem de sciencia juridica para serem tratados, os assumptos de jurisdicção criminal não pódem ser sentenciados senão mui reflectidamente. E se a lei tribunicia Calpurnia avocou estas questões a um jury perpetuo, o Povo sem perder a sua prerogotiva delegou este poder judiciario aos Questores. Que Servio Sulpicio Galba seja processado pelo Conselho dos Questores, sendo as suas conclusões appresentadas á vossa deliberação no mais breve lapso de tempo.
Depois de se ter calado o Tribuno, appresentou-se diante do povo, que enchia o Forum, o advogado Fulvio Nobilior, conhecido pela sua extrema argucia, por um espirito sarcastico, que chegava a tocar as raias do cynismo. O seu poder nos tribunaes consistia em fazer desvairar as opiniões, em actuar nas consciencias suscitando a dissolução moral, tornando ridiculos os sentimentos de piedade ou de humanidade. Era sempre ouvido com interesse; a multidão comprehendia-o. Quando veiu á barra, um rumor surdo foi o prenuncio de um grande silencio; o seu discurso ficou memoravel:
—É accusado o Proconsul Servio Galba de latrocinios na Hespanha Ulterior, n'essa região, que assenta sobre jazigos de ouro e prata, a Lusitania! O que tem a fazer um homem culto entre gente barbara, senão levantar do chão as joias que vê calcadas inconscientemente? Tambem da Hespanha Citerior, acabado o seu governo de dois annos, regressa a Roma o Consul Lucio Licinio Lucullo, carregado de assombrosas riquezas, e não foi accusado de latrocinio, nem de rapinas ou extorsões. E por que, tendo os dois magistrados seguido os mesmos processos administrativos? A rasão é evidente. É por que Lucullo soube captar as sympathias, compartilhando o seu ouro e prata, e gemmas preciosas com os patricios influentes, que ahi têm assento no Senado; e para desviar a ideia dos roubos, teve o pensamento de edificar um Templo á Deusa Felicidade, a quem attribuiu a posse de tantas riquezas! Servio Galba só commetteu um erro:—quiz tudo para si, dando apenas algumas migalhas aos legionarios, que o acompanharam nas depredações! D'ahi o odio dos Tribunos da Plebe. Mas, para que dispender aqui o tempo com uma moral especulativa, se esses pretendidos roubos ou concussões fazem que Roma regorgite em riquezas espantosas, trazidas d'essa Hespanha inesgotavel á avidez do estrangeiro? Só lembrarei, que quando Roma se viu assaltada pelos Gaulezes, difficil foi ajuntar mil libras de ouro para pagar a imposição de guerra! E desde que fômos a Hespanha, sete annos antes da terceira Guerra punica, 16:800 libras de ouro já se achavam no fundo do thezouro romano! E no começo da Guerra social, o Erario regorgitava com 1:620$829 libras de ouro! Quem não comprehende que a riqueza de Roma não lhe vinha do trabalho agricola e fabril, mas da guerra em paizes ricos? Foi esta sempre a nossa politica. Combater, vencer, para civilisar, pagando-nos por nossas mãos d'este beneficio. Desde que as Legiões romanas pisaram o sólo da Lusitania, conheceu-se que o ouro nativo ahi abundava em assombrosos filões, e em palhetas nas areias do Tejo! Nada mais claro para um Governo intelligente:—submetter esse povo, fazendo-o trabalhar ao serviço de Roma na exploração das minas de ouro e prata, e de convertermos esses metaes em ornatos pessoaes, baixelas, e sobretudo em moedas, que facilitam o commercio do mundo! Evidentemente Roma é a civilisadora do orbe! Quando Scipião Africano veiu receber em Roma a apotheose pelas suas victorias sobre os Carthaginezes e Iberos, entregou ao Erario de Roma trezentas e dez arrobas de prata lavrada, pilhada em outenta villas e cidades da Iberia! Mas não resam os Annaes romanos da que o general reservou para si. E o seu successor, Lucio Cornelio Lentulo? Tambem depositou no Erario mil e trezentas arrobas de prata lavrada. É incalculavel a quantidade de arrobas de prata que os Consules e Pretores, que administraram as duas Hespanhas, transferiram das suas prezas para Roma. E os celebrados dinheiros de Osca? Porém, essa riqueza só chegava ao Povo romano em alguma festa publica de apotheose; pelo processo moderno, o povo é mais favorecido, porque essas riquezas pilhadas na Iberia e na Lusitania são dispendidas em Roma pelos seus detentores na vida faustosa com que tornam a Cidade a capital da Civilisação do mundo. E depois, de quem tomou Galba as riquezas que está espalhando em Roma? De ladrões despreziveis e abjectos, que occupam o sólo da Lusitania, raça de escravos, impando de ignorancia e orgulho, indignos do bello céo que os cobre. Eis ahi o crime. Expoliar ladrões, do que possuem estólidamente, e enriquecer Roma, que mais será preciso para a apotheose? Galba bem merece do Povo. Fique ao Senado a gloria de condemnar o valente e magnanimo Proconsul pela affectada questão de humanidade, da qual nada consta nos sublimes Annaes das nossas glorias militares, que serão sempre o assombro do mundo! E, que justiça é esta, que accusa Galba, e deixa no doce olvido o Consul Lucio Licinio Lucullo, que passou tambem á Lusitania, trucidando os Vacceos a titulo de vingar os Carpetanos, e mandando a um signal dado passar a fio de espada todos os habitantes da cidade de Caucia? Se, como dizem os nossos jurisprudentes, a Justiça é só uma, os historiadores tambem proclamam, que ha uma só gloria militar:—Vencer! Se hesitarmos nos meios... Roma perderá o imperio do mundo.
O Povo comprehendeu as cynicas palavras de Fulvio Nobilior; e até o proprio Tribuno, cumprido o dever do seu cargo, concordava no fôro intimo com essa doutrina, reveladora de uma crise da consciencia nacional, em que se preparava para futuro não remoto a transformação das instituições sociaes e politicas de Roma.
O Consul Vetilio partira a toda a pressa para a Hespanha Ulterior, a reforçar o exercito provincial; temorosas noticias corriam pela Cidade, de um levantamento geral das cidades da Lusitania, que visava a sacudir o jugo de Roma, tornado odioso e incomportavel pela traição execranda de Galba. O Senado confiava na valentia e intelligencia estrategica de Caio Vetilio, sem desconhecer a resistente tenacidade inquebrantavel das tribus lusitanas, que apoiavam a sua independencia individual em um territorio livre, tendo por grito de guerra:
—Vencer ou morrer!
Presentimentos aziagos se espalhavam sobre o exito da expedição de Vetilio. E emquanto espantosos successos se estariam passando longe, muito longe, na parte occidental da Hespanha, no incendio da insurreição, o detestavel Servio Sulpicio Galba vinha compellido á barra do Senado appresentar a defeza dos crimes de que fôra accusado por Catão o Censor. Elle bem sabia que deslustrára pela má fé a dignidade do Povo romano, mas confiava no poder da sua eloquencia prestigiosa.
Galba receou por um momento a condemnação, e preparou a defeza espalhando pelos Senadores e funccionarios de Roma os blocos de prata e ouro em barra, que trouxera das minas da Peninsula, onde tinha para mais de quarenta mil homens entregues ao trabalho forçado da exploração d'esses jazigos, que rendiam vinte mil dracmas argenteas por dia. E como se não bastassem as riquezas que espalhou com profusão pelos juizes, dirigiu-se-lhes ao sentimento, appresentando-se no tribunal com os seus dois filhos. Lida a accusação, foi-lhe concedida a palavra, escutada attentamente. Era um dos casos mais emocionantes de Roma. Será condemnado? será absolvido? Faziam-se apóstas, aproveitando esse lance para um jogo descarado. A palavra eloquente de Galba era conhecida e admirada.
Perorando:
—Todos vós estaes bem lembrados, que sob o consulado de Licinio Lucullo e de Aulo Postumio, um terror excessivo se apoderou dos Romanos por causa das tremendas derrotas dos nossos legionarios na Hespanha, derrotas infligidas pelos Celtiberos, por fórma, que não havia togados, nem pretorianos que se inscrevessem para acudir á remota região em que fraquejava o Poder de Roma. Scípião Africano revoltou-se contra tanta covardia, offerecendo-se para ir combater e subjugar essas populações indomitas, que luctavam pela independencia da sua terra. Passada a apparente pacificação, fui mandado como Pretor á Hispania. Eu mesmo então vencido pelos Lusitanos em uma batalha campal, consegui salvar-me com um troço de cavalleiros entre penhascos! Ah, foi alli, n'essa extrema angustia que jurei, que prometti á gloria dos Quirites o exterminio dos Lusitanos, d'essas tribus irrequietas, que são hoje o unico embaraço para que a soberania de Roma se estenda imperturbavel sobre toda a riquissima peninsula da Hispania. Lucio Minutius veiu a toda a pressa acudir á minha situação desesperada. Bem sabeis com que altivez e soberbia os Lusitanos e Celtiberos fallam contra o poder de Roma; e a todos os Proconsules, que vão ás guerras da Hispania Citerior e Ulterior, tem sido recommendado que a tantas bravatas estolidas se deve responder com castigos tremendos e inolvidaveis; e sobretudo que os Lusitanos apprendam á sua custa, que as Aguias romanas não soffrem ameaças da vil preza. Não fiz mais do que seguir a politica traçada. Dirão que me excedi na acção repressiva? Respondo, e ouça-me a historia: Emquanto existir sobre o territorio da Hispania esse povo Lusitano, hade ahi manter-se sempre vigoroso o instincto e o sentimento da autonomia. Roma nunca ahi sustentará o seu imperio tranquillo, porque as tribus lusitanas sonham com uma Patria livre! Por mais que as nossas divisões administrativas retalhem o seu territorio, desmembrando-o, mais os Lusitanos comprehendem a necessidade da Confederação das raças peninsulares como condição para repellirem o jugo estrangeiro e affirmarem a sua independencia! E se essa Confederação se chega a organisar, Roma terá no extremo occidente um inimigo mais terrivel do que Carthago, e as guerras contra os Lusitanos serão mais sangrentas do que as Guerras punicas. Foi para destruir estes germens de Confederação, que eu convoquei á falsa fé os Lusitanos para tratar das liberdades que Roma lhes concedia, e passei á espada uns sete mil d'entre elles? Sim, parecerá cruento? Mas, do mal o menos; sabei, que a Lusitania tende a unificar em uma mesma patria os Carpetanos, os Vettões, os Vacceos e os Callaicos. Do Anas ao Mar Cantabrico tudo é lusitano; e do Anas ao Cabo Sacrum, e tambem grande parte da Betica, ou Tartessida, são regiões occupadas pelos Lusitanos, o Povo mais poderoso da Hespanha, como notam os geographos. Ahi veriamos formada uma forte nação, cujo territorio terminava ao nascente dos Asturios e Celtiberos, e comprehendendo a Callaecia, com todos os territorios do Minio, do Durio até ao Tago, e mesmo a região transmontana. Do Cabo Sacrum até ao Mar Cantabrico, toda esta parte occidental da Hispania constituindo a Lusitania! comprehendeis agora o perigo que nos ameaça, e de que eu consegui salvar o poder de Roma. Nós erradamente damos o nome de Celtiberos a povos que são lusitanos de raça; julgamol-os desunidos, e apparentemente se mostram, até á hora do perigo. Se os Lusitanos chegarem um dia a estabelecer uma Confederação, serão invenciveis e derrotarão os invasores estrangeiros que tocarem o solo da amada Patria. É isto que importa ter sempre presente á consideração dos politicos, que tentarem dominar a Hispania, e governal-a enfraquecida para a exploração das suas incalculaveis riquezas. Que o dito de Catão, Delenda Carthago, se converta agora em Finis Lusitaniae! Mas, não quero acabar com uma phrase de effeito; a rhetorica não entra aqui para nada. Importa mantêr a Hispania dividida; não é em Citerior nem Ulterior, mas em LUSITANOS e IBEROS. Esses dois povos são incompativeis entre si; o Ibero admira a auctoridade, a força, e quer exercel-a impetuosamente, ao passo que o Luso ama a independencia sem ruido nem apparatos. O Ibero é incapaz de se unir para a defeza, e obedece passivamente a qualquer poder physico ou moral que se lhe imponha; o Lusitano liga-se facilmente para a defeza, em revolta contra todo o poder. Conheci pela experiencia estas differenças, e reconheci por que fórma poderia fundar na Hispania o Poder indestructivel de Roma: acabar com a Lusitania, e estender as populações ibericas. Chamado a Roma, por causa dos sete mil trucidados, que outros augmentam até trinta mil, ficou truncado o meu plano; mas estou convencido, que Roma, se não hoje, um dia me fará justiça.
No seu discurso Galba concluia por ser preciso incendiar as principaes cidades da Lusitania; passar á espada as povoações que se revoltaram; transplantar os povos lusos, substituindo-os por tribus propriamente ibericas; vender como escravos nos principaes mercados essas tribus inteiras, que pelo seu orgulho embaraçam a acção do Poder romano na Hespanha; arrasar os burgos e as citanias; estabelecer a pilhagem systematica dos campos; decapitar todos os cabeças de motim, logo que sejam agarrados ou pela força ou pela traição, e não bastando isto ainda, retalhar a Lusitania pelo menos em tres trôços: ao norte, constituindo em corpo á parte a CALLAECIA, ao centro a TARRACONIA, e a sudeste a BETICA: logo que fique a LUSITANIA reduzida ao limite do Durio ao Anas, em uma miseravel faixa de terreno, tapada pelo mar, nunca mais terá resistencia, e mesmo chegará até a esquecer-se da pretendida autonomia.
O discurso foi ouvido com assombro, não já como defeza, mas como um plano de futuro governo para a incorporação completa da Peninsula hispanica.
Quando estava para ser proferida a sentença sobre as responsabilidades de Servio Galba, eccoaram por toda Roma as desoladoras noticias vindas da Lusitania: a derrota formidanda de Vetilio! a morte ignominiosa do general romano! O exercito reduzido a seis mil homens, refugiado na cidade de Carpesso! E o poder de Roma ameaçado por um cabecilha, dizem que outr'ora Pastor, outros affirmam que Salteador de estradas, outros que é uma apparição maravilhosa d'esse Viriatho, que ha setenta e dois annos acompanhára Annibal á Italia, e que combatendo em Cannas fôra morto por Paulo Emilio!
Todas estas vozes corriam em Roma, e avolumavam-se, augmentando o terror, e o prestigio do Cabecilha. É de crêr que influiram na sentença, que absolveu a Servio Sulpicio Galba da inaudita carnificina dos trinta mil lusitanos desarmados. E tambem se conta, que a morte inesperada de Catão, o Censor, se explicava pelo desgosto de vêr a justiça avergada á iniquidade triumphante, e diminuida a gloria de Roma ultrajada nos annaes humanos.
Em Roma não se formava uma ideia clara das monstruosidades praticadas por Galba. Diante d'estes planos de forte administração, e pelas doutrinas da politica de interesse, o quadro da mortandade de trinta mil individuos desarmados, convocados juridicamente pela auctoridade do Pretor, e chacinados traiçoeiramente, pouca impressão fazia na alma do povo romano: a falta de sensibilidade moral preparava a sua marcha decadente para a servidão. Mas o crime de Galba era d'aquelles que fazem levantar as pedras! D'entre os montões de cadaveres, meio incinerados e cobertos de pedregulhos, quando a noite viera pôr termo á carnificina, levantaram-se cautelosamente algumas das raras victimas, que a casualidade resguardára dos golpes successivos que esmagavam aquella multidão inerme; e esses desgraçados, fugindo por entre as trevas cerradas, espalharam-se pelas montanhas e valles, e fôram, de povoação em povoação, de cidade em cidade, clamando, bradando, fazendo a narrativa da tremenda catastrophe com que os romanos invasores queriam extinguir os Povos Lusitanos.
Esses foragidos, ainda cobertos de sangue e de lama tábida, rôtos e estropeados, levados em um desvario de quem perdeu a rasão pela enormidade do terror, dispersaram-se pelos campos e fôram dar ás grandes cidades municipaes como Ollissipo, aos Conventos juridicos como Scalabis e Jerabriga, narrando o espantoso successo. Por pobras e aldeias, por casaes e villares, por citanias no alto dos montes, por toda a parte correu o rumor sinistro da mortandade atrocissima e iniqua, e não houve folego vivo que se não extorcesse em impetos de colera impotente, em revolta moral contra o maior attentado que á luz do sol se tinha praticado contra a lei humana. O grito delirante dos foragidos, que iam de terra em terra repetindo a tragica narração, tornava-se contagioso, e acordava um profundo instincto de revolta, que ia crescendo como uma onda até rebentar em uma convulsão irreprimivel. Os Arevacos, os Tittes e os Belli, povos que andavam sempre em mortaes conflictos, agora achavam-se unidos no mesmo protesto. Rugidos de colera irrefreavel irrompiam entre os Asturios, Callaecos, Vacceos e Carpetanos; estes olhavam com anciedade quem daria começo a uma lucta, para a qual nada estava preparado, a não ser um temperamento sempre resistente. Para o sul os Oretanos, Bastitanos e Edetanos ardiam em um rancor exacerbado pela inqualificavel traição de Galba, legitimo representante da fé romana. Já sôavam no ár Cantigas de guerra, que levantavam as almas; e até por essas povoações remotas e mal conhecidas, como Lubara, Aritium, Elbocoris, Araducta, Verurio, Vellade, Arabriga, Tacubis, cujos nomes os geographos romanos e naturalistas não queriam repetir por consideral-os barbaros, por onde quer que passaram os foragidos que escaparam casualmente da horrifica matança, já se formavam trôços de gente armada com hozes, ou fateixas de arrêmeço, catanas grossas, pelo instincto natural da defeza de seus lares.
Esses poucos foragidos levavam na palavra o incendio, que se espalhava de cidade em cidade, de povoado em povoado, narrando desenfeitadamente o crime do governo de Roma. É certo que a população lusitana estava cansada das recentes e inefficazes luctas; as cidades confederadas e estipendiarias queriam o socego da sua vida laboriosa, supportando sacrificios da liberdade. Nas cidades dos Turdetanos, como Balsa, Salacia, Cetobriga eccoara imprevistamente o caso nefando da carnificina, e lamentavam não existirem chefes que organisassem a resistencia contra o brutal e monstruoso attentado. E se esta impotencia, ao menos, assegurasse alguns annos de tranquillidade para o sul da Peninsula! Outro Pretor que venha, diante da impunidade d'este, até onde levará as depredações e os morticinios!
Os povos que gosavam das garantias de Municipio romano não queriam mover-se para não decahirem dos privilegios que fruiam concedidos pelo conquistador; os povos que participavam dos direitos do antigo Lacio obedeciam á mesma tendencia egoista. Sómente entre os povos na situação de tributarios poderia surgir um impulsivo instincto, mas impotente de revolta. Nas cidades dos povos denominados Celticos e Iberos havia um certo ciume contra a aspiração hegemonica dos Lusitanos; mas nem por isso se ligou menos interesse ás narrativas dos foragidos da matança de Galba. Os seus gritos repetidos de terra em terra chegaram a Laucobriga, a Castraleuco, Arandis, Mirebriga, e os trabalhadores do campo interrompiam as bessadas para escutarem esse caso estupendo; as festas religiosas e as nupciaes suspendiam-se á chegada d'essas figuras sangrentas, que pareciam phantasmas resurgidos do campo da matança para virem reclamar a eterna vindicta.
Ouvireis o que bradavam esses foragidos, quasi em delirio, alguns d'elles cahindo no chão esgotados de sangue que ainda vertiam das feridas, outros borbotando sangue pela bocca, aos gritos convulsivos com que narravam o caso da mortandade.
—«O Pretor Servio Sulpicio Galba convocou para uma assembléa nas campinas da margem direita do rio Tagus, os trez Conventos da Lusitania Emeritense, Pacense e Scalabitano com as trinta e seis Cidades estipendiarias, recommendando que viessem sem armas, porque se tratava da distribuição de terras, do estabelecimento de novas Colonias, e de elevar alguns Povos tributarios aos privilegios de Cidades Confederadas, de Municipio romano e do antigo Lacio.
«Confiados nas palavras do Edito do Pretor, concorreram ao local que lhes fôra aprazado, muitos povos, interrompendo as suas lavouras; e como se fôsse para uma festa de paz e congratulação levaram comsigo suas mulheres e filhos, e os anciãos mais venerandos das tribus, como arrefens do seu animo pacifico.
«O Pretor ordenou que se ajuntassem na campina em que tinha mandado plantar uma Arvore de Maio, junto da qual se devia assignar o pacto perpetuo da concordia com as Tribus lusitanas.
«Emquanto se esperava o Pretor cercado da sua Cohorte, começaram a apparecer quatro Legiões, que se formaram em orbis, estendendo em ordem de batalha as suas tres fileiras, e envolvendo como em uma grande muralha toda aquella multidão inerme! Ninguem suspeitava o intuito do subito envolvimento.
«Os manipulos da Legião, com as suas bandeirolas fôram marcando os logares, que á frente de todos occuparam os Hastarios; por traz d'estes ficaram os Principes dispostos de modo a por entre elles poderem recuar os que lhe estavam em frente; na terceira linha estendiam-se os Triarios, como barreira de resistencia.
«Depois d'isto appareceu a Cavalleria, correspondendo quinhentos Cavalleiros a cada Legião, armados com o gladio hispanico de dois gumes. Foi então que um gelido terror se apoderou d'aquelle povo indefenso. As lanças e chuços dos Hastarios collocaram-se por um movimento repentino em riste, como formando uma muralha cerrada de espetos.
«O Pretor Galba não apparecia! Um presentimento de morte se estampou na lividez de todos os rostos, quando viram por detraz dos triarios moverem-se torres de madeira, catapultas e balistas.
«Com certeza Galba planeára uma infamissima traição! Como fugir-lhe? As mulheres, em lamentos atroadores, abraçavam os filhos, sem perceberem ainda o perigo. Os velhos aconselhavam prudencia, esperando serenos as ordens do Pretor.
«N'este momento de angustia pezados calháos fôram de longe arremessados por catapultas contra aquella multidão compacta, esmagando alli algumas centenas de lusitanos. O grito de espanto parecia uma tempestade; os que tentavam fugir fôram espetar-se e morrer nas fileiras cerradas dos Hastarios; os que se estreitavam uns aos outros n'um panico inconsiderado abafavam-se.
«E emquanto iam chovendo os grandes calháos arrojados pelas catapultas, cahiam sobre a multidão as Falaricas ou lanças incendiarias, que os Romanos tinham tomado dos costumes hispanos, e outros engenhos arremessavam panellas de pez e estôpa ardendo, que os Cestrophendones faziam cahir no meio da assembléa.
«E como se não bastasse tudo isto para destruir aquella gente desarmada, os Fundibularios baleares mantinham um chuveiro de pedras sempre certeiras, coadjuvados pelos Arcubalistas.
«A multidão ainda se movia, embora não offerecesse resistencia alguma; mas Galba, querendo terminar a sua hediondissima traição e vendo que o sol já declinava, resolveu o final exterminio antes do descer da noite. Os Cavalleiros recusavam-se á fadiga de passar á espada tantissima gente inerme que ainda sobrevivia. Foi então que Galba se lembrou de como na guerra de Macedonia, Paulo Emilio deveu a victoria decisiva ao emprego da tactica dos Elephantes; e deu logo ordem a que os dez Elephantes offerecidos por Massinissa aos Romanos para servirem nas guerras contra os Celtiberos, se empregassem agora para acabarem de esmagar os temerosos rebeldes Lusitanos.
«Os Elephantes couraçados com chapas guarnecidas de espadas fôram conduzidos para aquelle montão de gente, cuja carne e sangue formava com a terra recalcada uma massa horrenda. De baixo das patas dos dez Elephantes sentiam-se fracassar os ossos das victimas, e o sangue respingava-lhes até aos peitos, prendendo-se-lhe nas pernas as tripas que eram casualmente arrancadas na sua passagem.
«A noite vinha descendo caliginosa e um vapor espêsso se erguia dos valles fundos. Foi então, que ainda d'entre o montão dos cadaveres se ergueu um vulto surrateiramente, e saltando ao pescoço de um Elephante, o pezado animal cahiu redondamente morto em terra! As trévas iam-se engrossando, e o vulto agil e escorreito foi assim saltando sobre cada um dos Elephantes, que por seu turno iam cahindo mortos! Quem seria esse vulto extraordinario, que sabia o segredo de dar a morte instantanea a tão poderosos animaes, em cuja pelle não penetravam os mais pujantes dardos? Quem quer que fôsse, elle sabia o segredo apprendido nas Guerras punicas: de que a mais leve picadela no bolbo pela vertebra que toca no craneo do Elephante fazia-o cahir fulminado instantaneamente. Assim fôram mortos os dez Elephantes.
«A noite era já cerrada; e enquanto Galba mandára lançar fogo ao montão dos cadaveres entre os quaes fôram encontrados os dez Elephantes de Massinissa, d'entre esses cadaveres escaparam-se alguns individuos que se tinham occultado debaixo dos corpos exânimes, e que se fingiram mortos: são esses os que andam de cidade em cidade da Lusitania e da Turdetania pedindo vingança! Vingança! Vingança!»
Por valles e serras, e resoando de monte a monte, entoava-se um Canto de guerra, que fazia referver o sangue nas veias, exaltando os espiritos ainda os mais acabrunhados. O Canto podia mais do que a reflexão, e cada povo accrescentava-lhe uma nova estrophe, como a aspiração do resgate. A palavra poetica é alada, o pelo prestigio da tradição transpõe as edades repercutindo-se na alma dos vindouros.
Baladro de guerra
Terra da Lusitania,
Ensopada de sangue
Por horrendo baldão!
Chamou-nos o Romano
Para a alliança de paz,
Mata-nos á traição!
Virus de iniquidade,
D'esse fermento de odio
Brote a destruição.
Que a lança dos Quirites
Se quebre, e em nossa frente
Não se erga Legião!
Quem sobrevive ao crime,
E escuta estes lamentos
Da atroz desolação;
Quem perdeu lá seus filhos,
Os paes, entes queridos,
O esposo, o irmão;
Que se revoltem todos,
Peitos sejam escudos,
Lanças raios na mão!
Soffrimento e opprobrio,
A morte e a vingança
Forçam á união!
Vós, Povos da Callaecia,
De Oretania, Beturia,
Cynesia região;
Robustos Carpetanos,
Tartessios, desmembrados
Da Lusonia nação!
Que o mesmo odio nos una,
Vingae mortos, e os vivos
Salvae da escravidão!
Reviva a Lusitania,
Ensopada no sangue
Da romana traição.
De todas aquellas povoações até onde chegára o rumor da horrente catastrophe, partiram homens audaciosos, movidos pela curiosidade para observarem com os seus olhos os despojos que restavam; alguns não voltaram mais aos seus lares, porque iam engrossando uma onda dos revoltados contra tamanha traição. Os que regressavam espavoridos contavam o assombro que lhes causára o vêr uma ampla campina coberta de cadaveres incompletamente carbonisados, em volta dos quaes uivavam lobos em numerosas alcateias, e aguias e abutres que esvoaçavam em bando sobre a vasta presa, cujo fetido os attrahira de longe. As calmas estivaes tornavam-se mais intensas, apressando a putrefação de tantos cadaveres; as fortes nortadas levavam até muito longe os miasmas, e n'uma e n'outra cidade da Lusitania appareciam ameaços aterradores da peste. Era a perspectiva de uma mais horrivel devastação, porque se não via o látego mortifero que flagellava os povos. Um pensamento de piedade pelos mortos occorreu suscitado pelas calamidades:
—É certo que esses corpos insepultos reclamam dos vivos o cumprimento de um dever sagrado! Em quanto lhes não dermos sepultura condigna, suas almas andarão errantes diante de nós, perturbando-nos, perseguindo-nos até acordarmos do nosso desdem egoista. Carecemos para propria segurança de lhes darmos sepultura segundo o patrio e antigo costume, quando se encontra um morto n'um ermo ou n'uma encruzilhada. Que cada cidade, villar ou aldeia, faça suas peregrinações ao campo da matança, e seguindo a tradição da piedade, cada um arroje uma pedra para cima dos cadaveres até que se formem Montes Gaudios, que serão os tumulos venerandos dos nossos desventurados conterraneos.
Segundo aquelle costume, vogou de cidade em cidade a ideia da funebre peregrinação, e não eram ainda bem passadas duas luas quando por toda a Lusitania se operára um movimento que ligava todas as povoações no mesmo affecto. Os mortos podiam agora mais de que os vivos, porque por via d'elles se uniam tribus até aquelle dia inconciliaveis, que iam visitar o campo da matança e lançar suas pedras para erguerem bem alto os Montes Gaudios, que deviam tornar-se não um simples monumento funerario, mas uma como torre de protesto e de eterna revolta. Muitos povos dispersos nas regiões de entre Durio e Minio, entre o Durio e o Tagus e mesmo os que se achavam para lá da banda de Traz dos Montes, desde a foz do Anas até ao Mar Cantabrico, adheriram á desolação dos Lusitanos, e mandaram tambem peregrinações ao campo da matança para que os Montes Gaudios attestassem aos vindouros que elles se consideravam formando parte d'este valente e activo povo ribeirinho que dos seus portos de Lez e das suas bem trabalhadas Lezirias tomára o nome nacional de Lusitania. O ecco da grande catastrophe produzida pela perfidia impune de Galba chegára egualmente aos confins dos territorios dos Asturios e Celtiberos. Os Povos denominados Carpetanos, os Vettões, os Vacceos e Callaecos, que sempre se tinham conservado apartados para o norte da Hespanha esperando constituir uma Confederação e unidade política sob o nome de Callaecia, agora sentiam-se dominados pela insondavel fatalidade que arrastára os destemidos e independentes Lusitanos á maior das ruinas; elles vierão em magotes vêr de perto a horrorosa mortandade, e arrojar piedosamente mais pedras para os Montes Gaudios. Esses tumulos cresciam, como attestando ao mundo, que eram innumeros os corações que pulsavam por inultos mortos, e que os mesmos braços que arrojaram aquellas pedras, serão os mesmos que arremessarão as suas lanças e brandirão as pezadas lorigas contra o fautor da execranda iniquidade.
Assim se fôram formando bandos e numerosas guerrilhas, imperfeitamente armadas, que clamavam por vingança; e vendo que muitas cidades alliadas dos Romanos, e outras por temor ou covardia, não tinham vindo celebrar a cerimonia dos Montes Gaudios, foi contra ellas que arremeteram na sua ancia de vindicta. Passavam ja de dez mil os Lusitanos que se ajuntaram em differentes guerrilhas, entregues á aventura e audacia de destemidos Cabecilhas, que fôram descendo para o sul da Peninsula, devastando e roubando quantos povos encontravam que estavam no goso do patronato romano. Chegaram até á Turdetania, essa opulenta região banhada pelo Betis, tendo por limite da parte do norte o curso do Anas; e levaram a sua audacia até ao ponto de atacarem a importante fortaleza de Gades, ou Gadir, como lhe chamaram os Phenicios. Não era sem rasão que os viajantes phenicios, gregos e romanos diziam que os Lusitanos eram o povo mais numeroso e valente entre as nações de toda a Iberia.
A Hespanha Ulterior estava quasi completamente insurrecta. Passavam de dez mil os Lusitanos revoltados contra o poder de Roma, e que juraram sacudir o infame jugo. No seu Conselho armado decidira-se, que todo aquelle que podesse sustentar-se a cavallo, embora velho ou doente, se appresentasse para o combate; mesmo as crianças que podessem alevantar um chuço ficavam obrigadas a incorporar-se nas turmas e milicias de cada terra.
Era o começo de anno estival, e na entrada de Maio, em que se faziam as dansas e cantares debaixo do verde pinheiro, e em que os homens validos, os chefes de familia, effectuavam as grandes paradas das suas forças defensivas. Parece que o ajuntamento d'aquella multidão enorme respirava um ár de festa, uma alegria communicativa, em que a ideia de morrer pela liberdade da sua terra dava uma exaltação delirante; dir-se-hia que era a Primavera sagrada, em que novas colonias iam pelo mundo para fundarem uma outra cidade. Verdadeiramente era uma entrada em campanha, em que o costume vinha coadjuvar a necessidade. Viam-se homens da estatura meã, e enxutos de carnes, de cabellos pretos e olhos castanhos, ligeiros e ageis, capazes de resistir a todas as intempéries, soffrendo todas as privações mas sempre alegres; traziam pendurados ao pescoço, por correias, pequenos escudos de tamanho de quatro palmos, e prezas á cinta umas compridas facas, a que se soccorriam em lances decisivos, e ainda no combate pessoal. O braço era armado com uma lança comprida, com uma ponta de bronze e um gancho ao lado, servindo para ferir e prender aquelle que topasse na frente. Apenas lhes defendia o corpo uma couraça de linho crú fortemente tecido, ou treu, sobre a qual assentava uma cóta de malha tecida de arame, que nenhum dardo poderia atravessar. Capacetes de couro com triplice cimeira cobriam-lhes as cabeças, aparando com segurança os golpes dos montantes; outros guerreiros traziam os cabellos compridos, como usam as mulheres, cingidos com nastro na fronte, no momento das refregas; os peões appresentavam-se com cnémides, saiaes negros, e chuços; outros com bragas forradas de pele de cabra, ou safões. E os Cavalleiros, montavam alazões e fouveiros, com estribos em fórma de concha feitos de madeira; com mantos listrados formando quadrados variegados. Formavam grupos de trez em trez, a que davam outr'ora o nome de Trimarkisia, indo um dos Cavalleiros á frente no ataque, ficando mais atraz os outros dois para o defenderem e substituirem. Reinava uma certa ordem n'essa multidão, dividida em catervas de infantes ou peões, com alguns Cavalleiros nas alas extremas: e os Hastarios, os Sagitarios, ou archeiros, os Fundibularios, moviam-se com uma ligeireza extrema, tomando os Cavalleiros como pontos de mira para se ajuntarem no sitio em que se tornava mais urgente a defeza ou o ataque. Os Carros, ou Covões armados de longos espetos, eram puxados a quatro cavallos, empregando-os para romperem a ordem da infantaria inimiga, e para servirem de parapeito e estacada defensiva detraz dos quaes os archeiros arrojavam os seus dardos.
Foi no meio de uma anciedade de lucta, que entre as Catervas lusitanas correu a nova, de que já pisava terras de Hespanha o Consul Caio Vetilio, com tropas frescas e aguerridas; o Senado encarregára-o de reprimir o levantamento provocado pela infamissima traição de Galba, que, deixando-o impune, tacitamente a approvava. Vetilio chegou a Corduba, onde assentára o seu quartel general. Tudo se sabia no campo lusitano, porque não faltavam esculcas e mensageiros, que davam conta dos movimentos do velho Consul.
Em Corduba ia Vetilio ajuntando todas as tropas romanas, que estavam como presidiarias, formando phalanges com as que trouxera de Roma, e dando-lhes uma forte disciplina, que centuplicava a sua resistencia. Não havia tempo a perder; a rapidez do ataque muitas vezes decide da sorte da campanha, e Vetilio como general experimentado comprehendeu que tinha de luctar com tribus de uma resistencia tenacissima, que se deixavam matar, mas que não transigiam com a perda da liberdade da sua terra.
O territorio da Lusitania, que se conservára submisso, fôra, pela traição de Galba, agitado por uma insurreição tremenda; com a maxima rapidez e a marchas forçadas, o Consul Vetilio, no rigor do inverno, transpozera os Pyrenneus, vencendo difficuldades insuperaveis, e engrossando as novas Legiões com as tropas que nas provincias pacificadas estacionavam em seus quarteis de inverno. Entrava na Hespanha Ulterior com um grande exercito, maior do que aquelle com que partira de Roma, e o exito da empreza fôra bem calculado—cahindo de surpreza sobre as populações insurrectas, e impellindo-as á defensiva, sem tréguas, sem lhes dar tempo para organisarem a resistencia.
Vetilio deu ordem para que o seu exercito, de mais de dez mil homens sahisse de Corduba, e seguindo em massa compacta pela Turdetania fôsse ao encontro das tribus lusitanas; e fortificadas por uma severa disciplina, contava que as tropas luctariam com vantagem contra Catervas impetuosas, mas sem a cohesão de um bom e seguro commando, nem a lucidez de um pensado plano estrategico.
E não se enganava. Ao segundo dia de marcha, Vetilio avistou ao longe, em um valle immenso, grande numero de Carros de guerra, e Cavalleiros, e por traz d'elles, negrejando, Catervas de peões, que pela direcção que traziam, com certeza vinham sobre Corduba com intenção de assediar o exercito romano, ahi na capital da Turdetania. Era o instante opportuno. Vetilio manda organisar em columna todos os seus infantes: aos flancos os seus Carros, com os projectis incendiarios; a Cavalleria mais atraz, destinada a envolver as tribus lusitanas durante o ataque.
Desde que as tropas romanas fôram avistadas pelos Lusitanos, um grito immenso como de alegria retumbou nos áres, como os renchilidos e apupos ou atruxos com que se distinguiam as varias povoações lusonias; e d'entre esse ruido escutava-se o ecco de cantos, de hymnos, que davam uma animação indescriptivel ao movimento dos combatentes. Vetilio contava com o enthusiasmo dos Lusitanos no primeiro assalto, e reservou todas as suas forças para sustentar o pezo d'esse primeiro impeto. E a carga dos peões lusitanos foi imponente, mesmo incomparavel. Valeu-lhe ao Consul o sangue-frio que soube mantêr; e foi assim, que subitamente reconheceu, que o exercito dos Lusitanos, tão numeroso como o seu, e que não constava de menos de dez mil homens, não tinha cohesão entre si; faltava-lhe a disciplina, e mais do que isso pela ordem de combate descobriu que essa multidão compacta não tinha um general, que sustentasse intelligentemente o commando. O numero extraordinario dos combatentes lusitanos complicava a sua propria segurança, pela falta de um chefe digno d'este nome. Este relance de Vetilio bastou para abranger a situação, e no seu espirito entrou a segurança de que seria certa a victoria. E tirando partido da situação comprehendeu que para vencer era a melhor condição empenhar-se em uma batalha campal com todas as suas tropas; por que embora os Lusitanos aguerridos apresentassem um egual numero, faltava-lhes o commando, o que tornava perigosa a sua situação em campo raso. As Legiões estavam então formadas com quatro mil infantes de linha, que se dividiam em trinta manipulos ou companhias, manobrando em campanha como a unidade tactica de uma divisão moderna. E esses manipulos ou companhias, agrupavam-se em cohortes ou batalhões, em numero de dez.
Passado o primeiro impeto de uma carga destemida de lanças, que os soldados de Vetilio apararam rijamente nos seus escudos, o Consul aproveitou-se da tactica aprendida nas guerras de Hespanha, e mandando-os formar em cunha rompeu as filas dividindo-as, mandando em seguida as suas quadrigas a toda a carreira sobre os flancos, para evitar que tornassem outra vez a reunir-se. Os Cavalleiros dispersos por entre a multidão desorientada, trucidavam incessantemente os que encontravam com um furor attonito, mal sabendo defender-se. A Legião romana mais uma vez, sob o commando de um habil chefe, patenteava a importancia da sua constituição estrategica. A lucta prolongou-se com coragem da parte das tribus lusitanas, mas repentinamente ellas reconheceram-se enfraquecidas, não por falta de valentia, nem de bravura, mas pela imprevidencia com que entraram em campanha, sem um chefe que as dirigisse e tivesse firmemente disciplinado.
Toda a lucta n'estas condições era uma temeridade estulta, um inutil sacrificio. A batalha era agora insistentemente continuada por Vetilio; milhares de cadaveres cobriam o solo recalcado, e o Consul pensava já em aniquilar toda essa multidão lusitana que ainda resistia. O sol declinava; prestes viria a noite, e era de força que o triumpho de Roma ficasse definitivo. Os Lusitanos sem esperança, sentiam-se cansados; a fome e a sêde hallucinava-os até ao desespero, e cercados no valle em que tinham sido surprehendidos, só viam um unico refugio para escaparem ao inevitavel destroço—renderem-se!
D'entre o campo dos Lusitanos fôram enviados a Vetilio quatro emissarios, levando erguidos ao alto ramos de oliveira. O Consul consentiu que chegassem á sua presença, e que appresentassem a mensagem; um d'elles por nome Diálcon, fallou:
—Vimos aqui pedir a suspensão do combate, e a paz, rendendo-nos em massa ao Poder de Roma!
O Consul mandou suspender as hostilidades; e perguntou com dureza aos emissarios:
—Quem responde pela revolta contra a soberania de Roma?
—Nós todos, perdendo o direito de Povos livres; mas conservando sómente a liberdade individual de cada lusitano.
—É muito! retorquiu-lhes o Consul.
—Se não quereis matar-nos, passando tudo á espada, só poderemos acceitar a vida com a liberdade individual que pedimos. E é isso bem pouco, diante do Poder de Roma; porque de hoje em diante podereis mandar-nos habitar o territorio que á grande e generosa Roma lhe aprouver conceder-nos. Ahi em campos de concentração, nos conservaremos quietos e submissos no cumprimento de todas as imposições.
Parecia mais que fallava um traidor do que um vencido; mas o escalavro das forças lusitanas era estupendo e tudo justificava. O Consul Vetilio, velho e astuto, determinou que os emissarios se retirassem, voltando na madrugada para assignarem o pacto da rendição e submissão perpetua, incondicional e peremptoria, vindo acompanhados de refens nobres, que pela sua vida ficariam responsaveis pela tranquillidade das tribus lusas. No resto da noite, Caio Vetilio ficou pensando nas consequencias da sua incomparavel victoria, no prestigio que teria em Roma, no impôsto de guerra que cobraria das populações subjugadas, dos escravos que o acompanhariam na entrada triumphal na Cidade do Tibre! Os sonhos acordados são mais bellos do que os que se tem dormindo, mas não são menos fallaciosos.
Noite cerrada, quando os emissarios chegaram ao acampamento lusitano. Eram esperados com trépida anciedade. Traziam alçados os galhos de oliveira, denunciando de longe a concessão do armisticio e no seguinte dia o assentamento da paz. Extenuadas de fadiga e famintas, as hostes ouviram sem espanto as condições prévias impostas pelo Consul Vetilio. N'aquella angustia desesperada apagavam-se as energias moraes, e era-lhes mesmo indifferente que a Lusitania fôsse livre ou escrava. E considerando a situação, trezentos lusitanos para trez mil romanos patenteavam uma desproporcional desegualdade, que seria rematada loucura defrontarem-se as forças.
Quando os emissarios accentuaram as palavras de Vetilio—submissão perpetua e incondicional, com garantia de refens para a effectividade do pacto—ouviu-se um rugido, como de uma féra que se vê subitamente preza. Esse rugido não articulado, que nem mesmo era imprecação, infundiu uma emoção terrifica e desconhecida. Olharam todos em volta da gente que se atropellava junto do Conselho armado, e viram um homem bastante novo, de menos de trinta annos, de estatura mediana, delgado, mas robusto e de aspecto decidido. Fez-se um silencio inesperado, involuntario, por que aquelle impeto de colera fizera suspender qualquer resolução repentina e fatalmente covarde. O vulto pareceu crescer com a grandeza da commoção, e aproveitando o momento unico, fallou:
—Para ser escravo de Roma não são precisos tratados, nem refens. Tudo isso é um ludibrio. Todos nós sabemos como a grande e generosa Roma cumpre os seus tratados. Seremos nós tão estupidos e indignos, que ainda depois da inolvidavel traição de Servio Galba, e da sua impunidade, confiemos n'uma potencia, que, não fallando já das riquezas, nos rouba a nossa liberdade? E esse Consul, que está em campo aberto, com as suas Legiões contra nós, que outro intuito tem senão a oppressão da desmembrada Lusitania, e o animo exclusivo da rapinagem? Bem pouco tempo ha decorrido sobre o estupendo morticinio, e já parece que ninguem aqui se lembra do juramento feito sobre os despojos dos clamorosos trucidados. O verbo do juramento foi—Vencer ou morrer!—Eu ainda não perdi a esperança de vencermos...
Um rumor irrepressivel cortou a phrase do moço, que suscitára latentes energias.
Elle continuou em um tom firme e de crença communicativa:
—Que loucura o confiar na fé dos Romanos! A tregua que nos concedem até ámanhã é um torpe embuste; o Consul pançudo finge que nos outorga uma paz generosa, simula a assignatura de um pacto para conseguir por esse meio capcioso a entrega das armas pela nossa parte, e em seguida, como é de uso, extermina-nos em massa, porque não quererá ser menos do que Servio Sulpicio Galba. Tal é a sorte miseranda que vos espera a todos, se...
Diante d'esta suspensão intencional e suggestiva, muitas vozes soltas d'entre os grupos o interromperam:
—Que fazer? que fazer?
—Resistir!—exclamou promptamente o moço, confiado e sorridente: Nada está perdido. Poderemos salvar-nos, e até mesmo...
—Falla! falla! Dize o que temos a fazer.
—Obedecer-me.
Ao ouvirem esta phrase incisiva e simples, mas com uma vibração sobrehumana, que denunciava uma absoluta confiança em si, entreolharam-se todos abalados, hesitantes, como que interrogando, quem era e d'onde viera aquelle homem audacioso. Elle proseguiu:
—Comprehendo a vossa desconfiança; não me conheceis de figura, nem mesmo esta estatura meã e magra se vos impõe, como o faria qualquer colosso. Mas, quem aqui se recordar do nome de Ouriato, d'aquelle pastor que conseguiu escapar da carnificina de Galba; d'aquelle que sabe o segredo de dar morte instantanea aos elephantes africanos; d'aquelle que andou de cidade em cidade proclamando a insurreição, a guerra santa e a vindicta contra o invasor estrangeiro, contra a occupação dos Romanos, que nos escravisam, reconhecerá que é um homem decidido que vos offerece a salvação e talvez a victoria.
—Ouriato! Ouriato!—proromperam de todos os lados vozes de acclamação.
Este nome proferido n'aquelle lance extremo de um exercito prestes a entregar-se, reaccendeu coragem nos animos abatidos; todos esperaram que Ouriato completasse o seu pensamento, dando-lhe em um tacito assentimento a certeza da inteira obediencia. O pastor fallou:
—Desde os mais tenros annos, eu trabalho na deambulação dos gados, que vêm das regiões calmosas para a frescura dos dois Herminios, e d'aqui dirigindo-os para os seus bostaes na epoca das invernias. N'este serviço, em que se me tem confiado mais de vinte mil cabeças de gado, e por que soube sempre defendel-o dos perigos das barrocaes, dos ursos e da pilhagem dos romanos, cheguei a ser Maioral, ou chefe da Mésta! Bem comprehendereis que, embora novo, eu devo conhecer como as palmas de minhas mãos todos os territorios da nossa Lusitania, os seus montes, os seus valles, covões, algares, cavernas profundas e passagens dos váos das ribeiras e cachões dos caudalosos rios. É esse conhecimento o que n'este momento me dá um poder unico e inesperado.
—Obedeçâmos a Ouriato! gritou a multidão entrevendo o plano de uma retirada habil.—Obedeçamos-lhe cegamente!
Ouriato, fitando os principaes chefes dos terços, que se tinham approximado, expoz com simplicidade:
—Aqui em frente de nós, passado aquelle outeiro, estende-se uma planura vasta, revestida de uma relva fina e variegada como um tapete, que dá vontade de retoiçar sobre ella! Ai de quem deixar ahi entrar os rebanhos! Essa planura encantadora chama-se o Barrocal fundeiro. Todas as suas ravinas fôram niveladas pelas neves do inverno, e sobre essa face lisa aos primeiros adoçamentos da temperatura, desabrochou com uma pasmosa vivacidade o nardo ou gervum, formando um espêsso e cerrado tapete em que as raizes se entrelaçam rijamente! É um gosto deslisar sobre esse vistoso relvado, que exhala um perfume estonteante; mas as neves vão-se derretendo por debaixo d'elle, e infiltrando-se pela terra mole e lodacenta; o tapete de verdura mantem-se então encobrindo todo o Barrocal, conservando uma apparente planura! Gado que alli pise rompe com o seu pezo o tecido forte das raizes do gervum, e abysma-se pelas terras moles, d'onde não é possivel arrancal-o. Pois bem! é para ahi que eu conseguirei attrahir o exercito de Vetilio; hade ficar como o carrapato na lama.
O terror converteu-se em alegria, irrompendo uma gargalhada estrepitante. Então levantaram Ouriato sobre os hombros, alguns dos companheiros que com elle escaparam da carnificina de Galba; e á luz das fogueiras do arraial, elle fitou as catervas que contemplavam o pastor destemido. Brandindo no ár a foice roçadoira, que sempre o acompanhava, Ouriato proferiu:
—Eu juro, mais do que pela minha vida, pela liberdade d'esta nossa Lusitania, que salvarei o exercito, com tanto que me obedeçam, na execução do plano. D'isso depende o exito completo.
Cavalleiros, peões, fundibularios, todos sem reserva ergueram os braços dextros para o ár, como symbolo sacramental, bradando unisonos:
—Juramos obedecer-te! até á morte.
—Ouriato é o nosso chefe.
—Ouriato manda sobre nós todos; ninguem tem mais poder do que elle.
E collocando Ouriato sobre um grande escudo feito de coiro crú, quatro valentes hastarios erguendo-o bem alto, levaram-o em redor do acampamento em uma marcha solemne, parando de vez em quando para gritarem:
—Ouriato é o nosso chefe!
—Ouriato manda sobre nós todos.
—Obedeçâmos-lhe até á morte.
Á maneira que o nome de Ouriato ia resoando na calada da noite, tambem na reminiscencia da soldadesca se acordava a vaga relação com o nome glorioso de um valente lusitano, que em tempos não remotos acompanhando Annibal, fôra combater os romanos até á propria Italia. Esse ainda lembrado VIRIATHO, que no seu odio contra Roma transpozera os Pyreneos e os Alpes, dizem que morrera na batalha de Cannas; mas o seu odio não morreu, é redivivo. E por ventura não será Viriatho o que agora reapparece na figura do Maioral da Mésta, do valente Ouriato? Como elle, é um salvador que resurge, um vingador da liberdade da Lusitania?
Este prestigio espalhou-se entre a soldadesca, influindo por modo absoluto na confiança do commando de Ouriato. E desde aquelle momento os dois nomes identificaram-se, como synthetisando a missão do guerreiro que votava a sua vida á defeza da Lusitania livre de todo o jugo estrangeiro. Emquanto levavam o novo general em triumpho, e as acclamações repercutiam por todo o acampamento lusitano, os chefes depostos conformaram-se pela necessidade da situação desesperada a tudo cumprirem. Acercaram-se do novo chefe, para receberem as particularidades do plano da cilada sob a fórma apparente de retirada urgentissima, logo ao primeiro alvor. Todas estas disposições fôram organisadas aproveitando o costume dos generaes romanos de suspenderem a marcha durante a noite.
As cohortes lusas, emquanto aguardavam o momento de se moverem, cantavam coreadamente:
Acclamação de Viriatho
Ha setenta e dois annos
Que falta aos Lusitanos
Um braço que os defenda
Da escravidão horrenda!
Rumor incerto espalha,
Que morreu na batalha
Que se travou em Cannas
Contra as Legiões romanas.
É rumor não exacto;
Não morreu Viriatho!
Porque o odio não morre,
E esse odio nos soccorre.
Rejuvenesceu hoje!
Viriatho nos arroje
Á implacavel guerra
Por esta livre Terra.
Salvador desejado,
Não debalde esperado,
Vencerão seus tyrannos
Por ti os Lusitanos.
Acclamado chefe supremo, acceitou Ouriato desde esse momento o titulo de Viriatho, que já não era um nome mas uma prestigiosa invocação, um grito de guerra, que dava confiança e energia ás almas. O que Viriatho assentou no Conselho armado com os chefes dos terços e catervas, de essedarios e trimarkisios, sobre o seu plano estrategico, patenteou-se d'ahi a poucas horas nos pavorosos effeitos.
Rompia a madrugada. Vetilio, em seu acampamento, esperava os emissarios lusitanos para effectuar-se a rendição e a deposição das armas. Alvorecia-lhe um dia de gloria: firmava de um modo estavel o dominio de Roma na Hispania Ulterior, e antegostava a entrada triumphal na Cidade eterna, ladeado de despojos riquissimos e prisioneiros. O sol erguia-se, e Vetilio, estranhando a demora, entendeu tirar partido do caso inopinado, que justificaria todas as atrocidades que ordenasse contra as tropas que na vespera lhe tinham mandado pedir paz á custa da liberdade. Ordenou logo o formar o exercito consular em acies, ao qual passou a senha irrevogavel:
—Sem tréguas, nem quartel.
O exercito romano começou a mover-se e a avançar, e a pouco tempo de marcha Vetilio viu negrejar fronteiros e estendidos um esquadrão de Cavalleiros lusitanos, dispostos em ordem de batalha, e firmes sobre o terreno como se esperassem o assalto. O Consul olhou desdenhoso para o inimigo; não passariam de mil os Cavalleiros, que permaneciam impavidos, como a vedar-lhe o horisonte.
—Sem chefes! para que lhes serve a resistencia? A victoria é minha.
E em seguida Vetilio deu ordem para que seguissem sempre para a frente as quatro Legiões do exercito consular, abrindo caminho a Cavalleria, começando a batalha por uma carga contra a linha fronteira dos lusitanos.
Viriatho, montado em um cavallo branco, deixou approximar até bem perto a Cavalleria romana, que vinha á desfilada; e a um signal dado a linha cerrada dos seus mil companheiros dividiu-se em duas, debandando cada fragmento para seu lado, com uma rapidez de quem sabe trilhar por combros e ribanceiras. Notou Vetilio o facto com surpreza, vendo desapparecer escoteiramente os dois troços dos mil Cavalleiros, como se dispersam os bandos de estorninhos ou de pardaes, cada qual como melhor e mais ligeiramente podia. Não teve tempo para reconhecer se aquillo seria covardia ou estrategia, por que pela fuga repentina dos Cavalleiros descobriu diante de si uma extensa e larga planura arrelvada, de uma verdura avelludada, e além no extremo d'ella o exercito lusitano fazendo evoluções para dispôr-se em ordem de batalha. Pareceu a Vetilio, que os mil Cavalleiros lhe fechavam o horisonte, para não serem bem conhecidas as forças lusitanas, ou para lhes dar tempo a escolherem um local em que melhor se defendessem; e sem pensar em dar caça aos fugitivos, deixou a Cavalleria seguir no seu impeto, e apoz ella as cohortes das Legiões, que em carreira vertiginosa avançaram por sobre a verde planura, com o fito em esmagar por uma valente carga a infanteria lusa.
As tropas que seguiam mais atraz dos triarios, os rorarios, os accensi, os ferentarios, estacaram horrorisadas, quando viram pela planura verde e extensa enterrarem-se os Cavalleiros, desapparecendo debaixo d'elles os cavallos, outros sumindo-se completamente, e os manipulos dos hastatos chafurdarem nos lodos que esguichavam do tapete da relva formosissima! Caso nunca apontado nos annaes militares de Roma. Ninguem conhecia um tão extraordinario phenomeno de terreno. A planura fôra feita pelas neves do inverno, enchendo os medonhos barrocaes; a superficie lisa era revestida pelas relvas espontaneas do gervum, cujas raizes entrelaçando-se resistentemente formavam uma crosta que simulava um solo que tremia, e sobre a qual podia passar sem perigo de romper-se um viandante. Foi isso o que enganou Vetilio: por que alguns guerrilheiros lusitanos corriam sobre certos pontos da patameira. Viriatho, conhecedor de todos aquelles accidentes do territorio, calculára bem, e fôra melhor coadjuvado. Uma grande parte do exercito romano estava annullada ou perdida, atolada nas terras moles, e nos barrancos occultos debaixo da capa traiçoeira da verdura do gervum. A temerosa desgraça que ameaçara as tribus insurrectas, invertera-se agora tornando irremediavel a derrota das Legiões consulares.
O exercito lusitano, proseguindo no cumprimento do plano estrategico de Viriatho, dirigiu-se para Tribola. Pelo menos toda a Cavalleria ligeira dos romanos ficou atolada nas lamas, e com ella a infanteria composta de besteiros ibericos, germanos, gregos e asiaticos; e mesmo alguns Centurios e Tribunos do commando das Legiões. Uma tremenda desgraça, impossivel de prever, e por ser caso unico e excepcional, tanto mais inevitavel até para um homem experimentado e cauto como Vetilio.
Pela retaguarda do exercito consular reappareceram os mil Cavalleiros, soldurios de Viriatho, que tinham jurado acompanhal-o sempre em todos os transes, e que entendiam as suas ordens pelos silvos de uma buzina, como se usava na deambulação da Mésta. Viriatho reconheceu pela obesidade o Consul Caio Vetilio, e elle mesmo por sua mão o arrancou dos lamaçaes em que tinha preso o cavallo:
—Não me serves para escravo; és velho e pançudo. Ninguem dará por ti um sestercio.
E tocando-lhe com a foice roçadoira no hombro, continuou Viriatho:
—Não te matarei, sem que te defendas.
Vetilio fitou attonito aquelle homem magro e enxuto de carnes, e vendo que tudo para si estava acabado, atirou com a sua espada ao chão, renunciando como caricata a qualquer tentativa de defeza. Um dos soldurios de Viriatho atravessou o Consul com um dardo de lado a lado; mas em Roma referia-se que Vetilio morrera sim, mas ás mãos do proprio Viriatho.
O exercito consular, reconhecendo-se sem chefe, abandonou o campo e tratou de pôr-se a salvo. Em marchas forçadas, os seis mil legionarios que escaparam dirigiram-se para uma cidade do litoral chamada Carpesso, na região da Tartessida. O Questor pretorial tratou de organisar-lhe a defeza, fazendo em roda da cidade fóssos e trincheiras da terra revolvida, com receio do assalto do destemido cabecilha lusitano ás arcas do thesouro, ás bagagens, auxiliares e cavallos de remonta, que por irem no couce do exercito não se encravaram na patameira.
Depois d'este feito, em que o exercito lusitano se viu salvo pela astucia e coragem de Viriatho, a confiança no seu commando centuplicou-lhe as forças, seguro de que elle o conduzirá á victoria, e só elle saberá sustentar a independencia da Lusitania. Uma cousa veiu acordar o resurgimento do acabrunhado povo, o impeto que suscitava esta incomparavel victoria da astucia sobre a força bruta.
Quando Vetilio foi agarrado por Viriatho, os lictores que acompanhavam o Consul com os feixes de varas peculiares da dignidade curul, entregaram-as ao vencedor, como uma transferencia do poder supremo. O Cabecilha mandou desamarrar os feixes de varas, e distribuiu-as pelos seus soldurios, aos de maior confiança d'entre os mil Cavalleiros que se lhe devotaram:
—Cada um de vós, irá por todos os Castros, Citanias e Herminios, cravar no chão a vára do lictor, que eu entrego na fé celtiberica. Essa vara é o symbolo da guerra accesa e contínua; onde ella se hasteia chama os povos ás armas, e exige soccorro aos que combatem. Tal é o poder da antiga tradição da nossa raça. E se a lança fincada no chão podia mais do que um grito de guerra, a vara do lictor arrancada ao poder do Consul romano hade alevantar todas as nossas tribus unindo-as n'uma só vontade, para repellirem o invasor do seu territorio.
Cem soldurios partiram logo com as varas distribuidas dos feixes dos lictores, e fôram craval-as nos herminios e montes povoados, como um annuncio da inesperada victoria, e de que a guerra contra os Romanos seria agora incessante. Foi assim a noticia levada muito longe, e de longe vieram novos trôços e viveres, para reforçarem e abastecerem os guerreiros lusitanos.
Ditalcon, um dos tres companheiros que andam junto a Viriatho, lembrou ao Cabecilha um sacrificio de cavallos e prisioneiros ao deus Neton. Viriatho com a sensatez, que era uma das suas forças, volveu-lhe seccamente:
—Não ha tempo a perder; nem um inimigo como o romano se combate com festanças.
Ditalcon calou-se ao repellão do espirito pratico do chefe.
Em Roma tratava-se de organisar á pressa uma nova expedição á Lusitania, para castigar os barbaros que assim annullavam o prestigio das suas armas. Já apontavam como general o destemido Caio Plancio. Recrutou-se á pressa Cavalleiros e infantes, dos mais válidos e experimentados das campanhas na Africa.
No emtanto reina um vago terror; em Carpesso está fechado o resto do exercito destroçado de Vetilio. Se o Questor pretorial terá sabido manter o commando, e salval-o da audacia de Viriatho! Nada se sabe em Roma.
É certo que o Questor pretorial procedeu com tino, exigindo dos povos alliados de Roma a contribuição de homens de armas, para reforçar o exercito romano e fazer frente ao cabecilha. Conhecia os odios instinctivos que havia entre os Iberos e os Lusitanos, e aproveitando essa antinomia, mandou emissarios ás cidades celtibericas dos Tittos e dos Bellos, para que, pelo dever da alliança, lhe enviassem um reforço de cinco mil homens, e sem perda de tempo. O caso urgia-o, porque Viriatho, obedecendo ao inveterado odio, que tornava irreconciliaveis as duas raças, em vez de pôr assedio a Carpesso, estendeu-se em correrias pela região da Carpetania, habitada pelos mais poderosos e ricos dos povos celtibericos.
Toda essa região fertilisada pelas nascentes do Tagus e do Anas estava já em poder do Caudilho lusitano; e quasi sem combate occupou a cidade de Toletum, a opulenta capital, em que assentou o seu quartel e governo. A cidade, reconhecendo o heroismo com que evitára o morticinio dos seus habitantes e a rapina da soldadesca, celebrou festas publicas, de jogos gymnicos, danças e cantares.
Prolongavam-se os festejos na cidade, quando vieram dizer a Viriatho, que não longe passavam tropas, vindas dos lados do Ebro, que se dirigiam para o sul da Betica. O general comprehendeu logo:
—Do lado do Ebro? É gente que vem das faldas do monte Idobeda. São celtiberos, alliados dos Romanos.
Deu ordem a Tantalo que fôsse fazer um reconhecimento; e no entretanto organisou as suas forças para ir-lhes ao encontro.
Eram effectivamente soldurios e ambactes das povoações celtibericas dos Tittos e dos Bellos; fôram reconhecidos pelos seus trajos, de safões ou anaxyrides, e apertados com cintos, que prendiam em volta do corpo os sagos, tingidos com a côr roxa com que Roma veiu a distinguir os seus escravos. Marchavam descuidados pisando as planuras da Carpetania, seguros de que transpunham um territorio amigo, do mesmo sangue celtiberico. No seu reconhecimento Tantalo não fôra visto, e por isso sabendo Viriatho que esses alliados dos Romanos pouco passariam de cinco mil combatentes, saíu-lhes ao encontro com uma presteza inaudita, surprehendendo-os em um matagal de zimbro e giestas, em que os cercou lançando o fogo em redor, e matando á espada todos os que intentavam romper o cêrco. Não escapou um só d'esses alliados de Roma; e como não houve quem levasse a Carpesso a desastrosa noticia da matança, o Questor mais angustiado se viu com a tardança dos soccorros, acreditando que os Tittos e os Bellos se teriam revoltado a favor de Viriatho.
O fogo da vastissima queimada destruira todos aquelles cadaveres; Viriatho, aproveitando a mobilisação dos seus guerrilheiros, e para se precaver contra a nova campanha que Roma estava organisando, dirigiu-se para o paiz dos Vettões, que confinavam ao sul dos povos Lusitanos, para confederal-os na defeza da sua autonomia contra o invasor estrangeiro. Comprehenderam o perigo, e celebraram o pacto de alliança defensiva. D'esse paiz montanhoso dirigiu-se para o territorio dos Vacceos, que o Durius atravessa. Já pela sua capital Pallancia, pelas cidades de Cauca, Septimanca e Rauda corria uma voz mysteriosa, em que o povo acreditava, que se levantaria um filho de Lusonia para recuperar a liberdade da terra invadida e roubada pelos Romanos. Contava-se que o maravilhoso heroe apparecia nas batalhas montado em um cavallo branco, e que a victoria era sempre sua. Viriatho convocou os homens bons das cidades, narrou-lhes a derrota do exercito do Consul Vetilio, e, como o sangue dos Lusitanos da infame traição de Galba fôra duramente vingado; contou-lhes como assentára o seu arraial em Toletum, e como anniquilára os cinco mil soldurios que os Tittos e os Bellos mandavam a Carpesso soccorrer o exercito romano, que alli se accolhera destroçado. Contava pois com a cooperação dos Vettões e dos Vacceos, para a grande empreza de repellir do sólo da Patria o sangrento e expoliador estrangeiro. Catão o antigo, e Tiberio Graccho bateram as tribus celtibericas, e Servio Galba mentiu á fé dos Lusitanos, porque na Peninsula não apparecera até então um general, que podesse dar cohesão a tantas forças dispersas.
Viriatho foi comprehendido, e jurada a alliança defensiva, marcando os Vettões e os Vacceos o prazo irrevogavel em que appresentariam as suas forças em Toletum.
Lembrado da sua vida de pastor, quando na deambulação dos gados do sul para o norte, fugindo ás calmas, Viriatho dirigia a Mésta e sabia os recessos onde defendel-os, occorreu-lhe á memoria um campo entrincheirado em uma extensa planicie em que corre o rio Pavia, formado de terra recalcada, resistente e quasi petrificada. Quantas vezes n'esse asylo formado pelas gerações passadas, ahi estiveram seguros milhares de rebanhos e manadas, quando algum perigo se arreceiava! O Cabecilha quiz vêr outra vez esse vasto recinto de fortes muros de adobe, considerando que na lucta em que se achava empenhada a sorte da Lusitania, por ventura lhe seria necessario conhecer os seus recursos estrategicos.
Conhecedor de todas as verêdas e atalhos, facil lhe foi encurtar distancias, e em poucos dias de jornada, elle e os taes companheiros chegaram ao valle do Pavia, fechado na sua vastidão por pinheiraes cerrados de um verde escuro que contrastava com a claridade do horisonte. De longe ainda avistaram a vasta chã, contornada pelas muralhas de terra em fórma de um poligno octogonal irregular, e uma altura de setenta e cinco palmos nos seus muros e aterros. Eram outo muros, tendo para mais de cento e quarenta palmos de espessura, fechando um circuito de mais de trez a quatro mil passos; um largo fôsso o circumvallava exteriormente.
Ao avançar para a grande muralha d'aquella fortaleza de terra, Viriatho parecia cada vez mais pensativo; um plano estrategico lhe fulgurou na mente:
—Ah! que se eu conseguisse encurralar no Poço da Cava um general romano com os seus Legionarios todos. Eu lhe converteria o reducto defensivo em ratoeira!
E descendo das alturas da Esculca por um declive suave, entrou Viriatho na grandiosa Cava, que era como um enorme circo, dez vezes maior que o de Roma. Ahi, no angulo das duas faces do quadrante noroéste via-se um pequeno charco de agua nascente, que se tornava em uma lagoa com as aguas das invernias. Os gados e pastores alli bebiam e se banhavam, pelas fortes calmas; era uma vantagem inapreciavel, sempre aproveitada pelos homens da Mésta. Cabia uma cidade dentro d'essas muralhas.
Viriatho esteve considerando por longo tempo este fundo do valle, regado por duas ribeiras, abrigado por montes e collinas de um pendor brando.
—Quantas vezes do cimo da Esculca vigiei, olhando para longe, na defeza dos rebanhos. Como esta Cava, conheço uma outra da mesma configuração aonde me accolhi muitas vezes. Não está aqui ninguem que me tenha acompanhado na transhumação dos gados e recolhido na Cava da Beira, quem vem de Belmonte ao Fundão, por entre essas serras dos Herminios e da Gardunha! Nada fica a dever a esta; mas como refugio desesperado nada ha que eguale a Cava da Beira, um circumvallo inexpugnavel! Póde-se ahi dormir no chão, tendo as estrellas do céo por cobertor; lá o somno é mais agradavel que sobre as fôfas lãs da Salacia.
Contando com a presteza das armas romanas, Viriatho regressou a Toletum para passar revista ao exercito engrandecido pelos contingentes dos novos alliados, e marchar em seguida para a Carpetania; era para ahi que lhe convinha attrahir o general romano.
As varas consulares espalhadas por todas as tribus, gentes e federações da Hispania Ulterior, annunciando a victoria sobre Caio Vetilio, e a necessidade de sustentar a guerra contra os Romanos, produziram um effeito surprehendente em todos os espiritos, sobretudo nos Chefes das Behetrias, ou Cidades confederadas, que até alli se tinham conservado indifferentes nos seus castellos roqueiros, sem confiança no levantamento do povo, por falta de um commandante prestigioso. E comquanto esses chefes das varias Contrebias se entregavam á caça do javali ou do urso, em luctas de mutuas rivalidades, ou se banqueteavam opulentamente, os Pretores romanos iam estendendo a rêde das estradas militares, conquistando ou destruindo Cidades, e firmando o seu poder inabalavel. As varas dos lictores espetadas por todos os montes e pequenos herminios, acordaram o sentimento vivo da independencia nacional.
As tribus lusitanas tinham estabelecido as suas cidades, villares e casaes em volta de diversas montanhas, que eram como o centro da área de defeza, e o refugio nos assaltos da guerra inimiga. Essas montanhas eram cercadas de muralhas formadas por grandiosos blocos graniticos, e escavadas em fundos subterraneos, em que se depositavam cereaes e comestiveis, e com cisternas para guardar as aguas pluviaes, tendo além d'isso um escadorio interior e reservado que dava escapula a grande distancia, em geral á beira de um rio, para o caso de ser tomada a fortaleza. Alli é que residia o presidente ou chefe das tribus que viviam em volta do Castro; e pela contagem de todas as familias formavam uma população de mais de dez mil individuos. Era a esse conjuncto, que se dava o nome de Contrebia; os seus chefes ou regedores, eram designados como regulos e duces pelos romanos, que comparavam estes agrupamentos lusitanos com as phraetrias gregas. Como não havia ordem de successão n'este poder presidencial, resultavam conflictos e rixas, que se mantinham por odios de familias, e até de tribus que se hostilisavam, aproveitando do enfraquecimento d'estas dissidencias o invasor romano.
Agora parecia, que uma intelligencia da missão dos Castellãos se revelára subitamente com o conhecimento da derrota de Vetilio; e as tribus, suscitadas pela vista das varas dos lictores, reclamavam que sahissem da inacção; que prestassem o seu apoio ao extraordinario Cabecilha, o vingador da matança de Galba. Constava que Viriatho, depois da sua victoria se recolhera á cidade de Toletum, preparando-se para novo combate ao Pretor que em breve chegaria de Roma com aguerrido exercito; resolveram todos esses chefes dirigirem-se a Toletum, levando ao pescoço os seus colares de ouro, como a insignia do poder senhorial; os seus braceletes, e lanças de prata com que presidiam aos sacrificios, e ao tribunal em que arbitravam sentenças sobre a vida e bens dos seus clientes ou ambactes. Partiram de todos os principaes cantões da Lusitania esses chefes acompanhados dos seus soldurios, ou guarda-costas valentões, para conhecerem Viriatho e lhe fallarem deliberadamente sobre a defeza e independencia do Territorio patrio.
Quando chegaram a Toletum, ainda Viriatho estava ausente, em uma exploração do territorio em que uma grandiosa Cava se prestava a imprevistos planos estrategicos, a que em futuro proximo teria de recorrer. Mas esses optimates cantonaes fôram encontrar na cidade a que se accolhera o exercito um grupo de homens, a que davam o nome honorifico de Anciãos, EN, e cuja palavra era inspirada e eloquente, por isso nas velhas linguas britonicas se exprimia por D-eirim. O povo, pelo costume antigo, chamava Endre a cada um d'esses homens, a quem acatavam como depositarios de um maravilhoso poder espiritual. E de facto os Endres eram propriamente os Antigos das tribus, os que conservavam a norma e sentido moral ou historico dos costumes; não formavam um corpo sacerdotal, nem mantinham a estabilidade de qualquer dogma theologico, mas possuiam um saber do passado, que os tornava oraculos vivos, conselheiros em todos os momentos arriscados, e conciliadores nas luctas intestinas e separatistas das varias tribus. Os Endres eram queridos do povo; despidos de toda a hypocrisia de classe e de odios doutrinarios dos sacerdocios, mofavam com o seu bom senso dos ritos e dogmas dos Druidas das Gallias, que elles desprezavam como macaqueadores das normas cultuaes da religião oriental dos Mobeds de Mithra, que se propagava pela Europa. O caracter e ascendente moral dos Endres estabelecia-se espontaneamente, quando o povo reconhecia em um Ancião das tribus o bom conselho, o saber pratico da vida, e o conhecimento das Tradições do passado; era então considerado como unico e como inspirado. Apontavam-se na Lusitania numerosos Endres, venerandos pela sua edade e saber: uns conservavam de memoria as Runas, ou propriamente as tradições locaes e da raça, e tendo na mão o ramo da Azinheira coberto de l'andras, presidiam ao sorteio annual das terras, evitando prudencialmente todos os conflictos; outros sabiam as Sagas, ou narrativas históricas, as Aravengas, que recitavam nos banquetes dos regedores cantonaes e nas festas consagradas a perpetuar successos memoraveis das tribus; outros conheciam as Sentenças da moral gnomica, Singvan, os aphorismos ou dictados, que exercem justa auctoridade nas resoluções da vida, porque condensam em breves phrases, ás vezes em um só verso, a experiencia de seculos; outros interpretavam o sentido dos velhos Symbolos, resolviam os mais intrincados Enigmas, e penetravam a materia numerica dos Quadrados magicos. D'entre todos esses Endres destacava-se um, pelo saber maravilhoso reunido em sua mente incomparavel; conhecia as mais vetustas tradições da terra da Lusitania, quando ella ainda se estendia até á falda occidental dos Pyreneos, as terras de Lez, que as convulsões do tempo fôram tornando cada vez mais ribeirinhas; só elle recitava Poemas de mais de seis mil annos de antiguidade; conhecia as cavernas e arcas cavadas nas rochas em que estavam occultos thesouros; e o que mais assombrava, tinha o segredo da leitura dos Quadrados magicos e dos Bastões runicos, que lhe davam uma fé inabalavel na independencia e missão vindoura da Lusitania. Esse Endre chamava-se Idevor, e quando passava pelos povoados saudavam-o com o titulo de Sanctum Anderu, e davam-lhe corôas feitas de ramos de azinheira. Pela sua paixão pelas antiguidades e liberdade da Lusitania se justifica o regosijo que em seu espirito provocou o apparecimento de Viriatho! Como a derrota por elle infligida ao Consul Vetilio o encheu de fervorosas esperanças! Idevor appresentou-se em Toletum com Endres de varias terras, e pelas conversas que entre si tiveram, facil lhes foi apurarem um conhecimento completo da personalidade do pastor Ouriato, que o povo acclamava agora pelo titulo de Viriatho. E vendo a chegada dos chefes das Contrebias, resolveram ir ao encontro d'elles, e dirigil-os no intuito de prestarem todo o auxilio ao destemido cabecilha.
Toletum estava em festa; pela presença d'esses homens ornados de collares de ouro e braceletes, e acompanhados de numerosos sequitos de soldurios e ambactes. O pequeno grupo dos Endres levando á sua frente o venerando Idevor saíu a saudal-os á entrada da cidade, e juntos todos fôram tomar a refeição ou consoada e libar grandes covilhetes de cerveja. Á meza um dos castellões, Leucon, chefe de tribus celtibericas, lançou a phrase:
—Dizem que Viriatho, o vencedor de Vetilio, é um simples pastor da Serra, que apascenta gado alheio lá no Herminio maior, que separa as duas Beiras?
Idevor percebeu uma vaga intenção de amesquinhar a capacidade militar do vingador dos morticinios de Galba, e com a clareza de uma consciencia pura, que de tudo se informára, respondeu:
—Eu conheço a vida d'esse valente pastor, desde o tempo em que o seu nome era simplesmente Ouriato. Quantos aqui possuem gados, sabem qual é o valor de um homem a cuja guarda se confiam para mais de vinte mil cabeças de variados rebanhos, que elle tem de defender através das marchas da deambulação, quando são levados das terras seccas, sem prados e abrazadas pelas calmas, para as pradarias de serras chêas de barrancos, de ursos e lobos e mesmo de salteadores. Este serviço dos gados na sua transhumação está organisado na instituição da Mésta, que dirige a juncção dos gados de todos os proprietarios; e n'este serviço só chegam a Maioraes aquelles moços que revelaram qualidades singulares de intelligencia, coragem, ardil, e que pela valentia ou astucia souberam salvar os rebanhos de perigos ou assaltos repentinos. Ouriato chegou a Maioral da Mésta em uma edade quasi de adolescente; foi n'esse serviço violento da deambulação dos gados, e responsabilidade de tantos valores, que elle provou além da valentia e disciplina, as qualidades mais intemeratas de caracter. É verdadeiramente um homem: e, pela resistencia ao soffrimento e ás contrariedades da sorte, é o typo dos lusitanos. O que insurreccionou a sua alma contra os Romanos foi o ter assistido á mortandade iniqua de trinta mil lusitanos ordenada por Galba, de que escapou maravilhosamente; e hoje o seu poder sobre o exercito provém-lhe de o ter salvado da rendição já combinada, e de no barrocal da patameira ter destruido quasi metade do exercito romano, desmoralisado pela morte do Consul Vetilio. Este homem é perante o povo uma reapparição d'esse Viriatho, que os romanos chamavam o Principe da Lusitania, e que indo combatel-os á Italia, soccumbiu na famosa batalha de Cannas. Esta auréola maravilhosa é tambem uma força, e com ella podemos contar, porque Viriatho será o libertador da Lusitania. Temos um general consumado; o povo accode ao seu chamamento, falta só o apoio dos chefes das Contrebias.
A ameaça das reprezalias romanas fez comprehender a todos esses presidentes das cidades federadas, que tinham de dar o seu apoio a Viriatho como recurso da propria segurança:
«Que seja entregue a Viriatho o Collar de ouro como insignia do poder, e para que lhe obedeçâmos como nosso egual.»
Foi geral o assentimento. Então Idevor, erguendo-se com um magestoso aspecto, disse:
—Eu sei onde pára occulta uma Viria, que attesta essa epoca em que todos os Estados da Lusitania estavam ainda unidos. É um Collar de ouro de tres Crescentes! Representa a mutua solidariedade de raça, costumes e Governo da Callaecia, da Betica em volta da Lusonia! Eu só guardava o segredo d'esse thesouro incomparavel, muitas vezes receiando que elle se extinguisse com a minha vida! Felizmente que se ergueu um homem, que pelos seus feitos os outros julgam digno de receber a Viria! O Collar dos tres Crescentes está occulto em uma caverna do Herminio maior, desde o tempo das invasões da Hespanha pelas hordas orientaes. Pouca gente terá pisado as veredas que conduzem ás Cavernas lindissimas do Cantaro Magro; mas no Covão do Boi, ao sul do Cantaro raso, existem umas ruinas ou Catacumba descoberta, com menhires e potentes monolithos sobrepóstos; do fundo da rocha d'onde se avista o bôjo do Covão Magro com o singular especto de uma enorme carranca, é ahi que está excavada na rocha uma Arca ou caixa em que se contém o Collar de ouro dos tres Crescentes. Eu me presto a ir buscal-o, e dentro em poucos dias aqui estarei de volta.
A revelação de Idevor foi recebida com acclamações de assombro; e os chefes das Contrebias, pedindo-lhe que fôsse buscar o thesouro da raça, bradaram:
—Seja dado a Viriatho o Collar de ouro dos tres Crescentes.
Carros com pipas de cerveja passavam pelas ruas, e taboleiros com fartes de farinha de bolota á cabeça de moças com arrecadas de ouro nas orelhas e grossas contas de ambar em volta de pescoço; formava-se o arraial para a entrada de Viriatho.
A chegada de Idevor a Toletum com a Viria dos tres Crescentes de ouro, de que até então se fallára como fabula ou tradição confusa, coincidiu com o regresso de Viriatho seguido da numerosa cavalgada dos seus Soldurios, que o fôram esperar ao caminho, e dos tres companheiros que lhe formavam a trimarkisia, Ditálcon, Andaca e Minouro. Estes tres bravos eram do pequeno numero dos sobreviventes da mortandade de Galba, e pela tremenda desgraça se achavam ligados ao agil pastor que matára os dez elephantes africanos, e com elle andaram pelas cidades da Lusitania insurreccionando os povos contra a devastação de Roma; vinculava-os uma decidida dedicação áquelle em quem reconheciam espontaneamente o maximo ascendente moral. Ditálcon era o mais velho, intelligente e reflectido, capaz de desempenhar missões difficeis; Andaca, joven e phantasioso, mostrava-se repentinamente enthusiasta ou desalentado, segundo as pessoas com quem tratava; Minouro, tinha algumas qualidades d'estes dois companheiros; mas predominava n'elle a solercia, ou antes a falta de franqueza no caracter. A victoria e a acclamação de Viriatho ligou-os mais intimamente ao chefe reconhecido, de quem não tinham inveja. Quando elles viram Idevor e o triplice Collar, disseram entre si:
—Para o Principe da Lusitania.
Viriatho fitou-os com seccura, e abaixou os olhos desdenhoso, com o desgosto de que alguem suspeitasse que combatia por outra ambição que não fôsse a liberdade da nossa Terra.
Os Chefes das Contrebias, avistando Viriatho, caminharam ao seu encontro, saudando-o com gritos de alegria, e erguendo ao ár as suas lanças de prata, com que presidiam ao sorteio das terras, e á entrega dos gados da sua região aos Chefes da Mésta, e mesmo aos tribunaes á sombra da carvalheira, onde davam as sentenças. E elles proprios, vendo o sabio Idevor junto de Viriatho com o Collar de ouro na mão, bradaram com enthuziasmo:
—Lançae-lhe ao pescoço a Viria do Commando, aqui, agora, antes de entrar na cidade.
Idevor obedeceu com jubilo, e lançou-lhe o Collar de ouro. Disse um dos chefes das Contrebias:
—Agora, dignificado com a Viria, é que Ouriato ficará para sempre sendo o nosso Viriatho.
Idevor, que conhecia as mais antigas tradições da raça, acudiu com ár mysterioso:
—Se procurarmos o sentido mystico que se contém no nome de Viriatho, vamos encontra na palavra scythica Vrindus, que designa o Touro, o totem da nossa antiga raça e civilisação dos Ligures, a relação com a valentia do heroe e a sua missão religiosa do combate libertador.
Assim conversando, a brilhante Cavalgada entrou em Toletum, dirigindo-se ao terreiro da cidade em que estava erecta a columna denominada Pilumnos, que symbolisa a independencia da communa ou Municipio. Foi ahi, que antes de destroçarem, pediram a Idevor, para que recitasse a Saga ou narrativa tradicional que se dizia existir da Viria ou Collar de ouro dos tres Crescentes.
Idevor não se fez rogado, e começou em uma recitação quasi melodica o poema em que era celebrado este Symbolo da Confederação primitiva dos estados da Lusonia, antes de um invasor oriental ter penetrado na Hespanha, explorando-lhe as riquezas, e dissolvendo-a pelo espirito separatista com que enfraquecera a raça. Como os Aédos de Hellade, diante das tribus doricas, eolias e acheanas, Idevor unificava idealmente as tribus lusas recitando o poema de:
CHRYSAÔR
Do Herminio Maior na immensa altura
Vê-se o Corgo das Mós, que as nuvens fura,
Formado por tres grupos de rochedos,
Como irmãos que se apoiam firmes, quedos!
Sobre o do centro, como em pedestal,
Bloco estupendo, grandioso assenta;
De um Gigante a cabeça representa,
De longe contornando no horisonte
Negro perfil de mysteriosa fronte.
Das convulsões da Natureza activa,
No calor de uma lucta primitiva,
São taes blocos relêvos manifestos:
Mas ha quem reconheça n'esses restos,
No bloco e nos tres grupos de rochedos,
Da Lusonia antiquissimos segredos:
Governou esta terra um patriarcha,
Théron, desde o norte ao sul a abarca,
E aos extrangeiros a fronteira fecha.
A seus tres filhos este Estado deixa:
—Se a terra de Lusonia dividida
Fôr entre vós, por certo enfraquecida
Fica exposta ao assalto do estrangeiro,
D'Africa, ou levantino aventureiro.
Mas se a Lusonia unida se conserva,
Não entra aqui indomita caterva;
E grande, desde o Sacro Promontorio
Até ao mar Cantabrico, este emporio
Que vae dos Pyreneus té á vertente,
Será da Hespanha o estado mais potente.—
Do mundo era por toda a redondeza
Théron, por causa da sem egual riqueza,
De Chrysaôr por nome conhecido.
Pelo pezo da edade amortecido,
Chama os tres filhos; vieram reverentes,
E um aureo Collar de tres Crescentes
Lhes entregou, no seu momento extremo:
—Dou-vos a insignia do Poder supremo.
Os trez Crescentes d'este aureo Collar,
Pela crença da religião lunar,
As tres phases da Lua symbolisa.
São a Lusonia integra, indivisa,
Abrangendo a Tartéssida virente,
Tarraconia, e Callaecia, a mesma gente!
Ah, se partirdes este Collar de ouro,
Cae a soberania... escuro agouro.
E receiando o temeroso evento
O velho Chrysaôr exhala o alento.
Deram os tres Irmãos ao pae amado
Nas Cavernas do Cantaro Delgado,
Sepultura em pyramides alpinas,
Que têm o aspecto de um castello em ruinas.
Ante o cadaver, na alta sepultura,
Entre si, cada um dos Irmãos jura
Não partir o Collar dos tres Crescentes,
Mantendo unidas as lusonias Gentes.
Em catacumba do Covão do Boi
O Collar de Ouro escondido foi,
Fixando, do local para lembrança,
Aquelle d'onde a vista longe alcança
Sobre o Cantaro Magro ingente bôjo
Que de bruta Carranca tem o antojo.
Resguardado na Arca de um fraguedo,
Os tres Irmãos em mutuo segredo
Conservam da Lusonia, ora indivisa,
Do Poder soberano essa divisa.
Ha entre os tres Irmãos tanta harmonia,
Que sentindo o que cada um sentia,
Ou unidos no mesmo pensamento,
Realisam o accordo em um momento,
Um longe, na Callaecia laboriosa,
Outro áquem na Tartéssida formosa,
Ou já na Tarraconia grande e forte.
Quanta prosperidade d'esta sorte
De Lusonia engrandece os tres Estados,
Rica de bens, dinheiros, e de gados!
Mas a faina do Mar fôra esquecida,
Trocada pelas da agricola vida!
Ah! d'aqui a catastrophe resulta,
Que a liberdade lusa atroz sepulta.
Quantos Povos invejam com insania
Os viçosos Jardins da Bastitania,
E vêm pelos cantares dos Homerides
Buscar o Elysio e os Jardins Hispérides,
Crendo encontrar aqui o Velocino,
Que reconhecem ser gado bovino!
Aventureiros lá do mundo Asiano,
Arribaram ao porto Gaditano,
Affrontando do pélago o terror,
Para roubar o gado a Chrysaôr!
Heracles forte, o tyrio, vinha á frente,
Doésta os tres Irmãos, soberbamente,
Para um combate a corpo, singular.
Terrivel o recontro, atroz o azar!
Caiu dos Tres Irmãos o irmão mais velho,
Heracles o esmaga sob um joelho!
E a mesma dôr, que a vida lhe arrebata
Aos outros dois Irmãos é a que os mata.
Desde então a Lusonia sem commando,
Viu-se roubada de estrangeiro bando,
Que a invade, a devasta e a governa,
Perdida a ideia da união fraterna!
A aspiração moral ficou intacta!
Do Collar de ouro nunca se desata
Nenhum dos Tres magnificos Crescentes;
E á espera de outra Éra e novas gentes,
Aguarda, ao fim do secular destrôço,
Um bravo e audaz a quem cinja o pescoço.
...........................................................
O sabio Idevor, dominado por uma commoção profunda, interrompeu a recitação do Poema de Chrysaôr, que segundo a tradição contava milhares de annos de vetustade; e de facto os successos referidos narravam as primeiras invasões no territorio hispanico, que antecederam todos os documentos ou monumentos da historia.
Os chefes das cidades confederadas applaudiram com os seus renchilidos e vivas o recitador, o Endre sapiente; o velho, mostrando o Collar de ouro dos tres Crescentes, avançou para junto de Viriatho, e depois de fazer uma vénia solemne lançou-lhe ao pescoço a Viria da triplice soberania.
Emquanto os Cavalleiros decorados de Collares de ouro de um só Crescente rodeavam o novo Caudilho lusitano, começou a ajuntar-se muito povo pelo empenho de admirarem de perto o vingador, aquelle que soubera inflingir a formidanda derrota ao exercito consular. E naturalmente aos gritos com que se saudavam as varias regiões autonomas:—Viva a Callaecia! Viva a Tartéssida!—começavam-se a organisar dansas peculiares dos montanhões e dos ribeirinhos, vistosas e com caracter guerreiro, outras surprehendentes pela agilidade dos pés e dos saltos, com um sapateado rythmico, ululando phrases que tornavam mais delirante o enthusiasmo. A dansa mais querida era a propriamente armada, formando uma grande roda ou circulo girando ora sobre a direita, ora sobre a esquerda, por homens de mãos dadas, mas tendo cada um a lança, da qual lhe provinha o nome de Palotêo ou Paulitos, ora avançando, e já recuando ao compasso do canto de um Côro gigantesco, terminando no cabo de todos os passos por um simulacro de batalha.
No fim do animado palotêo, appareceu um grupo de mocetonas gaditanas, formosas e desenvoltas, com braceletes ricos e armilhas nos braços e pernas, dansando á moda da Tartéssida, e com seus adufes, dando-lhe um aspecto religioso orgiastico, estonteante. Os Romanos, que vieram á Hespanha Ulterior, sentiram-se fascinados por estas dansas das soalhas ou castanholas metalicas, e memoraram em seus livros a Betica crusmata e a Tartessiaca aera, que tanto iria enlouquecer a mocidade dourada da Cidade eterna. Proseguindo na sua dansa fôram as bailadeiras beticas approximando-se do grupo em que estava Viriatho, dirigindo-lhe em Côro em fórma de corranda:
A Canção da Viria
Onde ha fontes de agua pura,
Vamos a sêde matar.
Onde ha graça e formosura,
Vamos com paixão amar.
*
Onde ha um bravo que vence,
Vamos-lhe a gloria acclamar!
A Viriatho pertence
De ouro o triplice Collar!
*
Brilha n'esses tres Crescentes
Do sol fulgor singular:
Sigam os homens valentes
Esta nova luz polar.
*
Onde ha odios e vingança,
Vamos a sêde matar!
Da Patria livre a esperança
Vamos com paixão amar.
*
Siga o triplice Collar
O que ser livre aspirar!
Terminadas as dansas e cantares do vistoso arraial, os Chefes das Contrebias no meio de tanta alegria começaram a atirar pequenas moedas de prata ás rebatinhas, que o povo em chusma corria a apanhar, atropellando-se, em cambalhotas, em que cada um no meio de estrondosas risadas mostrava a maior agilidade e presteza. Essas moedas eram quasi todas de valor de um drachma, e cunhadas nas cidades lusitanas como manifestação da sua autonomia. Viriatho notou n'aquelle espectaculo divertido, que as turmas do povo, ao agarrarem as moedas, miravam-as no verso e anverso, e em seguida guardavam umas com soffreguidão, e arrojavam para longe com desdem as outras. Inquiriu do caso inesperado; foi então, que Idevor lhe explicou essa manifestação espontanea e significativa da alma popular, mostrando-lhe dois d'esses differentes numismas de prata:
—Reparae n'esta moeda: De um lado está cunhada uma cabeça viril, em cabello; tem barba, e um collar ao pescoço. Do outro lado, vêdes, um cavalleiro a galope, com a lança em riste! Agora a outra moeda: em uma face está impressa uma corôa de carvalho, e no reverso figura um Colono conduzindo dois bois, como quem lavra a terra. O povo conhece esta differença, e o que ella significa. Todas essas moedas do Cavalleiro da lança, são por antigo costume cunhadas em Cidades livres e autonomas, inscrevendo n'ellas o seu nome, como vereis em tantas que para ahi se arrojam ás rebatinhas, como estas...
E Idevor foi mostrando ao acaso as moedas, e lendo os nomes de Toletum, Alva, Bilbilis, Segovia, Segobriga, Carissia-Celsa, Sactabis, Toriasum, Clunioo, Gili, Italica, Sacelli, Sagunto, Lastigi, Osca, Ilipla, Itvci. E interrompendo o exame continuou:
—Roma emprega todos os meios para substituir estas moedas pelas do Colono conduzindo os bois, com que representa o seu dominio, pela corôa de carvalho, e a servidão dos povos submettidos como os bois ao arado, as quaes faz circular nas suas cidades estipendiarias e municipaes.
—Comprehendo agora o sentimento do povo. Repelle o jugo do estrangeiro, e só acceita o Cavalleiro da lança. É esse sentimento que me fortifica.
Os chefes das Contrebias, ao terminar das festas, saudaram um por um a Viriatho, e lhe fôram contando na mão cinco pequenas moedas de prata, d'aquellas que pouco antes tinham arrojado á multidão. Era a expressão symbolica do direito individual, em uma sociedade que se regia pela communidade das terras lavradas, das pastagens, e dos celleiros do clan para as colheitas agricolas.
O territorio lusitano pertencia exclusivamente ás tribus ou gentes, sendo annualmente sorteadas pelas diversas familias as geiras que haviam de cultivar. Sobretudo nas margens fertilissimas do Douro, e no cantão dos Vacceos, é que este communismo tradicional se conservava na sua maior pureza. Com o tempo introduziu-se o costume de cada familia conservar como proprio o terreno de cinco acres, ou agra em que estava a casa, o poço e a horta. Era o que o rifão popular allude ainda, quando para significar a indigencia a exprime:—Sem eira, nem beira, nem ramo de figueira.
Este terreno, que tambem na primitiva familia romana tinha o nome de Haeredium, era o fundamento da estabilidade da familia, e, sempre inalteravel, era um vinculo ao qual se incorporava qualquer cercado em que se estabelecera um novo casal. Para que esse solar se mantivesse sempre indiviso, a herança dos irmãos da mesma familia fazia-se excluindo-os da propriedade da terra dando-lhes cinco moedas de prata.
Viriatho comprehendeu o sentido da offerta que lhe fizeram os chefes das Contrebias. Nos territorios da Lusitania elles possuiam como seus proprios e individuaes os solares dos Castros, Castrellos, Crôas e Môrros, Cabêços e Citanias, Penhas e Cidadelhes; e a entrega das cinco moedas de prata, significando a affirmação de independencia solarenga no meio dos territorios communaes, n'este momento representava o reconhecimento de uma suprema chefatura. Era o direito soberano de Chevage.
Na bandeira branca dos Mil de Viriatho, e no escudo do valente cabecilha, d'aquelle dia em diante ficaram representados os cinco dinheiros, chamando-se-lhes por isso o Pendão das Quinas, o Escudo das Quinas.
Viriatho foi visitar as officinas dos Espadeiros de Toletum, que eram afamados no mundo pela tempéra rija que sabiam dar ao ferro com que fabricavam as armas hespanholas. O seu nome já era conhecido entre os Espadeiros, e um d'elles com aspecto de auctoridade deixou a forja e veiu ao encontro do Cabecilha com alegria:
—Bem esperava vêr-vos, e saudar-vos! As espadas que temperâmos carecem de braços firmes como os vossos.
Viriatho tocando-lhe com a mão no hombro, e avançando pela officina ao ruido das bigornas em que se rebatiam a martello as laminas já frias, volveu-lhe:
—Andergus! ás espadas que fabricaes póde-se-lhes chamar magicas, porque tornam invencível o homem que as brande.
O espadeiro sorriu-se com orgulho, e começou a explicar a Viriatho o valor das armas que se fabricavam n'aquelle fóco de uma antiga tradição metalurgica:
—Sabereis, que os Romanos quando vieram á Hespanha combater os Carthaginezes usavam ainda uma miseravel espada de cobre forjado a que chamavam Ligula, a qual vergava com a força do golpe e que elles durante o combate endireitavam com o pé. Quando os Romanos viram as nossas espadas de ferro, adoptaram esse typo para o seu armamento, que mandaram fabricar em Astorga, Valencia e a quantos armeiros encontraram espalhados por essas Hespanhas. Mas, o segredo da tempera do aço só nós os Espadeiros de Toletum o possuimos, e é esta a superioridade das espadas lusitanas. Os Romanos nunca nos poderam apanhar esse segredo.
Viriatho escutava com encanto e assombro a observação de Andergus, e sentiu-se animado de uma intima confiança com aquella revelação: as espadas lusitanas eram de aço. E Andergus appresentou-lhe uma espada:
—Vêdes! aqui está uma espada romana; tem de extensão um pé e quatro polegadas, larga de tres dedos, cortando com dois gumes, e de ponta aguçada, punho do proprio metal. Serve para ferir de golpe de alto a baixo, ou de estocada a fundo. Mas... reparae como esta espada se entorta e fica vergada.
E calcando a espada debaixo do pé esquerdo curvou-a:
—É romana; cá está a marca gravada. Reparae: ABVRBCDCIII. Não conheceis talvez o que querem dizer estas letras: Ab urbe condita, da fundação de Roma, no anno seiscentos e tres.
—Ah! do anno da matança. Acudiu Viriatho.
—Agora vêde esta nossa espada toledana; um golpe d'ella corta no ferro como se fôsse em chumbo. É mais comprida do que a romana uns dois palmos, e de folha mais estreita. É mais leve, e incute o golpe mais longe, porque a tempéra do aço dispensa a grossura, necessaria ao ferro doce. É com estas espadas que nos havemos achar frente a frente com os Romanos; elles não conhecem esta nossa vantagem.
No semblante de Viriatho transluziu um raio de alegria; e abraçando Andergus, como um d'aquelles de quem dependia a liberdade da Lusitania:
—Não temeis que um dia vos roubem o segredo da tempéra do aço?
—Esse segredo está n'estas aguas do Tagus, e nas suas areias auriferas. É aqui n'esta região que sómente se póde dar ao ferro em brasa a dureza impenetravel.
Viriatho ficou pensativo, e como que voltando a si de um transporte, exclamou com jubilo:
—Uma terra que tempéra com as suas forças occultas o ferro por essa fórma unica, essa terra só póde ser pisada por homens livres communicando ás suas fibras a rijeza do aço. Ah, sinto em mim alguma cousa d'essa tempera das espadas de Toletum.
Andergus fallou-lhe mysteriosamente:
—Não é só a agua e as areias auriferas do Tagus que dão ao ferro essa força inquebrantavel; nem tampouco ser o ferro das minas de Mondragon; este céo tambem entra para ahi em alguma cousa. Reparae para este céo azul e profundo. Quando o metal está derretido, e á sua superficie a calda reflecte esse azul ferrete do céo, é quando álgum influxo da abobada etherea diamantina desceu e veiu dar-lhe tão assombrosa qualidade.
Andergus fallava com uma confiança absoluta em Viriatho, e n'aquelle momento para o caudilho lusitano não guardava segredos. Depois, com um certo orgulho de tratar com Viriatho, de quem tanto se fallava, e maravilhado de o encontrar lhano e despido de toda a soberba, confessou-lhe:
—Muito quizera forjar por minha mão uma Espada, que fôsse a vossa companheira nas batalhas que ainda tendes de dar contra o Invasor romano. Não devo fazel-o; ha uma Espada heroica já consagrada por victorias, com o poder que torna invencivel aquelle que a cingir, e é essa a que vos compete.
—Eu nunca ouvi fallar d'essa Espada.
—É a espada Gaizus! devolveu promptamente Andergus: Não sei aonde ella está occulta, mas ha por certo quem o saiba. É um talisman de liberdade. Dizem que está enterrada, e creio que em chão lusitano, ou com certeza na sepultura de algum bravo. Se Indibilis, Mandonio e Salondico a tivessem brandido! Ah, se a espada Gaizus apparecer, e vier á vossa mão, saberão os romanos o que é um raio...
Viriatho presentiu que uma força maravilhosa se ia desvendando; mas Andergus fallava de uma tradição vaga, e nada mais podia adiantar. E levando o caudilho lusitano pelas officinas, parando ao pé das forjas, das bigornas e rebolos, em que trabalhavam activos armeiros, mostrava-lhe as armas diversas que estavam fabricando:
—Já podestes vêr a Spatha e o Gladius, comparando-os com a nossa Espada hispanica de aço puro, com uma nevrura ao meio ou especie de quina; agora reparae para esta Espada curta, é a Machoera, á maneira de punhal, para combater corpo a corpo, mas é propriamente uma adaga. Verdadeiramente lusitana é a Rhanda, a faca ou naifa de quasi dois palmos, pendurada á cinta, e que acompanha sempre o homem quer nos trabalhos dos campos ou nos da guerra. Até isto os Romanos nos roubaram, porque de ha muito deram em usar a Rhanda pendurada ao lado direito. Se nós fossemos a reclamar o que nos pertence, tambem como conhecedor pratico posso attestar, que a Lancea romana é imitada da nossa lança ou chuço peninsular: tem uma ponta de cobre, outra de ferro, e algumas como a Soliferrata são completamente de ferro. Mas, deixemos aos homens que nos devastam dizendo que nos querem civilisar, a gloria dos seus roubos; aqui estão as Tragulas, com a sua ponta em fórma de anzol, arma terrivel que tem ferido generaes carthaginezes e consules romanos.
—Tenho mais confiança na Falcata, uma gadanha que chega a dar os resultados de uma boa espada.—Acudiu Viriatho, terminando o seu pensamento:—Quando o povo quer, com as suas foices, gadanhos, forquilhas e engaços, é capaz de levar adiante de si o poder do mundo. Em Roma já se diz, que o mais destemido general não é capaz de fazer virar as costas a um Cantabro. Resta-me a esperança de que ainda hão de tremer ao encarar um Lusitano, que nenhuma calamidade descorçôa.
Viriatho despediu-se de Andergus, que voltou para a sua incude, quando viu apparecer o vulto de Idevor, que o procurava. Pouco fallaram; mas um movimento repentino de todos os terços e catervas lusitanas, postos em marcha instantaneamente, era revelador de que já pisava terras da Hispania Ulterior um general romano, um Pretor de confiança. Sobre os escudos feitos de couro crú e cordas de tripa entretecidas de arâme, os soldados lusitanos batiam pancadas rythmadas, a cujo som cantavam os seus hymnos triumphaes e os clamores do Tripudio antes de entrarem em combate. A marcha fazia-se a esta cadencia das Cetras, que resoavam com estridor de alegria, em passos e saltos em que antegostavam os impetos da acção.
A derrota de Vetilio era commentada em Roma por fórma que se ligava pouca importancia á resistencia dos Lusitanos; attribuia-se a um defeito da organisação do exercito. Dizia-se que o patriciado romano, temendo que nas guerras longinquas os generaes conseguissem um grande prestigio sobre as Legiões que commandavam, se tinha estabelecido, que em cada Legião houvesse mais do que um chefe, sendo commandada por seis Tribunos militares, que por turno se succediam. Lamentava-se que geralmente os tribunos militares fôssem eleitos pelo povo e pelo senado, muitas vezes entre a mocidade inexperiente e por favoritismo. Que, verdadeiramente, era com os Centuriões que o general podia contar, por que esses sahiam da fileira, chegavam ao commando dos manipulos pela sua bravura, e conduziam as cohortes, até se elevarem a primipulos da Legião.
Era no Consulado de Publio Cornelio e de Caio Livio, quando foi nomeado novo Pretor para governar e commandar o exercito que operava contra os Lusitanos, o destemido Caio Plancio. Fôram-lhe entregues dez mil Legionarios e mil e quinhentos Cavalleiros, para engrossar as tropas que estavam recolhidas em Carpesso. O Pretor queria proceder com rapidez, e mostrar a Roma desalentada, que elle submettia para sempre esse povo irrequieto, que não se conformava com o jugo da Patria das Leis. Soube que o exercito de Viriatho permanecia na Carpetania, e quiz ir ao seu encontro, logo.
O Caudilho lusitano exultou de alegria, vendo aquella resolução inconsiderada.
—Plancio obedece inconscientemente ao meu plano, vindo pisar um terreno desconhecido. A victoria é nossa.
E assim que as suas vedetas lhe vieram dizer, que o exercito de Plancio estava quasi á vista, Viriatho dispoz as suas tropas por fórma a acceitar a batalha campal. Era com isso que contava o Pretor, fiado na disciplina inflexivel dos seus Legionarios, sempre com vantagem sobre tropas mal adestradas. Viriatho tomou immediatamente a offensiva carregando com os seus hastarios sobre o exercito romano; mas esse movimento impetuoso e apparentemente desvairado era um embuste. Plancio acreditou na furia cega da gente lusitana, e quando travou o combate, seguro de que em breve a teria derrotado, a um signal combinado todos os guerrilheiros lusitanos viraram costas ao exercito pretoriano em uma debandada rapida, vertiginosa e inesperada.
Plancio hesitou um momento sem comprehender aquelle exodio repentino:
—Fogem! Isto não é exercito; é um bando vil de cobardes. Não deslustrarei o meu exercito perseguindo o bando fugitivo.
E deu ordem a que se destacasse promptamente um trôço de quatro mil homens para dar caça ao lusitano.
Quando Viriatho comprehendeu pelo movimento dos manípulos a intenção do Pretor, rejubilou, exclamando:
—Temol-o cahido na cilada.
E quando o trôço dos quatro mil, que ia em perseguição dos lusos, já estava distante do exercito romano uma boa legua, Viriatho cáe em pezo sobre elles, envolve-os e chacina-os com presteza, escapando apenas aquelles que conveiu, para que levassem a tremenda impressão da catastrophe a Plancio. Nunca as espadas temperadas com as aguas do Tagus, que lhes dava toda a rijeza do aço, trabalharam com mais nitidez. Caio Plancio sentiu-se ferido no seu prestigio, e a perda d'aquelles quatro mil homens revelava-lhe a importancia do inimigo com quem tinha de combater. Faltava-lhe já a frieza da rasão, e arrojava-se contra Viriatho como o boi contra o panno vermelho. Viriatho tinha prevenido a hypothese, de no caso de derrota, accolher-se aos fraguedos da Serra d'Ossa; mas não lhe foi preciso, antes aproveitando a exaltação em que Plancio se encontrava, seguiu avançando para o norte e transpoz o Tagus.
—Será Plancio tão inconsiderado que venha aqui á margem direita do rio? Se elle tal faz, saberá o que é uma derrota fundamental; hade ter que contar em Roma.
E Plancio, dementado pela furia que lhe produziu a mortandade dos quatro mil legionarios, atravessou o Tagus para a sua margem direita.
Viriatho estava acampado em uma collina coberta de oliveiras; quando ao sopé da montanha appareceu o exercito de Plancio, seis grandes matacães graniticos fôram rolados do alto, precipitando-se e esmagando tudo quanto encontraram diante. No meio do assombro e da desordem produzida pelo espantoso successo, Viriatho deu ordem para uma carga de lanças, proseguindo á espada a batalha campal, para mostrar ao general romano que os lusonios tambem sabiam bater-se com tropas disciplinadas em campo raso, em corpos de seis mil homens, em linhas symetricas tanto para o ataque como para a defeza, com a formatura em cunha, e protegendo-se mutuamente.
Plancio, vendo que prolongar o combate seria tornar mais completa a derrota, ordenou a retirada para a margem do Tagus, empregando todos os seus recursos estrategicos para conseguir passar o rio; uma vez na margem esquerda os que se salvaram, foram procurar refugio nas cidades fortificadas, em que o poder romano se firmára na peninsula.
Em um festim em que Viriatho reuniu os chefes da campanha, e quando entregava desinteressado aos seus guerrilheiros os despojos tomados ao exercito de Plancio, entre as conclamações ruidosas dos Peltastas e Cetrados exclamava sorrindo:
—O verão ainda agora vae em meio, mas já o exercito romano busca abrigo nos seus quarteis de inverno.
—Emquanto elles cosem os rasgões que lhes fizeram as nossas adagas, não deixemos que estas se enferrugem; vamos infligir o castigo a esses povos que contra nós os auxiliaram, desde o Tagus ao Ebro.
E se bem o disseram melhor o cumpriram.
A noticia da derrota vergonhosa de Plancio produziu em Roma uma commoção inconcebivel. Uns acreditavam que as minas de prata e as riquezas da Lusitania ficariam para sempre estancadas, e exclamavam com rancor: É preciso anniquillar esse povo barbaro, que assim se atreve a resistir contra a civilisação da grande e generosa Roma. Que o Pretor Caio Plancio seja chamado a Roma, para dar conta dos seus actos, d'esses miserandos feitos com que infamou as armas romanas, cujo prestigio é a base do poder da Cidade eterna.
E Plancio nem tempo teve para reorganisar o exercito com que se salvára depois da derrota nas faldas do Monte-Veneris; chamado a Roma, para apresentar-se diante do Senado, elle partiu menos seguro do que Galba; não levava barras de prata e ouro para corromper os seus juizes, não lhe deram tempo para isso. A narrativa da campanha na Lusitania era inacreditavel, e por isso a sentença estava prevista,—a deposição e o desterro, para que não se fallasse mais d'elle, e para que os futuros generaes apprendessem no temeroso exemplo.
Emquanto os Romanos se preparavam para novas operações de guerra, Viriatho estendeu as suas correrias para o norte, por toda a Celtiberia, até ao Ebro; veiu depois a léste até á Edetania, Contestania; e passando por Castalon, Tucci e Obulca, penetrou na Oretanía. Era um reconhecimento dos territorios e das povoações! sabia aonde teria facil refugio nas cavernas e antas, e que gentes o apoiariam contra o invasor estrangeiro. Na sua passagem rapida ia agrupando quantos se insurgiam contra o dominio romano, lembrados da sangrenta traição de Galba. Quando Viriatho pisava já o solo da Carpetania, vieram ao seu encontro homens alemtejanos com uma mensagem; traziam a Crantara, a Lança ensanguentada, e a entregaram ao destemido Cabecilha. Depois que Viriatho sopezou a Lança, entregou-a a um dos seus companheiros, que a fôram passando de mão em mão, partindo em seguida os mesmo quatro homens com ella. Significava aquelle symbolo a convocação dos chefes militares e dos governadores das Behetrias para comparecerem no Conselho armado. Ia celebrar-se o Conselho no Castro da Colla, junto da grandiosa Anta da Candieira, na Serra d'Ossa; alli jaziam as ossadas dos antigos Lusonios, quando a sua terra não tinha sido ainda invadida pelos Iberos, nem assaltada pelos Celtas, nem explorada pelos mercadores phenicios, nem pelos latrocinos dos Romanos. No ádito sagrado das suas sepulturas é que os Chefes lusitanos consultavam o ecco dos espiritos, nas resoluções irrevogaveis de sacrificio imposto pela lucta. Em uma das enormes lages da Anta da Candieira existe um buraco aberto a meia altura do chão, tendo um palmo em quadrado de diametro; é o unico em toda a peninsula hispanica. É por esse buraco, que o chefe dos Endres, quando esta corporação hieratica não estava ainda desmembrada, interrogava os mortos sobre o destino social das tribus, e sobre a sorte das batalhas; interrogava para dentro da caverna subterranea, e collocando o ouvido a esse buraco escutava os eccos mysteriosos que só elle em uma concentração subjectiva ouvia e explicava aos que vinham alli chamados ao Conselho armado.
Em poucos dias de marcha Viriatho chegou, atravessando charnecas de mato curto e enfezado, e por entre montados de zimbro e azinho, até á chapada de rochas schistosas, aonde no cabeço mais saliente se erguia a Anta veneranda. Infundia um pavor quasi sagrado a vista d'essas sete fortes columnas ou esteios talhados sem artificio, implantados na terra: sobre quatro d'elles assentava uma vasta lage em fórma de mesa, como ára dos sacrificios. Outras lagens cobriam um subterraneo, que era a sepultura dos Antepassados. Logo que Viriatho chegou ao cabêço em que a Anta se eleva, veiu ao seu encontro um velho risonho, que o saudou abençoando-o. Era Idevor, o derradeiro dos Endres, ou pelo menos aquelle que depois de todas as perseguições conservava a tradição das tribus lusonicas; era elle que nas commemorações dos finados, annualmente, alli vinha depôr, na pedra furada as offerendas do banquete funerario; era elle que interrogava os mortos, e collocava o ouvido attento no orificio da pedra que os cobria.
O Conselho armado estava reunido em volta da Anta da Candieira; estavam alli representados os Carpetanos, os Vettões, os Vacceos, os Callaicos, os Artabros; tratava-se da defeza contra o Romano implacavel que se preparava para a desforra de tantas derrotas. Viam-se alli figuras esbeltas de homens, trigueiros, de cabellos compridos cahidos pelos hombros; ligeiros, armados com escudos pequenos, e punhal comprido á cinta; envergavam couraças de linho, tendo por cima a cóta de malha, e nas cabeças os capacetes de couro. Depois de terem feito os seus jogos heroicos, alguns offereciam á Divindade lançando sobre a mesa da Anta, mãos decepadas de vencidos romanos. Idevor avançou para a Pedra furada, ajoelhou e debruçou-se sobre ella, interrogando para dentro. Sentia-se um rumor soturno, como a resonancia de funda caverna. Depois, longo tempo Idevor pareceu escutar; e quebrando inesperadamente o silencio que pezava sobre todos os guerrilheiros e chefes das Contrebias, vociferou com intimativa:
—Viriatho? Viriatho! Nunca serás vencido em batalha! Nunca morrerás ás mãos dos Romanos!
Era isso que Idevor ouvira no rumor do oráculo dos mortos. Repetiu-o depois fitando com assombro Viriatho. Os companheiros vieram abraçal-o pela consagração, que o proclamava invencivel; fitavam-o com espanto, como se, desde aquelle momento, se tornasse um sêr sobrehumano. Disse-lhe Minouro:
—Agora em vez de um Pretor, póde Roma enviar-nos dois, para aparar melhor o pezo da derrota.
Andaca, batendo-lhe no hombro:
—Mas, pelo seguro, a força do oráculo está em uma boa espada.
Viriatho apoiando-se na espada que tocava com a ponta o solo, vergou-a com garbo, como fiado na sua tempéra e flexibilidade; mas com espanto viu, que mão traiçoeira lh'a tinha destemperado, porque dobrava-se como se fôsse uma lamina de chumbo:
—Retorcem-se as espadas para serem enterradas com os guerreiros mortos!
Então Ditálcon, vendo a confusão que tomára o Cabecilha:
—Mesmo sem espada serás vencedor; o oráculo não mente.
Idevor tomou a espada torcida das mãos de Viriatho, e disse-lhe com alegria:
—Esta acabou já o seu destino; serviu emquanto o teu impulso generoso levantou o espirito de resistencia nas abatidas tribus lusitanas. Inspiraste confiança! as populações seguem-te, porque vêem em ti o restaurador da independencia, da liberdade, e do futuro glorioso da Lusitania. A nossa Lusitania é imperecivel. Aqui na Anta da Candieira guardara-se a Espada maravilhosa e invencivel, o Gaizus, escondido para não ser tomado e empregado contra nós pelo invasor estrangeiro, e sempre ignorado, por que até hoje não apparecera um filho d'esta terra capaz de a defender e sustentar a sua liberdade. Viriatho! o testemunho dos Antepassados proclama:—Nunca serás vencido! E é da sua sepultura, d'este Cairn sacrosanto que eu tiro a Espada invencivel, o maravilhoso Terçado que ahi se guardou até ao momento em que appareceste e te patenteaste digno de servir o Peito lusitano.
Dizendo estas palavras, Idevor metteu o braço pela pedra furada, e como revolvendo com a mão um thesouro invisivel, sacou com geito pelo buraco da lage um montante de aço.
Abeirando-se de Viriatho:
—Entrego-te a Espada invencivel nas batalhas. Tu, e todo aquelle que a brandir pela Lusitania têm certa a victoria. Que ella passe de mão em mão, e de edade em edade.
Viriatho apoderou-se da Espada com enthusiasmo; beijou-a, mirou-a com desvanecimento, e brandindo-a no ár, gritou:
—Hade ser livre a Lusitania.
A espada que o velho endre sacou de dentro da sepultura ancestral era uma lamina curva, tendo afiada a folha por um dos lados inteiramente, e pelo outro até um terço apenas; tinha a ponta aguçada, terminando a curva por fórma que servia para ferir de ponta e simultaneamente de gume. O fio era tão resistente e cortante, que se fôsse a Espada brandida com força decepava instantaneamente uma cabeça. Quem tivesse visto mundo, reconheceria que aquella Espada era semelhante em tudo á Copide oriental, com que batalham os Argivos, ou á Sicca dos Persas e Thracios; mas emquanto aquellas eram forjadas de ferro batido, esta que estava occulta ha centenas de annos n'aquella sepultura, tinha uma tempera tal, que cortava o proprio ferro, e era, de uma flexibilidade que a tornava inquebrantavel. Não era indifferente a comparação com a Sicca dos Persas, por que d'esse povo guerreiro se conta que viera á Peninsula hispanica como invasor, e que Mithra, o Mediador de Ahura, com uma Espada de Lamina curva matára o Touro, que symbolisava as Crenças e a Cultura dos Povos occidentaes. A Espada começou a apparecer com um caracter mysterioso! Pertenceria ella ás éras primitivas d'essas espantosas luctas das raças do Oriente? No seu punho, que terminava com uma cabeça de Dragão, estavam ornatos de incrustações de ouro com os desenhos usados pelos Espadeiros de Toletum. Havia o quer que é de mysterioso; por que o povo ao fallar de uma Espada magica ou invencivel que existira na Hespanha antiga, diz ainda: que sete vezes fôra temperada no sangue de um Dragão! A sua tempéra não será esse segredo que só os armeiros de Toletum conservam no mais absoluto segredo? E as incrustações de ouro, não serão a prova de que as areias auriferas do Tagus misturadas no ferro derretido é que lhe dão esse poder cortante o incomparavel do aço.
Idevor, correndo a mão ao longo da lamina, descobriu sem esforço a face lisa de uma vaga côr azulada, e que semelhava o cariz do céo; entregou-a a Viriatho, e elle proprio cingiu-lh'a á cinta do lado direito, dizendo:
—Esta Espada encontrou o braço digno de brandil-a no ár. Ella tem um nome, como têm todas as Espadas dos Heroes; são como elles uma entidade, com quem se consorciam; chama-se Gaizus, segundo as tradições religiosas que se transmittiram dos povos scythicos e dacios. E se a insignia da Viria dos tres Crescentes, que hoje usas como supremo chefe, te dá a rasão do titulo de Viriatho, de agora em diante como portador da Espada maravilhosa serás conhecido entre os que te acompanharem até á morte pelo nome de Porto-Gaizus...
Effectivamente a Espada que symbolisava o Deus da guerra, entre numerosas tribus scythicas e liguricas tinha o nome de Gaizus, e entre os kimricos Gaisus, de Hesus entre as hordas celticas, e Gaisos entre os ramos goticos. Era essa Espada que se espetava no chão, tornando-o sagrado para ahi se constituir a assembleia ao ár livre e o tribunal do julgamento. A Espada era a representação divina e o emblema da fecundidade, por que lampejava como o raio celeste.
Viriatho espetou a Espada Gaizus na terra, reunindo-se todos os guerreiros em volta; e Idevor proferiu a
Benção da Espada
Fita de luz traça no ár o raio,
Quando encastella nuvens a rajada:
É assim esta Espada!
Em botes de alto abaixo e de soslaio,
Ou quando cáe a fundo
Golpe seu iracundo!
*
Contra os tyrannos firma a Liberdade,
E fortalece a Confraternidade.
Quem amal-a não hade?
A Terra em que nascêmos ella cobre,
Tal como um galho secular frondente
Abriga a livre Gente.
Como thesoiro que o valor redobre,
Lampejando no punho de um heróe,
Sempre sagrada foi.
*
Espada de Justiça e de Equidade,
De uma Patria o emblema, a magestade,
Quem amal-a não hade?
*
Se ella cahir do valoroso pulso
Por traição ou por morte,
Ao sumir-se no derradeiro corte,
Da independencia guardará o impulso.
*
Quem descobrir a lamina fulgente
No revolvido chão,
Cumprirá—a missão
De tornar livre a soffredora Gente,
Dando-lhe a consciencia de Nação.
E feito o sacrificio pelo mais sabio dos Endres, os membros do Conselho armado comeram em commum o que traziam em seus farneis, pães de glande de carvalho rotundifolio, pernas de carneiro assado, e despejavam os picheis de céria ou zytho encostados aos grandes esteios da Anta; e depois de gritos festivos, ouvidas as ordens de Viriatho, debandaram cantando, pelos campos de Ourique, seguindo para as suas terras em um
Coral de Tripudio
Terra da Patria!
Querida terra,
Liberta e altiva!
Na paz, na guerra
A alma idolatre-a,
Para ella viva.
Nosso chão patrio,
Terra querida,
Sempre liberta!
De um mundo és átrio,
Nunca vencida,
Por ti—álerta!
Terra sagrada
Da Patria amada,
Sê triumphante!
Pequena e forte,
Até á morte
Avante! ávante!
Quando os chefes das Contrebias pisaram terras a que não tinha chegado a devastação da guerra, encontraram ranchadas de mulheres trabalhando nos campos, alegres e risonhas, ouvindo-se de longe as cantigas com que aligeiravam a faina do dia. Approximaram-se da lavrada, e notaram que vigorosas mocetonas, de olhos castanhos e cabello preto, com arrecadas de ouro nas orelhas, contas de ambar e crystal raiado de preto e azul ao pescoço, descalças de pé e perna, andavam n'aquella encosta fazendo a sementeira do linho. Ellas não se apavoraram com a passagem da cavalgada. Os Cavalleiros que se deixaram ficar atraz, fôram-se approximando do rancho, simulando interesse pela suavidade das cantigas, que lhes faziam saudades dos seus casaes e villares, de que andavam ausentes desde que se empenharam na resistencia contra os romanos. É certo que a alguns d'esses guerrilheiros, requeimados pelo sol e pelas geadas, acudiram as lagrimas aos olhos. Cantavam tres raparigas alternadamente uma Cantilena dos Trabalhos do Linho, que na sua emoção fazia sentir o perfume da terra, por que todos elles combatiam. Entoava uma d'ellas, como deitando o pé da cantiga:
Quem anda a semear o linho,
Bem sabe que hade viçar
Para trabalhos passar.
Tambem quem semêa amores
Aqui, além, á ventura,
Sem se arrecear de dôres
Doce esperança procura;
E nascem-lhe em vez de flôres
Trabalhos para passar.
Antes o linho semear
Pelos vallados e encosta,
Do que um olhar sem resposta,
Desdens que são de matar;
O amor que se não desgosta
Não póde raíz deitar.
E emquanto as outras moças iam fazendo a sementeira, disse uma para a que cantava:
—Caenia! não descubras o teu segredo; deixa cantar Nilliata.
E começou logo outra rapariga, continuando na mesma toada, mas com um timbre de arrancar a alma:
Pelos trabalhos do linho
Está-se a gente a entender:
Nasce o amor para soffrer.
D'entre abrolhos do caminho
Quantas flôres a nascer!
Foi quando vim a entender
Que me davas com carinho
Tua vontade e querer,
Pondo fim ao meu soffrer.
A mesma voz que interrompeu a que levantára a cantiga:
—Aponia! não fiques para traz; ou tu já não és cantadeira de fama?
Ouviu-se logo outra voz ainda mais terna, de uma frescura de mocidade, e de paixão commovente:
Bota uma flôr azulada
O linho, estando a florir:
Tem essa côr teu sorrir!
Sabendo que eras amada,
Segredaste de mansinho:
—Para sempre!—Sonho lindo.
Ainda te estou ouvindo...
Foi pelo semear do linho,
Ou mesmo na espadellada.
Antes que o fio mais fino
Chegue a fiar-se na roca,
O que ouvi de tua bocca
Fiou o nosso destino,
Teceu o casto cendal
Para o cortêjo nupcial.
Os cavalleiros, que se tinham atrazado da comitiva, atiraram com o dinheiro que levavam para o grupo das raparigas; e mettendo-se a caminho, a trote largo, iam dizendo:
—As mulheres fazem por nós o trabalho dos campos, em quanto por aqui andamos empenhados n'esta guerra sem treguas.
—E eu que jurei não tornar mais a entrar em casa, a abraçar a mulher e os filhos, em quanto não vir estes romanos escorraçados. Heide cumprir o juramento, ainda que me arrebentem as saudades.
—Dá vontade de morrer por esta terra, quando bebemos estes áres, quando nos banha esta luz de um céo tão azul! A cantiga das raparigas fez-me vêr isto tudo, como até hoje eu nunca tinha visto.
E no trote largo em que iam, incorporaram-se na cavalgada, que foi diminuindo á medida que cada um dos cavalleiros tomava a direcção do solar em que residia.
Recebendo a Espada Gaizus, lembrou-se Viriatho das palavras do armeiro de Toletum, lamentando que os indefessos mantenedores da liberdade da Lusitania não a tivessem brandido. Esses grandes chefes da resistencia da Hispania Ulterior estão mortos, e porque até agora não appareceram homens com conhecimento da arte da guerra, é que Roma conseguiu dominar em muitas cidades da Lusitania. Viriatho reconhecia a continuidade da sua missão libertadora, e possuido d'essa solidariedade do sentimento, disse para Idevor:
—Jazem nas suas sepulturas os dois irmãos e valentes cabecilhas Indibilis e Mandonio; e tambem o não menos denodado Salondico.
—Em logar d'elles,—atalhou o velho endre,—apparece um homem, sim, um homem, que vale por todos tres; possue de um o genio da estrategia e a energia do commando; de outro a lhaneza familiar e o trato superior com os homens; do terceiro tem a integridade da sua palavra, que faz fé como se fosse uma sentença. Por isso veiu ás suas mãos o Gaizus.
Por sua vez Viriatho, interrompendo os louvores de Idevor, accentuou em poucas palavras o seu pensamento:
—Eu quero que esses tres nomes fiquem sempre memorados entre a gente lusitana; e darei todos os passos para que lhe sejam consagradas sobre as suas sepulturas tres estatuas funerarias.
Viriatho queria ligar ao sentimento da defeza da independencia da Lusitania uma expressão visivel, que lhe servisse de apoio e mesmo de estimulo; eram já mortos esses tres caudilhos, que tanto tinham luctado contra os Romanos, e que agora jaziam obscuramente sepultados, Indibilis e seu irmão Mandonio, e o destemido Salondico. Repetia-se na tradição os seus nomes, por que os feitos heroicos que praticaram eram recentes, mas tudo passa; Viriatho reconhecia que a recordação d'esses vultos extraordinarios era uma força com que podia actuar nas almas. Ordenou que viessem da região septemtrional da Lusitania tres blocos de granito, para serem esculpidas tres estatuas sepulchraes, representando os heroes lusitanos, e para serem erectas sobre os seus jazigos. Essa pedra rija e difficil de lavrar era a que melhor symbolisava a resistencia dos tres Cabecilhas destemidos, e como privativa de todas as construcções e monumentos da Vettonia, a que melhor representava aquella parte da Lusitania mais ciosa da sua liberdade. Realisou-se em breve a sua vontade.
A estatua de Indibilis, como o estylo d'essas esculpturas funerarias, estava perfilada, de cabeça altiva, erecta e sem capacete ou gálea. Todos aquelles que o conheceram dizem que é a sua imagem verdadeira, barba espêssa e cabello curto, nariz aquilino com uma depressão a partir da testa. Tem em volta do pescôço o collar ou torques simulando um grosso crescente. O corpo reveste-o um saio ou gibão justo á cinta por uma faixa ou balteus acolchetado pelas costas; a manga é curta, deixando os braços nús pouco abaixo dos hombros, e acima da bucha do braço uma armilha formada de tres braceletes. Os braços descem sustendo um sobre o ventre o escudo redondo ou cetra, ornamentado com cordões delineando contornos caprichosos; na mão direita tem segura a espada de lamina curva, parecida com a Sicca dos Thracios, de cabo curto terminando em bola, e com a ponta tocando nas nádegas. Assenta sobre um cippo lavrado, em que está inscripto o nome de Indibilis.
A estatua de Mandonio, trabalhada no mesmo estylo rude, mas primitivo, semelhando as esculpturas do Egypto e da Chaldèa, mostra leves differenças; o rosto oval tem uma expressão de audacia, de quem affronta todas as difficuldades; o escudo que assenta sobre o ventre está pendente do pescoço por correias sem abraçadeiras, tal como o clypeus dos gregos; na mão tem uma arma curta de empunhadura simples, como faca de ponta, que se alarga até ás guardas, como o pugio dos romanos. Tambem as pernas núas emergem do pedestal ou cippo votivo, em que se lê o nome de Mandonio.
A estatua de Salondico tem as armilhas nos pulsos ou propriamente manilhas; e na cabeça uma cervilheira de couro, que está cingida até meio da face; a cetra não é redonda, appresenta a face concava, e representa o enlaçamento de fitas de couro crú.
Antes de chegar á Lusitania um outro Pretor para substituir Plancio na campanha, já estava consagrada esta piedosa homenagem aos tres luctadores que tanto se sacrificaram pela liberdade da patria. Isso acordou novas energias.
Não podia ser indifferente a Viriatho aquella extraordinaria fortificação defensiva do Castro da Colla, do Alemtejo, com suas torres e muralhas do mais inaccessivel alcance. Examinou-a detidamente, medindo-a a passos; e ahi na base do monte, para a parte do sul, em que estavam seis sepulturas de generaes lusitanos, é que mandou erguer as tres estatuas funerarias, por que já andavam esquecidos os nomes dos guerreiros que guardavam.
As estatuas dos dois irmãos Indibilis e Mandonio ficaram a par uma da outra, e diante d'ellas como formando um triangulo, a estatua de Salondico. Na linha d'esta sepultura seguiam-se mais tres moimentos, ignorando-se a quem pertenciam. Disse então Viriatho:
—Cubro-me de vergonha, quando noto que já ninguem se lembra do nome d'esses bravos que ahi jazem, tendo combatido pela nossa terra.
—Temos um pouco esse defeito da ingratidão para os homens que nos engrandecem.—Assim fallára um da trimarkisia; ao que um outro accrescentou:
—Tu mesmo serás um dia esquecido, ou reduzido a personagem de conto de velhas.
—Fica certo, que se alguma cousa se souber de ti, será pelo que memorarem os Annaes romanos.
—Não lucto para ganhar fama! É só por uma ideia.—E Viriatho voltou á sua preoccupação: Mas de quem serão essas tres sepulturas restantes?
—Talvez o saiba Idevor...
E consultado o velho endre, que era um verdadeiro poder moral que pela tradição lusa unificava as almas, elle respondeu com simplicidade promptamente:
—São tres caudilhos lusitanos que sempre combateram pela liberdade da terra; aqui descansa Edescon; esta jazida é de Alucio; a do tôpo cobre a Istolacio.
—Dá-me força o lembrar-me que eu continuo a sua missão.
Viriatho foi em seguida á exploração do Castro Verde, cuja posição estrategica era defendida por sete fortes, um dos quaes era o inconquistavel forte das Juntas, assim chamado pelo povo, por se achar erecto na parte em que as ribeiras confluentes, Odemira e Mariscão se encontram e confundem. Quando Viriatho, para subir a violenta escarpa do forte das Juntas, chegou á margem da ribeira de Odemira, estava alli um magote de lavadeiras com as pernas mettidas na agua esfregando a roupa e cantando.
—É esta a feição da gente lusitana; do trabalho faz uma festa; allivia-se da fadiga com os seus cantares.
E parou um instante a ouvir a
Canção das Lavadeiras
Já os linhos florescem,
Já os dias crescem,
E ainda não apparecem
Os meus amores!
Já as neves descem,
Sem que as guerras cessem;
Mas nunca me esquecem
Os meus amores!
Já os linhos se tecem,
Mesmo as têas alvecem;
Ah, se bem cedo viessem
Os meus amores!
Aquella toada sentida communicava uma emoção saudosa, não tanto pela lembrança da paz, agora perdida, como pelo genio do povo, que se revelava n'essa dolencia. Viriatho, bebendo largos tragos da agua da ribeira em uma quarta alemtejana, que lhe encheu uma das lavadeiras, galgou a encosta asperrima, sem parar até ao cocuruto do forte das Juntas.
—Valentes pernas!
—Aquillo é que é homem! Disseram duas das lavadeiras que estavam torcendo o bragal, e que o olhavam cá debaixo, emquanto a agua escorria.
Ainda Viriatho se achava proximo da Anta da Candieira, voltando a examinar a fortaleza da torre da Colla, nas campinas de Ourique, quando lhe trouxeram a nova da chegada á Hespanha dos dois Pretores romanos Claudio Unimano e Caio Nigidio, aos quaes o Senado confiára a missão urgente de reprimir de vez os Lusitanos, apagando as manchas das derrotas anteriores. Os dois Pretores combinaram o seu plano de ataque; Unimano iria atacar o Cabecilha nas montanhas de Ourique, aonde sabia que se encontrava por noticias dos espiões ibericos; repellindo-o diante de si, levava-o de encontro contra Nigidio, que operava ao norte confiado na antiga alliança dos Vacceos. Assim colhido entre os dois exercitos romanos, destinados depois da victoria a occuparem a Hespanha Citerior e Ulterior, a derrota de Viriatho parecia-lhes mais do que certa, inevitavel.
Parece que o destino favorecia o Cabecilha, ferindo-se a batalha n'aquella região sua conhecida e cheia de extraordinarios recursos defensivos. Aquelle vasto terreno coberto de rochas schistosas ostentava uma planura ou chapada, todo cercado de escombros e pequenos valles com montados de azinheiras e carvalhos, espessos e escuros. Excellente para repentinas emboscadas; mas o Pretor Unimano só pensára no seu apoio em Evora, cidade do direito do antigo Latio.
Subindo aquelle terreno accidentado cheio de cêrros com espinhaços inaccessiveis, avistava-se de longe a fortaleza a que o povo das cercanias chamava—a cidade da Colla. Negrejava com a sua cantaria secca sobre o ingreme cêrro, correndo-lhe em baixo ao sopé a ribeira de Mariscão. Foi alli que Viriatho reuniu os troços da sua confiança, dentro das muralhas que rodeavam a crista do cêrro. D'alli, do alto, avistava-se o rio de Odemira, que recebe a poente as aguas do Mariscão, junto do pégo do Sino. O Castello ergue-se abrupto, com as suas muralhas construidas por fiadas de cantaria não lavrada, mas todas de um tamanho egual; uma parte dos muros é a pique, outros inclinados para dentro, formando um quadrilongo de mais de duzentas braças, com uma espessura de vinte palmos. A fortaleza é dividida em outras duas internas, tendo ao centro uma cisterna profunda com paredes rebocadas e de abobada; a um lado está um rebaixamento que dá para uma extensa escadaria que leva á margem da ribeira por onde se póde fazer uma rapida sortida. Em quatro outros cabeços circumvisinhos, a meia legua de distancia, alevantam-se outras quatro fortalezas, e mais adiante, coroando um comprido monte o Castello velho, formado por uma gigantesca trincheira que abrange uma área de mais de seiscentas braças. A batalha dada nas visinhanças da Serra d'Ossa, tendo alli ao pé a Anta veneranda da Candieira, augurava para os Lusitanos um resultado feliz.
Quando Claudio Unimano avançava sobre Viriatho, que simulára uma retirada para a fortaleza da Colla, e lhe punha cêrco, contando tel-o seguro, por alta noite o Cabecilha desceu com os seus pela escadaria secreta da fortaleza que vem ter á ribeira de Mariscão; e sendo ao mesmo tempo avisado por lumieiras, os guerreiros lusitanos, que estavam recolhidos nas outras quatro fortalezas, cahiram quasi ao mesmo tempo sobre o exercito romano de surpreza, e fizeram uma incalculavel mortandade. Os estandartes da Republica e as insignias pretoriaes foram tomados por Viriatho, que mandou espetar pelos cabeços dos montes em redor as varas que formavam os feixes dos lictores, como fizera anteriormente apoz a derrota de Vetilio. As bandeiras romanas foram arrastadas diante do balsão das Quinas, produzindo um delirio de bravura nas catervas lusitanas.
Quando a batalha estava já decidida, ainda mil Legionarios sustentavam uma lucta isolada contra tresentos infantes lusos, desesperados e seguros de os esmagar pelo seu numero bruto. A resistencia d'esses poucos era tenaz, contando serem soccorridos; os romanos queriam n'essa ultima refrega vender caro a victoria. De subito, apparece á frente dos tresentos infantes o Cavalleiro que se destacava no tropel das batalhas pelo seu cavallo branco, no qual se arrojava á frente de todos os perigos. Os tresentos peões sentiram multiplicar-se-lhes a força e gritaram:
—Olha como elle brande a Colada!
—A Colada ao sol faisca; parece um raio.
O nome da espada Gaizus era desconhecido entre os companheiros de armas de Viriatho; chamavam á espada maravilhosa a Colada, por ter sido guardada em uma sepultura do castro da Colla. Com esse nome brilhará no futuro, quando um Campeador repellir com ella do solo da Hespanha as hordas africanas. D'ahi veiu o vulgar proverbio: «Todo saldrá a la COLADA.»
Diante da espada Gaizus alguns cavalleiros romanos que escaparam dos mil destroçados fugiam a toda a brida pelas encostas e chapadas de Ourique: um peão lusitano rapidamente atravessou um d'elles desmontando-o, cortou-lhe a cabeça de prompto e seguiu ligeiro no mesmo cavallo levando-a ao alto espetada na ponta da lança. Tamanho pavor se apoderou dos outros cavalleiros, que não se atreveram a atacar o peão, que seguiu seu caminho cantando. Ao tempo constava que o cavalleiro morto se chamava Caio Minicio, da Legião decima-gemina.
Aproveitando o enthusiasmo e confiança das suas tropas pela derrota estrondosa de Unimano, avançou Viriatho para o norte, transpondo a margem direita do Tagus. Não havia tempo a perder; era urgente ir ao encontro do Pretor Caio Nigidio. As esculcas trouxeram a Viriatho a aterradora noticia de que esse segundo corpo do exercito romano vagava pela Beira Alta devastando, incendiando granjas e casaes, roubando gados e aniquilando as sementeiras para reduzir pela fome a população trabalhadora e pacifica. Era preciso sustar o passo a Nigidio, agora enfraquecido pela impotencia de Unimano. Viriatho avançou a marchas forçadas, contando a cada momento encontrar o exercito pretorial.
Proximo já das faldas dos grandes Herminios, vieram as esculcas trazer ao cabecilha a noticia, de que Nigidio acampára o seu exercito dentro da Cava, que já então começava a ser conhecida entre os povos das cercanias pelo nome de Cava de Viriatho, gloriosos por saberem que alli o Maioral da Mésta abrigava os gados, quando desciam da serra.
A alegria de Viriatho foi vivissima com a noticia do acampamento de Nigidio dentro da Cava, em que se considerava seguro, sobretudo para o aquartelamento durante a noite, despreoccupado de toda a surpreza. Um plano decisivo fulgurou na mente do cabecilha; entreviu uma derrota inesperada, impossivel de ser prevista pelo Pretor, que considerava a Cava como uma Castra aestiva, para segurança do seu exercito. Qual fosse esse plano, a ninguem o communicava, resolvendo logo partir para o grande Herminio, acompanhado dos cavalleiros da trimarkisia, em marcha forçada. Por ventura iria combinar qualquer feito com os maioraes que constituem a Cabana da Mésta, seus antigos companheiros?
Viriatho chegára ao fim da tarde á povoação de Sedarça, logarejo na encosta da Serra, em que passára a infancia. Tudo eram recordações, que o enterneciam e o alentavam. De uma obscura choupana ouviu resoar um canto, e risadas frescas e animadas de raparigas que estavam junto de uma molinheira moendo bolotas, de cuja farinha se fabricava o bolo em uma larga certã de barro sobre brazas. Viriatho, que seguia sempre mais adiante dos companheiros, parou diante da porta, escutando o canto rythmado ao movimento da molinheira. Uma das raparigas ia cantando uma historia triste, talvez com realidade; era a canção narrativa,
A Dobadoira
Estava á porta assentada,
Dobando a sua meada
A velhinha;
Lenço branco na cabeça
A madeixa lhe sustinha,
E envolve-a como toalha:
Com que pressa
Sentada á porta trabalha!
O sol doira
Seu cabello,
Que tem a côr da geada:
Para passar o novello,
A velhinha
De vez em quando sustinha
A gemente dobadoira,
Em que anda branca meada.
Na dobadoira que gira,
Como a mente que delira,
Nem já toda a attenção pondo;
Nem no novello redondo,
Augmentando
Ao passo que o fio tira,
Todo o seu cuidado emprega!
Pobre e cega,
Anciada, de quando em quando
Com que tristeza suspira!
Por vezes, o movimento
Claro exprime
Tumultuar do pensamento,
Que no imo da alma a opprime
E quasi oura!
Muda angustia e paciencia
Reflecte-as a intermittencia
Do andamento
Ao voltear da dobadoira.
Fica-lhe na mão suspensa
O novello,
Concentrada não o enleia:
Na orfã netinha pensa!...
Vem-lhe á ideia
Por sua morte:
«Só, no mundo! entregue á sorte!
Pobre neta...»
Pezadello,
Que tanto a velhinha inquieta.
*
Não ouvindo a dobadoira,
Que gemia intermittente,
Cahindo da mão dormente
O novello...
Com disvello,
A neta, cabeça loira,
Vem á porta
Vêr o que foi; com susto olha:
Uma lagrima inda molha
A face á velhinha morta.
No fim da canção uma das raparigas limpou as lagrimas; disse uma d'ellas:
—Tu, Nilliata, nunca ouves essa aravenga sem chorares.
—É que eu conheci a velhinha cega, e tantas tardes a vi sentada á porta a dobar.
Viriatho approximou-se da porta da choupana, e saudou as raparigas:
—É bem triste essa historia. O que é feito da pobre orfã?
—Ah, senhor! Houve uma alma apiedada que a tomou como filha. Todos os seus parentes tinham morrido nas guerras ou na escravidão dos romanos, e Idevor acudiu-lhe em tanto desamparo. O que nos vale são as boas almas. E se não fosse agora Viriatho, o que os romanos não fariam por essa nossa terra...
—E nunca vistes Viriatho? Perguntou o cabecilha com bondade.
As tres raparigas, que estavam em volta da molinheira, depois de terminado o cantar ou aravenga da Dobadoira, encetando uma conversa intima, trocaram sorrisos maliciosos:
—Muito gostava de vêr esse homem de quem tanto se falla.
—E eu? E dizem que é um homem ás direitas; não é alto nem baixo, de côr morena e olhos castanhos, cabellos fartos e tambem castanhos lisos; barba espêssa e corredia; o rosto é oval, o nariz fino, e a bocca mediana deixa vêr uns dentes alvos e eguaes, que é um encanto! Se o visse conhecia-o.
—Parece que estás enamorada de Viriatho. Disse com malicia Nilliata.
—Eu nunca o vi, nem espero vêl-o. O que me faz gostar d'elle é a sua coragem. Quem hade dizer, que um homem costumado aos duros trabalhos da Mésta, delgado de perna, e pés pequenos, cá como os homens da nossa terra, tem uma alma generosa, e audaz para sacudir os inimigos da patria!
Caenia fallava convencida.
Viriatho, que entrára na povoação adiante dos tres companheiros, ouvindo as risadas das raparigas estacára para escutar o que diziam; em breve conheceu de quem se fallava, e com um sorriso cheio de benevolente carinho, disse para ellas:
—Fallar no máo, apparelhar o páo.
As raparigas olharam-o com surpreza e viram o homem como o tinham representado: aquelle rosto oval e trigueiro, aquelles olhos castanhos de um relance vivo e scintillante; o mesmo pé pequeno mas agil.
Disse a mais reservada das moças para a que era falladeira:
—Ahi tens o moço em quem pensavas. Dize-lhe que gostas d'elle.
—Todas nós devemos amar Viriatho, por que elle sabe defender a nossa terra. (Volveu a Caenia a rapariga falladeira com decisão). Pois para vencer o inimigo, Viriatho precisa do amor e da confiança de nós todos. Mas para amal-o, como a mulher póde amar o homem, isso fia mais fino! Na Lusitania, que mulher poderá merecel-o?
—Então não ha mulheres lusitanas que me queiram?—Interrompeu Viriatho com malicia.
—Ai, meu senhor. Das mulheres da Lusitania só tenho ouvido exaltar uma que é digna de vós, ou vós digno d'ella.
—E eu, que até hoje nunca tinha pensado em amar uma mulher! Queria saber quem é essa, que tanto exaltas.
—Falla! dize quem é. Insistiram Nilliata e Aponia.
—Não é segredo. Todos sabem qual a belleza e ingenuidade de Lisia, a filha de Idevor.
—Lisia? ainda tão nova; com pouco mais de dezeseis annos?
—Mas com um tino e juizo, que espanta; com uma graça invencivel; com uma memoria vivissima dos Cantos e tradições da velha Lusitania. Dizem até, que ella, pelos dons que possue, não é d'este mundo.
Outra das tres moçoilas, não menos linguareira, proseguiu na revelação começada:
—É Lisia quem na Torre redonda de Achale, no começo do Anno estival accende o Fogo novo.
—Ella tem o cuidado do Fogo consagrado a Samham ou São Homem, o Julgador dos Mortos, que os não deixa esquecer.
—E como dedilha na Harpa de triplices cordas...
—E lê todas as letras gravadas no Bastão dos Poetas...
Viriatho ficou ferido de curiosidade; e pensando n'essa revelação casual, disse para as tres moças:
—Eu conheço o pae de Lisia, e sei bem que elle é meu amigo a valer.
E dizendo-lhes um adeus com simplicidade, continuou a sua marcha á chegada dos tres companheiros, subindo a encosta do grande Herminio.
Apesar de declinar o sol, que se reflectia brilhante nas Penhas Douradas, que estão voltadas na sua immensa altura para o Occidente, Viriatho, calçado com as abarcas espartenhas, e de bornal ás costas, caminhou para a Serra através dos precipicios seus bem conhecidos. Dirigiu-se para o planalto da Torre, onde costumam reunir-se os Maioraes da Mésta, quando fórmam Conselho entre si, para resolverem sobre a transhumancia dos gados, sobre o abastecimento da Arca do pão, ou sobre castigos dos cachopos. Viriatho ia tocando em certos pontos, como Barros Vermelhos, Covão grande, Lagoa escura, n'uma buzina de corno um signal, que era conhecido de todos os Maioraes; quando chegou, já noite alta, ao planalto da Torre em fórma de estrella, pouco ou quasi nenhum tempo esperou pelos Maioraes, que se appresentaram no local destinado á comparencia da Cabana. Eram cinco os Maioraes que governavam os gados lanar, cavallar, cabrum, porcum e vaccum; e quando se reuniam tinham a Mixta Jurisdictio. Tal era o Conselho da Mésta, denominado entre elles a Cabana. O primeiro que appareceu ao toque da buzina foi Edovius, que governava a boiada; accudiu presuroso Togotes, que mandava nos cavalhariços; não se fizeram esperar Uvarna, o maioral dos porqueiros, Suttunus e Semesca. Todos elles se lembravam do toque da buzina de Viriatho, e occorreu-lhes que era caso extraordinario. O Cabecilha fallou-lhes sem preambulos:
—Convem-me que sejam apartados trezentos touros bravos, barrosos, corpulentos, das manadas da Betica! Esses touros bravos hão de ser guiados por vinte vaccas mandarinas, d'aquellas mais luzidias e brincalhonas, e dentro em dois dias devem estar mettidos nos Furados...
—Nos dois extensos algares abaixo da povoação de Sarzedo?
—Ahi mesmo. E tambem se torna necessario, que vão mais atraz dos touros bastantes cães de fila, d'esses que pela sua firmeza em impellir os touros tem o nome de Maioraes.
Os cinco Maioraes da Mésta sorriram-se, comprehendendo o plano; esfregavam as mãos, antevendo a audaciosa empreza, tentada por Viriatho; e dirigindo-se ao antigo companheiro:
—Cá pela nossa parte não é que o plano hade falhar.
E descendo do planalto da Torre para as casas de suchão, em que se abrigavam, passaram por um grupo de cachôpos, que estavam de vigia, e para não terem somno trocavam suas Adivinhas. Dizia um:
—Redondo é o curral,
Vaccas pelo bostal,
Lindo é o azagal,
Cão peor que chacal?
Nenhum dos cachôpos dava com o sentido da adivinha. Viriatho ao passar pelo rancho sorriu-se, dizendo para os Maioraes que o acompanhavam:
—Nos meus tempos de azagal tambem ouvi esta adivinha.
E fallando para os mancebos, explicou-lhes:
—Redondo curral, é o céo; Vaccas pelo bostal, são as nuvens espalhadas; Lindo azagal, o sol; Cão peor que chacal, é o vento frio, que arrebata as nuvens.
Uma franca risada dos moços foi o signal de assentimento. Viriatho veiu descendo, tomando pelas veredas, passos e descansadoiros, canadas e quinchorros, dirigindo-se para a povoação mais proxima do grande Herminio, onde o esperavam os companheiros da Trimarkisia.
Os Maioraes da Mésta trataram logo de ir escolher as vaccas mandarinas para em seguida ajuntarem os touros bravos que hão de entrar na mysteriosa lide. Essas vaccas folionas, de côr branca da pellagem, são dotadas de uma macieza de pelle e de uma corpulencia meã, chifres pequenos, abertos e delgados, olhos pequenos, accesos, bem afflorados, com pestanas brancas. Exercem sobre os touros um poder invencivel de seducção, que os subjuga; com ellas é que os Maioraes os governam. Têm o pescoço grosso e de farta barbella, que se recorta em curva e se prolonga até ao peitoral; lombos largos e cauda curta, membros finos e aprumados, ventre pequeno e ubere farto. Pelas suas fórmas graciosas parecem-se com o typo do gado alvação. São brincalhonas tanto na docilidade do curral como na vida aspera dos montes.
Os Maioraes da Mésta estavam seguros de conduzirem e entregarem a Viriatho os trezentos touros bravos.
A aldeia de Loriga foi para onde se dirigiu Viriatho, na falda da serra. Diziam que era d'alli natural; mas outras povoações, como Folgosinho, Ceia, Covilhã e Vizeu, tambem disputavam a gloria de terem sido seu berço. Antes d'essas pequenas terras o adoptarem como filho, já elle estava possuido do sentimento que o levou a dizer de toda a Lusitania:—Esta é a ditosa patria minha amada. Viriatho sentia um prazer intenso ao vêr os trabalhos da povoação pacifica; um grande circulo de raparigas, com suas arrecadas e collares de ouro, e axorcas nos braços e pernas, estavam occupadas em uma espadellada de linho. Ao rithmo das pancadas iam cantando, porque na Lusitania o trabalho foi sempre uma festa, e ao som de cantigas. Approximou-se para escutar a
Chacoula da Espadellada
Separa-se o linho
Das suas aréstas,
Nas espadelladas.
Que alegres pancadas!
E com gosto dadas.
Trabalhos são festas:
Quem olha a fadigas!
Já pelo caminho
Vem as raparigas,
Soltando cantigas
Das mais namoradas.
Quem quizer saber
Quantas conversadas
Andam cá na villa,
Sem maior quesila
Póde conhecer,
Vendo nas mãos d'ellas
Como as espadellas
São bem trabalhadas.
Eu, por mim, sei de uma
Que na espadella
Tem um coração
Feito pela mão
De quem é só d'ella.
Para conhecel-a,
Bastará ahi vêl-a
Sempre olhos no chão...
Mais adiante, em outro casal descendo a encosta por onde se estendia Loriga, havia ruidosos signaes de alegria; era um Fiandão, uma festa em que das povoações visinhas concorriam muitas raparigas para fiarem em festivo ajuntamento todo o linho de uma casa. Era de uso concorrerem tambem os moços namorados, que tocavam seus machêtes, cantando á porfia as
Endechas do Fiandão
Que vezes te vêjo
No limiar da porta
De pé a fiar!
Eu, indo a passar,
Cá de longe um beijo,
Que mal me conforta,
Enviava-te então;
N'essa occasião,
(D'isso não te accuso)
Bem notei que o fuso
Te cahiu da mão.
Se te cáe o fuso
Quando estás á porta,
Será por cuidado,
Imaginação,
Que haja eu causado
Com tanta paixão?
Mas, isso que importa!
Ou será ou não.
Seja como fôr,
Certos signaes são
De ânimo confuso;
Talvez falta de uso
De occultar o amor,
Pois te cáe o fuso
Tanta vez da mão.
Com que alegria,
Ou satisfação,
Levantára o fuso
Que te cáe ao chão;
Eu t'o entregaria
Com a cortezia
Que no amor é uso,
Declarando então:
—Eil-o, em homenagem
D'esta vassalagem
De leal coração;
Para sempre agora
Não cahirá, senhora,
Mais da vossa mão.
Emquanto o moço cantava a endecha apaixonada, todos procuravam com os olhos se se denunciava pelo rubor a rapariga que a inspirára. Por casualidade cahiu o fuso da mão a uma d'ellas, e logo as risadas animaram o Fiandão extraordinariamente.
Um outro cantador dedilhou no machête que trazia umas Coplilhas
Ao morder do fio
Que inveja me faz
E tanto me toca,
No fio do linho
Que puchas da roca,
Os beijos que dás!
Presinto, adivinho,
Se esse linho eu fosse,
Como me era doce
Sentir tua bocca!
Tu segues fiando,
De mim descuidada,
Á bocca levando
A linha delgada
Que torces nos dedos!
Do linho os segredos
Tivera eu a posse,
Que os sonhos provoca:
Como me era doce,
Se esse linho eu fosse,
Sentir tua bocca!
E emquanto na roca
Tu passas fiando,
No immenso desejo
Que acorda o que vêjo
E a mente traz louca,
Ficarei sonhando:
Se esse linho eu fosse,
Como me era doce
Morder-me tua bocca!
Estas coplilhas ainda provocaram mais ruido, procurando-se algum rubor traiçoeiro. Ditálcon, que estava junto de Viriatho, enlevado na contemplação d'aquelles costumes da serra, por que tinha ouvido fallar muito na finura do fio lusitano, disse para o cabecilha:
—Isto é uma terra de poetas.
—E de apaixonados...
A phrase de Viriatho foi interrompida por um facto extraordinario; n'aquelle momento chegava á sua presença um rancho de homens, que o procuravam com anciedade:
—Nós somos gente da povoação de Gouvêa, que vimos...
O seu aranzel confundiu-se com este outro, mais atrapalhado:
—Nós somos gente da povoação de Manteigas, que tambem aqui vimos...
Viriatho impoz silencio a esse grupo de homens valentes, que vinham armados de varapáos e mangoaes, e com lucidez apurou em poucas perguntas, que eram povoações rivaes, que por causa das aguas de rega se hostilisavam de longos tempos, havendo todos os annos grossa pancadaria e até mortes. Os de Gouvêa não queriam que as suas aguas vertentes fossem para os de Manteigas; estes não lh'as queriam pedir. Então Viriatho sentenciou:
—Agora, que a nossa terra está invadida pelo inimigo estrangeiro, os odios internos enfraquecem-nos. É de força unirmo-nos: Entre Manteigas e Gouvêa haja paz para sempre. Em todos os comêços do Anno estival a communa de Manteigas irá levar á de Gouvêa uma bilha de agua, em signal da compra por que adquiriu a posse das suas regas.
—Bem julgado! gritaram todos.
E depois de terem bebido tigellas de zitho, e acclamado Viriatho, voltaram alegres para as suas povoações, em que o symbolo da concordia mutua se guardou no costume immemorial.
A noticia das devastações de Nigidio forçou Viriatho a reunir-se ás suas catervas, e a attrahil-o para as campinas em volta da Cava; com solercia foi evitando combates importantes, até ao momento em que os esculcas vieram dizer-lhe que Edovius e os outros maioraes tinham encurralado tresentos touros bravos dentro de um dos Furados, para onde os trouxeram pelo engodo das vaccas mandarinas.
—Vieram tambem os cães de fila?
—Estão prezos no outro Furado.
Depois d'isto Viriatho esperava com anciedade o cahir da noite, certo de que Nigidio recolheria o seu exercito dentro da Cava; Nigidio tambem contava como estrategia, o conservar-se n'aquelle territorio em que podia dar uma batalha campal pondo em acção toda a maravilhosa tactica das Legiões. E não era mal pensado, desde que elle conhecia que o exercito lusitano era incoherente, de guerrilheiros de disciplina irregular.
A noite cahia, e como Viriatho se afastára com os seus têrços para longe, o Pretor Nigidio deu ordem para que as Legiões se recolhessem para dentro da Cava, certo de que no seguinte dia conseguiria envolver Viriatho. Na escuridão da noite as sentinellas que vigiavam o acampamento romano viam de vez em quando luzir umas lumieiras pelos montes. Não suspeitavam o que seria. Era o signal combinado entre Viriatho e os maioraes da Mésta; por essas lumieiras sabiam elles a situação, e que era tempo para executar a estrategia.
Os touros bravos, em numero de tresentos, sahiram de um dos Furados, attrahidos pelas vaccas mandarinas, sempre em marcha accelerada na direcção da Cava. Os Maioraes, com extrema pericia guiavam aquella immensa força bruta. Semesca encarregára-se de trazer uns vinte cães furiosos da serra; e acompanhava a boiada mais atraz. Quando chegaram a pouca distancia da Cava já se via a estrella boieira; foi esse o momento escolhido. Viriatho fez açular os cães contra os touros, que os Maioraes montados e com varas compridas dirigiram para dentro da Cava, tendo-lhes na carreira cega retirado as vaccas mandarinas da dianteira. A furia dos touros excedia quanto se imaginára; vendo luz no acampamento dos romanos, para ahi se atiraram em um impeto irresistivel. Tudo cahiu deante d'esse assalto de uma força de ariete. Os gritos de horror, a confusão de vozes revelavam a enormidade da catastrophe. O que fizera Galba com os dez elephantes africanos contra os trinta mil lusitanos indefezos, agora Viriatho o repetia contra as Legiões romanas arrojando-lhes na escuridão da noite tresentos touros dos mais bravos da Betica, e impellidos pelos indomaveis cães dos Herminios. Os touros destroçaram todo o acampamento; e quando Edovius e os outros Maioraes entenderam ajuntar os touros e leval-os caminho da Serra, Viriatho entrou na Cava com as suas catervas e foi passando á espada quantos sobreviviam do exercito de Nigidio. Eram estes recursos extraordinarios, que tornavam temivel Viriatho manobrando com um exercito sem disciplina, e que em uma batalha campal não resistiria diante de uma bem organisada Legião. Não era a primeira vez que os touros se empregavam como uma arma de combate; mas em tamanho numero, e tão calculadamente, com o concurso de boieiros experimentados, e produzindo um effeito tão completo só a Viriatho compete uma tal gloria.
A insignia da Legião, que era uma Aguia poisada sobre uma rodela sem ornatos no tope de uma comprida vara, appareceu calcada e recalcada; e entre os corpos mortos viam-se esfrangalhados os balsões ou Vexillos das Cohortes bordados a ouro com os numeros de cada uma e o nome da Legião. Pelo chão revolvido e ensanguentado notavam-se as Signas ou bandeiras dos Centurios; algumas ainda conservavam no alto da vara uma mão direita como symbolo da fidelidade, ou uma corôa allusiva a alguma victoria. Ainda agarrados aos seus pendões, jaziam Porta-Estandartes com as cimeiras de cabeças de leões cujas pelles lhes pendiam das costas. Cascos de ferro e de cobre, escudos de páo chapeados de ferro, cotas de malha revestidas de couro ou guarnecidas de escamas de metal, couraças de bronze, espadas de dois gumes, parazonios ou espadas curtas, dardos, flexas, fundas juncavam todo o ambito da Cava, como se um torvellinho de morte tivesse dispersado o acampamento de Nigidio.
Os despojos do exercito romano foram em grande parte dados aos Maioraes da Mésta, em paga do seu trabalho e acerto. D'ahi veiu o apparecerem ainda passados muitos annos, collares fixos ou torques, cistes de bronze, dracmas de prata e armas romanas, por muitos logares inaccessiveis dos Herminios.
Entre os poucos legionarios do exercito de Nigidio que escaparam não appareceu o general; fôra uma victima da tremenda catastrophe. Os chefes do exercito de Viriatho resolveram prestar uma homenagem á Deusa-Mãe, do culto chtoniano, I-Ana, ou Anah, levando em um carro puchado por vaccas brancas, até as lesirias da margem do rio Pavia, a Pedra focal, com que ella era representada na religião lunar da Lusitania. D'esse culto primitivo, ficou a superstição de revolver penedos, junto dos lameiros ou charcos, e a crença nas Jans ou fadas, e nos juncaes chamados Omomi, de que o povo fez a entidade do Bom Homem. A Pedra focal foi conduzida com o respeito de quem via n'ella o symbolo da fundação da familia, e no pleni-lunio dansava-se diante d'ella ao som de sistros e adufes, tal como usavam as familias religiosas dos Cabiras, Telchines e Dactylos. A Pedra focal era entre as tribus dos Germanos tambem levada em um carro com o nome da deusa Herta, e arrojada a um lago.
No meio da festa apparatosa da Deusa-Mãe, todos os guerreiros do exercito de Viriatho se approximaram da Pedra focal e collocando a mão sobre ella fôram proferindo um juramento inquebrantavel:
—Nós combatemos pela liberdade da Lusitania, fonte da paz e da segurança das nossas familias. E emquanto a Lusitania fôr pisada pelo invasor romano, nós juramos combatel-o sempre, sem regressarmos a nossos lares, sem procurarmos as nossas mulheres, sem mais beijar os nossos filhos até ao final triumpho, em que todos estamos empenhados.
A confiança na audacia e intelligencia de Viriatho é que motivava estas resoluções extremas, que, se fosse necessario, seriam levadas até ao suicidio. Viriatho começava a apparecer como um vulto maravilhoso, e corriam vozes de que o toque das suas mãos dava saude. E quando o carro era levado para a beira do rio com a Pedra focal, trouxeram ao encontro de Viriatho um pobre homem hydropico, em extrema deformação, para que o soccorresse com o seu poder e o livrasse de tanto soffrimento. Viriatho attendeu o desgraçado doente:
—Para o teu mal ha um remedio infalivel nas aguas da Fonte de Ouguella. Segue para lá quanto antes, e fica certo de que te curas.
—Senhor! disse o hydropico: Eu sou Bovecio; e prometto, quando voltar curado, ser teu soldurio, acompanhar-te nos perigos e ainda além da morte.
Viriatho, sorrindo para os que o escutavam maravilhados, continuou:
—Não tem essas aguas sómente virtudes medicinaes; o pão amassado com agua da Fonte velha de Ouguella fica mais leve e saboroso do que o melhor pão de Avintes.
Um dos soldurios interveiu:
—Conheceis bem todas as riquezas d'esta nossa terra, porque a tendes percorrido de norte a sul.
—Por isso mesmo é que eu lhe tenho tanto amor. Quando andava nas fadigas da Mésta, quantas vezes fui eu ás aguas afamadas de Aljustrel, lá no Alemtejo, lavar as feridas malignas e pustulas do gado. Por lá encontrei sempre muitos pastores, que se iam tratar de feridas rebeldes, de sarna e até da lepra. O que sei dizer, é que de lá voltavam sempre curados.
—São aguas santas!
—Santas, sim, mas é preciso ter cautella, por que bebendo-se de mais... Os banhos, esses são milagrosos.
—Deveis conhecer umas aguas que nascem em Olyssipo, na falda meridional do Monte do Castello?
—Se conheço! Curam os catarros mais fundos, e acclaram tanto a voz, que até se diz que não ha musicos que egualem os d'essa terra. Se os Romanos se apoderassem d'essa cidade com certeza ahi edificariam sumptuosas Thermas.
—Toda esta nossa Lusitania é rica de aguas milagrosas.
E emquanto o carro com a Pedra focal continuava a marcha, Viriatho completou o seu pensamento:
—Como as aguas do Tagus não ha outras no mundo mais acerosas; nem as de Bilbile ou de Tarragona lhe chegam. Bem se vê pelo que se passou agora na Cava.
A Guerra dos ladrões, como chamavam em Roma á lucta heroica de um povo defendendo o seu territorio, os seus lares, a propria existencia, prolongava-se com desastres successivos para as armas sempre ufanas dos Quirites. Os barbaros do occidente eram exemplo de dignidade civica e de altura moral para o povo-rei, que se arrogava a supremacia da civilisação. As derrotas quasi simultaneas de Unimano e Nigidio occultaram-se por alguns dias na Cidade eterna; chegou-se mesmo a espalhar que Viriatho se rendera, que fôra agarrado; que seria trazido para o apresentarem ao povo em espectaculo no Circo. Mas a verdade cruenta irrompeu quando se viu que fôra encarregado Caio Lellio, que era por todos cognominado o prudente, de partir rapidamente para a Hispania, e de intervir com o seu tino seguro na campanha que se desmoralisára. E tal era a importancia da missão, que Lellio partira revestido da auctoridade de Proconsul. A situação era extremamente grave; porque um dos generaes romanos, não se sabia se Unimano ou Nigidio, em consequencia dos muitos ferimentos que recebera, succumbira. Lellio ia substituir um d'elles. O novo general inspirava confiança pela clareza de intelligencia que possuia; não iria imprimir um impulso decisivo ao Bellum latronum, mas ninguem como elle saberia informar o Senado da situação da Lusitania e das condições que cedo ou tarde conduziriam á victoria. Lellio era considerado em Roma como um litterato eximio, dotado de eloquencia empolgante, e de um vasto saber; estas qualidades não eram incompativeis com o espirito militar de um chefe tacitamente encarregado, não de feitos estrondosos, mas de salvar dois exercitos compromettidos em um paiz inimigo e longinquo. Por isso a chegada de Gaio Lellio á Lusitania não produziu ruido; a sua obra capital foi sustar promptamente o revês que se precipitava, reunindo os dois exercitos romanos, e evitando a batalha campal a que Viriatho o provocava, com constantes escaramuças. Depois d'isto preparou as cousas para que d'alli em diante a campanha da Lusitania tomasse um outro aspecto mais favoravel ao poder de Roma. As suas informações para o Senado influiram n'isso, e por ventura foram seguidas mais tarde por outros generaes com o exito desejado. Lellio, com o seu profundo saber, tratou de ir colhendo todas as noticias que importavam ao interesse de Roma, e com as notas que tomava, inquirindo dos povos e dos costumes, escreveu uma carta ao Senado, da qual alguns trechos foram aproveitados pelos geographos contemporaneos. Narrava o Proconsul:
«Cumpre ter sempre presente, que a Lusitania é habitada pela mais poderosa das nações hispanicas; e que achando-se já subjugadas as outras, é esta a que se atreve ainda a deter as armas romanas.
«Não provêm a sua força do numero dos seus habitantes, mas da sua resistencia devida a um temperamento tenaz e incansavel, a uma dignidade individual que antes prefere a morte a qualquer apparencia de escravidão.
«Explicarei isto pela pureza do sangue lusitano; elles não se misturaram com os Celtas, que haverá quatro seculos invadiram a Hespanha e conseguiram alliar-se e fusionar-se com os Iberos. Na Lusitania não aconteceu como nas Gallias, quando ahi se effectuou a conquista do Celta invasor; o lusitano não cahiu na servidão militar como o gaulez. O povo vive espalhado por casaes, villares, pobras, agricultando, deixando o trabalho dos campos ás mulheres, desde que é preciso correr ás armas para defender a terra; as Cidades são confederadas entre si, tambem no intuito da defeza, e para o fim de governo administrativo. São elles que votam em Conselho armado a guerra defensiva, e que elegem os seus chefes e generaes, declarando cada povo ou localidade com quantos Cavalleiros ou infantes contribuirão para a guerra contra os Romanos. Os Chefes eleitos apresentam-se na entrada de Maio promptos para a campanha, seguidos dos seus Companheiros, que são todos os homens seus dedicados, soldurios e protegidos, que os seguem por toda a parte, e lhes obedecem incondicionalmente. É esta a organisação do seu exercito. E de Viriatho me contam, que elle tem, além do commando geral de todas as forças, uma guarda de Mil Soldurios, que desde a matança do Tribola, em que salvou o exercito Lusitano da perda immediata quando já propunha a rendição, ficaram constituindo a sua Guarda de corpo, com juramento de lhe não sobreviverem morrendo elle em campanha, como prova da sua Irmandade heroica. Desde o desastre de Tribola até hoje muitos d'entre os Mil Soldurios têm morrido nas guerras com Plancio, com Claudio Unimano e Caio Nigidio, mas esse numero está sempre completo, porque a maior gloria que póde aspirar um guerreiro lusitano é jurar o pacto de amisade na vida e além da morte, sendo eleito em consequencia de feitos extraordinarios um dos Mil de Viriatho. Com uma organisação militar que assenta no vinculo sentimental da confraternidade, e que se move pela emoção hallucinante da Patria, as Legiões romanas nada pódem, e a estrategia dos Pretores fracassará sempre desde que continuem com o systema das batalhas campaes, em um terreno cheio de anfractuosidades perigosissimas e que os naturaes conhecem perfeitamente.
«Apontando estes contras não quero espalhar o desânimo; e assim como Roma já soube tirar uma lição luminosa dada por estes barbaros, adoptando para o seu exercito a Espada hispanica, que lhe tem proporcionado victorias, d'elles temos a tirar ainda a arte de os vencer. Porque, rigorosamente, os Lusitanos não pódem ser vencidos senão pela perfidia. Sabereis que entre a raça dos Iberos e a dos Lusitanos ha um odio irrefreavel mas latente; nunca se ligam, nem se entendem, e a sua aversão mutua separa-os mais do que as inaccessiveis fronteiras de rios caudaes ou de alterosas montanhas. Passarão os seculos, mas esta antinomia prevalecerá. É sobre ella que Roma deve apoiar o seu dominio; muitos povos da Lusitania estão hoje confundidos em territorio iberico, e Viriatho conseguindo reunil-os para a Confederação defensiva em que trabalha expulsará o poder de Roma da Hespanha, com certeza e não tarde. O Ibero lisongeia-se com os contactos da soberania de Roma: dêem-se-lhe titulos de cidades municipaes, attraiam os seus filhos a Roma, e elles ficarão submissos, porque adoram o poder; aproveitemos o odio do Ibero para demolir o Lusitano. Para aniquilarmos o Lusitano é debalde que empregaremos a espada, mas é infallivel o resultado impellindo-o para a união iberica. Hoje toda a Lusitania tende a retomar a extensão primitiva, e unifica-se moralmente á voz de Viriatho, que se acha revestido entre o povo de um prestigio maravilhoso: nada menos do que acreditarem todos que elle é invencivel. Nós sabemos quanto esta credulidade influe no animo das tropas e decide das batalhas. Corria por aqui entre as tribus da Lusonia que appareceria um guerreiro montado em um Cavallo branco, e que elle conseguiria repellir o estrangeiro invasor; todos hoje consideram Viriatho como a realisação d'essa velha prophecia, e os companheiros que lhe deram o Collar de ouro do commando ou a Viria, foram os primeiros que o acclamaram pelo nome de um guerreiro prestigioso do tempo de Annibal, chamando-o VIRIATHO! Morto este chefe dissolver-se-ha a Lusitania; porque esse profundo sentimento de raça e de patria, que anima as tribus lusas, carece de uma representação que as identifique. Viriatho deve ser morto; sem o que, não acabará a campanha e Roma será sempre vencida. Urge pensar n'isto e só n'isto. Simulem-se campanhas, mas vise-se a este fim unico. Perguntareis: Quem hade matar Viriatho? Por certo, que nenhum general romano ou cavalleiro audacioso o desafiará para um combate individual. Mas, já indiquei o caminho: o odio dos Iberos e dos Lusitanos entre si é insondavel, e não faltará um Capitão de sangue iberico que se preste a alcançar a gloria d'essa traição.»
Era mais longa a Carta de Caio Lellio ao Senado; muitas das suas passagens foram aproveitadas pelos geographos gregos e chronistas romanos, de épocas ulteriores, e pelos historiadores que referiram as Guerras viriathinas. A parte que interessava directamente á politica romana foi lucidamente comprehendida, não só pela experiencia dos anteriores desastres, mas pela confiança no tino indiscutivel de Caio Lellio. Por isso nos Annaes da Republica não se referindo nenhum combate dado por Lellio na Lusitania, inscreveu-se que imprimira aos successos uma direcção que os tornava menos favoraveis aos Lusitanos.
O effeito das palavras sensatas de Lellio era tardio, e os acontecimentos atropellavam-se exigindo uma acção immediata. Para os espiritos ambiciosos a missão de Lellio tambem fôra frustrada; era uma derrota como as outras, mas sem apparato. O Senado obedeceu á corrente da opinião: n'aquelle anno de DCIX da Edificação da Cidade, e sexto da Guerra dos Ladrões, foram eleitos Consules Quinto Fabio Maximo Emiliano, e Lucio Hostilio Mancino, filhos e irmãos de afamadissimos generaes, que tinham levado as armas romanas ao maximo esplendor na victoria de Pydna, e na destruição de Carthago. Fervia-lhes o sangue; Quinto Fabio empenha-se para vir tomar pessoalmente o commando na guerra da Lusitania. O Senado attendeu o seu desejo dando-lhe a ordem peremptoria.
A Guerra viriathina, como em Roma já se dizia da campanha desgraçada na Lusitania, levou o Senado a encarar os acontecimentos com a justeza que lhe competia, preparando uma solução pratica. Usando de um direito de negociar e concluir allianças com os povos estrangeiros, entendeu o Senado que era tempo de propôr a Viriatho um tratado de mutuas garantias, da cathegoria d'aquelles em que ha egualdade de obrigações, e designados sob o titulo de Foedus aequum. A lucta desesperada das populações da Hispania Ulterior resultava de um sentimento de independencia local e pessoal, que Roma não podia apagar pela força das suas legiões; pelo direito era possivel ligar esses povos aos interesses romanos, por que as terras ficariam governando-se pelos seus costumes e os individuos adquiriam o Jus peregrinum, gosando de uma protecção legal em Roma sem dependencia de patronos.
Cada derrota de um Pretor ou Consul na Lusitania manifestava ao Senado a difficuldade de poder submetter esta região hispanica ao regimen do Foedus iniquum, titulo com que Roma cobria a subserviencia dos povos submettidos ao seu protectorado. A Lusitania não era um inimigo vencido, nem tampouco seria um amigo fraco; reconhecendo-o no meio de tanto desastre, o Senado viu claro o caminho para exercer a sua acção na Hispania Ulterior indicando a opportunidade do Foedus aequum. Approveitava-se a occasião da partida de Quinto Fabio para a Lusitania: elle seria o portador do tratado de alliança, ficando-lhe reservado o arbitrio de poder firmar o tratado com Viriatho, ou de o occultar, caso o successo das armas romanas mantenha o seu imperio. A convenção diplomatica não comprehendia sómente a segurança das pessoas e das transacções entre os dois paizes; continha-se ahi um facto capitalissimo, e que poderia exercer uma influencia decisiva no futuro da Hispania Ulterior: o Senado reconheceria Viriatho como princepe ou rei da Lusitania, assignando e responsabilisando-se pela execução do tratado como soberano.
Quando entre alguns membros do Senado se aventou a importancia de um tal acto, de consequencias imprevistas, um dos Senadores mais experimentados no governo sorriu-se com superioridade:
—Todas essas garantias estão apenas na letra; por que vós todos sabeis, que embora pertença ao Senado a direcção das negociações com os estrangeiros, nenhuma alliança poderá concluir-se sem que os Comicios lhe prestem o seu assentimento ou ratificação.
A ideia diplomatica foi promptamente comprehendida. Na partida de Quinto Fabio entregou-se-lhe o tratado, cujo conteudo ignorava, e impondo-lhe a clausula, que só o abrisse e cumprisse, quando e até aonde a marcha dos acontecimentos o determinasse. Era ainda um habil modo do Senado eximir-se a responsabilidades.
As forças que Lellio commandava em Hespanha estavam cansadas e apavoradas; o Consul Quinto Fabio comprehendeu que era condição impreterivel partir com algumas novas Legiões, para com ellas metter em disciplina as que se consideravam exhaustas. Os exercitos romanos estavam divididos pelas campanhas gloriosas da Grecia, da Macedonia, de Carthago, achavam-se diminuidos e tambem debilitados por esforços ininterruptos; os veteranos que regressavam á patria vinham semi-mortos, e para nada se poderia contar com elles. De Pydna haviam chegado a Roma as Legiões triumphantes; da destruição de Carthago regressava Scipião com os seus bravos; mas nenhum legionario se quiz inscrever para acompanhar Quinto Fabio para a guerra da Lusitania, justificando-se com desdem que não desciam das altas façanhas contra nações grandes e civilisadas, contra umas obscuras tribus miseraveis dos confins do occidente e demais commandadas por um chefe de ladrões, (Dux latronum). Por estes imprevistos embaraços, e pela situação apathica em que se via Caio Lellio, a guerra lusitana afroixára; Viriatho, para não cansar as suas Companhias e Terços aproveitou-se d'esta tregua forçada, contando que nova epoca de lucta seria iniciada, cada vez mais desesperada e cruenta da parte dos Romanos.
Para que a inactividade passageira em que se via não prejudicasse o perstigio que exercia sobre os seus homens de armas, resolveu Viriatho ir consultar o velho Idevor á ilha sagrada de Achale, junto do promontorio Cepressico, aonde se conservavam as tradições cultuaes trazidas de Hierna; partiu acompanhado dos seus Mil Soldurios, e transpondo a margem direita do Tagus, dirigindo-se para Cetobriga, aonde o Sado desemboca no Oceano, deu ordem aos companheiros que alli o esperassem durante tres dias.
D'alli, d'aquella bahia do Sado, partiu Viriatho em uma barca de couro, com os trez Cavalleiros que sempre o custodiavam, em direcção ao promontorio Cepressico de traz do qual parecia occultar-se a ilha de Achale. Um d'esses companheiros, Ditálcon, dizia:
—Foi n'essa ilha que se refugiaram as familias lusitanas assombradas pelo morticinio de Galba; junto do templo do Deus innominato, encontraram alento para resistirem á calamidade que os aniquilava.
Minouro, ancioso por pisar aquella ilha mysteriosa de Achale, avivava tambem as suas reminiscencias:
—Conta-se que outr'ora um Collegio sacerdotal de Druidas estava na ilha Pelagia, situada ao norte, fronteira á costa de Ophiusa, chamada d'antes Oestrymnis. Da ilha sagrada de Hierna vieram para aqui os Bardos, que doutrinaram as tribus de Lez, cujos navegadores cruzavam o mar Tenebroso indo buscar o estanho ás ilhas Cassitérides, e voltavam confiados no afamado pharol da torre de Brigantia. Mas, quem sabe onde está hoje essa ilha Pelagia?
Andaca observou:
—Desappareceu, ou por mysterio ou força da natureza. O mar desfez essa ilha, e aonde ella existiu é hoje um vastuo estuario coberto de moliço e algas. Parece que os acontecimentos nos levam a prevêr que a Lusonia tem tambem de desapparecer como a sua Ilha encantada. Aqui a nossa raça foi invadida pelos Celtas loiros turbulentos; aqui nos tem explorado os Phenicios e Jonios, destruindo a nossa navegação no Oceano, mettendo a pique as nossas barcas; aqui nos roubaram pelo seu commercio os Carthaginezes, que attrahiram sobre nós a pilhagem dos Romanos, que hoje temos vencido, mas que não largam a prêza.
Emquanto a barca de couro seguia para a ilha de Achale, ia Viriatho reconcentrado e silencioso, como absorto na alta missão da sua vida; ao ouvir aquellas palavras de Andaca, obedecendo a um impulso intimo da sua intuição quasi prophetica, exclamou para os trez companheiros:
—Não serão sómente os Romanos que hão de pensar em submetter ao jugo as tribus da Lusonia; outros povos ou outras raças virão do norte e do sul, e se espalharão sobre este territorio julgando possuil-o pela força da conquista. A Lusonia póde ser temporariamente vencida, mas nunca d'outrem subjugada; não se extingue, porque a sua liberdade subsistirá nas almas, e cedo ou tarde manifesta-se em espirito e renasce em restauração gloriosa.
As suas palavras foram interrompidas porque a barca de couro dobrara o promontorio Cepressico, e appareceu repentinamente á vista a Ilha sagrada de Achale.
—É alli, é alli que se guardam os thesouros salvos ás devastações e rapinas dos Romanos; outros povos lançam os seus thezouros aos lagos escuros, como melhor meio de defeza. Mas quem saberá da existencia d'esta ilha mysteriosa? Ninguem; ninguem.
Minouro fitou a ilha, contemplando-a com espanto, na preoccupação que desde aquella hora sabia aonde se guardava o chamado Thesouro do Luso. A mesma ideia tornou-se uma obsessão para Ditálcon. A barca chegava já ás rochas escarpadas da ilha de Achale, sobre a qual se erguia uma Torre redonda de trez andares, como sentinella do Oceano tenebroso.
Erecta sobre o pequeno promontorio, a Torre redonda de uma surprehendente elegancia, era construida de fortes blocos apparelhados de pedra sêcca, tendo no cocuruto um tecto tambem de pedra em fórma conica. Dos seus tres andares ou quadras sobe-se por escadas em caracol formadas em pequenas torres lateraes que terminam em ameias.
O interior é alumiado por seteiras geminadas, e a porta unica da entrada está a uma altura do chão para a qual se sobe por uma escada movel que se faz baixar quando é necessario. Como logar de refugio alli estão depositadas as folhas plumbeas que têm impressos os titulos das familias, e relações dos successos memoraveis, Crescentes e Virias de ouro, Fibulas mamilares, Tiaras e Bastões de prata, insignias do commando dos patriarchas. Alli na Torre redonda se conserva o Fogo perpetuo consagrado a Samham, o Julgador dos mortos, cujos ritos se celebram no primeiro dia de Novembro. Consagradas a esse culto dos Antepassados ahi residem as Gemmades (de Genmaidh, puro e casto) mulheres formando uma como classe de Vestalato ou Lucae dominicae; e alli comparecem os tocadores das Harpas triplices ou de tres cordas, chamadas Telyne, que com sons fortes e vibrantes enchem o ambiente acompanhando os canticos de uma inspiração divina expressa pela palavra Awen.
E torneando a ilha, para fazer o desembarque, perguntava Andaca:
—Não tem porto Achale?
N'isto roçou a barca em uma lingueta de areia, que se ia alli formando em cabedello, e que com o andar dos seculos encheu esse ponto de communicação do rio Sado com o Oceano tornando-se com as turfeiras uma extensa peninsula, sobre a qual se accumularam apparatosos monumentos, que por seu turno foram tambem devastados pelo tempo.
Viriatho e os seus trez companheiros desembarcaram alegres; Idevor com um longo séquito de Endres, ou cantores e educadores do povo, veiu ao seu encontro, e entre musicas ruidosas e hymnos festivaes foram conduzidos para a vasta quadra que formava o andar terreo da Torre redonda. Era ahi a sala do banquete, em que se fazia a Symposia dos Chefes das Contrebias lusonias, quando se manifestavam sobre os destinos nacionaes. Era a primeira vez que Viriatho se assentava á cabeceira da meza, como se fosse um Brenn ou Hegmon das tribus.
E apenas Idevor o conduzira ao seu logar, entraram na quadra nove donzellas encantadoras, das mais bellas do typo da raça, cingidos os cabellos castanhos com litas douradas que desciam com as madeixas soltas ao longo das costas; e dansando em volteios com sentido hieratico, e cantando em unisono um côro que repetiam, foi o seu canto interrompido por uma voz argentina que parecia partir do alto da sonora quadra. Viriatho ergueu os olhos para descobrir d'onde vinha aquella voz que o penetrou com uma vibração seductora e dominativa, e viu lentamente descendo do primeiro andar da Torre redonda uma Donzella de uma graça e frescura sobrehumana.
Era Lisia, a filha do velho endre, e como elle conhecedora dos mythos da raça, e guarda das tradições mais augustas das tribus lusonias. Estava vestida com uma tunica branca guarnecida de purpura de Elisa, que os Tyrios tinham tornado celebre no mundo, cingida por um cinto de malha de ouro; uma lunula de ouro chato com finos ornamentos abarcava-lhe todo o alto da cabeça e vinha ás pontas das orelhas. Era uma Semnothêa, cercada por um grupo de nove Virgens, com quem no alto da Torre redonda celebrava os mysterios cultuaes. Lisia acabou de descer o longo escadorio, e atravessando por entre o Côro das donzellas, que a foram seguindo, tomou de uma ára a taça de ouro destinada ás symposias, e chegando em frente de Viriatho, estendeu o braço desnudado, alvissimo e de um contorno esculptural, appresentando-lhe a taça de ouro:
—Bem vindo! Viriatho. Só para ti, e com a minha felicidade.
Sob uma emoção repentina e como que subjugado pela belleza extrema que alli lhe apparecia, Viriatho tomou a taça da branca mão de Lisia e extactico, paralysado no seu movimento, não a levou logo aos labios. No rosto de Lisia transpareceu uma melancholia instantanea; seria desattendida a sua escolha? não a amaria o guerreiro de que tanto lhe fallavam, cujo nome se repetia nos cantos do povo e em hymnos de victoria?
Tudo o amor adivinha; lê nas almas, e o silencio é a linguagem mais expressiva da emoção ineffavel. Viriatho comprehendeu o vislumbre de tristeza que obumbrou o semblante de Lisia, e accudindo á hesitação involuntaria de que não se apercebera, levou a taça de ouro aos labios:
—Á tua saude! e para sempre.
Entrega em seguida a taça a Lisia, que com um rubor fascinante a levou aos labios, como completando a cerimonia tradicional esponsalicia, murmurando com suavidade:
—Para sempre!
E emquanto se entreolhavam em um invencivel enlêvo, Idevor ergueu ambas as mãos abençoando-os, lembrando-se de que aquella criança bella perdera toda a sua familia na mortandade de Galba, e de que aquelle homem forte surgira como o vingador e o libertador da Lusitania. Essas duas almas fugiam uma para a outra. As nove donzellas que acompanhavam Lisia como uma fórma não organisada do Vestalato, mas que poderiam ser comparadas ás Senae ou Barrigenes gaulezas, cantaram um hymno de amor, ao som de tetracordes, sobre a phrase que Viriatho e Lisia tinham trocado:
Para sempre—no espaço
A estrella
Erma, bella,
Fulgor vivo derrama:
De paixão nunca lasso,
O que fará quem ama?
Para sempre—o sol flavo
Solta a flux
Vida, luz,
Que o seu calor inflamma;
Da attracção pura escravo
O que fará quem ama?
Para sempre—o Oceano
Tudo alaga
Com a vaga
Que plangente rebrama;
Da alma no doce engano,
O que fará quem ama?
Para sempre—sereno
O luar
Faz scismar,
E mil saudades chama;
No enlêvo mais ameno,
O que fará quem ama?
Para sempre,—e sem calma
A paixão
Na attracção
Do enlêvo augmenta a chamma;
E embala o engano da alma
Para sempre em quem ama!
O hymno de amor desdobrava-se em um coral unisono no retornello—O que fará quem ama?—deixando uma impressão mais que humana. Emquanto os eccos do festival se repetiam por todas as quadras da Torre redonda, Lisia, de mãos dadas com Viriatho, foi percorrendo a sala á volta, cumprimentando os assistentes, que se inclinavam com sympathia. D'alli subiram os dois para o terceiro e ultimo andar da Torre d'onde se alcançava a extensão immensa do mar azulado, que reflectia o cariz de um céo sereno e sem nuvens.
—Como as nossas almas!—disse-lhe Lisia, apontando todo aquelle ambiente.
Alli, n'aquelle retiro ignorado do mundo e até aonde sómente Lisia tinha accesso pela sua qualidade de Semnothêa, alli, de pé, junto de Viriatho, e contemplando o Oceano profundamente placido n'aquelle dia, confessou-lhe a noiva ingenua:
—Nunca te tinha visto, mas representava-te na mente assim como és. Como Semnothêa e para que te entregue completamente a minha vontade, só me falta uma prova de ti. Tens de responder a um Enigma.
—O coração que ama tudo adivinha.
Então Lisia proferiu com incerteza este Enigma de caracter religioso:
Vive sem ter corpo,
No valle ou em gruta;
Falla sem ter bocca,
Sem ouvido escuta?
—Esse Enigma, devolveu Viriatho, foi-me revelado pela tua voz, quando pela abobada d'esta Torre, lhe escutei o suavissimo Ecco.
—Bem se vê que tens entrado em grutas e cavernas sagradas. Eu bem sei que foi um Ecco em mysteriosa resonancia, que te proclamou invencivel.
E tirando uma armilha de ouro do braço, fechou-a no pulso de Viriatho, e atirou a chave ao mar, proferindo como em vaticinio:
—Para sempre!
E Viriatho, tomando-lhe as mãos ambas:
—Eu ouvia fallar de ti como uma apparição celeste, mas não tinha esperança de chegar a vêr-te. N'esta vida de combates que levo, para a independencia da nossa Patria ser firmada, esperando a morte como consequencia da lucta, e então... morreria sem vêr-te.
—Foi o teu amor pela Patria lusitana que me fez pensar em ti e levou a amar-te como a alma d'ella. As tuas victorias venceram-me tambem; e Virgem Semnothêa do Collegio sacerdotal, que através de todas as perseguições e ruinas ainda aqui se conserva occulto n'esta ilha sagrada de Achale, fiquei pertencendo-te desde que identificaste a tua vida com a independencia da Lusitania.
—É para mim muito mais do que a corôa de rei a escolha que de mim fizeste para teu esposo.—Disse Viriatho, tomando as mãos de Lisia e beijando-as trémulo.
Lisia approximou a face immaculada da bocca do guerreiro, que a osculou com emoção e pureza, na ingenuidade de heroe, que fazia d'esse beijo não um prazer mas um sacramento. Viriatho ficou mudo por algum tempo, fitando o mar como esquecido de si.
Lisia, com ternura e graça, perguntou-lhe:
—Quando te entreguei a taça de ouro, por que hesitaste em leval-a aos labios?
—Dominou-me o espasmo de uma impressão divina.
—Comprehendeste a minha tristeza n'esse momento rapido. Ah, n'esse momento decidiu-se na minha alma uma determinação mais forte do que o meu desejo, e que se tornou um voto religioso. Levaste a taça de ouro aos labios acceitando a minha escôlha; mas... só virei a ser a tua Esposa, cobrir-nos-ha o mesmo cortinado quando um General romano te pedir a Paz.
—Lisia, escolheste-me para teu esposo! Entrego-me á tua vontade,—para sempre. A condição que revelas é um impossivel, por ventura para não te destituires da hierarchia de Semnothêa? Virgem dos mysterios cultuaes, nunca deixarei de amar-te, elevando-me a uma adoração pura, e tirando d'este santo amor o impulso para vencer os Romanos, e para... que digo eu? deixa-me delirar um instante, para forçar um Pretor, um Consul a pedir-me a Paz. Eu tambem jurei sobre a Pedra focal não ter familia em quanto não expulsar os Romanos da Lusitania.
Nas palavras de Viriatho accentuara-se uma vibração de confiança em si, para, servindo a causa santa da liberdade da patria lusa, cumprir a condição quasi ultrahumana que Lisia lhe impozera. Lisia tambem teve a presciencia de que isso aconteceria, e tirando o annel de esmeralda que trazia, metteu-o no dedo da mão esquerda de Viriatho, n'aquelle em que se diz passar a vena-percordial.
E desceram ambos da Torre redonda, mais unificados nas almas do que se tivessem cohabitado em uma concordia de annos de ventura. Viriatho d'aquelle dia em diante tinha mais do que a Espada invencivel, que o não deixaria ser derrotado na guerra, nem morrer em combate; era o Annel de Lisia, que lhe infundia na alma uma confiança no futuro da inextinguivel raça lusitana através de todos os desastres em que a envolvessem as vicissitudes dos tempos vindouros. Viriatho via no Terçado e no Annel os Talismans que pelo poder da tradição formariam o Thezouro do Luso.
No segundo dia em que Viriatho passou na ilha sagrada de Achale, o velho endre Idevor levou-o ao primeiro andar da Torre redonda, e ahi ambos a sós, fitando o mar, demoraram-se longo tempo em um recolhimento mysterioso; fallava Idevor:
—«Tens a força material, n'essa Espada Gaizus, que te torna invencivel: a força moral é a que não se extingue e mais se communica. Já que o teu braço serve com lealdade a causa da Lusitania, é preciso que o teu espirito seja apoiado pela Tradição da nossa raça; que a conheças, por que a tua memoria sobreviverá n'ella, e que com ella ligues em um vinculo affectivo todos os companheiros de armas que seguem o teu commando. A tradição do passado é dolorosa, mas sublime; nós os Lusos sômos um ramo d'essa grande raça navegadora que desceu do Norte pela borda occidental da Europa, occupou as ilhas Britanicas, a orla atlantica das Gallias, da Aquitania, e espalhando-se na Hispania, chegou ás ilhas Mediterraneas e á alta Italia.
«Esse povo navegador, que explorava os mares e os rios, como os amphibios, tirou d'esta qualidade os nomes de muitas das suas tribus, que fórmam Ligas hanseaticas para protegerem a sua actividade mercantil, vendendo os blocos de Ambar amarello que iam buscar aos mares do Norte. Esse grande Povo, d'onde proviemos, encetou as audaciosas navegações do Oceano atlantico, descobrindo ahi as Ilhas Afortunadas, tocando em um ignorado continente que fica lá para as bandas do Oéste ou a terra dos Aymaras, a quem communicou a sua civilisação e conhecimentos de astronomia. E desembarcando na costa africana, chegou ao Golfo persico, e depois de estacionar na ilha de Dilmun, occupou a baixa Chaldêa, dirigido por Oannes ou Huan, que na velha lingua designava o Sol, que era o guia certo d'esses navegadores primeiros.
«Perdeu-se a noticia d'estas largas navegações; a raça foi atacada por outras raças fortes melhor armadas ou mais astutas. Em terra os Celtas, armados com espadas de ferro, bateram e dominaram os que só conheciam espadas de bronze; e essa raça corpulenta e loura, irrequieta e inculta, bateu os Ligures, escravisou-os ou misturou-se com elles desnaturando-os da sua pureza primitiva. Por mar os Phenicios e os Jonios do Mediterraneo lançaram-se no esteiro das suas navegações e mettiam a pique todos os baixeis liguricos que encontravam. N'esta longa lucta é que os Ligures foram succumbindo; sobretudo na Hespanha, quando os Iberos, vindos do norte da Africa, aqui entraram e monopolisaram o commercio do estanho que iam buscar ás Ilhas Cassitérides.
«Outras raças vieram successivamente á occupação da Hespanha, e aqui foram comprimindo a raça de Lez, o generoso povo da Lusonia, empurrando-o para a faixa occidental, e como que procurando arrojal-o ao mar Oceano. É no conflicto d'estas raças invasoras que a Lusitania tem diminuido de territorio, e as suas tribus vão sendo desmembradas. Os Romanos acharam-os já enfraquecidos, mas tenazes, tendo resistido na faixa que hoje occupâmos, á antiga invasão dos Celtas, e até agora nunca confundidos nem incorporados pelos Iberos. É com esta força de resistencia immanente na possa raça que deves contar; ella vale mais do que muitos exercitos disciplinados, estes morrem mas esse sentimento é inextinguivel. A Lusitania não é somente um territorio maior ou menor, que nos aggrega; é uma alma, o seio que nos une a todos! Os Jonios roubaram-nos as nossas tradições poeticas, transportando para as cabotagens do mar Mediterraneo as nossas aventuras temerosas passadas no Atlantico, que se tornou para os seus geographos o Mar Tenebroso. Os Phenicios afundaram os nossos baixeis e apoderaram-se dos nossos Periplos e do nosso commercio. E depois de tanta devastação do estrangeiro, vem ainda um outro invasor estrangeiro, a grande e generosa Roma votar-nos ao exterminio para assim firmar a sua posse pacifica da Hespanha, segura de que o Ibero se considera honrado com a expoliação do seu dominio. Hoje, Roma conta com a antipathia do Ibero para subjugar a Lusitania: com o odio do Ibero contará mais tarde qualquer outra potencia estrangeira para submetter a Lusitania, dando-se como protectora da sua autonomia! Mas, para que levantar o véo do futuro?...»
Idevor explicára longamente este quadro do passado da raça dos Ligures, e a situação sempre combatida das tribus da Lusonia, quando ella tocava quasi os Pyrenneos, e mesmo as margens do Mediterraneo. Mostrára a Viriatho as moedas autonomas das antigas cidades peninsulares, as armas dos seus heroes, os collares do commando, por onde o Chefe ficou conhecendo todos aquelles povos agora desmembrados entre os Celtiberos, que pertenciam á unidade da Patria lusitana. Por este conhecimento precioso Viriatho adquiriu um poder moral enorme para ligar a todos elles na defeza contra o Romano.
No terceiro e ultimo dia em que Viriatho se conservou na Ilha sagrada de Achale, o velho endre subiu com elle ao terceiro andar da Torre redonda, para aventar rapidamente alguns traços do futuro:
—«Vês esse Mar immenso! esse Atlantico, que os baixeis liguricos sulcaram destemidos outr'ora, e hoje o Phenicio monopolisa? Quando o Luso se vir comprimido entre as raças que avançam de léste e o mar, que hoje lhe serve de barreira defensiva, elle terá consciencia da sua missão no mundo, sentirá em si renascer a antiga energia da raça, e restabelecendo as grandes Navegações antigas fundará novos Imperios em vastos continentes agora ignorados. É este o destino da Lusitania: será a primeira das Nações, emquanto ella servir esta tradição, emquanto um fiel alliado estrangeiro a não espoliar das suas descobertas...»
O endre não era bem comprehendido; o praso chegára, e a barca de couro já fluctuava junto da lingueta de areia no porto de Achale. Viriatho desceu da Torre redonda, acompanhado pelo endre e pelo côro das Virgens á frente das quaes vinha Lisia; embarcou, chegando em breve á costa de Cetobriga onde o esperavam com anciedade.
Lisia dissera-lhe á despedida:
—Agora tens o teu espirito iniciado para ires á Pedra Virgem, e lá tomares conhecimento do antigo Poema de seis mil versos, gravados nos Bastões dos Poetas. Não basta dar unidade ás tribus lusitanas pelo poder da Espada: a Tradição conservada na Arvore d'Ogham, de que o ramo inicial e mais caracteristico se denomina Luis, bem revela que os destinos da Lusonia se eternisarão pelo perstigio do seu Canto nacional. Eu pedirei a Idevor, que te guie á Caverna das Inscripções oghmicas, junto á margem do Durius, e lá te descubra o grande Poema da raça, esse Pregão eterno do genio luso.
Apenas Viriatho se reunira aos seus Mil Soldurios, que o aguardavam impacientes, correu a noticia de que o Consul Quinto Fabio Maximo Emiliano, que fôra eleito n'aquelle anno de DCIX da fundação de Roma, já pisava o solo da Hespanha, vindo commandar pessoalmente a guerra. Considerava-se em Roma esse expediente como decisivo para assegurar o dominio da peninsula embaraçado por umas miseraveis tribus que tinham a ousadia de quererem ser livres.
Quinto Fabio sahiu de Roma descontente, porque sómente conseguira completar duas Legiões novas para reforçar aquellas já cansadas de que dispunha Caio Lellio. Conscio d'esta impotencia, o Consul comprehendeu os conselhos prudentes de Lellio, não pensando em dar começo á campanha sem se informar do territorio e dos costumes do temeroso inimigo, e mesmo dos elementos hostis indigenas que poderiam coadjuval-o; de mais, era conveniente desfazer as prevenções pessimistas que apavoravam as tropas. Quinto Fabio não foi ao encontro de Viriatho; e como que fugindo a uma conflagração, que poderia ser um desdouro para as armas romanas, procurára ponto estrategico para collocar o seu exercito, a coberto de qualquer surpreza do Cabecilha lusitano. Procurou a grande planicie cortada pelo rio Betis, porque ahi existiam numerosas Colonias romanas, que eram outras tantas guardas avançadas que lhe asseguravam a defeza.
Desceu até á extremidade oriental da Turdetania, aonde predominavam povoações ibericas, para as quaes o jugo romano se tornava uma honra; e ahi, na cidade de Orson ou Urso, assentou os seus arraiaes com toda a segurança. A posição era de uma firmeza imperturbavel, porque se achava rodeada por muitas Colonias militares importantes, taes como a Italica, da parte continental ou interior, tendo apoio na cidade mais opulenta e populosa de toda a Betica, Hispalis, emporio commercial activo e rico, com um semi-circulo de fortalezas afamadas cheias de provisões, que eram Carmona, Astigi, Ucubi e Tucci. E como se isto ainda não bastasse para garantir a protecção ao exercito, ainda mais para o norte lá estava Corduba, a capital da Hispania ulterior, para impedir qualquer incursão do inimigo. Quinto Fabio podia estar seguro, porque com estes recursos era impossivel molestal-o do lado da terra; pelo litoral tambem não era presumivel o perigo, antes pelo contrario para uma eventualidade sinistra facilmente se refugiaria com o exercito nas fortes muralhas de Gades, de Carteia e de Málaca.
Por certo o exercito que Fabio veiu tomar do commando de Lellio estaria em situação desesperada, para que elle assim procedesse estabelecendo o seu arraial com uma exclusiva preoccupação defensiva. Dispostas todas as forças nos seus quarteis, cada dia que passavam na inactividade era um motivo de enfraquecimento e de indisciplina; para justificar essa necessaria apathia, Quinto Fabio simulou uma excursão ou theoria ao templo de Hercules Gaditano, para tornar propicio o Deus das povoações ibero-phenicias, e offerecer-lhe um apparatoso sacrificio, para assim lisonjear a credulidade d'esses povos e ligal-os aos interesses de Roma. A ausencia do Consul impunha a necessidade ao seu logar-tenente de manter a disciplina do exercito em operações continuas de adestração, acostumando-o ás emboscadas e surprezas de um inimigo incansavel e sempre empregando expedientes imprevistos. Nem por isso o animo da soldadesca se alevantava, por que o conhecimento das derrotas anteriores era um nefasto agouro; e além d'isso pobres mercenarios recrutados á força por todas as colonias e conquistas romanas não eram impellidos por um sentimento, como aquelles para quem morrer sobre o solo da Patria que defendiam era uma gloria e um delicioso sacrificio.
Emquanto Fabio se demorava na excursão ao Templo de Hercules Gaditano, evitava decentemente qualquer batalha com Viriatho, que se julgava muito longe; e o seu exercito ia cobrando alento para o momento opportuno. E não era o tempo perdido, por que o Consul conseguira, talvez pelas indicações de Caio Lellio, travar relações com chefes de algumas cidades dos Turdulos, dos Turdetanos, e principalmente das cidades Celticas, que já se mostravam cansadas d'estas guerras prolongadas que estavam embaraçando a entrada da civilisação romana na peninsula hispanica.
Viriatho não se temia do exercito de Fabio; conhecia que as duas Legiões recem-chegadas de Roma eram maltrapilhos apanhados nos enchurros da cidade, bisonhos despreziveis extranhos a todo o brio e espirito militar; os que cá estavam não podiam esquecer os revezes a que escaparam e as derrotas que lhes infligira com vontade. Mas, uma cousa preoccupava o Cabecilha: as conferencias de Quinto Fabio com chefes civis turdulos e turdetanos, as suas visitas apparatosas a cidades Celticas, revelavam-lhe que o Consul procurava uma nova força não no exercito, mas no descontentamento das povoações que naturalmente eram antinomicas com a liberdade da Lusitania. E reconhecendo que toda a demora na acção era um ensejo para Fabio se reforçar com este antagonismo de raça, Viriatho decidiu ir atacar o arraial em que se defendera o exercito romano, começando por se occultar pelas florestas circumvisinhas da cidade de Orson.
Fez-se essa operação com extrema pericia, porque os Terços lusitanos dirigiram-se de afastados pontos para a extremidade oriental da Turdetania, e insensivelmente se internaram por Companhias nas cerradas florestas d'essa vastissima planura.
Não se fez esperar o primeiro golpe; do exercito de Fabio saiu um destacamento de uns quinhentos homens para ir buscar lenha á floresta mais proxima da cidade de Orson; iam muitos carros puchados por bois e por cavallos. Quando estavam abatendo os troncos, de todos os lados surgiram os Companheiros de Viriatho, rapidamente, e tão certos no plano, que esses quinhentos foram totalmente trucidados, sem que a nova terrivel podesse ser levada a Orson.
A demora dos mateiros fez com que o logar-tenente de Fabio mandasse vêr que extraordinario caso se dera; trouxeram-lhe a noticia do morticinio, mas longe de suspeitar que um tal golpe só poderia ser dado pela audacia de Viriatho, o logar-tenente alardeando conhecimento dos costumes da Hespanha, exclamou:
—Foi uma partida de Salteadores, uma d'estas Quadrilhas que vivem do roubo e depredações, tão constantes na Hespanha. Irei castigal-os, eu mesmo.
E pondo-se á frente de uma Legião, dirigiu-se para a floresta proxima de Orson, na ideia de que apanharia os Salteadores. Assim que dividiu as forças para o cêrco e batida, sahiram-lhe das outras florestas os Terços de Viriatho, que subitamente cáem sobre os manipulos romanos e os destroçam completamente.
Os que conseguiram fugir levaram o terror ao exercito aquartelado em Orson; e sob a tremenda impressão foram emissarios levar a Fabio, que estava ainda em Gades, a nova espantosa, que o forçou a partir a toda a pressa, e a vir tomar o commando do exercito para proceder conforme o exigia a presença do inimigo.
O Consul estava bem industriado, e guardou-se de dar batalha campal a Viriatho; fez como o Caudilho, respondia ás escaramuças com outras escaramuças; não perdia gente, e tendo o seu exercito bem aprovisionado, considerava estes pequenos assaltos em que ficavam no campo trinta, cincoenta homens, como uma eschola em que adestrava os seus soldados á indole especialissima d'esta guerra sem egual.
Aproximava-se o fim do Consulado de Fabio, e fatigava-o a indecisão da campanha, quando se resolveu a abrir o tratado que lhe confiára o Senado. Era momento azado para negociar a alliança, por que não tinha sido derrotado, nem tampouco qualquer victoria recente ensoberbeceria o Cabecilha, para impôr condições vergonhosas. Mandou um emissario a Viriatho com as clausulas formuladas pelo Senado, confiado em que a paz e alliança com Roma nas bases do Foedum aequus era uma solução honrosa em tão violenta campanha, satisfazendo equitativamente as aspirações da Lusitania.
Viriatho percebeu todo o alcance do Tratado, logo que descobriu a perfidia com que o Senado procurava seduzil-o pela vaidade, reconhecendo-o como Principe da Lusitania. E na sua linguagem franca e rude, mas luminosa de bom senso, fallou ao emissario entregando o diploma que lhe fôra confiado:
—Dizei a Quinto Fabio, que a paz e independencia da Lusitania é o empenho a que consagrei a minha vida; e que a alliança com Roma, n'essa base de egualdade politica, será effectivamente uma garantia para a autonomia por que combatemos. Mas no tratado que o Senado propõe ha uma phrase que fere o nosso sentimento nacional, quando me compara a Rómulo, que foi chefe de ladrões e que teve habilidade para dar á sua quadrilha a cohesão de um Estado entre as Cidades italicas.
«A Lusitania é constituida por cidades livres e trabalhadoras, subsistindo pelos costumes dos antepassados a que chamamos Fóros; e muito se engana quem procura fazer que eu seja considerado como chefe de Salteadores, embora me equiparem a Rómulo. São modos de fallar, e sem mais valor do que banaes comparações; mas o que eu repillo com todas as véras de alma é o titulo de Principe da Lusitania. Não é a simpleza dura do meu caracter ou isempção que me leva a recusar esse titulo; é o conhecimento da tradição d'esta terra livre por que combato.»
«A Lusitania nunca teve reis, e por isso foi sempre autonoma. No dia em que as suas cidades confederadas se submetterem a um chefe soberano, começará a sua servidão; esse Rei, preoccupando-se unicamente do seu interesse pessoal e da hereditariedade da sua familia em uma Dynastia irresponsável, tratará de unificar sob um mesmo sceptro a Lusitania e a Iberia, jungindo as duas nações como os bois ao carro. Para alcançar esta unificação, começará pelos meios capciosos dos casamentos reaes, para vir a conseguir pelas heranças a juncção das soberanias. E se estes meios falharem, o Rei procurará allianças com outros reis estrangeiros que o defendam, comprando a estabilidade do seu throno á custa da liberdade, da independencia e até do territorio da Lusitania, desmembrando-a se lhe fôr preciso, ou chamando o estrangeiro para se impor ao seu povo, ou abandonando-o na hora do perigo, deixando-o entregue ao assalto dos invasores.
«É isto um Rei, planta parasita e damninha, que esterilisaria toda a Lusitania. E Roma bem o presentiu, quando para subjugar esta terra, vendo-se impotente pelas armas, recorre a um instrumento de intima dissolução dotando-a com um Principe, acclamando um Soberano. Rejeito o glorioso titulo, que é uma affronta para Cidades livres, ligadas federativamente com as suas autonomias locaes. A alliança para a paz e francas relações de commercio entre os dois povos, essa abraço-a em condições de egualdade agora e sempre; mas estou certo de que o Senado visa a outros fins, tem outros intuitos.»
O emissario de Quinto Fabio partiu, assombrado d'aquelle desinteresse do Caudilho lusitano, que em Roma passava por chefe de ladrões. A incomprehensão do valor moral de Viriatho era uma das maiores causas dos generaes romanos serem continuamente derrotados; contavam com o homem audaz, mas não com a grandeza do caracter.
O tempo dispendeu-se n'estes preparativos de uma acção estrondosa e decisiva, quando começaram as primeiras chuvas do inverno; o corriculo do Consulado de Fabio estava terminado, e com elle o seu commando, em verdade esteril e inglorio. Poderia considerar-se equivalente a uma derrota surda. Em Roma fallava-se aggressivamente contra Quinto Fabio, como deslustrando as tradições heroicas da familia Emiliana. Aconteceu que n'esse anno de DCX foram eleitos Consules Servio Sulpicio Galba, esse antigo Pretor que ordenára traiçoeiramente o morticinio dos trinta mil Lusitanos, o qual se enriquecera com os latrocinios do seu governo provincial, e Lucio Aurelio Cotta, que com elle compartilhava n'esse anno o poder, e tambem era em Roma assás conhecido por uma avareza sordida e insaciavel ambição de dinheiro.
A guerra da Lusitania appareceu para esses dois Consules como uma venturosa espectativa; o commando do exercito facultava o exercerem em nome da Republica todas as extorsões e vilezas. Ambos os Consules disputavam entre si o commando da guerra contra Viriatho. Galba não queria perder o ensejo que se lhe appresentava; era o meio de voltar á Hespanha e de reconstituir a sua riqueza malbaratada ou perdida. Lucio Cotta já sonhava em vir a ser o argentario mais preponderante de Roma. Galba allegava:
—Já fui Pretor em Hespanha e governei a Provincia da Lusitania; conheço aquelles territorios, aquellas gentes e os seus costumes. Sou temido, e a lembrança do meu nome fará fugir diante das Legiões romanas todas essas tribus de ladrões e barbaros. Só eu tenho no actual momento as condições excepcionaes para commandar essa guerra que se vae tornando uma vergonha. Os Lusitanos bem sabem que eu não me pago com palavras.
Os credores e parasitas de Servio Galba apoiavam aquellas pretensões apparentemente plausiveis. Os partidarios de Lucio Cotta conclamavam:
—Ainda nos não esqueceu a accusação tremenda de Catão o Censor. O governo de Galba na Lusitania infamou Roma com uma nodoa indelevel. Galba é o unico homem a quem não póde ser confiado o commando da guerra contra Viriatho, porque a sua presença levantaria na Hespanha as proprias pedras contra Roma. Seria a prova de que Roma não civilisa os povos barbaros como proclama ao mundo, mas rouba-os, devasta-os, por que subsiste por esse expediente que a dispensa no seu exclusivismo militar de toda a actividade agricola ou fabril. Galba por fórma nenhuma!
Esta questão foi debatida no Senado; até ahi, entre esses venerandos patricios, sentados soberanamente nas suas cadeiras eburneas, se dividiram as opiniões, uns por Galba, outros por Cotta. Mas quando se discutia o assumpto, levantou-se o senador Scipião Emiliano, e erguendo a mão intimativamente exclamou com nitidez:
—Em meu entender, nem Galba, nem Cotta merecem a confiança da Republica!
O Senado ficou no mais sepulchral silencio ao ouvir aquella phrase que era quasi uma sentença. Scipião tinha grande auctoridade e ascendente moral enorme depois que regressára da destruição de Carthago. Depois continuou a phrase que mantivera em suspensão intencional:
—E não a merecem, porque um por ahi anda arruinado apoz a dissipação das riquezas que roubou quando Pretor na Hispania; o outro, pelo contrario, riquissimo pela sua proverbial avareza, só trataria de se encher mais, servindo-lhe a guerra de pretexto para saciar os seus ávidos interesses.
A voz de Scipião impôz-se a todos os espiritos, dominados pela coragem com que formulára em pleno Senado o seu argumento. Para sahir d'aquelle embaraço o Senado achou como unica tangente não melindrar a familia Emiliana, prorogando o commando militar e consular de Fabio, e que como Proconsul continuasse n'esse anno a guerra da Lusitania.
Substituir Quinto Fabio, quando elle já estava industriado na fórma da guerra viriathina seria um erro perigoso; e a increpação do destruidor de Carthago teve sua opportunidade, porque n'esse anno de DCX, passado o inverno, o Proconsul preparou-se para dar uma batalha campal a Viriatho, e justificar assim a anterior inercia.
Viriatho passára tambem esse inverno na Betica, porque conseguira tomar ahi duas cidades em que assentou os arraiaes. Fabio, apesar de ter augmentado enormemente o seu exercito, exigindo contingentes das varias cidades alliadas dos Romanos, fiava-se mais nas informações que conseguira obter de gente que andava nas hostes do Cabecilha. Era esse o pensamento de Caio Lellio, sendo o caminho aproveitar o antagonismo da raça iberica. E seguro de qualquer informação secretissima e por via que nunca será conhecida, o Proconsul põe todo o seu exercito em campo e ataca Viriatho com todas as regras da poliorcetica romana.
Viriatho não hesitou um momento, pondo-se em frente do inimigo que bem conhecia; os seus Cavalleiros e infantes bateram-se desesperadamente, e quanto mais destroçavam as forças romanas, novas reservas accudiam a Quinto Fabio successivamente, por modo que Viriatho, conhecendo que lhe fraquejava um flanco do seu exercito, ordenou a tempo uma retirada sob Bécor, aonde as florestas, os rochedos e as ribanceiras intransitaveis o punham a salvo do exercito romano, que foi perseguindo-o por algum tempo. Viriatho deixou no campo muita da sua gente. Então, para vingar as perdas que soffrera, e o furor que lhe provocára o desapparecimento do Cabecilha em Bécor, foi Quinto Fabio com o seu exercito occupar as duas cidades que até agora estiveram sob o poder do chefe lusitano, dando ordem á soldadesca para o saque desenfreado, mandando em seguida lançar-lhes o fogo, passando á espada folego vivo que encontrassem.
Quando Viriatho estava já seguro em Bécor do inopinado golpe em que o Proconsul levára vantagem, veiu-lhe um presentimento, que a ninguem quiz communicar:—A fórma do ataque de Fabio revela-me que se aproveitou de uma traição!
De repente chegou ao pé de Viriatho o seu companheiro Andaca:
—Sabei que os Turdulos e os Turdetanos depozeram as armas; e pediram paz a todo o transe; assim perdemos esse vasto territorio, todo o oriente da Betica.
N'isto chegou Minouro, o outro companheiro, e disse para Viriatho:
—Os Celticos, que confinam com a nossa terra lusitana, por causa d'esta derrota voltaram-se para os Romanos, dizendo que querem pastorear os seus rebanhos em paz por esse Alemtejo e Extremadura.
E emquanto Viriatho se mostrava apprehensivo, Andaca e Minouro affastaram-se um pouco e segredaram:
—A Espada invencivel perdeu d'esta vez o encanto.
E sorriram-se n'uma intima perfidia com uma satisfação que só elles ambos comprehendiam.
Depois da apparente victoria de Fabio, que muito bem sabia a quem devera essa momentanea vantagem, recolheu-se o Proconsul á capital da Hispania ulterior, á cidade de Corduba para ahi descansarem as tropas no rigor do inverno. Viriatho reconheceu que avançára demais para sudéste da peninsula, em que predominava o Ibero, e sentindo-se ahi sem apoio nas populações, aproveitou a inactividade do Proconsul para levar o seu exercito á Hespanha ulterior, onde era mais odiada a dominação romana, chamando á revolta desde o Anas e o Betis até ao Promontório Trileuco, todas as tribus e populações em quem girava o sangue lusitano.
As revelações que na ilha sagrada de Achale Viriatho recebera do endre Idevor, dando-lhe viva comprehensão d'esta Patria ideal, por cuja unidade e autonomia batalhava; e o amor de sua noiva, a deslumbrante Lisia, que o escolhera para esposo exigindo por condição que o Romano lhe pedisse a paz, excitavam no valente Caudilho um heroismo inquebrantavel, e mais do que isso inspiraram-lhe o poder mysterioso de fallar ás almas, de estabelecer a harmonia dos sentimentos. A sua palavra começou então a ter tanta força como a sua Espada; e pelas terras por onde passava, deixava uma onda de insurreição, synthetisada n'um grito:
—Uma só vontade nos una! Guerra ao Romano!
Viriatho dirigiu-se áquella região que vae das fronteiras dos Carpetanos até ao paiz dos Edetanos, que fórma toda a parte oriental e occidental da Celtiberia, aonde habitavam os Belitanos e os Titos, cujas Companhias destroçára havia quatro annos, quando como alliados foram em auxilio do Pretor Caio Vetilio. A presença corajosa de Viriatho alvoroçou a população; o Cabecilha fallou-lhes com desassombro:
—Estaes resentidos de mim, e aqui me tendes se mereço a morte; mas ouvi-me. Eu lucto pela independencia da vossa patria, que é a minha. Vós, habitaes esta parte da Celtiberia, que tambem é Lusitania; porque os povos que aqui vivem não são Iberos, são Lusonios separados pelo rio Ebro, sobre a sua margem direita. Estas duas raças são inconciliaveis! se ellas se podessem unir por um pacto de alliança, nunca n'esta peninsula hispanica se teriam estabelecido os Celtas vagabundos; nem aqui entrariam os Phenicios, nem os exercitos Carthaginezes occupariam o nosso solo. E como essa alliança nem pela necessidade da defeza mutua póde trazer a um accordo Iberos e Lusitanos, é por isso que as rivalidades entre os Carthaginezes e Romanos trouxeram estes guerreiros a repellil-os do nosso territorio, mas a impôr-nos cruamente o seu dominio, arrasando as nossas cidades, e roubando-nos ignobilmente pêlos seus Pretores. Os Iberos foram acceitando o governo ou propriamente o jugo dos Romanos; os Lusitanos, que em Roma pelo testemunho dos seus generaes são considerados os mais valentes e destemidos dos Povos celtibericos, são os que resistem ao estrangeiro, os que aspiram a ter uma Patria livre. Deixemos para além do Ebro o povo dos Iberos, que amam a auctoridade fortemente constituida; contemos só comnosco, Lusitanos a quem o espirito da revolta os impelle a sacudir todo o jugo e a cortar a mão que ousa domal-os. Desde o morticinio truculento feito á falsa fé por Galba em trinta mil Lusitanos chamados a uma assembleia pacifica, é que eu me insurgi contra essa clamorosa infamia, e ha sete annos que sustento uma campanha em prol da Patria livre infligindo derrotas successivas aos exercitos romanos. Em Roma votou-se o exterminio, a aniquilação completa dos Lusitanos. Fabio já teve um simulacro de victoria, porque encontrou no elemento iberico um meio de derrotar-nos, esse inconciliavel antagonismo. Isso nos obriga á união das populações e cidades da Lusitania. Vós, oh habitantes da Belia, d'esta Edetania, limite oriental da Celtiberia, vós sois Lusitanos, sem differença alguma, como o reconhecem mesmo os viajantes. Sois descendentes dos Lusonios, que transpozeram ha seculos immemoriaes os Pyreneos vindos da Aquitania, aonde existem ainda as tribus dos Elusatos; essas tribus dos Lusones fixaram-se nos montes que dividem os rios Jalon, Mosa, Henares e o Durio, estendendo-se até ao Mediterraneo e Montes de Idugbeda; pelo occidente alargaram-se do alto Durio até ao Tejo. Mas esta extensão primitiva da nossa Lusitania, que podemos chamar Lusitania oriental, foi sendo dividida pelas invasões estrangeiras, a começar pelos Iberos e Celtas, que a comprimiram para oéste, forçando os Lusonios a concentrarem-se nas Beiras, na Extremadura cistagana, e por todo o Alemtejo, formando hoje esta Lusitania occidental que começa no Promontorio Sacro até aos Callaicos. Juntemos estas duas Lusitanias e teremos o dominio da Hespanha, que só será senhora do seu destino quando repellir todo o poder estrangeiro do seu solo. Ahi estão as vossas cidades attestando pelos seus nomes, que ainda pertenceis a essa patria primitiva, que nos une a todos: Lusera e Luzes, proximo de Jaen, estendendo-se até ao rio Tajuña; Luzago, Lucia e Alustante, proximo de Jalon; Lucos e Lucera, na parte meridional do Ebro. Foi por estarmos separados, que os estrangeiros nos invadiram, e o Romano nos aniquila para se mantêr pela expoliação das nossas riquezas. O isolamento das cidades é a fraqueza; a federação cantonal é a garantia da independencia.»
A voz de Viriatho calou nos animos; os Belitanos reconheceram que se não differençavam dos Lusitanos; e perdoando o castigo que o Cabecilha lhes infligira quando iam em soccorro de Vetilio, bradaram erguendo ao alto as mãos direitas:
—Uma só vontade nos una! Guerra ao Romano.
Com essa gente da Edetania veiu tambem o povo seu alliado da Titulcia, a que chamavam os Titos, jurar o pacto defensivo. Mas aonde a voz de Viriatho produziu um effeito vertiginoso, hallucinante, foi entre os Arevacos, nas nascentes do Durio, que se firmavam na sua fortaleza inexpugnavel de Numancia, visinha de Luzon.
—Bravos filhos da Lusonia! vós bem sabeis que todos os chefes militares que luctaram contra os Carthaginezes, pela independencia da nossa terra, e que coadjuvaram estes quando estavam em lucta de exterminio contra os Romanos nas chamadas Guerras Punicas, bem estareis lembrados que esses Chefes destemidos foram naturaes da Celtiberia, que na sua parte oriental e occidental era propriamente a Lusonia. Não podemos pronunciar o nome de Indortes, sem assombro; de Indibilis, Edescon e Mandonio, sem que sintamos referver o sangue n'um impeto de coragem; Carus e Alucio, e ainda Istolacio, embora da geração dos Celtas, são a prova de que não nos falece o espirito de revolta e a capacidade do commando. Mas se os Chefes são gigantescos, que diremos dos seus Soldurios e até da fraternidade heroica que elevava os seus servos? Quem se não recorda d'aquelle general lusitano, Tago, a quem Asdrubal deu a morte? O feito do seu escravo, que lhe vingou a morte apunhalando Asdrubal junto das aras em que estava sacrificando, mostrará a todos os estrangeiros, qual é o vinculo que nos liga uns aos outros.»
Das partes dos Arevacos levantou-se um mancebo de aspecto robusto e gestos decididos; era bem conhecido como filho de Salondico e continuador da sua bravura, estando-lhe por isso confiado o governo da fortaleza de Numancia. E batendo no peito como garantia de firmeza:
—Eu tambem repetirei: Uma só vontade nos una! e essa vontade seja a de Viriatho conduzindo-nos á guerra contra o Romano, até o repellirmos da Hespanha, tornando a nossa Patria livre. Diante de Numancia estacará o poder das armas romanas! e se a fatalidade da guerra fôr contra nós, morreremos ahi todos, mas morreremos livres.
Viriatho abraçou o mancebo denodado, que lhe dizia reconhecido:
—Tu consagraste a memoria de meu pae; por ti derramarei meu sangue quando o determines.
O incendio da guerra santa prègada por Viriatho propagou-se para o norte da peninsula, porque a Callaecia, a dos antigos, formára tambem parte da Lusitania; numerosos bandos, partidos e guerrilhas foram mobilisados pelos Callaicos; como estes, tambem se insurreccionaram os Vacceos e os Vettões na Extremadura; os Turdulos e os Turdetanos desligaram-se de Quinto Fabio Maximo; como em uma onda que vinha crescendo, correram a engrossar esta corrente novas tribus movidas por um sentimento acordado pelo espirito que fortificava o braço de Viriatho:—o ideal de uma Patria, synthese da unidade da raça até alli desmembrada, e de uma Tradição esquecida ou quasi perdida. Pela primeira vez a Lusitania teve a consciencia da sua unificação ethnica ao acceitar o pacto federativo contra o Romano, proposto por Viriatho como uma força defensiva. A coragem do chefe lusitano era tão grande como a confiança no futuro da Lusitania livre. Em todas as guerras da Hespanha nunca os Romanos encontraram um levantamento de povos assim vasto e unanime; era uma situação desesperada, que só por meios fóra dos processos conhecidos poderia ser dominada.
Roma, na prosecução dos planos da sua politica absorvente, desconhecia a coacção moral; quando não confiava na força das armas, recorria ao poder do ouro, subjugando pela corrupção, e falhando os baixos expedientes, alcançava sempre o exito descendo até á—traição. Ante o perigo da constituição federativa dos Povos lusitanos, Roma entrevia o seu triumpho na—morte de Viriatho. E nunca faltaram traidores.
Esperando o momento azado para recomeçar as operações militares, Quinto Fabio Maximo passára o inverno no seu quartel estabelecido na cidade de Corduba, vendo que a espantosa revolução que irrompia entre as tribus lusitanas chegava á maior intensidade quando justamente estava a terminar o periodo do seu consulado. Elle presentia, que em Roma a sua pretendida victoria era motivo de facecias; por que as noticias do levantamento de tantos povos á voz de Viriatho, desde o Anas e Betis até ao Promontorio Trileuco, patenteava que o chefe lusitano redobrára de força e de prestigio depois da sua retirada para Bécor. Quinto Fabio, sob a incerteza se seria chamado a Roma, se continuaria no commando da Guerra viriathina, ou se outro Consul o viria substituir, passava os dias em uma agitação moral que o perturbava profundamente, obrigando-o ao esforço de occultar o seu estado de espirito, diante dos que o rodeavam. Na inacção forçada da estação hyberna, ordenou certos divertimentos, que os Consules, na sumptuosidade de vida que usavam na Peninsula, tornavam uma caracteristica da grandeza romana.
A melhor parte do dia passava-se em um lautissimo e grandioso banquete, em que á parte as iguarias, em que predominava o salmão cosido em vinho branco, deliciava os convivas a parte espectaculosa, que se continuava pela noite adiante. Durante o banquete resoavam as musicas proprias chamadas acroamata, em que grupos de moços e raparigas ao som de flautas e lyras cantavam desenvoltamente em meneios de dansas e pantomimas, imitando situações dos mythos religiosos e das lendas homericas. Eram sobretudo jovens syrias e gaditanas, que, ao som dos cantos licenciosos mais fascinavam pelas dansas lascivas os convivas de Quinto Fabio. E para fazer contraste com a belleza das fórmas, appareciam de repente os anões e aleijados, que em contorsões violentas, procurando imitar os equilibristas, que formavam pyramides e torres ambulantes, dando cambalhotas e guinchos estridentes, suscitavam as mais estridulosas gargalhadas. Á variedade e profusão das iguarias, correspondia a mudança dos divertimentos, destacando-se, pelo seu poder hilariante, os Imitadores, que reproduziam o canto dos gallos, e o dos rouxinoes, os zurros do jumento, o miar dos gatos assanhados, macaqueando os gestos e a falla dos typos mais conhecidos da cidade de Corduba e mesmo de alguns Centurios.
Quando Fabio estava cansado de rir de todas essas manifestações da indignidade humana, das disformidades physicas e degradações moraes, então mandava que se fizessem as recitações poeticas, e appareciam com ramos de louro nas mãos os Homeristas, que ao som das lyras de sete cordas e de cytharas declamavam episodios dos poemas do Cyclo homerico. Já estavam os candelabros accesos na sala do banquete, quando entraram os Homeristas, para recitarem alternadamente os cantos de um Poema, a que deram o titulo de Os Piratas tyrrhenos; e em quanto declamavam, figuras mudas em um intermedio dramatico iam representando todas as situações descriptas:
«A bella e joven Neéra banhava-se descuidada nas ribas de Naxos.
«Apparecem subitamente os piratas do mar Tyrrheno e arrebatam-na, para a venderem para algum gyneceo real.
«Menéclida, seu velho pae, deplora a perda do encanto da sua velhice.
«O namorado de Neéra, encontra-o chorando, e persuade o velho para irem consultar o Oraculo. Partem ambos com anciedade.
«No mar os Piratas disputam entre si a posse de Neéra; e não se entendendo no meio da sua lucta ameaçam de metterem o baixel a pique, e morrerem todos.
«O piloto impõe-se aos remeiros, dizendo,—que é melhor ir offerecer a cativa ao Rei de Coryntho, porque assim alcançavam um porto de refugio e abrigo, quando fossem perseguidos ou batidos pelas tempestades do mar.
«Neéra é offerecida ao monarcha: a formosura da cativa deslumbra-o.
«Coryntho está em uma grande desolação por uma terrivel peste asiatica e a mortandade é enorme. O Rei consulta o Oraculo;—que responde: Que o seu Estado ficará livre da peste logo que elle despose uma prisioneira.
«Quando se faz o banquete das nupcias de Neéra, apparecem dois forasteiros, o pae e o namorado de Neéra, desfigurados pelas fadigas das jornadas, e por isso desconhecidos.
«Sentam os dois forasteiros á meza, e dão ao velho Menéclida uma lyra para entoar um cantico. Como bom rhapsodo, desenvolveu em uma canção saudosa o verso de uma tragedia de Sophocles:
—É preciso para ser feliz—viver no seu lar...
«A cativa, agora rainha, conhece pelo canto a voz do pae, e vê na physionomia do moço que o acompanha a expressão do namorado, dos seus primeiros amores, Alcimo.
«O moço diz ao rei que é esculptor, e que fizera as estatuas mais bellas de Aphrodite para os templos de Héllade; e que se promptifica a fazer a estatua de Neéra.
«O Rei quer a estatua da esposa, mas com uma condição: Que o artista contemplando-a núa, logo que fôr terminada a obra elle morrerá, sendo assim a sua morte o véo do pudôr.
«O moço acceita a condição resoluto: Neéra pasma, receiosa. Começa o estudo das fórmas, das posições...
«E quando os dois amantes sentiam mais ardente a paixão primeira, e Alcimo achava impossivel reproduzir no marmore tanta belleza, presentindo que a morte os separará para sempre, em um longo beijo assim lhe segreda:
—Que a mesma morte nos una!
«E de noite fugiram ambos do palacio, entrando em uma barca, das que estavam varadas no porto de Coryntho: foram mar em fóra ao som da agua, fallando dos seus amores, vogando perdidos, e ja muito longe, aos primeiros alvores da alvorada, Alcimo cantava:
Sobre o horisonte, quanto a vista alcança,
Reluz vaga esperança:
Branca vela! da salvação signal:
—É o Sonho do Ideal.
Succede á calmaria a viração,
—Do Amor a aspiração,
Que as nuvens da borrasca longe espalha!
A vela branca assoalha.
Nas auras fluctuando—esse estandarte
Nos leva ás regiões da Arte.
Que importa Syrtes ou parceis? agora
Resplandece outra aurora,
Um céo azul n'esses teus olhos! Vêl-o,
E certo rumo—o Bello!
Como busca outro clima uma andorinha,
Que o calor adivinha,
Fugimos! Crente, á prôa
A alma para ti vôa...
Pelo mar largo assim vamos os dois
Devaneando... Depois,
N'este enlevo sem fim, perdido o norte,
Que seja o porto a morte!»
Apenas acabára a recitação dos Homeristas, já appareciam na sala os Parasitos para dizerem chascos e graçolas; mas o Consul Quinto Fabio deu ordem para que se retirassem.
—O que desejará agora o Consul? diziam uns para os outros. Talvez alguma Tragedia? Que venha já immediatamente o Graeculo.
Quinto Fabio ouvira fallar n'uma crença que os Povos da Lusitania tinham sobre os poderes maravilhosos de uma Cerva branca; constava-lhe que um velho poema barbaro celebrava esse mysterio, pelo qual se explicava o prestigio dos homens politicos. Foi trazido um prisioneiro lusitano, que se lembrava de numerosas estrophes do Poema.
Disse-lhe o Consul:
—Tens a liberdade, se me recitares o Poema da Cerva branca.
—É o Poema de Abidis, do Principe fadado por invencivel diante de todos os perigos, e sempre subjugado pelo Amor. N'esse poema está symbolisado o genio da nossa raça lusitana: luctando indomavel até á morte, mas deixando-se morrer de amor.
—Canta ou recita esse poema; e terás a liberdade.
O prisioneiro sentiu uma immensa alegria quando lhe tiraram as algêmas; e começou em uma melopêa estranha, que absorveu a attenção dos convivas:
Rimo de Abidis
Ouviu negro vaticinio
O rei Górgoris um dia:
Que do seu throno dourado
Um neto o despenharia!
Mandou fechar n'uma torre
Distante, redonda, esguia,
A Princeza sua filha,
Unica herdeira que havia.
Triste, cativa a Princeza,
Cantava de noite e dia,
Para encher a soledade
Nas angustias que soffria.
Passa um Cavalleiro perto,
A doce musica ouvia;
Mas, como subir á Torre?
Tão alta! quem poderia?
Deixára soltar as tranças,
E até á terra descia
Seu fino e lindo cabello
Por onde o moço subia.
As noites eram auroras
Da mais intima alegria,
E as ausencias tornavam
Cada vez mais negro o dia;
Até que d'esses amores,
Que ninguem suspeitaria,
Ao cabo de nove mezes
Formoso Infante nascia.
Boas Fadas o fadaram,
A qual mais dons lhe daria:
—Invencivel aos perigos
Serà! uma fada dizia.
De amores sempre vencido,
Outra fada retorquia.
Toma o rei Górgoris conta
Do Infante apenas nado,
Que traz o nome de Abidis
No cinto em que é enfaixado.
Sempre o negro vaticinio
Ao velho rei é lembrado;
Só pensa em salvar o throno,
Leva ao crime tal cuidado.
Em uma estreita azinhaga
Deixa o neto abandonado,
Por onde passa correndo
Sua boiada, seu gado.
Pelo poder do destino
Não foi o Infante calcado!
O velho rei recrudesce
No odio ao neto votado,
E manda lançal-o ao monte
Certo de ser devorado
Por algum lobo faminto
Ou serpente do vallado.
Foram dar com elle rindo
Na relva fresca do prado,
Lá por uma Cerva branca
Com carinho amamentado!
O velho rei mais raivoso
Mandou arrojal-o ao mar,
Crendo que as aguas profundas
Hão de a criança afogar.
A onda a que a arremeçaram
Á praia a vem entregar!
Então Górgoris conhece
Que a Deusa Hertha o quiz salvar.
Estrella do Mar se chama
A essa diva lunar,
Que traz por sagrado emblema
Uma Cerva branca a par.
Por causa da Cerva branca
Veiu tanto odio a acabar.
O rei Górgoris tem gloria
De Abidis seu reino herdar:
Como o neto, resistente
Seu Imperio hade ficar,
Annunciando-lhe a grandeza
Aquella Estrella do Mar!
Aproveitando-se de uma pausa ou hesitação de memoria do prisioneiro, disse-lhe o Consul Quinto Fabio:
—Já faço ideia do poder da Cerva branca; conta agora algum lance d'esse invencivel Abidis, sempre vencido de amores.
—Ah! toda a historia de Abidis ou Amadis, é quasi inteiramente de amores; dava para encher muitos dias e seroar noites com peripecias sempre de encantar. Começo por uma
Declaração de amor
Apalpando o lado esquerdo
Não achei o coração!
Na repentina surpreza,
Com tamanha inquietação,
Conheci que m'o furtaram,
Não sei bem a occasião...
Fui logo á procura d'elle
Buscando o rasto no chão,
Escutando attentamente,
Se lhe ouvia a pulsação!
Talvez esteja perdido
Em remota solidão?
Quando já sem esperança
Cahia na decepção,
Fui dar com elle fechado
Em nevada, fina mão!
Não me atrevi a exigil-o,
E eu mesmo, sorrindo então,
A quem assim m'o levára
Tive de pedir perdão,
Porque ha no amor a furto
O philtro da tentação.
O Consul, como homem culto, estava interessado pelas rimas do prisioneiro lusitano, que lhe pareciam barbaras mas impressionantes; e disse-lhe:
—Prometti-te a liberdade; para que a obtenhas de vez, é preciso que proclames em voz alta: «Viva o poder da grande e generosa Roma!»
O prisioneiro olhou desdenhosamente para Quinto Fabio, devolvendo com secura, e como em um arranco de morte:
—Volto para o ergástulo.
E murmurando entre dentes com entranhado rancor, ao retomar as algemas:
—A Cerva branca ainda hade dar bastante que fazer aos Romanos! Oh, se hade!
A festa dos Acroamata era poucos instantes depois interrompida; chegára uma ordem cathegorica chamando a Roma Quinto Fabio Maximo Emiliano, e determinando-lhe a entrega immediata do commando do exercito consular ao novo general Quinto Cecilio Metello.
Com ordem expressa do Senado de abafar a insurreição o mais depressa possivel e de reduzir Viriatho aos seus incertos recursos, desembarcou em Tarragona o Consul Quinto Cecilio Metello, que vinha acompanhado do Pretor Quinccio.
Corria o anno de DCXI da fundação de Roma; Metello informou-se da situação da Celtiberia, e sabendo que os Arevacos se tinham rebellado, foi pôr cêrco a Numancia, de preferencia, para ahi contêr o cabecilha Salondico, evitando que se unisse com Viriatho. N'esse anno memoravel começou o grande cyclo da Guerra numantina, que durou dez annos, terminando em DCXXI pelo suicidio heroico e espantoso dos vencidos. O Consul Metello entregou o segundo corpo do exercito ao Pretor Quinccio, encarregando-o de ir combater Viriatho, que estava proximo da margem direita do Tagus.
Informado pelas suas esculcas, de que era procurado por Quinccio, esperou-o até ser visto, simulando que se retirava para as proximidades do Mons Veneris. O Pretor por inhabil ou por confiado avançou em perseguição de Viriatho, o qual reproduzindo as mesmas manobras, cujo effeito certo conhecia e com as quaes quatro annos antes derrotára Plancio, fez do Mons Veneris o seu abrigo; Quinccio continuou a avançar, e o cabecilha lusitano precipitando-se repentinamente sobre as Legiões romanas e envolvendo-as de subito por todos os lados, fez um tal destroço e mortandade no exercito romano, que o Pretor só conseguiu escapar em uma pavorosa debandada, e sempre perseguido até refugiar-se no seu quartel de inverno em Corduba. Muitos estandartes romanos foram arrancados das mãos dos hastarios; e estes despojos, testemunho da victoria de Viriatho, foram mandados para a ilha sagrada de Achale para serem collocados na Torre Redonda, consagrados como trophéos ao Deus innominato.
Na sua fuga desvairada, o Pretor Quinccio dirigindo-se para Corduba abriu passagem pelo paiz extremamente montanhoso dos Bastetanos, que se estendia para o sul até ao monte Ilipala, confrontando ahi com os Turdulos, ao occidente com os Oretanos, ao norte com os Lobetanos, e com os Contestanos do litoral. Era principalmente aqui n'este territorio dos Contestanos, que estava estabelecido o governo dos romanos, na cidade denominada Nova Carthago. Viriatho não esqueceu esta circumstancia, e não lhe bastando ter derrotado o Pretor Quinccio, submetteu a saque todas as povoações alliadas ou relacionadas com o poder de Roma. O Pretor fechou-se dentro das muralhas de Corduba, sem esperança de que o Consul Quinto Cecilio Metello viesse soccorrel-o, por que achava-se empenhado tenazmente nos combates em volta de Numancia, por fórma que não se podia conjecturar o termo d'essa nova guerra; e apavorado no seu reducto limitou-se a ordenar, que um ibero romanisado, como revela o seu nome Caio Mario, que estava com uma Legião em Italica, policiasse as cercanias de Corduba para o avisar da presença de Viriatho e evitar as suas correrias. É certo que o Pretor Quinccio não pôz mais o pé fôra das muralhas de Corduba.
O orgulho romano não podia conformar-se com esta humilhante derrota, e com a situação vergonhosa de Quincio, dentro em Corduba desde o meado do outomno de DCXI. Desde que despontou a estação favoravel para recomeçar a campanha contra os Lusitanos, o Senado nomeou para esse commando o novo Consul Quinto Fabio Maximo Serviliano. Seria elle mais feliz do que seu irmão para vingar o lustre das armas romanas obscurecido pela audacia de Viriatho?
Desde que Serviliano fôra eleito Consul em DCXII, apoderou-se d'elle uma ambição irrefreavel e unica: vencer Viriatho, appresental-o em Roma, leval-o a pé e descalço no seu triumpho. Para estas esperanças o Senado concedera-lhe extraordinarios recursos: duas novas Legiões além das forças que estavam em Hespanha. E Serviliano podia sonhar com o triumpho, porque contra um guerrilheiro sem exercito organisado, tinha agora sob o seu commando um formidando exercito de sessenta mil homens, e mil e seiscentos Cavalleiros.
Serviliano não queria perder tempo, e iniciou a campanha na Betica, nas cercanias de Jaen; o plano foi bem formado, porque Viriatho apenas pôde pela rapidez das operações do Consul entrar em combate com um contingente de seis mil homens.
Os tres companheiros de Viriatho, notando que o chefe reconhecia a insufficiencia da sua gente para sustentar o combate com um exercito disciplinado dez vezes mais numeroso do que o seu, entreolharam-se com um ár de intelligencia, como se aquella situação desesperada proviesse de uma combinação. Viriatho não succumbiu; antes o perigo o levava a descobrir extraordinarios recursos. E de relance, comprehendendo a situação, ordenou o seu plano:
—Manobrar com uma rapidez tal, que o exercito romano não possa manter-se em disciplina e ordem de batalha.
E em vez de esperar o ataque, deu ordem a um assalto instantaneo, em que toda a agilidade e bravura, que caracterisa os lusitanos, fôssem praticadas por modo que a confusão se estabelecesse nas Legiões romanas, e que as manobras usuaes não podessem ser executadas. Pôz á frente os montanheses do Herminio acostumados ás correrias dos lobos e ás montarias dos javardos, os quaes em berreiros descompassados—Mata, que é romano!—investiram com impeto indomavel de féras contra os manípulos de Serviliano. A espada e o punhal eram vibrados por uma e outra mão, tendo abandonado o escudo, para se moverem mais denodadamente. O assalto encheu de assombro os soldados romanos, que desconheciam esta impetuosidade dos que elles chamavam barbaros; e sem poderem sustentar aquelle recontro violento, foram recuando, suppondo que Viriatho, empenhando a batalha só com seis mil homens, contava com outras forças que viriam avançando, e que decidiriam da lucta.
Uma circumstancia salvou n'esse momento o exercito do Consul Serviliano: inesperadamente appareceram no campo da batalha dez Elephantes africanos e trezentos Cavalleiros bem equipados. Serviliano conheceu-os; era o contingente que lhe mandava Micipsa, o rei da Numidia. Quando o Consul projectava alcançar o commando da Guerra da Lusitania escrevera a Micipsa pedindo-lhe em nome da Republica o auxilio dos seus Elephantes e dos seus esbeltos Cavalleiros. Um pedido assim era uma ordem, e o Rei da Numidia bem comprehendia que com o contingente de alguns Elephantes e Cavallos, garantia a estabilidade do seu throno.
O auxilio não podia vir mais a tempo; e o exercito romano, reanimando-se com o extraordinario reforço, toma a offensiva. A rapidez do ataque da parte do exercito consular, servia para perturbar-lhe a disciplina, e Viriatho, evitando o combate, foi attrahindo as hostes para os terrenos anfractuosos seus conhecidos. Os Elephantes do rei da Numidia foram caindo um a um, com aquelle golpe ignorado dos romanos, mas praticado pelos lusitanos, quando com um aguilhão de ferro matam os seus bois ferindo entre as vertebras cervicaes. O successo inesperado produziu um estranho assombro; Serviliano pensa já na retirada, e Viriatho, furtando-lhe as voltas, toma-lhe a dianteira, avançando com rapidez incrivel por veredas que só elle conhecia, vindo occupar o arraial do exercito consular, apenas guardado por alguns hastarios.
Quando o Consul Serviliano, com o exercito cansado dos caminhos fragosos chegou já noite cerrada ao seu acampamento, achou o pequeno exercito de Viriatho fortificado com os fóssos e trincheiras com que contava defender-se, e viu-se constantemente inquietado pelos hastarios e fundibularios lusitanos. Aproveitando a escuridão da noite e contando com o cansasso dos soldados romanos, fatigados da retirada custosa, Viriatho ordenou incursões repentinas e por lados sempre differentes no acampamento romano. Serviliano perdera n'aquella jornada e incursões da noite para mais de tres mil homens; e como as tropas se achavam sem descanso e sem alimento desde a vespera, seria loucura o empenhar-se em uma batalha campal, resolvendo recolher-se com o exercito á cidade mais proxima, a Ituca, onde contava com viveres e as munições indispensaveis.
Viriatho não desvairou com a inesperada victoria. Reconheceu promptamente que se salvára d'esta vez de um perigo evidente, e que para luctar com Serviliano carecia de mais gente. Deu ordem, logo que partiu o exercito romano, de lançar fogo ao arraial, fazendo uma retirada cautelosa e tratando com a maxima urgencia de ir buscar levas de montanhezes ás serranias do Herminio, por que lhes reconhecera a valentia impetuosa dos assaltos.
Serviliano, uma vez abastecido em Ituca, e refeitas as suas tropas pelo descanso, debalde procurou Viriatho; convinha-lhe fixar o seu quartel de inverno não longe, para recomeçar a campanha contra os Lusitanos, e avançou sobre a Beturia, essa parte montanhosa da Betica, entre a planicie do Betis e o valle do Anas. Habitava ahi gente que se confederara na grande insurreição suscitada por Viriatho; o Consul occupou-a por conquista, avançando para o paiz dos Cuneos, castigando-os pelo mesmo pacto, e fixando ahi na Cynesia o seu quartel de inverno.
No anno DCXIII, no comêço da estação propicia, iniciou Serviliano a nova campanha contra Viriatho, avançando para o norte; quando ia em marcha com o poderoso exercito, vieram ao seu encontro dois guerrilheiros, que andavam pela Cynesia, com uma partida de mais de dez mil homens. Eram Curio e Apuleio, que por uma temeridade inaudita se atreveram a atacar Serviliano. O Consul, com incomparavel vantagem, bateu a partida, ficando morto no campo Curio com todos os seus despojos, e debandando Apuleio com o resto da sua gente cruamente destroçada. Serviliano prosegue na impetuosa marcha, e reconquista a cidade da Baccia, toma dentro em poucos dias as cidades revoltadas contra o jugo romano, Scandiam ou Escambola, Gemella e Obucula, fazendo ahi dez mil prisioneiros, que vendeu como escravos, e mandando degolar uns quinhentos individuos mais importantes, que considerava como partidarios de Viriatho e fomentadores da revolta. E era a grande e generosa Roma, que acoimava de barbaros os povos da Hespanha, querendo civilisal-os pelas carnificinas e pelas depredações. Era a Lusitania, na sua parte oriental e na occidental, que se atrevia a resistir contra este regimen de latrocinios, batalhando pela sua liberdade.
Serviliano ia arrebatado por um pensamento exclusivo: encontrar Viriatho, derrotal-o! Sem isso não era possivel a submissão ou pacificação da Hespanha. Nas suas marchas o Consul não encontrava o Cabecilha lusitano; os seus espiões não davam noticia d'elle. Em quanto os soldados se regosijavam, conclamando, que Viriatho estava cansado da lucta; que perdera a esperança na causa da Lusitania; que já lhe faltava gente e recursos, Serviliano conhecia bem a tactica do caudilho, e suspeitava que Viriatho andaria por longe recrutando novos reforços. E seguro de que só mais tarde o encontraria, o Consul, para ir entretendo as tropas e satisfazendo-as com os saques das cidades devastadas, chegou ás cercanias de Erisane, cidade rica e populosa, e resolveu apoderar-se d'ella. Nem sequer mandou intimar a rendição aos habitantes de Erisane; pôz logo o cêrco á cidade, e deu ordem a que, em todo o seu circuito, se abrissem fóssos, fazendo da terra revôlta uma alta trincheira detraz da qual ficariam os hastarios, para que ninguem podesse fugir, e forçando-os a entregarem-se, assenhorear-se de tudo quanto em Erisane se guardava. De resto contava que os habitantes eram tambem uma rica mercadoria de escravos, e um meio para quebrantar as outras cidades pelo terror passando á espada alguns centenares. Serviliano procedia com tranquilidade e segurança, por que uma cidade sem defeza, como Erisane, não tem melhor recurso do que entregar-se ao invasor. A soldadesca romana achava-se em grande parte dividida em volta da cidade abrindo os fóssos, quando inesperadamente de dentro dos seus muros irrompem em tropel esquadrões sobre esquadrões de cavalleiros, de longas grenhas, com trajos e armas ao modo lusitano. Parecia que a cidade se desfazia em chusmas de cavallerias, e que de cada pedra se formava um cavalleiro. A violencia e rapidez da erupção, os gritos estridentes e a sanha vertiginosa bem revelaram logo que era gente de Viriatho! Como conseguira o Caudilho introduzir-se sem ruido dentro de Erisane n'aquella noite? E sem dar tempo a que Serviliano podésse metter em fórma o exercito, que estava esparso e em descanso no acampamento, na lisongeira espectativa do saque da cidade, Viriatho, com aquelles movimentos que só elle sabia dirigir, lança-se com todos os seus bravos Soldurios, e com os Terços mais firmes chacinando na massa desmembrada do exercito de Serviliano, multiplicando a sua força sobre as hesitações de espanto causadas pela instantanea surpreza.
O exercito romano, sem ensejo para entrar em ordem, vae abandonando o terreno, vae recuando, sem plano; Viriatho, com a lucidez dos momentos decisivos, vae-o impellindo para o desfiladeiro apertado entre dois montes cobertos de penhascos, sem que o proprio Serviliano désse pela audaciosa cilada. Logo que Viriatho conseguiu encurralar o grosso do exercito consular, deu ordem a um trôço de companheiros para a um signal sabido fazerem rolar do alto das duas montanhas aquelles penhascos acavallados. Dispostas assim as cousas, mandou parlamentarios a Serviliano:
—«Que o Consul Quinto Fabio Maximo Serviliano, conhecendo a situação em que se collocára o exercito romano n'aquelle desfiladeiro, devia consideral-o perdido para o combate ou qualquer resistencia;
Que do alto das duas montanhas rolariam ao primeiro signal sobre o desfiladeiro os penhascos que alli negrejavam, esmagando todo o exercito ahi comprimido;
Que, antes de proceder e de pôr as suas condições, mandava perguntar a Serviliano que vantagens offerecia para que o exercito romano fôsse salvo.»—
Os parlamentarios, que tinham partido levando ao alto ramos de oliveira, não se demoraram muito tempo; traziam a mensagem de Serviliano:
—«Que da parte do Consul Quinto Fabio Maximo Serviliano, pelos poderes que lhe tinham sido conferidos pelo Senado, lhe entregavam um Cinto de ouro, como insignia de auctoridade soberana;
Que poderia Viriatho desde aquelle momento considerar-se Rei da Lusitania, e fiel Alliado de Roma, sendo o seu primeiro acto a assignatura de um Tratado de Paz e a dissolução do exercito.»—
Quando Viriatho leu essas condições sorriu-se com um superior desdem; e sem demora tornou a enviar os Parlamentarios com os Cavalleiros romanos que os acompanhavam, para dizerem a Serviliano:
—«Que das suas propostas só acceitava a Paz firmada pelo Consul e ratificada pelo Senado, em que se assentasse para sempre o reconhecimento da liberdade e independencia do Povo lusitano na sua terra, e da propriedade dos fructos do seu trabalho.
Que a Lusitania nada queria de Roma; e quanto a elle Viriatho não acceitava o titulo de Rei, mas unicamente a simples denominação de Amigo, dada pelo Senado romano.»—
A mensagem de Viriatho não podia deixar de ser adoptada por Serviliano, porque se limitava exclusivamente ao Tratado de Paz. E o Consul comprehendia o intuito leal de Viriatho, porque aquelle mesmo homem, que estando o exercito lusitano perdido recusou a Paz que Vetilio concedera, era quem agora, tendo o exercito romano entregue ao seu arbitrio, propunha como resultado da victoria uma simples clausula: um Tratado de Paz assignado pelo Proconsul e ratificado pelo Senado e Povo romano. Era nada menos do que a pacificação da Hespanha e o poder de Roma assentando sobre o Direito em vez da espada.
O Tratado foi redigido com todas as formalidades do Direito das Gentes, e Serviliano assignou-o como Proconsul; Viriatho firmou-o tambem enumerando os povos lusitanos que representava. Trocaram-se os diplomas authenticos, um que devia ser apresentado por Serviliano ao Senado em Roma, e o que ficava em poder de Viriatho, como garantia da Paz. N'esse dia os dois exercitos passaram em festa, ficando no campo as tropas de Viriatho, até que o exercito proconsular deixasse de ser visto seguindo em marcha para o seu quartel de inverno.
O sonho de Viriatho tornára-se uma realidade: a Lusitania livre, e Roma vinculada pela Paz. O Caudilho contava com a pacificação geral, embora algumas resistencias se manifestassem na Hespanha citerior; Roma era sufficientemente politica para ratificar esta Paz sem apparencia de impozisão. E emquanto Viriatho esperava a ratificação do Tratado pelo Senado Romano, partiu pressurosamente para a ilha de Achale. Cumprira a condição exigida por Lisia para a realisação do seu casamento.
Lisia sabia todos os terriveis accidentes da campanha de Serviliano, mas não tinha chegado ainda á ilha sagrada a noticia da pacificação inesperada. Do alto da Torre Redonda a semnothêa viu vogar para a ilha uma barca de couro; o coração bateu-lhe agitadamente, sem se atrever a conjecturar o que teria succedido. Mais proximo a barca, reconheceu a figura de Viriatho. Desceu subitamente para ir esperal-o á lingueta de areia.
Não se imagina a eloquencia da mudez de Viriatho e Lisia, quando se deram as mãos e assim ficaram por alguns momentos. Avançando para a Torre Redonda, ia-lhe dizendo Viriatho:
—Cumpriu-se o teu desejo.
—A Paz? Com Serviliano?!
—A Paz com Roma; assignou-a Serviliano, Proconsul e general.
Lisia fitava immovel o vulto de Viriatho, crendo um sonho o que escutava. O valente cabecilha tirou d'entre a cota de malha de linho retorcido a folha em que estava escripto o Tratado de Paz, em que Roma reconhecia a liberdade e independencia da Lusitania. Lisia não pôde lêr esse texto, porque a impressão da alegria tinha-lhe arrasado os olhos de lagrimas. Viriatho entregou o Tratado ao ultimo dos Druidas Idevor, que leu a clausula: Haverá paz entre o Povo romano e Viriatho.
Lisia, lançando os braços em volta de Viriatho, exclamava:
—Temos uma Patria livre! A Lusitania é independente!
E beijando com candura as faces crestadas e as mãos de Viriatho, continuou como se estivesse fallando em sonho:
—Já se póde constituir familia em uma Patria livre. Os nossos filhos nunca serão escravos.
Viriatho, lançando-lhe o braço em volta da cinta delicada, e em attitude reverente:
—Cumpri a condição que me exigiste: a imposição da Paz a Roma. Agora és minha esposa.
—Para a vida e para a morte! volveu Lisia, como se alli mesmo se consorciasse com o guerreiro á face do céo.
E Viriatho, tirando o braço direito da cintura de Lisia, tomou o Cinto de ouro mandado pelo Proconsul Serviliano, como symbolo da realeza offerecida, e cingindo-a com elle, disse com voz branda e quasi só ouvida pela noiva:
—A este corpo gentil, que eu desejo e hade ser meu, prendo-o com esta cadêa de ouro, trazida do campo da batalha para a paz da nossa casa. As almas sempre estiveram identificadas pela mesma aspiração, pelo mesmo soffrimento, e agora por uma simultanea alegria.
E mirando Lisia com interesse e carinho para vêr como bem lhe ficava o Cinto de ouro, dizia em voz que só ella entendia:
—Mal sabes a significação d'este Cinto?
Lisia ficou attenta para ouvir contar a batalha em que fôra tomado como despojo ao general romano.
—Foi-me offerecido por Serviliano com o titulo de Rei da Lusitania e Alliado de Roma, para assim salvar o seu exercito do desfiladeiro em que o enclausurei.
—E acceitaste?
Recusei o titulo de rei, como uma vaidade pessoal e egoista, e só exigi a Paz, o Tratado de Paz ratificado pelo Senado Romano.
—Mas o Cinto?
—Fiquei com elle para ser a minha primeira joia de nupcias.—E com um sorriso cheio de bondade, continuou: Não deixará de ser o symbolo da realeza, no logar em que agora brilha; por que tu, Lisia, ligando a tua existencia á minha, ficaste verdadeiramente a rainha e senhora do meu destino.
Lisia tirou o Cinto de ouro que a envolvia, e tomando da mão de Viriatho o Tratado de Paz foi collocal-os sobre o altar do Deus Innominato. As Virgens do Côro da Semnothêa acompanharam de canticos estas offerendas, incertas sobre qual d'ellas substituiria no culto a Lisia, que ia deixar os áditos mysteriosos da Torre Redonda pelos deveres austeros da vida de mulher casada.
O regimen da Religião druidica ia-se obliterando; apenas na Ilha de Hierna se conservava na sua pureza primitiva. Pelas outras partes do Occidente europeu as perseguições fizeram que se dissolvesse a hierarchia sacerdotal, degenerando os Druidas muitas vezes em adivinhos e curandeiros, e as Semnothêas em bailadeiras dos festins e das praças. Na Ilha de Achale conservava-se um apagado vestigio cultual, não tanto como doutrina theologica, mas como vinculo secreto que unificava as vontades no ideal politico da libertação da Lusitania. Era por isso que nenhum viajante fallando da Hespanha deu noticia da existencia do Druidismo na peninsula. Lisia, a Semnothêa, casando com Viriatho, realisava o ideal religioso servido pelo braço do guerreiro na aspiração politica de uma Lusitania livre.
Depois que o caudilho saiu da Torre redonda, Lisia fallou adeparte com o velho endre:
—Agora que está assignada a Paz com Roma e livre, livre a ditosa Patria nossa amada, Viriatho virá pedir-te a minha mão de esposa. Muito desejára que antes d'esse dia lhe descobrisses o sitio onde se guarda o Thesouro do Luso, e lh'o patenteasses como depositario da Tradição, que elle serviu com tanto desinteresse e valentia. Eu bem sei que tudo se encontra na Caverna das Inscripções Oghmicas, que só tu sabes interpretar, pondo em ordem mysteriosa os Bastões dos Poetas ou Vates, que por terem esse conhecimento da Floresta ou Feadha, são chamados Faithiste.
—Sim, volveu o velho, é preciso ser sagaz para lêr essas varas sagitarias, feitas de estêvas, a que chamaram Buchstave, em que se contam as Sagas heroicas. A quem, senão a Viriatho entregarei o Thesouro do Luso? Pela condição natural das cousas, Viriatho hade sobreviver-me. Encanta-me o teu pedido, porque a entrega d'esse deposito fica ligado ao destino affectivo da tua vida,—é o teu dote.
Lisia, beijando a fronte do endre encanecido, deu á intensidade do sentimento a sincera expressão das lagrimas.
Seriam aquellas lagrimas enternecidas um presentimento?
Na vetusta tradição dos povos do norte anda sempre ligada á posse do Thesouro a fatalidade tremenda,—a morte...
Emquanto Viriatho se demorava na Ilha sagrada de Achale, no enlêvo d'aquelle amor que o fortificára na sua missão heroica, os tres Companheiros deixaram-se ficar no valle de Callippo á frente dos Mil Soldurios, em uma inactividade impaciente e desgostosos por vêrem tão repentinamente terminada a guerra contra os Romanos. Estavam acostumados a uma vida agitada de aventuras, ao prazer do saque, ás grandes emoções entre a posse de riquezas repentinas e a morte; custava-lhes a voltarem bruscamente aos costumes da paz, ao respeito forçado da vida e da propriedade. Preoccupados do mesmo pensamento, careciam de communicar entre si os seus intuitos; tinham receio de serem espiados, de que os Soldurios descobrissem em suas palavras qualquer hostilidade contra Viriatho.
Então Ditálcon disse para os outros dois companheiros:
—Que vá cada um de nós por diversos caminhos ter á Caverna que está entre o Promontorio Cepressico e o rio Callippo. Ahi, sem sermos vistos nem ouvidos, poderemos fallar á vontade, e resolvermos sobre a situação que nos espera.
Andaca e Minouro abraçaram o alvitre, e assentaram o dia do encontro na Caverna das Fadas, ao alvorecer. Então teriam tempo para fallar á vontade e á larga. Dos tres companheiros de Viriatho, Ditálcon era o mais velho, e até muito separado em edade. Era um homem alto e enxuto de carnes, de ossadura forte; e embora guerreiro destemido, nunca tinha perdido o porte aldeão, e mesmo um certo amor pelos trabalhos da lavoura. O rosto sobre o comprido e de faces cavadas, tinha uma carnação rubra tostada, sobre que assentava um nariz afilado, e uma bocca desdenhosa, a que dava um ár ironico um golpe que recebera na desastrosa batalha de Tribola. Os olhos eram garços, entre o azul e verde, lembrando pela fórma da cabeça o typo do africano branco berber. Fallava cadenciadamente como sentindo a propria auctoridade, porque era ouvido sempre attentamente, quando contava memorias de cidades destruidas, do tempo das guerras carthaginezas; dizia-se que na mocidade viajára até á Britania e á Gallia, e envolvia-se de uma atmosphera de oraculo, pretextando ora descontentamento dos homens e das cousas, por fórma que inspirava desalento em volta de si, ora acobertava os seus desanimos repentinos com uma isempção de todas as honras e riquezas.
Minouro, que era muito mais novo do que Ditálcon, admirava-o profundamente, e tratava-o pelo nome de—Mestre, lamentando que elle não fôsse um Druida. Por uma lisonja petulante e insistente, veiu a illaquear Ditálcon, levando-o na direcção e intuitos que lhe suggeria. Minouro não era corpulento; era de uma estatura média que o não destacava do commum da outra gente; mas a cara redonda, o nariz curto, e os pequenos olhos que nunca fitavam de frente, denunciavam o typo do pequeno ambicioso do poder, do intrigante que trabalha pelo ideal da sua personalidade, servindo todos os partidos conforme as necessidades da sua elevação. Era como um fermento putrido, exercendo uma acção decomponente e incessante. Viriatho confiava em Minouro, pelo seu caracter de homem pratico, e especialmente pela consideração que lhe ligava Ditálcon.
O outro companheiro, Andaca, era mais phantasista, mas generoso; como Minouro admirava tambem profundamente Ditálcon, acatando-o mesmo quando este o censurava pela audacia das suas ideias, ou arrebatamento impulsivo das suas determinações. Andaca era homem novo; destacava-se entre os outros Cavalleiros pelos seus cabellos louros, que lhe cobriam quasi a testa e que separava para um e outro lado em uma marrafa caracteristica e inconfundivel. A barba era espêssa e tambem loura, a qual com a tez fortemente córada e os olhos azues, faria crêr um typo da Scandia perdido entre as tribus lusitanas de olhos e cabellos castanhos. Era sobrio, e desinteressado; sonhava com os tempos do decahido Druidismo, e teria sido um Bardo arrebatador para doutrinar os povos se tivesse nascido em uma melhor epoca, menos perturbada ou mais crente. Quando regressava dos combates e correrias em que se sentia viver, era-lhe indifferente a distribuição dos despojos; não tomava parte nos saques das cidades romanas, e quando depunha a espada e o escudo era para estar deitado sobre a relva ou nas penedias, em decubito dorsal, scismando como um vate. Minouro a pouco e pouco fôra influindo no seu espirito, dominando-o, e pelo poder de o revocar á energia, exercia um predominio completo sobre a sua vontade.
Partindo em direcções diversas, os tres Companheiros de Viriatho encontraram-se ao alvorecer á bocca da Caverna das Fadas, alguns estadios longe do mar, mas dentro da qual rebentavam as ondas nas grandes tempestades da costa. Ahi, no escarpamento maritimo do Promontorio Cepressico, é que se observava bem o trabalho das vagas, que pelo agglutinamento das areias moventes de uma praia que se foi alteando pelo decorrer dos seculos, formou com o calcáreo altissimos taludes, ou dunas, defendendo o valle de Callippo. Mas por seu turno em toda a extensão da costa desde o Promontorio Cepressico até ao rio Callippo, o mar recomeçou o trabalho de erosão abrindo numerosas Cavernas, destacando-se entre todas a mais profunda e mysteriosa, a Caverna das Fadas. Contam as vozes do povo, que algumas d'essas Cavernas foram abertas pela mão do homem, quando ainda elle não conhecia os metaes, e viera descendo da primitiva estação que fizera em Scalabis, até por estabelecimentos successivos chegar ao valle do Tago.
Na Caverna das Fadas entraram os tres Companheiros de Viriatho maravilhados pela extensão do subterraneo, em um solo plano e profundo com abobada hemispherica, desembocando em uma galeria, aonde já os raios do sol nascente não chegavam, e aonde se occultavam numerosos esqueletos como em necrópole de uma remotissima edade. A curiosidade não os levou a entrarem lá dentro; ahi, á bocca da Caverna, antes de começarem a conversa para que vieram, não podiam eximir-se á observação de cousas que parecia extraordinario o encontral-as n'aquella solidão ignorada de todos.
Ditálcon, levantando do chão uns fragmentos de barro cosido, e mostrando-os aos companheiros;
—Quem é que póde explicar como esta louça veiu parar aqui! Em Ilierna eu vi louça egual em tudo a esta; e até na Bretanha...
—Seria um mesmo povo?—Inquiriu Andaca imaginoso; e levantando do chão numerosas contas de côr esmeraldina e esverdeadas, que estavam espalhadas pelo chão, como se formassem outr'ora vistosos collares, continuou observando:—Mas estas contas desenfiadas tenho-as encontrado em outras Cavernas da Lusitania, em que nos temos refugiado n'estas correrias contra os Romanos. Quem tivesse tempo para ajuntal-as e formar com ellas um collar para offerecer a Lisia por occasião do seu casamento com Viriatho.
Ao proferir este nome, os tres Companheiros entreolharam-se subitamente, suscitados pelo pensamento que alli os trouxera. E Minouro atacou o assumpto:
—O casamento de Viriatho! É isso o que nos obrigou a virmos aqui. Elle quer agora a Paz com Roma, para gosar tranquilamente a sua vida de casado; e mandando cada um para sua casa, lá se vão os nossos commandos, todo o nosso valimento, e mesmo os nossos recursos.
Ditálcon atalhou:
—Viriatho é sincero; elle não acceitou o ser Rei da Lusitania, como lhe propoz Serviliano.
—Mas, depois de casado, não quererá elle dar á mulher um throno? e com os filhos formar uma dynastia?
Andaca interveiu:
—Em todo o caso, nós somos uns instrumentos passivos dos planos ou das ambições de Viriatho; e isto não deve, não póde ser.
Ditálcon, retomando a sua auctoridade e ascendente moral:
—A Paz com que Viriatho se lisongeia, é um engano. Roma ratifica a Paz assignada por Serviliano, mas como vê Numancia em revolta, vae mandando mais tropas para a Hespania citerior. Ainda n'este anno de DCXIII chegou o Consul Quinto Pompeu Rufo, com Quinto Servilio Cepio para continuar essa guerra desesperada que dura já desde DCXI. Os Numantinos não succumbem; são dos que morrem mas não se rendem; elles são verdadeiramente Lusitanos, e Roma sabe-o melhor do que ninguem. Por isso, se vos faz falta a guerra, ahi a tereis, segundo as minhas previsões, e eu sou homem para me ufanar de ter dito algumas verdades ao mundo. Agora, o que aqui vos confesso é que estou cansado de guerras, por uma causa sem fundamento.
—Sem fundamento!? Accudiram Minouro e Andaca, com surpreza.
—Sim; porque nós os Lusitanos nada temos com esse povo primitivo que antecedeu na Peninsula o Ibero, que o veiu repellindo para as bordas do mar. Viriatho sonhou esta divisão entre o Lusitano e o Ibero, quando tudo isto é Celtiberico, e deve formar uma só patria, a que bastaria por ora a constituição municipal que Roma nos impõe.
Minouro apoiando-se na affirmativa de Ditálcon:
—Eu vou-me convencendo d'isso; porque para sermos uma Nação lusitana, como dizes, não temos differença de Raça; e pelo que tenho observado n'estes nove annos de campanha pela Hispania citerior e ulterior, tambem não vejo montanhas que limitem os nossos territórios, nem rios que nos sirvam de fronteiras separativas. N'estas condições uma Patria lusitana é uma creação de fórtes peitos, obra de homens, e sustentada apenas pelo prestigio das suas espadas. Nós mesmos obedecendo a este impulso fizemos do pastor Ouriato o Viriatho que não quiz o sceptro d'este novo reino.
Andaca, suggestionado pelo argucioso Minouro, e acreditando nas palavras de Ditálcon:
—Para que esta Hispania unida entre na Civilisação moderna, como Roma attingiu no mundo e como nol-a quer transmittir, só temos um passo a dár, e digo-o com sinceridade: Renegar a Patria lusitana!
—No meio d'isto tudo, disse Ditálcon, em um dos seus momentos de pessimismo que o atacava,—para mim só me bastam sete palmos de terra.
Andaca, passando com os dedos inconscientemente pela barba loura, parecia que era impellido para o mesmo desalento; Minouro é que se mostrou alegre:
—Deixemos vir para nós os acontecimentos. A tranquillidade de Viriatho não será por muito tempo; nem me parece que a sua obra tenha estabilidade. E recomeçando os Romanos a guerra, porque o Senado que ratificou esta Paz é o mesmo que approvou a traição de Servio Galba ha dez annos, Viriatho tem de vir a campo. E nós cá estamos para dirigirmos as cousas como entendermos.
—Ficamos n'isso! Conclamaram os outros dois, levantando a mão direita.
O sol ia a pino; e montando silenciosamente os cavallos que andavam pastando entre as ervas marinhas, dispersaram-se rapidamente em direcções differentes, para reapparecerem desencontradamente no valle de Callippo.
Viriatho, regressando da ilha sagrada de Achale para a companhia dos Mil Soldurios, vinha alegre pela novidade que acabava de saber poucos momentos antes:
—O Senado e o Povo romano ratificaram a Paz assignada por Serviliano! A Lusitania está livre de hoje em diante. Não disputaremos nunca a Roma o seu dominio entre os Povos ibericos; disfructe ahi á vontade as suas conquistas e as suas exacções fiscaes. Que os seus Proconsules e Pretores se enriqueçam rapidamente, e venham ahi remir-se pelo seu governo das garras dos crédores que os empobreceram em Roma. A Lusitania só quer que a deixem no seu trabalho, que é a sua festa permanente. Na fé do Tratado depômos as armas; vou communicar esta resolução, que é da parte dos Lusitanos o começo do cumprimento do glorioso Tratado, ao Conselho armado, para que em seguida todos os Têrços e Companhias, que andam ha nove annos empenhados n'esta campanha de libertação, voltem ás suas terras.
Foram dadas e transmittidas todas as ordens necessarias para que o Conselho armado se reunisse junto da Mamôa mais proxima. Quando Viriatho fallou em dissolver o exercito, ouviu-se uma voz de entre os do Conselho, observando:
—Tenho por perigoso esse desarmamento; porque Roma não cessa de mandar tropas para a Hespanha, e está sustentando uma guerra sangrenta em volta de Numancia. Ahi estão dois Consules temerarios Quinto Pompeu Rufo, e Quinto Servilio Cepio, sustentando essa campanha. Nada mais facil do que, sabendo esses generaes que o nosso exercito se licenceou, voltando os Têrços a seus lares, um d'elles se lembre de vir fazer uma incursão á Lusitania e nos apanhe isolados.
Viriatho ouviu attentamente a observação, e não foi immediatamente de encontro a ella, antes parecia corroboral-a:
—É uma supposição plausivel, e tanto mais para recear, que um d'esses Consules, Quinto Servilio Cepio hade querer vingar o irmão Serviliano por ter assignado o Tratado de Paz; e além de tudo Cepio, segundo a voz que corre, é considerado em Roma como um devasso, capaz de todas as deslealdades pelo seu caracter perfido. Mas, Cepio tem de obedecer ao Senado e Povo romano, e por isso estamos livres de qualquer traição, como a que ha doze annos praticou Servio Galba contra a Lusitania. Hoje não tratamos com Consul algum pessoalmente; é com Roma representada pelo seu mais alto poder politico. Não temos direito a duvidar d'ella; o Tratado aqui está escripto e assignado.
E em seguida passou as laminas de cobre em que o Tratado de Paz com os Lusitanos estava assignado por Lellio e Servilio, os dois Consules n'esse anno de DCXIV da Fundação de Roma; e cada um dos membros do Conselho armado foi lendo detidamente e approvando:
—É a garantia de uma paz duradoura.
—Para que esse Tratado seja effectivo, continuou Viriatho, temos de mostrar a Roma que confiamos na seriedade das suas Leis, e que pelo nosso lado cumprimos o Tratado depondo as armas e voltando aos nossos labores quotidianos.
—É assim mesmo! assim mesmo.
E approvada a resolução, foram enviados mensageiros para todos os povos e terras que tinham luctado pela independencia da Lusitania; para os Vettões, para os Vacceos e Callaicos; outros foram levar traslados do Tratado de Paz para que fôsse lido na Celtiberia, na Carpetania e na Oretania, na Betica e até ao Paiz dos Cuneos.
Ao saír do Conselho armado, disse ainda a mesma voz suspeitosa:
—Bem sei que a noticia do Tratado vae causar por todas essas terras uma alegria immensa! É legitima. Porém vendo o exercito licenciado, e sabendo quanto é difficil pôl-o de repente em pé de guerra, continuarei dizendo, e oxalá me engane: Tenho por perigoso este desarmamento.
Quem assim fallava era o bravo Tantalo, que em toda aquella campanha nunca hesitou em cumprir uma ordem de Viriatho.
Depois da sahida do Conselho armado disse Idevor para Viriatho:
—Não quizeste acceitar o titulo de Rei da Lusitania; o teu sentimento puro revelou-te, que n'este solo lusitano não vegeta essa planta parasitica da realeza. E demais, uma Realeza investida e sustentada por uma potencia estrangeira! Só isso bastava para influir na degradação moral de um povo. Em troca d'essa Corôa que renunciaste, ou que desprezaste, mereceste que te seja entregue o Thesouro do Luso. Já terás sabido que elle se guarda na Caverna das Inscripções ogmicas; a rocha que domina essa Caverna é a Pedra Virgem, o penedo que falla, porque tem na face lisa, ou Peravana, os sons fan, phone, ou vene, que traduzem as Sagas venerandas das Edades passadas. Longa é a jornada para a Caverna das Inscripções, lá na margem direita do Durio, perto do Cachão da Rapa.
—Agora, que dei conta aos Chefes das Contrebias do Tratado de Paz com Roma, podemos partir, ainda que seja para longe; vamos seguros e sós. Eu sei todos os caminhos que nos levam ao Cachão da Rapa, e já vi com assombro esses traços para mim incomprehensiveis gravados na Pedra Virgem. Partamos.
E Idevor e Viriatho metteram-se a caminho. Já distantes e bem longe do povoado, encontraram solitaria á beira de um caminho uma casa palhaça, d'onde vinha o som rythmico do trabalho de um tear; de uma rocha que estava perto manava um jacto de agua cristalina, que fazia gosto beber. Emquanto matavam a sêde, escutaram a cantiga, que tomou para ambos o valor de um vaticinio; cantava uma pobre mulher
Ao tear
Olha a tecedeira
Como tece bem,
Como a lançadeira
Vae e vem ligeira;
Sua mão certeira
Que presteza tem!
Lembra uma dansa
O som do tear,
De um sapatear
Que jámais se cansa;
Mas que é a bonança
De um ditoso lar.
Fosse eu a trama
Da sua urdidura;
Como o fio se acama,
A sua ventura
Seria segura;
Feliz de quem ama!
Cresce tanto a peça
D'este branco panno,
Que, com esta pressa,
Se me não engano,
Ainda este anno
Cumpre-se a promessa!
Viriatho sorriu-se para o velho endre, que o comprehendeu, e proseguindo o caminho, acharam-se naturalmente fallando no casamento de Lisia.
Depois de alguns dias de jornada, os dois peregrinos entraram na região do Durio; seguiram pela margem direita, até chegarem á povoação de Linhares, aonde repousaram. Alli, na voz do povo, ouviram fallar dos Thezouros encantados, que estavam escondidos no fundo de uma caverna escura, coberta por um enorme penedo em que se viam insculpidos grande numero de Quadrados magicos. Ai do que se atrever a penetrar na caverna! Os que lá entram, se não ficam alli immediatamente paralysados com um somno lethal, ou perdem a falla ou cáem-lhe os dentes!
Apesar de todos os terrores, Viriatho e Idevor, logo ao nascer do sol, caminharam para a margem do Durio. D'ahi a meia legua, avistam, sobranceiro de um precipicio a uns vinte passos do rio, o enorme penhasco, que o vulgo saudava com o verso: «A Pedra sagrada da esperança do povo.» Ninguem sabia o que significava uma tal saudação. Idevor era o depositario d'esse mysterio do passado.
Perto já do penhasco, em grande parte coberto de musgo, Idevor dirigiu Viriatho para a parte em que estava a face lisa, da altura de dez covados, e de quatro de largura, e ahi contemplaram patentes os Quadrados, formando como pequenas janellas, com traços encruzados, e enxadrezados, agrupados diversamente. O povo acreditava que essas letras se renovavam todos os annos, no comêço da quadra estival. É certo que os Quadrados estavam agora bem visiveis, e até se lhes notavam côres. Idevor, contemplando aquelles caracteres indecifraveis, disse para Viriatho:
—Esses Quadrados que vês, são como as Lettras runicas, que os nossos antepassados deixaram gravadas sobre muitos rochedos do norte. Chamaram Ogum, nome que se aproxima dos Kova, ou os hieroglyphos de um povo amarello do extremo Oriente. Com o movimento das raças, esses caracteres gravados nas pedras foram reproduzidos em ramos de arvores, a que chamaram os Bastões dos Poetas; muitas vezes porém, nas largas narrativas historicas, esses bastões runicos baralhavam-se, e para restabelecer a sua ordem chronologica, ou as séries das Triades, era necessario ir procurar nos rochedos esquecidos nas florestas a disposição primitiva d'esses traços ou letras. É o que acontece com este rochedo que está diante de nós; repara bem: esses Quadrados gravados na pedra fixaram para sempre a ordem em que se devem dispôr os Bastões runicos, nos quaes estão escriptas as tradições da Lusonia.
—E aonde estão depositados esses Bastões dos Poetas?
—Dentro da Caverna a que se sobrepõe este penhasco. Mas, antes de tudo, repara para estes Quadrados: uma linha figura o tronco da Arvore de Ogham, e como ramos d'ella, cruzam-se outras linhas, que se distinguem umas das outras apenas pela posição e agrupamento: a primeira letra é figurada por um risco ou barra atravessada; a segunda letra por dois travessões, terminando o grupo de barras na quinta letra. E do lado opposto ao primeiro grupo, recomeça-se da mesma fórma os caracteres, do segundo grupo de letras; no terceiro, os traços são prependiculares ao tronco; e no quarto esses traços são transversaes ou obliquos.
Os nomes d'essas vinte letras é tomado da arvore cujo nome começa pelo som d'essa letra; é por isso que o termo Feadha, a planta, a arvore, a floresta, significa tambem o symbolismo alphabetico, a sciencia, e o vate ou Faethiste. Se não fossem os caracteres que ahi vês inscriptos n'esse penhasco, seria impossivel conservar a ordem dos Bastões dos Poetas, em que está escripto o Poema de seis mil versos, que se guarda ahi dentro da Caverna.
E Idevor mostrou a Viriatho a ordem alphabetica, ou Beith-Luis, na sua successão ogmica: b, l, f, s, n, h, d, t, c, q, m, g, ng, st, r, a, o, u, e, i.
Era n'esta ordem que deviam ser dispostos os Bastões runicos. Idevor procurou a entrada da Caverna, que era um pequeno corredor de accesso, na vertente do despenhadeiro, que ia dar a um recinto ou vasta camara revestida nas paredes e tecto por infiltrações stalactilicas. Parecia um hypogeo sepulchral, a que as concreções stalagmiticas davam o aspecto de estatuas mortuarias, envolvidas em sudarios brancos. Á medida que os dois peregrinos avançavam pela assombrosa camara, os rumores dos passos resoavam por outras galerias que se succediam apenas separadas por grandes pedras; de vez em quando sentia-se esvoaçarem aves das trevas, que alli hibernavam, e que para os crédulos pareciam as almas dos antepassados. Sobre o pavimento estavam espalhados estilhaços de silex, machados de pedra, ossos de animaes que pertenceram ao clima glaciario. Avançando com precaução, Idevor chegou á entrada de uma segunda camara, mais vasta e esplendida, pela sua estructura trabalhada pelas infiltrações das aguas; era allumiada por uma fresta aberta nas fendas da rocha, e ahi existia ao centro um bloco despegado do tecto da caverna, formando uma ampla meza aquella lagem de fórma arredondada. E em volta, junto da parede natural, achavam-se dispostas seis pedras, como se fossem assentos patriarchaes; sobre ellas estavam estendidos, á maneira de feixes de setas, os Bastões runicos, a que Idevor por vezes alludira. O velho endre fallou para Viriatho:
—É n'estas varas que está escripto o Poema da Lusonia.
E foi tirando pela ordem ogmica os Bastões e collocando-os combinadamente sobre a grande meza central; todos esses feixes formaram outros tantos Quadrados, como os que acabavam de contemplar na face lisa do Penedo do Cachão da Rapa. E depois de se acharem todos dispostos convenientemente, disse Idevor:
—Agora posso lêr o velho Poema da raça de que provimos, e em que se encerra o destino da Lusonia.
Viriatho approximou-se respeitoso, exclamando com jubilo:
—Esse Poema nacional é o verdadeiro Thesouro do Luso. O conhecel-o enche todas as minhas ambições.
E Idevor, percorrendo um a um, nos seis grupos de varas, os Bastões runicos em que se continham os seis mil versos da Epopêa da Lusonia, observou:
—Levaria muitas horas a leitura ou recitação pausada dos versos d'esta Epopêa; para o caso que nos interessa n'este momento basta um resumo claro e verdadeiro. Escuta pois o Argumento da
«Um grande Mar glacial cobriu a Europa, a partir do pólo até ao Ural, estendendo-se pelos territorios hoje occupados por nações, que levantaram dolmens e construiram muralhas e cidades com os blocos erraticos arrastados pelas neves, que deslisavam das altas montanhas.
«As neves eternas, descendo dos montes da Europa occidental, foram espalhando em uma marcha lenta, que durou seculos, essas morenas, que bordam as margens dos lagos, as costas do Oceano atlantico, onde se desaggregaram das geleiras. Todos os grandes valles foram atulhados de gelos, trasbordando sobre as planicies. Dos montes da Europa central se estenderam esses enormes geleiros, alastrando-se, destruindo as especies vegetaes, e repellindo diante de si os animaes gigantescos, que se refugiavam nas cavernas ou procuravam outros climas. Nas clareiras, não cobertas pelos gelos, conseguiram viver alguns animaes e pequenos grupos humanos, em uma lucta com a intemperie da natureza; apparecem estações humanas nas Gallias, Britania, Italia e Germania, e n'essas zonas exundadas é que se foram creando as raças da Europa, que se iam constituindo em Nações poderosas, com as suas linguas diversas, seus costumes, religiões e sociedades differentes: taes os Hyperboreos, formados pelos Proto-Scythas, Scythas, Sarmatas, Parthas, Germanos, Gaulezes e Bretãos. Elles conheceram a grande Constellação austral da Ursa, e iniciaram os trabalhos da Agricultura e da Navegação.
«As Estrellas da Grande Ursa, em numero de sete, assim como os bois que pucham os carros pesados chamados Teriones, foram designadas Septemtriones. O homem representou no céo os actos da sua vida terrestre: o Sol fecundante da estação estival foi representado como o Touro, ou o Deus Thor das gentes germanicas, e o mugido do trovão Tarana, como do touro que berra. E a navegação, que se fazia de uns para outros lagos, era tambem completada transportando os Teriones as barcas em carros de um ponto para outro. Chamaram por essa fórma dupla de Navegação a esse povo aventureiro os Gansos, ou Liguses, os patos dos lagos. Foi assim que se fez conhecida no mundo a forte raça de Navegadores, os Liguses, ou Ligures, que constituiram Ligas ou Hansas maritimas, protectoras das suas remotissimas viagens, transportando pelo Atlantico e através da Europa os blocos de Ambar amarello, e o estanho das ilhas Cassitérides.
«Esses Povos da região septemtrional da Europa, que se chama a Scandinavia, viveram longo tempo ás bordas do mar, e foram conhecidos pelo nome dos Homens da Agua, que em suas linguas se exprimia pelas palavras Soma-lassed, Sabme-lassed. Pela orla occidental da Europa esse Povo veiu descendo para o sul, e occupou as regiões de Hibernia, da Britania, e na Hispania esse Povo fundou o grande estado da Lusonia ou terras de Lez, que se denominaram Anda-Lezia, Cale-lezia e Lusitania.
«Pela sua audacia aventurando-se na exploração do Mar tenebroso, as outras raças chamaram-lhes os Atlantes, de Atl, o nome da agua; e nas suas rascas ou barcas de duas prôas, ajudadas a remos, a que chamaram Kamares, estenderam as suas expedições pelas Ilhas perdidas no meio do Atlantico, desceram ao longo da costa occidental da Africa, foram tocar em um continente ou Mundo novo da Aymerica, penetraram o Mediterraneo até ao Egypto, e subindo o Golpho persico, chegaram até á Chaldêa, e á India.
«Esses Povos ribeirinhos, ou de Lez, e propriamente maritimos ou Atlanticos, levaram os conhecimentos da Astronomia, fixados no seu Zodiaco, ou Symbolismo zoomorpho das Constellações observadas no Anno sideral, até esses Povos da America, do Egypto, da Chaldêa e da India. Foi por isso que o Symbolo do Touro é adorado no Egypto com o nome de Ser-Apis, e na fórma Shor, o Bezerro de ouro, na Palestina; com o nome de Tauro o designaram os Chaldeos, os Syrios, e os Gregos. Por esse Symbolo da Constellação do Touro é que a Civilisação da raça iniciadora dos Ligures se denominou Turana; todos esses Povos do Oriente adoptaram o Zodiaco occidental, sem notarem que pela evolução millenaria dos Equinocios, o Signo do Touro deixou de coincidir com o comêço do Anno estival.
«Contra a Raça ligurica veiu do Oriente a pressão de outros Povos. As gentes do Iran, adorando o Fogo espiritual representado em Mithra, reagiram contra a representação do Fogo terrestre ou o Touro, morto por Mithra, ou contra o Turan. Na Europa, os Povos dos Celtas, e dos Iberos, dos Jonios e dos Phenicios, dos Carthaginezes e dos Romanos, foram gradativamente atacando a raça dos Ligures, e pelas invasões por terra, e pela pirataria nos mares, quasi que apagaram o nome e a Civilisação dos Ligures na Europa! Os Iberos, que atravessaram da Africa quando a Europa ainda estava ligada a ella por um isthmo, repelliram-na da vertente occidental dos Pyrenneos, em que se tinha apoiado na Edade glaciaria, cujas geleiras estacaram ante essa cordilheira; os Celtas louros e corpulentos atacaram-a nas Gallias trans-e-cisalpinas; os Phenicios apoderaram-se dos Periplos das suas navegações atlanticas pela pirataria; e os Jonios roubaram-lhe os seus Poemas em que celebravam as temerosas Aventuras do Mar. As luctas guerreiras, e o imperio das Civilisações militares fizeram esquecer a civilisação agricola e as Navegações dos Povos liguricos. Entre o Occidente e o Oriente deu-se uma separação, e esqueceram-se de que eram solidarios na História.
«Uma tréva immensa caíu sobre o mundo depois da Éra glaciaria; a força bruta prevaleceu sobre a Sciencia, a Guerra de devastação e de conquista sobre o trabalho pacifico da Agricultura. A Missão civilisadora dos Ligures, iniciada na America, no Egypto, na Chaldêa, na India, ficará interrompida para sempre?
«Diante da extensão e perstigio dos Imperios militares, parece que a acção da força bruta é definitiva. Mas, a Rasão e a Paz hãode triumphar um dia; o Occidente tem de reatar a sua antiga solidariedade com o Oriente. É essa a missão e o futuro glorioso da Lusonia.
«Este ramo, certo, o mais tenaz do tronco decepado da luctadora raça dos Ligures, resistindo na Hispania contra os Iberos, contra os Celtas, Persas, Phenicios, Carthaginezes e Romanos, hade um dia através de todas as crises reorganisar-se outra vez como Nação, e o seu poder derivará do regresso á primitiva capacidade da raça: Recomeçará as grandes Navegações do Atlantico; hade reoccupar pelas suas colonias laboriosas a America; fundará um vasto Imperio na India; dominará na Africa; e primeiro que nenhum outro povo circumdará a Terra, affirmando outra vez a supremacia pacifica como destino da Civilisação occidental. Sustentar a autonomia da Lusitania é impellil-a para a realisação d'este incomparavel destino,—alargando pela actividade pacifica a antiga Liga hanseatica n'uma Confederação das Gentes, na solidariedade humana.»
Dentro da Caverna do Cachão da Rapa ia escurecendo; estava já terminada a leitura ou exposição do Poema. Viriatho, cheio de esperança no futuro da Lusitania, exclamou:
—Este ideal dá vida e energia a uma nacionalidade! Torna-a imperecivel. Agora já posso morrer; e fosse esta Caverna, deposito de uma tradição sagrada, a minha ignorada sepultura.
—Para que te deixas assaltar por presentimentos de morte? Eu ainda não te desvendei todos os conhecimentos contidos n'esses Bastões dos Poetas, ou Sagitas, que se arrojam ao ár, e conforme cáem voltadas para o Oriente ou para o Occidente, assim nos dão os Pre-Sagios venturosos ou aziagos. Ha um conhecimento de incomparavel sagacidade: revela-o a seta, que equilibrada sobre um ponto, trémula, oscilante, indica a linha do Norte a Sul; mais poderosa do que aquellas que guardam as Sagas das Tradições dos Navegadores liguricos, ella os guiou seguros—por Mares nunca de antes navegados!—Pela posse d'essa Vara chamada a Seta de Ouro, realisará a Lusonia o seu alto destino.
E á medida que ambos se afastavam da Caverna, disse Viriatho, ao perder de vista o penhasco das inscripções mysteriosas:
—Agora comprehendo eu o verso da saudação: «A Pedra sagrada da esperança do povo.»
A cerimonia do casamento de Viriatho com Lisia estava determinada para dia certo. O cabecilha era esperado na Torre redonda de Achale, e já sobre o lar ardia o fogo sagrado que representa a santidade da familia apoiada n'esses mysterios cultuaes da memoria dos Antepassados. Lisia entretinha o fogo, quando chegou Viriatho; o guerreiro aproximou-se de Idevor, e disse com uma dominadora serenidade:
—Agora, que já temos uma patria livre, tambem quero render culto aos meus Antepassados, e venho rogar-vos por isso, para que Lisia, vossa filha adoptiva, me acompanhe n'este acto comendo commigo do mesmo pão diante do mesmo fogo.
Idevor ergueu-se d'onde estava assentado, aproximou-se da Pedra focal, e chamando para junto de si todas as pessoas que habitavam na Torre Redonda, proferiu a fórmula sagrada:
—Eu vos entrego, oh mancebo, a minha filha Lisia, trocando este lar paterno pelo que ides inaugurar com amor e esperança.
E pegando em Lisia pela mão, conduziu-a para Viriatho, como desligando-a da religião domestica, e entregando-lh'a para que a iniciasse em um novo culto da familia a que de ora em diante pertencia. Os dois esposos olharam-se com ternura; os canticos das donzellas que acompanhavam Lisia resoavam com a magestade de um sacramento, e n'aquelle dia entre festas, banquete e recitação de poemas, passou-se a primeira parte do cerimonial consuetudinario do casamento.
No dia seguinte era a partida da esposa para a terra de seu marido; sahiram da Torre Redonda os tres Companheiros de Viriatho, e a luzida cavalgada que tinha de conduzir a noiva pôz-se a caminho. Lisia, vestida de branco e com a lunula de ouro na cabeça, coberta com um véo, ia em um carro todo enramalhetado, ladeado pelos cavalleiros da Trimarkisia. E adiante caminhava um arauto levando um facho accêso, que como symbolo nupcial dava á cavalgada o prestigio do sentido religioso. Em todo o percurso ou pompa, modulavam-se hymnos consagrados; e de toda a parte vinham ao encontro da cavalgada homens e mulheres, que atiravam com flôres para o carro da noiva e lhe derramavam trigo pela cabeça, augurando felicidades.
Ao aproximar-se de Viseu, tres raparigas robustas e esbeltas, trajando vestidos garridos, com suas arrecadas de ouro, vieram collocar-se diante do carro de Lisia, e foram seguindo-a cantando-lhe uma Canção de marcha nupcial. Pelas suas vozes, como excellentes cantadeiras, bem conhecidas, espalhavam alegria em volta de si; eram Caenia, Aponia e Nilliata, de que Viriatho se recordou com jubilo. Fôra ao subir da serra dos Herminios que ellas lhe fallaram de Lisia, e é com o mesmo encanto que agora entôam a
Marcha nupcial
Bem vindo o par ditoso
Para a nova morada!
Do amor o laço forte
Não o desata a morte.
Pelo braço do esposo
Lá vem a bem casada!
Laço que a união celebra,
Nem mesmo a morte o quebra.
Como ao tronco ramoso
A vide entrelaçada,
Que outro laço mais ata?
O filho que os retrata.
Que encontre infindo goso
N'esta união consagrada
O par, que vem sorrindo;
Par ditoso, bem vindo!
Estava a terminar o trajecto festivo, e começava a terceira parte da cerimonia do casamento, em que a entrada da esposa em casa do marido se fazia por um rapto, pelo qual este, sem que ella tocasse com os pés no limiar da porta, a introduzia junto do lar, no novo culto domestico pela sua auctoridade de chefe da familia, que assim a iniciava por sua vontade. Era ahi que devia ser partido o pão entre ambos, diante do fogo do lar, bebendo n'essa communhão para a vida e para a morte, unificando as almas por um sacramento indissoluvel. Passou-se rapidamente este acto, porque era immensa a multidão de gente de todas as terras da Lusitania que esperavam os noivos na Cava de Viriatho aonde se formára um esplendoroso arraial, em que se expozeram todas as riquezas naturaes e industriaes da terra.
Alli se encontravam os Chefes das Contrebias, acompanhados dos seus ambactes, com os presentes offerecidos aos noivos.
Conheciam-se logo entre a multidão jubilosa os principaes chefes dos Castros e Citanias da Serra da Estrella; e diziam os curiosos:
—Olha o chefe do Cabêço do Crasto de Torvosello! E o do Crasto de Tintinalho? O do castello de Reigoso!
—Não faltou o Chefe do Cabêço de Escarrigo; nem o de Videmonte; o de Verdolhas, e de Tabeiró.
A gente de Traz os Montes tambem reconhecia os seus chefes:
—Lá está o de Castro de Avelãs. Olha o de Formil! Mais o de Fervença.
—Tambem o de Castro Samil! E o de Lambeiro branco! o de Soutello.
—Mais o de Rabal; e o de Alfaião.
A gente do Alemtejo mostrava certo orgulho ao apontar para os seus chefes da Orca, de Castro Verde, da Colla, de Castris.
Do norte, da região callaica, viam-se os chefes das Citanias, como os das de Briteiros, Tintinolho e Sabroso; o chefe da Corôa de Amonde; e o do Môrro de Affife; o do Castrello de Neiva; o de Monte Ferroso; de Laúndo, Guifães, da Roboreda. Era uma homenagem unanime de sympathia, de reconhecimento a Viriatho pelo exito da violenta campanha de libertação da patria commum.
Com as festas que por toda a Lusitania e Celtiberia se fizeram ao conhecer-se o texto do Tratado de Paz, e ao regressarem a seus lares os homens que ha tantos annos andavam na guerra da independencia, coincidiu tambem a noticia de que em breves dias seria celebrado o casamento de Viriatho com Lisia, a virgem semnothêa, aquella que sempre vaticinára a liberdade da Lusitania.
Assim, cada uma das terras que contribuira com tantos sacrificios para coadjuvar Viriatho no castigo da infamissima e sanguinaria perfidia de Galba, resolveu mandar uma deputação para a representar nas festas nupciaes do valente Caudilho. Essas deputações eram formadas de moços e raparigas, vestidos com os trajos das suas provincias os mais vistosos e caracteristicos, que iriam fazer os cortejos do esposo e da noiva, e alegral-os com as suas dansas e cantares, durante os dias das bodas e tornabodas; iam tambem os homens bons ou antigos com os presentes de bois e novilhos, de vinho, cereaes, fructas e sequilhos, para que a nova familia se iniciasse pela abundancia; e as mulheres, as mães, que fiavam no lar, offertaram tambem as suas grandes têas de panno de linho e bragal, meadas de linha alvissima e fina, boiões de mel, e aves sem conto. Era uma homenagem com o sentido de uma contribuição nacional espontanea áquelle que soubera unir as populações dispersas no mesmo sentimento de uma Patria livre.
Para a cidade de Vacca, fundada pelos Turdulos, que está proxima das fortes muralhas da Cava aonde Viriatho no anno DCVIII derrotára o Consul Nigidio, é que se dirigiram todas as deputações para as festas do casamento do Caudilho. Alli, n'aquella cidade, junto do rio Vaccua, costumava Viriatho recolher-se temporariamente das fadigas da guerra; era alli que tencionava viver tranquillamente o resto de seus dias no remanso do lar com a adorada esposa, Lisia, que tanto o fortificára pelo ascendente moral e confiança no futuro da Lusitania.
Da cidade de Vacca partiu o cortejo dos moços á frente de Viriatho, que iam ao encontro da noiva, que vinha da Ilha sagrada de Achale, acompanhada por seu pae Idevor e pelo grupo das donzellas de todas as cidades lusitanas lá reunidas para essa marcha. Por onde Lisia passava punham-lhe arcos de flôres e verdura; tapetavam-lhe a estrada com ramos e plantas aromaticas de alecrim e verbena, e arrojavam-lhe punhados de trigo, cantando seguidilhas de felicitação e augurando venturas.
Quando o cortejo chegou á margem do Vaccua, os grupos interrogaram-se mutuamente, e depois de simuladas as perguntas e respostas, em que Lisia era concedida como esposa a Viriatho, o guerreiro passou o rio com presteza, e como por encanto lançando o braço em volta da cinta de Lisia, levantou-a do chão para cima do seu cavallo branco, partiu á desfilada fazendo o acto cerimonioso do rapto. Todos os mancebos foram apoz elle, mas quando chegaram á cidade de Vacca já encontraram Viriatho e Lisia juntos no balcão de pedra que dava entrada para a casa que fôra construida para habitação dos noivos.
Diante do terreiro da casa, coberto por uma extensa ramada, cheia de dourados cachos de uvas, começaram os cantos e dansas; e depois da chegada de Idevor, os noivos desceram para vir ao encontro do velho endre, a quem beijaram a dextra, que alli diante de todos consagrou aquelle consorcio unindo-lhes as mãos. Então, de braço dado, os dois esposos dirigiram-se á Cava enorme, dentro de cujas muralhas estavam expostos como em uma Feira franca todos os gados, cereaes, tecidos, objectos de trem domestico e mais delicados presentes, que as populações lusitanas offertavam a Viriatho como seu libertador. A vista d'essa assombrosa homenagem manifestava o quanto Viriatho era querido, e bem explicava a confiança com que á sua bravura tinham ligado os seus destinos aquellas terras, que elle conseguira libertar.
Viriatho e Lisia foram percorrendo a Cava, em que estavam expostos todos os presentes, que representavam as riquezas das regiões lusitanas. Reconhecia-se a região do Norte, entre Douro, Minho e Beira Alta, pela abundancia dos seus milhos, pelo centeio da primavera e do verão, pelas excellentes castanhas. A região montanhosa da Beira Baixa e Traz-os-Montes, pelos seus nedios bois, carneiros e cabras das boas pastagens das encostas e valles; e pelo seu trigo molle e centeio. A região central da Extremadura até ao Tejo, mandava das suas extensas e ferteis landes os trigos molares e rijos, castanhas deliciosas, azeite cordovil e vinhos generosos. A região do sul, Alemtejo e Algarve, appresentava o trigo de inverno, os figos sêccos, tamaras, alfarrobas e castanhas piladas, e porcos de uma creação afamada.
Viriatho, lembrado dos annos da campanha libertadora, não pôde olhar para os cavallos em que vieram os chefes das Contrebias, sem confessar quanto devia ás suas qualidades de resistencia excepcional. E conversando com os chefes que o rodeavam, iam uns e outros notando:
—Este typo galleziano, de cavallos pouco corpulentos, e resistentes ao trabalho, é commum ao Minho, ás Asturias, Vasconia e Navarra.
—E estes mais corpulentos, com grande aptidão para o trabalho de carga e de tiro, fórmam uma variedade castelhana, que se encontra ahi pelo Minho, Traz-os-Montes e Beira.
—Cá para mim, o typo da minha paixão é o betico-lusitano! Estes cavallos das provincias do sul, são elegantes de fórmas e de postura. É olhar para essa raça de Alter, das Lesirias do Tejo e do Alemtejo; incomparaveis.
Em homenagem a ter Viriatho sido na sua mocidade pastor e chefe da Mésta, grandes manadas de bois vieram á feira apparatosa, na representação de cada provincia. Viriatho foi passando vagarosamente diante das manadas, interrogando com enthusiasmo, e caracterisando com os chefes das Contrebias as differentes raças.
—Estes bois vermelhos, amarellos e fulvos, isto é que é proprio para trabalho! as vaccas são extremamente leiteiras. Quem não reconhece n'este gado o Minho e a Galliza?
—Tambem pertence a esta raça galleziana, o barroso, lá do Gerez.
—Estes são da raça Maroneza, robustos, ligeiros, firmes no passo. São ahi das regiões visinhas do Durio.
—Aqui agora os da raça mirandeza; é a que se acha mais espalhada, por Traz-os-Montes, grande parte da Beira e da Extremadura. Tambem por aqui se vêem as suas variedades, a braganceza, a mirandeza ribeirinha, a extremenha. Isto sim, que é raça para trabalho violento!
—É por isso que se tem propagado tanto.
E proseguindo n'este passeio pela Cava, Viriatho e os chefes das Contrebias foram notando os bois de Arouca, excellentes, soffredores, de Lamego, Caramulo, predominando entre o Durio e o Vaccua. E elogiaram a raça ribatejana, brava para campo e corridas; a alemtejana e a algarvia, docil, sobria, côr de castanho claro, e propria para trabalho e engorda.
E na grandiosa feira em que se representava o genio de cada provincia, viam-se tambem as raças ovinas, a bordaleira, que predomina do Minho até ao Tagus; os merinos, de Campo Maior e Marvão, Moncorvo, Mirandella e Villa Flôr; e as estambrinas. Estavam alli as cabras da Serra da Estrella, do mais bello pêlo longo, e as de pêlo raro, todas muito leiteiras. E os porcos Bisare, do Minho, Traz-os-Montes e Beira; com os do Alemtejo, Extremadura, Algarve e margens do Tejo, chamados Romanice.
Via-se alli representada a alfaia agricola, que estabelecia uma transição para os productos industriaes. Era um encanto examinar a perfeição dos arados, cangas, carros, engaços, sacholas, cêlhas, concas, crivos. Destacavam-se mais adiante as louças de barro, de argilas ocreas. Nos trabalhos textis, as linhas ou fios de cozer em meadas alvissimas e novellos; rendas, cortinados, adamascados; as lãs de Portalegre e da Guarda em cobertores; as estamenhas, cintas, pannos, de trabalho domestico do Algarve: os bureis e baêtas listradas, da Covilhã e de Viseu.
Mas o que mais attrahia a attenção de Lisia eram os trajos lusitanos, que davam ao arraial um fulgor pittoresco, de côres e talhos: a Capa de honra, de Miranda; o Gabinardo de Nisa; a Capinha de Barroso e Sobreira; a Castreja de Laboreiro; a Jangadeira de Anha; a Camponeza de Perre, Areosa, Meadella e Ovar; a Ceifeira alemtejana, maiata, poveira; era um espectaculo commovente.
Grupos de mulheres vieram acercar-se de Lisia e offertaram-lhe com alegria presentes especiaes: a roca de freixo ruge-ruge cheia de ornatos; aventaes de Vianna; lenços bordados, segundo o costume, pelas noivas de ao pé do rio Vaccua; rendas de malheiro, de Aveiro, Setubal e Lagos, e rendas de bilro de Vianna, Villa do Conde, Peniche e Setubal.
As mulheres mais abastadas tambem lhe offertaram peças de ouro e prata feitas pelos lavrantes de Gondomar e Fanzeres; eram argolas de beira lisa, arrecadas, botões de amoras, brincos fusiformes, laças, corações de filigrana de ouro.
Foi alli dentro da Cava que se armaram as mezas para o festim nupcial; alli estavam as pipas do vinho palhete, e as fructas com abundancia. A variedade dos trajos e as physionomias dos individuos que representavam a nação desde os Gallaicos até aos Cuneos, davam uma impressão viva e sympathica de um forte povo que tinha uma feição propria, e que queria viver livre. As dansas eram continuadas, simulando combates, e saltos espantosos. Homens e mulheres fórmam bandos, em frente uns dos outros, alternando os versos da Canção, e um Côro dos homens antigos que as presenceavam é que ia repetindo o refrem, em que soava o nome de Viriatho.
Foi á meza do banquete, que Viriatho se ergueu, junto de Lisia, e tirando do seu pescôço a Viria ou Collar de ouro do commando, que até áquelle dia trouxera, o collocou no pescoço da formosa esposa, abdicando alli deante de todos do poder militar que lhe tinha sido confiado, e confinando-se na vida pacifica do lar. D'alli em diante o symbolo da guerra ficava uma joia, adorno da graça feminina; e a arma tornar-se-ia utensilio de trabalho.
O banquete correu animado e sempre cordato, dentro das muralhas da Cava, que era n'aquelle momento um arraial pacifico, nunca visto. Á medida que os grupos se iam levantando da meza, na planura vasta da Cava desenvolviam-se os jogos guerreiros, a vapulação, os saltos, os sarilhos, as luctas athleticas, e ouviam-se brados acclamatorios:
—Viva a Callaecia!
—Viva a Vettonia!
—Vivam os Carpetanos!
—Vivam os Oretanos!
—Viva a Beturia!
—Viva a Cynesia!
N'aquelle momento Viriatho ergueu-se com uma taça de vinho rubro na mão, e unificando todos aquelles gritos, que representavam o espirito separatista das differentes terras, proferiu com a voz timbrada e sonora acostumada ao commando:
—Viva a Lusitania!
A vibração d'aquella voz e d'aquelle nome produziu um delirio indescriptivel; e d'entre aquelles gritos sinceros e fervorosos, provocados por um intimo sentimento de Patria, destacou-se uma outra, distincta e magestosa:
—Viva a Lusitania! e com ella Viriatho, symbolo da sua independencia.
As festas do casamento duraram outo dias, e n'esse decurso nunca deixaram de chegar novas mensagens, e carinhosos presentes que se foram accumulando na Cava. No meio d'aquella multidão alegre levantou-se um rumor enthusiastico, vendo apparecer um formoso touro ladeado por cinco campinos; seguia lento e magestoso, levando enfiadas nas pontas, brancas regueifas de trigo, e em volta do pescoço grinaldas das mais rescendentes flôres. Era o costume dos povos da Extremadura, nas suas festas da entrada da primavera, que votavam a Viriatho esta sua manifestação cultual. Por onde o touro passava, uns lançavam-lhe flôres, outros batiam-lhe no lombo lustroso palmadas de affecto, e a multidão seguia atraz para presenciar a entrega d'aquella expressiva offerta a Viriatho. Os chefes das Contrebias, que assistiam á apparatosa cerimonia, approximaram-se de Idevor, insistindo com empenho:
—Explicae-nos o sentido religioso da Festa do Touro. Porque é que encontramos por todo o territorio hispanico Touros de pedra, como esses de Guisande? Que sentido historico terá a lenda do combate de Mithra com o Touro atravessado pela sua espada, como se vê insculpido em tantas rochas e monumentos?
Idevor accedeu promptamente ao empenho:
—«Um povo, que habita na latitude em que o maior dia do anno é o dobro do menor dia do inverno, desenvolveu-se e enriqueceu na paz dos trabalhos da Agricultura. Para elle o Sol representava-se-lhe á mente como o Touro celeste: e no começo do Anno solar, na efflorescencia estival, symbolisou essa Constellação pelo signo do Touro, a força geradora, a potencia fecundante. Esse symbolo zodiacal do Touro, conservou este nome entre todos os povos civilisados, como expressão de um conhecimento astronomico; e foi tambem objecto de adoração. O nome de Thor, o deus dos povos da Germania e da Scandinavia, designa o Touro, tornado a propria imagem do deus. Os Cimbros e Teutonios, que invadiram a Italia, juravam sobre o boi sagrado, que traziam comsigo. Thor, o chefe de todos os deuses scandinavos, é representado com um sceptro com cabeça de boi. Muitos nomes de povos e de logares foram tomados d'este symbolo do Touro, como o monte Tauros, o Darana, ou Atlas, os Tourisci e Taurini, e a região da Taurida. A Civilisação d'este povo occidental foi propagada ao Oriente, e chamaram-lhe Turan, pela representação do Touro, occupando o primeiro logar entre os quatro Signos do Zodiaco, na casa em que marcam no Céo as Estações solsticiaes e equinociaes.
«Contra esta civilisação do Occidente, que divinisára o Fogo material do Sol, no Touro, combateu o Iran, symbolisando no joven Cavalleiro cercado de raios luminosos, Mithra, o Fogo vivente e espiritual. A lucta do Iran e de Turan foi representada em um combate de Mithra atravessando com a sua espada o Touro; era o antagonismo e o triumpho da civilisação militar sobre a civilisação agricola, sacrificada diante das invasões da força armada, da rapina organisada. A vinda dos Persas à Hespanha foi uma consequencia d'essa lucta; Mithra tambem aqui venceu o Touro, que representava as forças impetuosas da Natureza.
«Mas, apesar d'esse triumpho, podemos exaltar o Touro na sua morte, como no velho hymno:==Do seu corpo nascem as plantas salutares que cobrem a terra de verdura; do seu sangue vem o vinho, que produz a bebida sagrada dos Mysterios, e dos seus tutanos o trigo que dá o alvo pão; do seu espermen derramado provieram todos os animaes uteis.==O Touro será vencido pela Espada, mas esse triumpho só ficará effectivo quando os vencedores por seu turno cultivarem a terra, levantarem cidades, abrirem estradas e coadjuvarem pelo commercio a confraternidade dos Povos. Então a Espada desapparecerá, para que a Cornucopia, esse emblema da Força do Touro, seja o symbolo da Abundancia e da riqueza inesgotavel, restabelecendo no mundo a supremacia do Occidente.»
Mal acabára Idevor de esboçar o poema que se recíta em Hierna, do Touro ou Tarvos, defendido pelas arvores cortadas para não ser agarrado, quando se ouviram estrondosas gargalhadas a pouca distancia. Era um desafio de bebedores:
«Ganhava a palma o que bebesse de um só folego um grande cangirão de vinho.»
Só um vencera, sendo por isso acclamado com a gargalhada estrondosa. Viriatho olhou, e reconheceu Bovecio.
—Bovecio! que eu vi hydropico, e que está agora são como um pêro, e faz d'estas valentias!
Acenando-lhe com amisade, Bovecio veiu respeitoso, e murmurou submisso:
—Bebi na fonte de Ouguella. A vós, senhor, devo eu a saude e a vida. Por vós a sacrificarei com orgulho.
Estavam as festas do casamento no auge do fervor, quando se aproximou de Viriatho Tantalo, que chegára repentinamente, e lhe communicava:
—Emquanto Quinto Pompeu Rufo está dirigindo o ataque contra os Numantinos, Quinto Servilio Cepio destacou-se do exercito romano, e descendo com algumas Legiões para a região Occidental da Hespanha, rompendo hostilidades, quebranta assim o Tratado de Paz ratificado pelo Senado! Acompanha-o Decio Junio Bruto, o que quer dizer, que é uma campanha em fórma.
Viriatho encarou Tantalo com assombro, por vêr que a infamia de Cepio era tão clamorosa como a carnificina feita por Galba, e apenas proferiu a phrase:
—Ainda tenho a minha espada!
E aproximando-se de Lisia, tomou-lhe as mãos com anciedade:
—Vou partir. Sou informado n'este momento que o Consul Quinto Servilio Cepio opéra com um exercito entre a Oretania e a Carpetania! Tenho de ir sustar de prompto a este perigo, e impedir a deslealdade do Consul.
E aproveitando aquellas ultimas horas da festa do seu noivado, chamou os Mil Soldurios que o acompanharam sempre durante os dez annos de campanha contra os romanos, para que passassem palavra a todos os que alli estavam, representantes da Vettonia, da Carpetania, da Oretania, da Callaecia, da Beturia, da Cynesia, para que partissem para as suas terras, que referissem a infamissima deslealdade de Cepio, e que tivessem promptos para a primeira chamada os Terços e Companhias com que faria frente ao Consul indigno que assim rasgava um Tratado solemne.
E depois de ter beijado a face de Lisia, n'uma despedida muda mas melancholicamente expressiva, seguiu em marcha com os Mil Soldurios, avançando em direcção aos Vettões para formar o seu primeiro nucleo de resistencia.
Corriam a trote largo, quando ao passarem por um rio, em que os cavallos foram dessedentar-se, uma pobre lavadeira que estava ahi á beira d'agua, fitou Viriatho com um olhar compassivo:
—Como uma festa tão alegre do feliz casamento se interrompeu, sem ninguem tal cuidar!
Os Soldurios não fizeram reparo do que dizia a pobre mulher, que lavava á beira do rio; continuou murmurando:
—Elle não morrerá em batalha, isso é bem certo! Lisia ficará sempre noiva.
Em breve os cavalleiros se afastaram da margem e precipitaram a carreira, seguindo Viriatho na frente, com a impaciencia de ir defrontar-se com o perigo. E a obscura mulher, continuando a lavar á beira do rio, fallando comsigo, sem ser ouvida por ninguem, dizia na sua credulidade:
—Na minha choupanasinha eu tinha dependurada a Boliana, para me revelar a sorte de Viriatho. Emquanto Viriatho andou dez annos a fio nas guerras contra os Romanos, a Boliana estava sempre verde. Só de hontem para hoje é que reparei que a Boliana emmurchecia. Estou a vêr o seu destino; mas a Espada de Viriatho é invencivel! e Viriatho não morrerá em batalha! São a favor d'elle os agouros... só a Boliana é que está emmurchecendo.
Ia a perder de vista a cavalgada, e lançando-lhe um olhar demorado, murmurou a pobre mulher antes de continuar no seu trabalho:
—Estão-me a lembrar agora aquellas palavras da Canção do noivado! Fallavam de morte, no meio de tanta alegria; não fui eu só que o notei, quando cantaram:
Laço que a união celebra,
Nem mesmo a morte o quebra.
O povo tem a intuição das cousas; na sua inconsciencia apparece por vezes como vidente.
Cepio, por cumulo de sua perfidia, sabendo que o exercito de Viriatho fôra licenceado e que os Terços e Companhias tinham regressado ás suas terras e provincias, levou o descaro affrontoso a talar o solo da Lusitania para se encontrar com Viriatho desarmado.
No seu caminho, Viriatho topou com multidões de gente foragida das cidades invadidas, saqueadas e incendiadas por Quinto Servilio Cepio. Vendo-o passar, em grandes alaridos pediam soccorro, que acudisse a tamanha calamidade; por que o Consul Cepio já estava alli perto, e forçára, com medonhos suplicios, alguns aldeões a declararem o caminho que Viriatho seguira, contando agarrar o general lusitano.
Viriatho, encobrindo a surpreza da noticia, e diante do perigo, resolveu o plano a oppôr-lhe: retirar-se para o paiz dos Vettões, aonde tinha gente firme e da maxima confiança. Era-lhe facil ahi um levantamento em massa. E para não perder tempo, mandou emissarios aos Gallaicos, para acudirem ao attentado inqualificavel com a maior presteza, porque desde o crime de Servio Sulpicio Galba, não se vira perfidia mais clamorosa como esta agora de Quinto Servilio Cepio.
No emtanto, o Consul procurava com o seu exercito Viriatho, e sabendo que elle está próximo da Carpetania, com homens recrutados pelo caminho, mal armados, com foices roçadoiras, machados, chuços e mangoaes, entende que é essa a melhor occasião de atacar o caudilho lusitano e libertar o dominio de Roma na Hespanha d'esse libertador patriota. Diante de um exercito assim consideravel como o de Cepio, Viriatho, com um tino pratico imcomparavel, reconheceu que seria rematada loucura acceitar batalha em condições de tamanha desegualdade. E tirando da propria difficuldade do momento os recursos para uma inesperada defeza, descobriu no terreno aonde todo o exercito se perderia um ponto de que soube aproveitar-se para a salvação. Recuando para um valle profundo, para o qual dava entrada uma garganta estreita, por alli fez passar a pouca tropa de que dispunha, embaraçando com os seus Mil Soldurios, que o exercito romano se aproximasse e o envolvesse. Durante esta passagem para o valle amplo, os Cavalleiros simulavam movimentos como quem se preparava para uma batalha campal; e os Romanos suspeitando que Viriatho os attrahira para alli, porque teria no valle um consideravel exercito sobre que se apoiava, fizeram alta, temerosos da cilada, porque viam através da estreita garganta estendidos ao longo do valle negrejarem os vultos dos Terços lusitanos.
Viriatho prolongou esta situação espectante, para dar tempo a pôr fóra de perigo as pequenas forças do seu commando. Conseguido isso com a maior felicidade, Viriatho, a um signal dado, dispersou-se com os seus Soldurios com uma rapidez inacreditavel, desapparecendo por entre os anfractuosidades do terreno com surpreza dos romanos, que debalde tentaram irem no encalço d'elles em perseguição. Cepio, desesperado por aquelle acto heroico de Viriatho, que assim lhe patenteava a sua superioridade militar, avançou pelo territorio dos Vettões, queimando-lhes as ceáras, derrubando os casaes isolados e pondo a saque as povoações, passando á espada todos os que encontrava armados, dando caça ás guerrilhas que procuravam juntar-se a Viriatho.
A malvadez com que o Consul Cepio procedia contra as povoações inermes, chegando a mandar expôr nas praças pregados em cruzes os lusitanos que lembravam o Tratado da Paz violada, fez reflectir Viriatho, forçando-o a um acto de coragem e dignidade. Participou aos seus companheiros:
—Aos estragos que Cepio está praticando, não sendo possivel oppôr-lhe já uma força armada, que ainda leva seu tempo a reunir, cumpre oppôr-se-lhe n'este momento a força moral.
—A força moral? Objectou Minouro.—Em que consiste n'este transe a força moral?
—Quero lembrar a Quinto Servilio Cepio, que temos um Tratado de Paz assignado por seu irmão Serviliano, e ratificado pelo Senado e pelo Povo. Que pela nossa parte ainda o não infringimos, e que acreditamos na fidelidade de Roma no cumprimento das leis que ella a si se decreta. Que tres dos meus mais leaes Companheiros vão d'aqui ao acampamento de Cepio mostrar-lhe o Tratado de Paz, e declarar-lhe que á magestade d'elle entregamos a nossa defeza.
E voltando-se para Ditálcon, Andaca e Minouro, que o contemplavam silenciosos, disse-lhes com voz firme:
—A vós, como os meus maiores e mais leaes amigos, encarrego de irem ao arraial de Quinto Servilio Cepio appresentar-lhe a respeitosa homenagem dos Lusitanos; e em seguida ás declarações de confiança no Tratado de Paz ratificado pelo Senado, mostrae-lhe esse diploma authentico, trocado entre Roma e a Lusitania.
E entregou as laminas de cobre em que estava gravado o Tratado a Ditálcon, o mais velho dos tres Companheiros, que partiram rapidos para o acampamento romano, levando ramos de oliveira apanhados pelo caminho, por servirem de parlamentarios que pediam paz, ou que iam com intenções pacificas. Os tres companheiros iam conversando:
—Viriatho, com certeza, não sabe quem é Cepio, um dos maiores devassos de Roma? E é com um sujeito d'estes que Viriatho se fia em força moral!
—O Consul não perde esta occasião; e bem tolo será se a não aproveitar para vingar seu irmão Serviliano, forçado por Viriatho a assignar esta Paz.
—São passadas perdidas, estas; por que Cepio sabe que não temos gente, e carrega sobre nós a valer. Oh, se carrega! Nem fôra elle tão estupido como general para cobrir a sua inepcia com este lance.
—Póde ser que as passadas não sejam perdidas! Porque Cepio é homem para entrar em negocio...
—Em negocio?
—Ha ás vezes combinações imprevistas, que dão novo rumo aos acontecimentos.
—E esta occasião é asada para isso.
—O ponto está em sabel-a approveitar habilmente.
O dialogo entrecruzava-se, quando Ditálcon, Andaca e Minouro chegaram ao acampamento romano. As vedetas e guardas avançadas avisaram de prompto; Cepio mandou alguns Cavalleiros para acompanharem até á sua barraca os parlamentarios enviados por Viriatho, imaginando que vinham annunciar-lhe a rendição do Caudilho lusitano, ou em peior hypothese, que Viriatho achando esta hostilidade incompativel com a dignidade militar, lhe mandava o desafio provocando-o para um combate singular, em campo aberto. Porém Cepio afastando da mente esta conjectura que não lisongeava a sua covardia, reflectiu tacitamente:
—Se me apresentarem um tal doésto, recusarei dizendo: Que deixo esses combates singulares aos gladiadores da arena, pagos para espectaculo do povo, sempre ávido de divertimentos.
E mandando entrar á sua presença os tres parlamentarios, divisou-lhes uma expressão de quem antes de fallar já se entendia.
Na ideia em que Cepio os achava, mostrou aos tres parlamentarios um sorriso de affabilidade, e um trato verdadeiramente urbano:
—Direis a que vindes.
—Envia-nos Viriatho.—Assim começou Ditálcon, o mais velho e auctorisado dos companheiros.
—Ouvirei attentamente.
—Envia-nos Viriatho a dizer-vos, que tendo recebido da grande e generosa Roma o titulo extremamente honorifico de Amigo, é-lhe moralmente impossivel, sem pécha de traição, o pegar em armas contra a poderosa Republica. Isto pelo seu lado, dando como prova os factos de estar dissolvido o Exercito lusitano, e ter deposto as armas confinando-se na vida civil pelo seu recente casamento. Quanto a vós, vendo como viestes talando a Lusitania, queimando cidades pacificas, e ainda agora atacaes violentamente os Vettões e Gallaicos, lembra que existe o Tratado assignado por vosso irmão e ratificado pelo Senado e pelo Povo romano, no qual está garantida a paz e tranquillidade da Lusitania. Pedia pois...
Cepio, mal podendo encobrir a colera:
—Não posso ouvir fallar n'esse Tratado assignado por meu irmão, sem que o sangue se me revolva. Perco a cabeça. Ha certas occasiões em que a honra nos prejudica para uma completa e perfeita vingança. Esta é uma das taes.
—Mas, senhor, aqui trazemos o proprio Tratado authentico, para vêres...
Cepio tomou nas mãos o Tratado, olhando-o com desdem, e disse para os tres com um sorriso acanalhado:
—Quando eu acompanhei á Hespanha o Consul Quinto Pompeu Rufo, que está combatendo diante de Numancia, não foi para vir tomar os bellos áres da Lusitania! Esse Tratado nada vale para mim.
—Violaes então a auctoridade da grande e generosa Roma!?
—Quem vos auctorisa a tão monstruosa suspeita?—redarguiu Cepio.
—A letra...
—Qual letra, ou qual careta! volveu Cepio com o seu ár pulha, que combinava de vez em quando com a philaucia de Consul romano. E com ár insolente e confiado continuou, affectando segredo de importancia:
—Os Tratados só têm a força que lhes dão as Espadas. Bem vejo que Viriatho não está bem munido n'este momento, porque me manda lembrar o Tratado. Mas o Tratado... o Tratado já não existe. Quereis saber? Aqui á puridade, e só para nós...
Os tres parlamentarios aproximaram-se de Cepio, sentindo-se lisonjeados pela confidencia que iria fazer-lhes:
—O Senado convenceu-se da indignidade de meu irmão, assignando esse Tratado. Consegui eu mesmo isso; e o Senado concedeu-me secretamente a faculdade de hostilisar Viriatho, mas sómente hostilisal-o...
Minouro fitava o Consul com o maximo interesse; Ditálcon parecia abatido, e Andaca meditava. O Consul, olhando para elles, e pondo-lhes as mãos pelos hombros, continuava:
—Meus amigos! Tenho aqui cartas de Roma dizendo-me, que vem pelo caminho o decreto do Senado mandando continuar a guerra da Lusitania. Quereis vêl-as?
—Basta-nos a vossa palavra! disseram os tres.
—Nem podia deixar de ser assim,—proseguiu Cepio com enfatuado desdem.—Accusarão os vindouros Roma de desleal nos seus Tratados, mas nunca de um governo estupido! Pois era lá possivel que sustentassemos uma guerra desesperada em Numancia, que pertence á primitiva unidade lusitana, e que estivessemos de mãos atadas na parte occidental da Hespanha pelo pacto imposto por um cabecilha, que para nós os romanos nunca deixou de ser o Dux latronum!
—Com que, Roma decreta que se continue a Guerra da Lusitania? inquiriu com assombro Ditálcon.
—Como acabaes de o ouvir.
—A nossa missão parece terminada,—disse Ditálcon, quebrantado o animo.
—Não a considereis terminada,—interrompeu Cepio, tornando a approximar de si os tres emissarios.—Alguma cousa bem combinada se poderá fazer ainda, e depende da vossa intelligencia. Quereis a paz da Lusitania?
—Queremos! accudiram os tres.
—A Paz da Lusitania, mas não a Paz de Viriatho! disse o Consul com orgulho. D'essa tratemos aqui, partindo do ponto que Viriatho é o unico embaraço d'ella, e que emquanto elle viver nunca Roma considerará a Paz da Lusitania senão como uma affrontosa derrota.
—Mas Viriatho é querido do Povo, que o acompanha cegamente.
—É por isso que Viriatho é um perturbador. A sua obra é uma loucura! Quer fazer uma Lusitania restaurada pela unificação de elementos de raças ha tantos seculos extinctas, imaginando Lusonios, com quem nada têm as gerações actuaes.
Ditálcon acenou com a cabeça, em signal de adhesão áquella ideia. E o Consul, vendo que estava sendo comprehendido, voltou-se para Minouro:
—Nós não podemos andar aqui em balanços ao grado dos sonhos de Viriatho; quer fazer uma Patria Lusitana, com um individualismo e autonomia propria, quando entre Lusitanos e Iberos não existem fronteiras separativas, nem de montanhas, nem de rios. É tempo de acabar com estas utopias, tornando a Hespanha uma Iberia unida para acceitar a civilisação de Roma e continuar no occidente a sua obra dominadora.
Minouro regosijava-se com aquellas vistas do Consul, que eram tambem as suas. E Cepio, voltando-se para Andaca, e já com ár determinado a quasi imperativo:
—Para attingir este grande ideal da civilisação romana, do direito, da administração, da ordem publica, é de força que renegueis a Patria lusitana.
E como Cepio notava que os tres estavam entre si de accordo, disse para elles:
—Roma carece das capacidades e energias dos homens de Hespanha. Eu vol-o garanto, Roma encarregou-me de vos conferir o titulo de Cidadãos romanos, e as honras do Patriciado, com accesso aos altos cargos da Republica, e uma somma correspondente de sestercios, se...
Os tres entreolharam-se, e querendo penetrar nas intenções de Cepio, comprehenderam-se todos. Minouro interrompeu a suspensão silenciosa do Consul:
—Effectivamente, Viriatho está-se tornando um embaraço.
—Quando se chega a certo gráo de popularidade, em dados homens torna-se isso um perigo.
—Um acto decisivo vale por annos de lucta.
O Consul volveu então com frieza:
—Mantenho as propostas em nome da Republica romana: Impõe-se n'este momento a necessidade da morte de Viriatho. Roma dá-vos o titulo de Cidadãos romanos...
—Qual de nós ha-de...
—Dá-vos as honras do Patriciado.
—A morte de Viriatho impõe-se...
—Dá-vos o accesso aos altos cargos da Republica, e uma somma de sestercios.
—Tiremos á sorte quem hade matar Viriatho.
O Consul estendeu o seu capacete, lançando dentro d'elle tres pequenos seixos, sobre um dos quaes escrevera==Morte==. Cada um dos tres tirou a sua pedra. A Minouro caiu aquella em que estava inscripto: ==Morte.==
Era noite velha, quando Ditálcon, Andaca e Minouro regressaram ao acampamento de Viriatho. Demoraram-se mais tempo do que o Cabecilha imaginára, revolvendo por vezes na mente que fortes motivos ou rasões politicas se debatiam na barraca do general romano, para lá se deterem. De vez em quando occorria-lhe a conjectura de que Cepio, não reconhecendo a inviolabilidade dos seus parlamentarios, os teria mandado passar pelas armas, ou pelo menos os guardava como prisioneiros, como refens para lhe impôr condições de rendição. N'esta prolongada preoccupação de espirito, e sob a pressão dos inesperados acontecimentos, que só poderiam ser contrabalançados pela energia e pela astucia, Viriatho cahiu em um somno profundo, como aquelle em que se fica immerso antes de caminhar para a morte. Embora profundo, o somno era agitado, como em homem costumado a estar álerta mesmo quando descansava; e n'essa agitação, debatia-se Viriatho com um pezadello, um sonho, que sem differença e por fatalidade coincidia com o que estava prestes a acontecer. Na agitação d'aquelle somno dormido sobre a terra recalcada poucas horas antes pelos cavallos, Viriatho sentia os passos dos seus tres Companheiros, que se aproximavam silenciosamente da barraca em que estava dormindo; um d'elles, Minouro, afastou o panno e entrou escondendo de traz das costas um punhal de dois gumes. N'aquella anciedade cataleptica, Viriatho quiz erguer-se, gritar, mas era impossivel qualquer movimento; em seguida entrou Ditálcon, e Andaca ficou quasi da parte de fóra, mas era ainda visto claramente. Sob o terror do sonho que o opprimia, Viriatho viu Minouro curvar-se sobre elle, e erguendo ao ár o braço com o punhal descarregar o golpe...
N'esse momento de extrema angustia acorda, e entre a illusão e a realidade, sentiu um golpe vibrado fortemente no pescoço; antes que o sangue lhe embaraçasse a voz, Viriatho, abrindo os olhos attonitos, pôde proferir as palavras:
—O meu maior amigo? Minouro...
Os borbotões de sangue que lhe encheram internamente o peito e respingaram pelos pannos da barraca, não deixaram que podesse mais exprimir-se, e ficou exanime, arquejando, até ao ultimo alento, passando assim, horrorosamente, de um sonho tremendo, em que Viriatho, pela sua lealdade, não ousaria acreditar, para a realidade tragica e affrontosa, que ia actuar como uma eterna calamidade sobre o futuro da Lusitania.
A morte de Viriatho fez-se com rapidez e segurança; os tres Companheiros da Trimarkisia sahiram da barraca sem ruido, e simulando ordens recebidas de Viriatho montaram nos seus cavallos e partiram á desfilada para o arraial romano. Cepio estava dormindo; um Cavalleiro foi acordal-o, e dizer-lhe:
—Morreu Viriatho!
Quinto Servilio Cepio, voltando-se sobre o lado direito para continuar o somno, deu ordem ao Cavalleiro:
—Que esses entes abjectos esperem lá fora, até que seja dia.
Viriatho era sempre o primeiro que percorria o acampamento; a sua presença era como um toque de alvorada. N'aquelle dia, que despontava luminoso e sereno, não apparecera; como faltavam tambem os seus tres Companheiros, facilmente imaginaram os Mil Soldurios que iria reconhecer algum fôjo ou desfiladeiro para organisar uma emboscada contra o exercito consideravel de Cepio. Mas o sol erguia-se; era dia claro, e a barraca do Caudilho conservava-se fechada. Occorreu a ideia de verificar se estaria cahido por doença; o que estava mais perto levantou resoluto o panno da barraca, e viu o vulto de Viriatho estendido em cima da relva, sobre póstas de sangue coalhado; e recuando com espanto:
—Está morto Viriatho! Apunhalado, apunhalado!
Aquelle brado sôou como um estalido de raio, quando, ao perto, fende o ár ambiente; o trovão foi o rumor propagado entre os Soldurios e por entre os Terços e Companhias, que formavam agora o pequeno exercito de Viriatho.
—Apunhalado Viriatho! Morto Viriatho!
Para a barraca do general correram todos aterrados. Não compareceram Ditálcon, Andaca e Minouro; eram os unicos que faltavam. Sem esforço reconheceram que esses, a quem Viriatho considerava como os seus maiores amigos, é que o tinham apunhalado traiçoeiramente, covardemente, emquanto elle dormia!
Corriam lagrimas de desespero pelas faces dos velhos camaradas de Viriatho n'esta campanha de dez annos pela independencia da terra lusitana.
A barraca foi desmantelada, e ficou patente aos olhos de todos o corpo inanime de Viriatho estendido como se tivesse passado instantaneamente do somno da vida para o da morte; via-se-lhe o golpe profundo do pescoço dado por mão certeira, a que teria succumbido rapidadamente e quasi sem agonia. Sobre o sangue derramado em cima de que jazia, e a seu lado, estava estendida a espada, que o acompanhava sempre, espada invencivel, á qual attribuiam poderes maravilhosos. Vendo a espada, e não se atrevendo nenhum dos Soldurios a tomal-a na mão, diziam entre si:
—Agora comprehendemos as vozes que corriam: Viriatho não morreu em batalha; assim lhe estava vaticinado.
—Mas o oraculo, que lhe parecia favoravel, deixára no vago a hypothese atroz, de morrer apunhalado á traição pelos seus melhores amigos!
—Antes vencido e morto na refrega, no sacrificio voluntario da vida por uma ideia, do que esta sorte miseranda.
E por todo o exercito, em grupos, que se formavam em tamanha desolação, levantavam-se alaridos, prantos de terror e de magoa; bem reconheciam que aquelle desastre era a perdição de todos, e que sem o chefe prestigioso achavam-se á mercê do Consul romano, e para muitos annos abafada a resistencia da Lusitania. Na angustia em que todos se viam, a pouca distancia do exercito de Quinto Servilio Cepio, o desespero da situação causava uma apathia, uma obnubilação para planear a defeza urgente.
N'este momento, afastando os grupos que cercavam o corpo de Viriatho, chegou Tantalo, um dos bravos em que mais confiava o Caudilho, e collocando-lhe a espada entre as mãos, cruzada sobre o peito, exclamou:
—Morreu o teu corpo, mas permanece imperecivel o teu ideal. Esta Espada transmittirá o esforço, truncado pela traição, áquelle que cedo ou tarde servir a aspiração de uma Lusitania livre.
E voltando-se para o exercito, que parecia reanimado por estas palavras:
—O que temos a fazer agora, e primeiro que tudo, é prestar a Viriatho as honras do funeral.
Emquanto se davam as ordens para realizarem de prompto, com a maior solemnidade, a lugubre cerimonia, no arraial dos romanos levantavam-se cantos de acclamação triumphal, que eccoavam de quebrada em quebrada:
—Acabou a Guerra da Lusitania. Morreu Viriatho! Morreu Viriatho.
No arraial de Quinto Servilio Cepio a inesperada noticia da morte de Viriatho propagou-se com uma rapidez inaudita; perguntavam entre si os Legionarios:
—Quem seria o valentão que se atreveu a ir atacar pessoalmente aquelle colosso?
—Morreu em duello Viriatho!?
—Só por traição...
—Quem foi o romano astucioso?
—Quem teve essa gloria?
—Não ha gloria em matar á traição.
—Não foi nenhum romano; fôram lusitanos, e amigos de Viriatho.
—Custa a crêr.
—Elles estão ahi junto da barraca de Cepio para receberem o premio promettido.
—Então, foi Cepio que os comprou? que os aliciou para a traição?
—Sim! Nada podendo pelas armas, alcançou pela astucia o que nunca poderam conseguir Vetilio, Plancio, Nigidio, Fabio, Quinccio e Serviliano. É velho o ditado, mas sempre verdadeiro: Quem não póde, trapacêa.
E n'estas conversas entre os Legionarios, a curiosidade aguçava-se estimulando alguns d'elles para irem vêr como eram as caras dos tres miseraveis que tinham, ao serviço de Cepio, assassinado o general que Roma tanto temia. Os Legionarios que passavam e encaravam com Ditálcon, Andaca e Minouro, iam dizendo entre dentes:
—Ia jurar que aquelles homens não são lusitanos!
—Viste aquelle mais alto, e mais velho? Se não é um africano branco, berber, mesmo ao pintar!
—E o outro? o loiro, parece celta.
—O da cara redonda é que se assemelha mais ao typo luso; mas assim roliço, e puchando para a gordura... é com certeza ibero.
Afastaram-se á pressa, por que o Consul Quinto Servilio Cepio apparecera á porta da sua barraca de campanha; alguns ouviram o som confuso das palavras trocadas entre elle e os tres traidores, palavras atropeladas, e d'entre as phrases destacando-se as que Cepio proferiu com accentuado e esmagador desdem:
—Roma não tem por costume dar premio a soldados que estrangulam o seu general.
As trombetas abafaram o resto da phrase, tocando á formatura das Legiões e á parada geral do exercito. Emquanto esteve o exercito consular em fórma, Cepio conferenciou com os Centurios, estabelecendo o plano a seguir depois da morte de Viriatho:
«Primeiramente intimar ao exercito lusitano a rendição peremptoria e incondicional; agora privado de chefe, é de todo impossivel a resistencia.
«Depois d'isto, que Decio Junio Bruto avance com uma parte do exercito romano e penetre na região da Vettonia e vá ao encontro dos Callaicos, que tratam de prestar soccorro ao exercito, conforme o pedido que lhes fizera o Caudilho.
Os Cavalleiros romanos, que chegaram com a intimação affrontosa de Cepio ao arraial lusitano, podéram vêr e contaram as cerimonias grandiosas que se praticaram no Funeral de Viriatho. D'entre os Mil Soldurios que sempre o acompanharam, uns encarregaram-se de vestil-o magnificentissimamente com as mais ricas e festivas roupas que trajava em tempo de gala, quando animava os jogos celebrando as derrotas romanas. Amarraram-lhe os cabellos na testa, como se fôsse para entrar em combate, pondo-lhe na cabeça a triplice cimeira e o capacete de couro; pendente do pescoço o pequeno escudo concavo, preso por corrêas, e em uma das mãos um punhal largo ou faca de matto, estendida a seu lado uma lança de ponta de bronze e gancho para não deixar fugir a prêza. Outros Soldurios acarretaram para cima de um alto penhasco que estava na corôa da montanha, grandes mólhos de rama de pinheiro, de faias e carvalhos, formando alli uma estupenda pyra, sobre a qual, com veneração, fôram processionalmente collocar o corpo rigido de Viriatho. Parecia um soberbo throno a pyra; e logo que cada um dos Mil Soldurios foi junto do cadaver dar-lhe o derradeiro adeus, dividiram-se em grupos de duzentos, e póstos em frente uns dos outros, como quem vae entrar em combate, esperando que fôsse lançado fogo á enorme pyra. A chamma começou a atear-se, e assim que ella irrompeu intensa, principiaram as dansas guerreiras em volta da pyra, em fórma agonistica, batendo os escudos, floreando as lanças, brandindo as espadas e entrecruzando-se vertiginosamente, como se esse tripudio sanctificasse mais o acto lugubre, continuando ininterruptamente, incansavelmente, até que a ultima labarêda, tendo combusto o corpo de Viriatho, se apagasse por não ter mais que queimar.
E emquanto aquellas turmas de duzentos cavalleiros dansavam em volta da pyra, dois outros grupos conservavam-se balançando-se como a accentuar o rythmo de um Canto, em que celebravam as virtudes e o heroismo de Viriatho. O que esse Côro generoso e heroico vociferava, chegou na voz dos tempos a penetrar na historia:
PRIMEIRA TURMA:
De obscura estirpe nascido,
Fôra em criança pastor:
Certo prenuncio e augurio
Que um dia, por seu valor,
Intelligencia e denodo,
Guiaria o Povo todo.
SEGUNDA TURMA:
Nos transes mais arriscados,
A astucia e penetração
Dos seus planos de batalha,
Descobria a salvação!
Vimol-o em Tribula, quando
Teve a Viria do commando.
PRIMEIRA TURMA:
Por trazer o Collar de oiro
Não deixou de ser affavel!
Dava a todos egualdade,
Contra Roma era implacavel!
Nas Legiões consulares,
Mandava ao Orco aos milhares.
SEGUNDA TURMA:
Roma offereceu-lhe um dia
Da Lusitania a Realeza!
Simples, modesto no trato,
Sceptro e purpura despreza,
Fazer livre a Patria sonha;
Por ella a morte é risonha.
Este grupo de Soldurios unindo-se, começaram uma carreira vertiginosa em volta da pyra; e os que até áquelle momento andavam em volteio ballucinante pararam subito, cantando por sua vez, divididos em duas filas:
PRIMEIRA TURMA:
Dominou pelas victorias!
Mas nunca sua vontade
Altiva se exerceu fóra
Da Justiça e da Equidade.
Sempre as prêzas repartia;
Nada para si queria.
SEGUNDA TURMA:
Valente, audaz, destemido,
No seu viver era sóbrio!
Commodidades e luxo
Tinha-os por vil opprobrio.
Para a liberdade attreito,
Tinha o duro chão por leito.
PRIMEIRA TURMA:
Triumphava nos perigos
Pela astucia e pela audacia!
Cansou Roma, a Paz lhe impondo
Pela instante contumacia.
Manietou os tyrannos
Na campanha de dez annos.
SEGUNDA TURMA:
N'esses dez annos de lucta,
Á sua voz tudo corre;
Uniu-nos pela vontade
Que a Patria lusa soccorre,
A nossa Patria ditosa,
Que, firme, libertar ousa!
AS QUATRO TURMAS:
E Roma, sempre vencida,
Só achou o assassinato,
Pela perfidia affrontosa
Para vencer Viriatho!
Vergonha á Cidade eterna,
Que pela traição governa.
O Canto do soberbo Côro acabou pela estranha Vociferação, condemnando a traição execranda de Roma contra Viriatho emquanto dormia. Areytos e Tripudios funerarios acabaram simultaneamente; e emquanto se abriu uma vastissima cova para arrojar as cinzas de Viriatho, procedeu-se ao sacrificio das victimas consagradas aos manes do general insubstituivel. Cortaram as dextras dos prisioneiros romanos, que eram quasi todos iberos e levantinos, e foram mortos muitos cavallos. Dedicados amigos de Viriatho combinaram entre si o suicidio religioso, para o acompanharem além da morte, sendo alli enterrados sobre as cinzas d'aquelle com quem contavam encontrar-se em um melhor mundo. Subitamente apresentou-se á beira da cova Bovecio, e exclamou com voz firme:
—Ao bom conselho de Viriatho devi o voltar á vida, de uma doença mortal. É de meu dever acompanhal-o na morte.
E vibrando em si proprio uma punhalada, cahiu borbotando sangue na larga cova aberta. Muitos dos Soldurios de Viriatho, levados pela mesma vertigem, proclamaram o suicidio religioso. Então Andergus, o espadeiro de Toletum, propoz:
—Que se suicidem tantos amigos e companheiros de Viriatho, quantos os annos que duraram os seus combates contra Roma.
Avançaram para ao pé de Andergus os Maioraes da Mésta, Edovius, Togotes, Uvarna, Suttunus, Semesca, e alguns chefes de Contrebias, taes como Aernus e Candiedo; e começaram entre si um duello desvairado, jogando-se golpes de morte, cada qual procurando não ser o ultimo sobrevivente. Andergus foi o primeiro a cahir por terra. Mas a cerimonia inaudita teve de ser interrompida por um successo impressionante: dois Cavalleiros romanos, em nome do general Quinto Servilio Cepio, apresentaram-se intimando a rendição do exercito lusitano.
—Nunca!—bradaram os primeiros que ouviram a intimação affrontosa.
—Não se pactúa com um general que julga chegar á victoria pela traição.
E os que iam suicidar-se pela confraternidade heroica, decidiram:
—Morramos, sim, mas em lucta desesperada contra o infame Consul.
E n'aquelle momento, lançando a ultima pá de terra sobre a sepultura de Viriatho:
—Para a frente! Tantalo, Tantalo seja o nosso general, para continuar a campanha.
Depois que Tantalo tomou o commando do pequeno exercito lusitano, alli mesmo em conselho armado assenta o plano a seguir para evitar o combate com Cepio:
—Temos dois recursos: ou debandar o exercito, indo cada um de nós recolher-se a Numancia, e coadjuvarmos Salóndico, que resiste com valentia a Quinto Pompeu Rufo; ou seguirmos em marcha sobre Sagunto, que está em poder dos Romanos, é verdade, mas cujas cercanias acham-se povoadas por Turdetanos.
—Para Sagunto! Para Sagunto.
A marcha fez-se com precipitação, de modo que Cepio, vendo que os Lusitanos não se rendiam, e dando ordem para o ataque immediato, encontrou o campo abandonado. Mandou circular em todas as direcções para descobrir o caminho que os lusitanos seguiam; e facilmente lhes seguiu o encalso, alcançando-os proximo das vertentes de Palancia e do Turia.
Tantalo não pôde evitar o combate; reconhecia que era impossivel a victoria, mas a derrota certa havia de custar muito sangue aos romanos. E voltando-se para os Soldurios, que no funeral de Viriatho se ajuntaram dois a dois para luctarem em duello até cahirem mortos para acompanharem ao outro mundo o seu chefe, exclamou:
—Agora é que vale a pena morrer. Continuamos ainda a glorificação de Viriatho.
O arranque com que os Lusitanos receberam o ataque do exercito de Cepio foi de molde, que o Consul, seguro da victoria, julgou melhor, ainda assim, não se aventurar ás contingencias do momento; e antes de dar o golpe decisivo, e dispostas todas as forças para o desfecho tremendo em que seriam passados á espada, mandou dizer a Tantalo:
—Posso offerecer-vos a Deditio. Quero ser generoso com os bravos que não temem a morte.
Tantalo explicou aos seus companheiros o que era a Deditio concedida pelo general romano:
—Se nos entregarmos como Dedititios, ficamos subditos de Roma, e como taes ninguem nos poderá reduzir á condição de escravos vendendo-nos nos mercados como bestas de carga. Como Dedititios tem de nos ser dado um territorio para habitarmos como Colonos.
A ideia de nunca serem escravos mais do que tudo sorriu áquelles cansados lusitanos; e então Tantalo mandou entregar a sua espada a Cepio como signal da rendição.
Cepio desejava apagar a mancha indelevel da deslealdade com que rasgou o tratado de Paz, e procurando attenuar o odio da perfidia com que fez assassinar Viriatho, deu aos trôços da gente que formava o exercito lusitano o territorio extenso e fertil do valle banhado pelo Turia, para o colonisarem pacificamente.
Passados dois annos, Decio Junio Bruto, denominado por antonomasia o Callaico, por ter derrotado os quarenta mil gallegos que vinham em auxilio de Viriatho, confirmou os privilegios d'aquelles dediticios, e á cidade que haviam fundado e já se tornava florescente deu o nome de Valencia, consagrando o heroismo dos destemidos lusitanos.
Estavam acabadas as guerras de Viriatho, mas não estava pacificada a Hespanha lusitana. Decio Junio Bruto tinha transposto o rio Lima, e entrado na Galliza victorioso, refugiando-se a pobre gente nas cavernas do Monte Medulio. Dentro em Numancia, o chefe celtibero Salóndico resiste tenazmente contra os generaes romanos; elle tinha a valentia de Viriatho, mas faltava-lhe a astucia e promptidão em inventar uma cilada. Roma não o temia tanto, embora diante d'elle combatessem successivamente Marco Pompilio Lenas, Caio Hostilio Mancino, Marco Emilio Lepido, Lucio Furio Philo, Quinto Calpurnio Pisão, até Cornelio Scipião Emiliano.
Pela indomavel bravura com que Salóndico sustentou Numancia, chegou a correr entre o povo a voz mysteriosa, que era em suas mãos que estava a Espada de Viriatho, a invencivel espada. Verdadeiramente quem sabe aonde está occulta essa espada, que synthetisa a energia para a independencia da Lusitania? Sabe-o Tantalo, que a salvou de perder-se com generoso intuito, na rendição junto do Turia.
Passaram-se esses terriveis acontecimentos, que deixarão inolvidavel o anno de DCXIV; Lisia, sómente ignorava no seu retiro em Vacca a sorte da campanha, e nem suspeitava a morte de seu esposo. Mas a demora de Viriatho, a falta de novas, o silencio de todos em volta d'ella, o ár de ternura com que illudiam as perguntas que fazia aos que passavam, lançaram Lisia em uma melancholia deprimente. E ouvindo cantar uma rapariga gaditana debaixo do seu miradouro, notou que insistentemente lhe chamava:
—Sempre noiva! a Sempre noiva.
E quando Lisia disse para seu pae, o velho druida Idevor:
—O coração adivinha-me, que Viriatho está morto!
O velho respondeu com firmeza:
—Viriatho não podia morrer em batalha! Se não apparece, é porque anda lá por esses montes da Celtiberia, ou talvez pelo sul da Lusitania, ou Cynesia, organisando a resistencia. Não desesperemos!
Lisia, cansada de incerteza, teceu uma corôa de Verbena, a erva da segunda vista, e collocou-a na cabeça. Desde esse instante lhe occorreu o pensamento de consultar os oraculos para saber a verdade completamente, ainda que lhe causasse a maior dôr. E o oraculo mais sacrosanto e irreparavel nas suas revelações era o das Pedras baloiçantes, os Loghans, visitados na região dos Cynesios, junto dos quaes nunca ninguem se atrevia a ficar durante a noite.
Lisia, acompanhada de alguns ambactes ou serventuarios de condição livre, partiu com seu pae até á Ilha sagrada de Achale, aonde se recolheu o velho druida, e ella continuou a jornada com impaciencia, para ouvir a sentença definitiva dos Loghans, na região procurada por tantos crentes. Não tinha descanso emquanto não soubesse a verdade, mas verdade que decidia da sua felicidade, de toda a sua existencia:
—Viriatho está vivo? Viriatho estará morto?
E seguindo em temerosa jornada por desertos infestados por lobos, e por cidades occupadas por subditos de Roma, Lisia caminhava incolume, como no somnambulismo da concentração de uma saudade inconsolavel.
Contam-se maravilhas d'essa região dos Cynetas, na qual se ouve, segundo dizem, o esturgir dos raios ardentes do Sol quando se afunda nas aguas do Oceano, ao fim do dia. E tambem relatam viajantes audaciosos, que esses blocos de ambar amarello, de impagavel belleza, que o mar arroja ás praias, são a solidificação d'esses raios solares bruscamente mergulhados nas aguas. Mas entre tantas maravilhas, a que mais deslumbrava os espiritos é a dos Loghans, os penedos baloiçantes, que revelam o desconhecido a quem se aproxima d'elles e os interroga.
Logo que Lisia chegou ao paiz dos Cynetas, mandou que os seus ambactes esperassem no povoado, dirigindo-se ella sósinha para os dois grandes fraguedos sobrepóstos, que estavam no caminho do Promontorio Sacro, e se avistavam de longe, como dois nimbos opacos e caliginosos no horisonte. Aquelle aspecto infundiu-lhe um terror momentaneo; mas avançando sempre chegou ao pé dos dois gigantescos penhascos, para os quaes se subia por saliencias, como imperfeitos degráos formados pela erosão atmospherica. Um d'esses penhascos, e o maior, estava assente no solo, cercado de matagaes e dos pedregulhos que o tempo ia destacando d'elle, conforme o fendiam os raios, a agua gelada nas suas cavidades, e as raizes de mirrados arbustos. O outro penhasco apoiava-se sobre este, e apesar de ser um megalitho espantoso, podia-se notar que fôra separado por uma clivagem natural, e que tendo-se as juntas da estratificação corroido de fóra para dentro, ficou um ponto que escapando ao phenomeno da erosão, é aquelle em que oscilla levemente o Loghan ou calháo enorme.
Lisia, subira para o coruto do monolitho, que permanecia immovel; sentou-se cansada, n'aquella solidão e amplidão immensa, contemplando o már ao longe, e vendo o sol sumir-se no occaso. Depois enegreceu o ár, as sombras da noite cobriram tudo em volta, e Lisia, comprehendendo a situação da vida sem aquelle que tanto amava, ergueu-se resolutamente, procurou o vertice do penhasco baloiçante, e interrogou:
—Está vivo Viriatho?
A rocha ficou immovel. Lisia quiz ainda repetir a pergunta, mas entrando em um desespero de presentimento, inquiriu:
—Está morto Viriatho?
A rocha oscillou levemente para o lado esquerdo da posição em que se encontrava Lisia. Ella, como se vibrasse em si um ultimo golpe, renovou a pergunta, repetindo-se a mesma oscillação sinistra. Lisia ficou n'uma immobilidade attonita, n'um lethargo inconsciente, como se tivesse cahido d'aquella enorme altura, e alli jazeu a noite longa, insensivel ás rajadas frias, prostrada em terra, debruços, como esmagada pela impressão abrupta. A luz do sol é que a despertou; tinha voltado à vida, não a do seu dourado sonho, que alli acabára, mas a do soffrimento que não póde prolongar-se.
No desmoronamento total da sua felicidade, Lisia lembrou-se de seu pae, o velho druida; queria communicar-lhe a revelação tremenda, chorar com elle a morte de Viriatho. Quando chegou á Ilha sagrada de Achale, aquelle refugio quasi celeste pareceu-lhe um desterro, e a Torre redonda consagrada ao Deus innominato appareceu-lhe como uma prisão erguida sobre o mar. Idevor, logo que viu a barca de couro dirigir-se para a Ilha, veiu receber Lisia com o côro das nove Donzellas, que volviam a acompanhal-a a ella, a—sempre noiva.
Lisia conheceu a intenção; e abraçando o pae, em uma d'aquellas angustias para que não ha lagrimas, proferiu apenas:
—Está morto Viriatho! Disse-o o Rochedo baloiçante.
—Tambem o sei!—devolveu o velho druida, encostando a cabeça da filha sobre o peito.
—Quem vos trouxe a noticia?
—Veiu aqui Tantalo, o companheiro de Viriatho n'esses dez annos de campanha gloriosa contra os Romanos; veiu entregar-me a Espada de Viriatho, que conseguiu salvar...
—A Espada invencivel?
—A Espada sempre invencivel.
—Mas, Viriatho não morreu em batalha... Viriatho foi atraiçoado!... Foi atraiçoado com certeza!
O velho druida, sustendo-a n'aquella hallucinação clarividente, disse para Lisia:
—Atraiçoaram-no os seus tres melhores amigos, Ditálcon, Andaca e Minouro! Comprou-os o Consul Quinto Servilio Cepio, o mais inhabil dos generaes romanos; só assim teve a ignobil victoria.
—E a independencia da Lusitania, d'esta desditosa Patria nossa amada?
—Completamente perdida!—respondeu o druida desalentado.
—Perdida, mas não para sempre,—proferiu Lisia, com um accento de vivacidade e esperança.—Quero vêr a Espada de Viriatho! é o que me resta do Esposo com quem estive sempre espiritualmente unida.
E pae e filha encaminharam-se para o subterraneo da Torre redonda, em que se guardava o thesouro da Lusitania. Lisia reconheceu a Espada:
—É esta, a mesma que eu lhe cingi no ultimo dia da festa do nosso noivado, dizendo-lhe com um beijo:—Regressa vencedor! Viriatho cahiu apunhalado quando dormia: não foi vencido em batalha, não. Não regressou mais ao seu lar, aos braços da esposa que o esperava anciosa; veiu aqui ter a sua Espada, que eu contemplo, que eu beijo...
E como se estivesse em um delirio suave, ao levar a Espada aos labios, o brilho da lamina de aço reflectiu-se nos olhos grandes e rasos de lagrimas, e operou-se no seu espirito uma miragem do futuro, como se conta na velha lenda dos Espelhos de Salvação. E n'um arrebatamento prophetico e assombrada, continuou fitando a lamina fulgente, exclamando:
—«Desvenda-se-me o futuro. Eu vejo, eu vejo... Vão passados sete annos. Numancia ainda resiste corajosamente ao cêrco de Cornelio Scipião Emiliano; e que loucura a do destemido Salóndico! quiz fazer uma sortida ao acampamento romano, e lá ficou morto. Agora é que Numancia, sem chefe, tambem está perdida. Numancia não se rende; os Romanos entram na cidade e ficam assombrados diante do suicidio heroico da população. Morreram livres.
E passando a mão delicada pela lamina da Espada, para restituir-lhe o brilho empanado pela respiração offegante, tornou a contemplar o quadro do futuro:
—«Não bastou a traição de Cepio, nem a queda de Numancia para assegurar o dominio de Roma na Hespanha. É aqui na Lusitania que Sertorio vem encontrar o espirito de revolta para resistir contra as facções que o exilaram de Roma. É com o valor dos Lusitanos de que se rodêa, e que sonham com a sua independencia, que Sertorio derrota os generaes que Roma contra elle envia. Mas, ai! Empunhará a sua mão a Espada de Viriatho, que lhe foi confiada... e tal como Viriatho, cae tambem assassinado por um seu companheiro!...
Depois de um grande silencio, como se contemplasse acontecimentos incomprehendidos, como são esses da queda do Imperio romano, das invasões dos Barbaros do norte, das luctas contra os povos da Africa, Lisia, passando a mão pelos olhos ennublados, contemplou novamente a lamina scintilante:
«A Espada de Viriatho, longo tempo sepultada n'esta ruina immensa, está outra vez descoberta; eil-a brandida por um braço vigoroso e joven. Uma era nova se me ostenta! vêjo novos Symbolos, novos trajos; outra vez desencadeamento de raças de encontro umas ás outras! N'esta lucta dos dois Symbolos, a Cruz e o Crescente, eu vêjo a Espada de Viriatho nas mãos do joven Cavalleiro sustentando a independencia d'este territorio que vae do rio Minio ao Durio! É um pequeno trato da antiga Lusitania, mas que importa! é o fóco d'onde irradiará o impulso para se reconstituir a obliterada nacionalidade.
«Por quarenta annos a Espada de Viriatho é brandida pelo corajoso Cavalleiro, que vae estendendo o territorio lusitano ao Monda; já chega a Scalabis; conquista a bella cidade que está no lez do Tagus. Não virá longe o dia, em que esse territorio alcance as fronteiras do Anas, e se complete com a região dos Cynesios.
«A Lusitania revive, e ergue-se altaneira diante da Iberia, que procura absorvel-a na sua unificação. A Iberia serve-se do meio ardiloso de uma herança real, e recorre á invasão. Por entre a Ala dos valentes Namorados vêjo a Espada de Viriatho empunhada por um novo Caudilho! D'onde viria para a sua mão essa Espada? Eu vejo: entrega-lh'a o armeiro de Scalabis, que a desenterrou do chão em que se transforma o ferro no aço mais puro!»
Então Lisia, voltando a lamina refulgente, contemplou com mais assombro:
—«A Lusitania livre, depois de reconstituida no seu solo, reata a tradição dos antigos navegadores liguricos, e lança-se á descoberta das Ilhas do Mar Tenebroso, e tocando os dois continentes, vae fundar um novo Imperio lá aonde o sol se alevanta! É ainda a Espada de Viriatho na mão firme do seu Capitão terribil, que cimenta esse Imperio em bases inabalaveis, em que se mantem por seculos! Para que prescrutar tanto o futuro? A Lusitania revive...»
Lisia entregou a Espada de Viriatho ao velho druida para a guardar no thezouro secreto da Ilha de Achale; e cansada da visão presciente caíu em um somno cataleptico, em que ficou por muitas e muitas horas extactica, inerte, semi-morta, insensivel. A dôr inconsolavel divinisava-a; tinha na face uma expressão sobrehumana.
Lisia recobrou os sentidos, como se um golpe subito a ferisse; levou a mão ao peito, e ergueu-se respirando com anciedade, olhando em volta de si para descobrir que pezo enorme era o que a comprimia e abafava mortalmente! Sempre a terrivel realidade, a perda irreparavel, a desolação sem esperança. Lembrava-se do funeral de Viriatho, da fogueira da gigantesca pyra, e da ventura inexprimivel de acompanhar o Esposo confundindo-se com elle na mesma chamma, identificando o seu espirito no mesmo ár ambiente, eternisando-se na energia restituida ao universo!
E pensando n'esta voluptuosidade da morte, acarinhou-a a ideia do suicidio, notando quanto mais felizes fôram aquelles Companheiros de Viriatho que tinham jurado a confraternidade para a vida e para a morte; esses em um duello desvairado bateram-se sobre a sua sepultura até cahirem exangues e ficarem alli enterrados conjunctamente, em um sacrificio de amor, sob o mesmo solo! E ella, como esposa de Viriatho, embora sempre noiva, poderia continuar a viver? Lisia considerava a vida como uma degradação, um vegetar da animalidade sem motivo. Queria arrojar de si esta carga, tornada incomportavel pelo tedio da propria existencia.
Começára a estação hibernal; noites caliginosas e longas tornavam-lhe as insomnias hallucinantes. Grandes tempestades passando por sobre a Torre redonda da Ilha de Achale consolavam-a nos seus rugidos de colera e desespero. Ondas alterosas e alvissimas arrojavam-se d'encontro ás rochas sobre que estava assente o vetusto monumento.
Lisia começou a passar pela lembrança todos os lances do seu primeiro e santo amor: como Viriatho lhe tomou as mãos no alto da Torre redonda, como lhe poz o cinto de ouro, como lhe entregou no dia do consorcio a Viria do commando; como a beijou suavemente, e o abalo subito em que as festas do casamento fôram interrompidas pelas palavras:—Cepio rasgou o tratado de Paz com a Lusitania!—e a brusca despedida de Viriatho para nunca mais!...
Ao chegar a este ponto, a imaginação de Lisia obscurecia-se, cahia em deliquio, em um goso de dôr destructiva. Arrancando-se a essa deliciosa angustia, reflectiu:
—O noivado ficou interrompido. E porque não hade ser finalisado? A noiva deve acompanhar o esposo; é pela morte que eu tenho de chegar á vida infinda com Viriatho; tanta delonga estupida, que parece irresolução covarde...
E logo que foi noite cerrada, desceu ao thezouro da Ilha sagrada, e mesmo na escuridão, e com o tino de quem sonha acordado, tomou a faixa de ouro com que Viriatho a cingira, apanhou tambem a Viria que o esposo lhe lançára ao pescôço, e subindo apressadamente a escadaria, foi galgando sempre até chegar ao ultimo andar da Torre redonda. A escuridão era espessissima, cortada a intervallos pela luz fulva e instantanea dos coriscos. Lisia sentia um goso inexprimivel n'esta harmonia entre a tempestade exterior e a agitação convulsiva da sua existencia moral. Cingiu com recolhimento e lentidão o Cinto de ouro; envolveu o pescôço eburneo e esculptural com a Viria, aquella mesma com que Viriatho, fazendo-a sua esposa, se entregára á vontade d'ella, e—para sempre.
E olhando para aquellas joias, que tanto lhe diziam, no momento em que um relampago se reflectiu n'ellas, ainda murmurou:
—Assim eu estava, quando elle partiu para sempre; assim mesmo vou ao seu encontro.
Caminhou resolutamente para o parapeito da Torre redonda, no baixo da qual marulhavam as ondas arrebentadas nas restingas, deixando na escuridão tetrica a claridade de uma extensa phosphorecencia; e sobre esse sudario nitido da ardentia, precipitou-se com toda a sua insondavel amargura a formosa semnothêa, sepultada nas aguas revôltas, que na piedade immanente na natureza fizeram que o seu corpo não fôsse profanado e nunca mais fôsse visto.
Idevor não tardou a dar pela falta da filha; recompoz de prompto a scena do seu desapparecimento, e longamente fitou o mar, para vêr se descobria fluctuando o corpo d'aquella que ainda o prendia á vida. Não podia conter-se no ambito estreito da Ilha sagrada de Achale; e escondendo todos os signaes com que se podesse descobrir o thezouro da Lusitana, abandonou a Torre redonda, já perturbado da rasão, dementado, exclamando:
—Ella vaticinou que a Lusitania renasceria! Aonde? Aonde? Aonde? N'esse territorio que começa nas margens do Minio até ao Durio. É ahi, é ahi que eu quero encher-me de esperanças. Ahi, na Terra portucalense, ficará sepultada a Espada Gaizus, o talisman de Viriatho.
Depois da morte de Viriatho deu-se funda depressão no espirito das tribus lusitanas, por effeito de um phenomeno astronomico inopinado: appareceu no céo um cometa, ao qual pela fórma da sua cauda o povo chamava a Espada flammejante, movendo-se em sentido retrogrado ou oppôsto ao movimento das estrellas! Na crença popular ligavam o seu apparecimento com a terrivel calamidade da morte de Viriatho, e perguntavam a Idevor se a Espada flammejante não seria por ventura a espada Gaizus. O velho endre respondeu:
—Em breve deixará de vêr-se esse signal no céo; mas em um periodo de setenta a setenta e seis annos será o seu reapparecimento. Então a Lusitania luctará de novo e com vantagem pela sua independencia...
De certo Idevor fixava o periodo da reapparição do cometa retrogrado já conhecido por algumas observações uranographicas dos velhos annaes da raça navegadora; a revivescencia politica era apenas uma aspiração, uma esperança que ficava germinando nas almas.
O pobre velho seguia pelos caminhos com os longos cabellos brancos revôltos pelo vento e pela chuva, com os pés já ensanguentados, para as margens do Minio, longe, muito longe. Os que o viam passar, diziam com piedade:
—Anda como doido o velho endre.
E correndo agitado pelos caminhos e matagaes, parecia que ia em procura de alguem, pela anciedade com que prescrutava em redor de si, ou fitava o horisonte distante. E aos que o interrogavam, na carreira ininterrupta e errante, respondia á pressa:
—Ando á procura da Cerva branca. É ainda a minha esperança; porque a Cerva branca hade um dia dar que fazer aos Romanos.
E o desgraçado velho seguia incansavel ao vento, á chuva, desgrenhado, absorto no anciado delirio de encontrar a Cerva branca.
Entretanto Cepio contava com a glorificação do Triumpho na sua proxima chegada a Roma por ter acabado habilidosamente com as guerras de Viriatho. Aquelle que tinha derrotado os exercitos consulares durante dez annos successivos, não morreu em combate, mas passou do somno para a morte. Este transito não fôra previsto pelo Oraculo, e d'isso se gloriava Cepio. Pensando em levar cativos lusitanos para lhe cercarem o Carro triumphal, mandou agarrar o velho druida; quiz vêl-o pessoalmente. A figura do ancião era imponente, pelas barbas esqualidas, pelo olhar hallucinado, pela cabeça olympica; mas Cepio conheceu logo que Idevor estava louco, pela preoccupação com que fallava:
—Ando á procura da Cerva branca. A Lusitania surgirá rediviva, lá do Minio até ao Durio, só depois de apparecer a Cerva branca.
O vencedor romano não pôde obter do velho outras palavras; e mandando-o embora com desdenhosa indifferença, disse para os que o rodeavam:
—Elle está dementado: crê no renascimento da Lusitania! Um doido assim iria deslustrar-me o Triumpho.
O velho encarou o Consul, como a amaldiçoal-o:
—O Senado aproveitará a infamia, mas hade renegar-te; e serás encarcerado! soffrerás o exilio! e as tuas filhas... serão arrastadas ao prostibulo!
Cepio fez que não percebera o funesto agouro e correu com o velho.
E riram-se alvarmente da esperança no apparecimento da Cerva branca. Ninguem comprehendia o sentido do estranho vaticinio; mas d'ahi a setenta annos, Sertorio, que estava exilado e prófugo na Africa, em consequencia das proscripções de Sylla, era chamado pelos Lusitanos, que o fortificaram na lucta com o seu odio inextinguivel e com a sua immorredoura esperança. As Guerras civis tinham sido previstas por Catão, no discurso contra Galba, no senado, no anno de DCIII, como consequencia da diminuição das attribuições dos Censores. Sertorio foi a primeira victima; sabia o que era a perda de uma patria.
A Cerva branca que lhe offereceram os Lusitanos quando o chamaram da Lybia, seguia-o por toda a parte, coroada de flores, sem temor da soldadesca; mostrava-a como um dom de Hertha, consultava-a como oraculo, derrotando todas as legiões romanas, pelo prestigio tradicional da Cerva branca sobre a multidão que o acclamára por chefe. Como Viriatho, vencia todos os Consules, sendo como Viriatho tambem morto pela traição.
FIM