The Project Gutenberg eBook of O Marquez de Pombal á luz da Philosophia

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Title: O Marquez de Pombal á luz da Philosophia

Author: Angelina Vidal

Release date: November 14, 2008 [eBook #27255]
Most recently updated: January 4, 2021

Language: Portuguese

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*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK O MARQUEZ DE POMBAL Á LUZ DA PHILOSOPHIA ***


 

O MARQUEZ DE POMBAL

Á LUZ DA PHILOSOPHIA

 

 

 

 

ANGELINA VIDAL

 

O MARQUEZ DE POMBAL

Á LUZ DA PHILOSOPHIA

 

 

 

 

LISBOA
IMPRENSA DA VIUVA SOUSA NEVES
65, Rua da Atalaia, 67
1882

 

 

 

A

 

CAMILLO CASTELLO BRANCO

 

 

 

 

ESCRIPTOR ILLUSTRE

Estamos em pleno jubileo.

Cada época traz o seu cunho caracteristico de exagero, e tristes dos que se affoutam a soltar qualquer nota discordante no concerto da lisonja publica.

No meio d'este anemico paiz vibra ainda uma corda vocal, a ultima--é a maledicencia. Este facto pathologico é porém de modo tal inoffensivo, que minuciosamente estudada a sua etiologia, conclue-se que por unica therapeutica deve applicar-se-lhe o despreso.

Insultar é uma necessidade tão inherente ao organismo patrio, que se o indigena não houvera a quem fazel-o, insultar-se-hia a si mesmo.

Não se combatem principios; oppõem-se abusos a abusos; á communhão da Liberdade não se admittem cerebros livres; tem de annullar-se a consciencia, em honra do opportunismo.

Para ser-se immortal pedem-se as credenciaes aos monarchas da opinião, e inscreve-se o pretendente nos clubs do elogio mutuo; não é economico, porque importa a dignidade dos candidatos; mas custa menos do que fazer-se eleger deputado de qualquer partido.

Eu porém affasto-me dos microscopicos fetiches, para venerar tão só os privilegiados do talento, e tenho bastante valor para arrostar com os desdens do enfatuamento ignaro. Democrata convicta, e evangelisadora do livre exame--em ethica, sciencia, e politica, manifesto amplamente as opiniões do meu espirito, com a altiva independencia de quem se habituou a superar os diques verminosos da sórdida mesquinhez.

Por isso estendo fraternamente a mão ao glorioso mestre da patria lingua, e saudando o fecundo engenho do athleta da litteratura portugueza, offereço-lhe despretenciosamente estes humildes versos.

Lisboa 30 de abril de 1882.

Angelina Vidal.

 

 

 

I

Um côro de ovações se eleva norte a sul;
No seio do paiz, palpita a festa ingente,
Mil eccos de alegria ondulam pelo azul,
E a vaga popular circula vivamente.
Que enorme vibração aos tristes galvanisa?
Que fado deslumbrante a Patria considera?
Una rasgo de valor que um mundo synthetisa?
Um estro que irradia a Gloria pela esphera?
Um Genio que assombrasse o coração do mundo?
Talvez Dante ou Camões, talvez um Diderot,
Ou Bacon, ou Voltaire o destructor profundo,
Feurbach ou Galileo, Danton, Goethe, Rousseau?
Oh não! A Patria canta o athleta da Realesa,
O Hercules pujante, o pulso sem rival
Que punha até por terra as leis da Naturesa,
Mas que tambem erguia a fama Nacional.
Thuribulisem pois o nome do gigante,
Incensem sem descanço o esteio da corôa,
O facho da instrucção, o genio penetrante,
Que de um montão de cinza ergueu nova Lisboa!
Cantae, Democracia; o espirito do bravo,
Que o nivel fez rolar por sobre a Sociedade,
Prostrando o jesuitismo, ou libertando o escravo,
Quebrando á inquisição as garras da maldade.
Lisonja, ergue a Pombal um hymno de louvores!
Realça o que é brilhante, esconde o que é medonho!
Cerrae a porta á Historia, ó novos pensadores!
O mal não existiu; é falsidade, é sonho!

II

Nove horas; a cidade acorda sob um ceu
De christalino azul, de transparente veu;
Movimenta-se a pouco a gente nas viellas,
Adornam-se com arte as donas e donzellas,
E os sinos vão chamando os fervidos catholicos
Aos festejos do templo, e aos canticos symbolicos.
Entoa o padre a missa, e os crentes, com respeito
Se curvam brandamente; habita em cada peito
A prece fervorosa, os orgãos gemem notas
Que fazem palpitar as candidas devotas.
Ha como que um sereno e doce mysticismo
Que leva os corações, em nuvens de idealismo,
Aos páramos do ignoto, aos vagos paradisicos,
Onde a crença cultiva os lirios metaphisicos.
Nas praças, os peões, laboram tristemente,
E n'uma gelosia um vulto sorridente
Espreita cuidadoso ao longo dos caminhos.
Passa ás vezes um nobre envolto em bons arminhos,
E alinham-se na rua, á porta dos conventos,
Os novos com preguiça, e os velhos sem proventos.
De repente porém, um intimo ruido
Se escuta assustador na entranha da cidade!
Depressa lhe succede horrivel alarido,
E um turbido baquear, em toda a extensidade.
Oscilla cada predio, e cahem pelo sólo
Desfeitos como em pó os rijos edificios;
E a misera Lisboa, afflicta, pólo a pólo
Vomita o seu terror, por igneos orificios.
Fogem as mães tremendo, os filhos junto ao seio,
E correm a acolher-se aos templos do Senhor;
Mas eis que ao grande affan do seu materno anceio
Ahi se expõe um quadro escuro e aterrador.
Abobadas cahindo em cima dos altares,
E o padre surpreendido em meio dos cantares,
Sem voz, sem movimento, a par de uma madona
Que ha muito se ostentava em seu painel de lona.
Creanças a chorar, columnas em pedaços,
Soluços do estertor, e aqui e além uns braços
Sob as pedras surgindo e estrebuchando a custo!...
Nas ruas e jardins não é menor o susto.
Rodou rapidamente o nivel da desgraça!
Só resta enorme entulho onde era alegre praça,
E os tectos ao cahir nos crepitantes lumes,
Erguem linguas de fogo, em cálidos queixumes.
Estala o velho tronco ao cedro gigantesco,
E paira em tudo o horror mortifero e dantesco.
E para cumular o quadro de afflicções,
O Tejo, saccudindo os pardos turbilhões,
Devora febrilmente as ruinas rescaldantes,
E lambe o morto, e o vivo, em saltos delirantes,
E abrindo o coração, sedento de vingança,
Abysma o forte, o fraco, o velho, a mãe, a creança!
E como se o terror gerasse a crueldade,
Para opprobrio veraz da crúa humanidade,
No cahos tumulento anda essa immunda plebe
Que rouba, que assassina, e apenas se apercebe,
Sob as nuvens de fumo e pulsações do fogo.
E o rei e o seu ministro?
                         Accaso n'esse jogo
Da horrifica tormenta, o ceu de azul purissimo
Ousaria esquecer um rei que é fidelissimo?
Quem sabe se terão cahido do vaivem?
Salvou-o Jehovah--el-rei estava em Belem?
...........................................
Depressa chega ali a nova deploravel;
Aterra-se a nobresa; o facto lamentavel
Envolve em lucto e pranto innumeros varões.
Entreolham-se a tremer, e logo as orações
Se elevam para o ceu como espiraes de dôr.
El-rei branco de susto, os filhos com pavor
Percorrem os salões, idiotas e perplexos.
Mas fulgem n'um olhar uns vividos reflexos,
E um vulto erecto e firme encara D. José;
«Marquez, murmura el-rei, castigo de Deus é
«O horrivel cataclysmo! E agora, que afflicção!
«Que havemos de fazer em tal destruição?
«Arde toda a cidade, e estão vasios os portos»
--Salvemos quem viver, demos á terra os mortos.--
Responde friamente o imigo da utopia.
E longe de invocar a Deus ou a Maria,
Expede ordens de cunho e toma arduas medidas,
Alenta sem delonga as perigadas vidas,
Corta os braços á chamma, e tolhe o passo á fome;
Liberta o infeliz da angustia que o consome,
E ahi onde o devasso um roubo perpetrava,
Ahi a forca bruta á morte o condemnava.
.........................................
Annos depois surgia a nova capital
N'um throno que assentava em bases de christal.

III

Que borburinho é esse? O Porto anda revolto?
        Que foi que se passou?
Como é que invade a praça o povo irado e solto,
        Se tanto laborou
El-rei, por tel-o em bens e liberdade envolto?
Se ha tanto beneficio, exforços tão visiveis
        Em prol da causa publica,
Como podem brotar reprovações sensiveis,
        Como é que a ideia nublica
Não acha na Rasão um dique d'impossiveis?
«O povo é desgraçado,» affirma a humana Historia,
        «Mataram-lhe o Direito,
«E forçara-n'o a seguir a negra sorte ingloria,
        «Calado, contrafeito,
«Pagando sem gosar, tecendo a alheia gloria!»
Um dia, de repente, ergueu-se a reclamar;
        A ignara populaça.
O monopolio rouba-a, era mister luctar!
        E logo, a plebea raça
Reclama valorosa, em vez de supplicar.
Mas o ministro excelso havia já disposto
        Das cousas do alto-Douro;
Vivesse embora a Patria em noute de desgosto.
        Os cofres tinham ouro...
Que importa se a Rasão traz lagrimas no rosto?
Por isso se indignou o esteio da Realesa,
        E os raios da vingança
Fabrica muito á pressa, e envia com prestesa
        Á popular esp'rança
Fundada na intuição das leis da Naturesa.
E após, hórrido insulto á crença humanitaria!
        Por um delicto falso
Estende-se no Porto a rede sanguinaria,
        E o torpe cadafalso
Arranca friamente a vida ao triste paria!
Creanças sem vigor, rojadas sobre a rua,
        Forçaram-se a seguir
O sacrificio immano, onde o valor recua,
        E a ver a mãe subir
A via da amargura, e escarnecida e nua!
E um homem venerando, um martyr impolluto
        Que a Consciencia chora,
O bom Juiz do Povo, um bravo resoluto,
        Sereno como a aurora,
Lá foi tambem lançado á morte, ao chão do lucto!
O que ha que justifique o horror de taes supplicios?
        Que espirito medonho,
Não treme ao ver a morte, açoutes, e os exicios?
        Não julga quasi um sonho
Que um homem só, profunde infindos precipicios?
Quem ha que não palpite em plena indignação
        Olhando um nobre velho
Manchado pela affronta, exposto á impia acção.
        Pondo um lastro vermelho,
Na terra onde semeia a intima afflicção.
Quem ha que não suspire, ao ver a mulher casta,
        Violada em seu pudor,
Pendida n'uma forca, e desnudada, e gasta
        Nas ancias do terror,
Maldita pelo algoz, que á sepultura a arrasta?
Se o Homem fôra um monstro, um tigre em sangue absorto,
        Comquanto fôra filho,
Havia de exprobar ao potentado morto
        O mortuario trilho
Que abriu com turvo affan no coração de Porto!
Se a Mãe fosse mais fera ainda que a leôa,
        Comquanto fosse Mãe,
Havia de olvidar o astro de Lisboa,
        Para escutar além,
O brado perennal que pólo a pólo sôa!
Ahi tens, ó Povo Luso, o heroe que agora incensas;
        Proclama-o democrata!
Mas pesa-lhe a injustiça, os odios, e as sentenças
        E dize se arrebata
Um nome que traduz as mais crueis offensas!
............................................
E o titan que esmagava assim, rude e febril,
Os braços da nação, os braços productores,
Os ferros destruia ao escravo no Brasil,
E baixava ao commercio os olhos protectores!
Infando laborar! Contradicção tamanha,
Que põe n'um ser vidente um tumultuoso abysmo,
E nos traz á memoria a flórida montanha
Que engendra no seu flanco o igneo paroxismo!
Homem! Dizes-te o ser Supremo do Universo
Quando és synthese só das leis da creação!
És tu quem dás a luz, e estás na sombra immerso,
Proclamas o Progresso, e dás a Destruição!
Exhaures toda a força em busca da Verdade,
Penetras com valor nos seculos remotos,
E quando julgas ver a eterna claridade
Surge-te frente a frente um turbilhão d'ignotos!
Que vezes a inconsciencia ao Genio se avantaja!
Que infrene marulhar na logica dos factos!
E quando a Aspiração em nuvens de ouro viaja,
Ha de chegar emfim aos desenganos latos.
Buscae por toda a esphera a perfeição preclara;
O Sol vigora a planta, o Sol requeima o fructo;
A chuva banha o solo, a chuva innunda a ceara,
A Gloria cria a Fama, a Gloria tece o lucto!
A Ideia rasga a entranha á mãe commum, á Terra,
E tira-lhe do ser, minerio, luz, sustento;
Mas rola sobre o campo o carro eril da Guerra,
E põe um muro espesso em face ao Pensamento.
Os cyclos do passado, erguendo o reposteiro,
Mostram em toda a linha o Bem e a Crueldade;
E o Homem preso á rocha, é destructor e obreiro
Que agora incensa á treva, e logo á Liberdade!
Nos dramas do Universo ha sempre imitações
O fado é perennal, a fórma é transitoria;
Cada época produz idoneas mutações
E ha pontos de contacto a escurecer a Historia.
Se um dia a raça humana attinge os lisos portos
De seus nobres ideaes, então, forte e sublime,
Escalpellando á luz, heroes, fetiches mortos,
Ver-lhe-ha nos corações crescer a flor do crime.
E então, em vez de honrar ministros, generaes,
Em vez de pôr n'um templo os grandes assassinos,
Dará seu preito eterno ás leis universaes,
E á Sciencia e Liberdade os mais sonoros hymnos!

IV

Vem rompendo a manhã, dizem as aves
Seus canticos tranquillos e suaves.
As perolas da aurora, sobre as flôres,
Parecem lamentar ignotas dôres;
E a voz do pegureiro, nas collinas,
De envolta com as phrases purpurinas
Com que o espaço saúda a Humanidade,
Tem um cunho supremo de saudade,
Tem um ecco de angustia tão sentida,
Como a corda de uma harpa, que, partida
Expande pelo ether seus lamentos.
Vem rompendo a manhã, nos movimentos
Dos multiplos anceios luminosos
Que agitam sem cessar a humana arteria,
E transformam as lides da Materia,
Parecem destacar-se uns sons dolosos,
Que a Naturesa arranca das entranhas,
E que vibram no valle e nas montanhas.
E comtudo nos floridos caminhos
Balouçam brandamente os doces ninhos,
E reflectem nas limpidas correntes
As nuvens azuladas, transparentes,
Como um espelho brilhante da Consciencia,
E as varzeas em virente florescencia
Espalham pelo ambiente seus perfumes.
Mas escutam-se ao longe alguns queixumes,
Mas um grande alvoroto se aproxima,
E parece que a aurora desanima,
Que os doces rouxinoes tremem de susto,
E pende a Naturesa o roseo busto!
Quem é que vem então por essa estrada,
Quando apenas desperta a madrugada?
Que significa pois tanto tropel,
Que quer dizer a angustia tão cruel
Que pulsa ahi no seio universal?
É talvez um factor do negro mal,
Algum gigante audaz, filho da noute,
Algum Attila ou Nero, rijo açoute
Das coleras divinas, e illusorias,
Que vem correndo as turvas trajectorias
Do vicio, do rancor, do odio insano,
Até rasgar o peito ao ser humano!
.................................
É um cortejo que segue... quem será!?
        Já passam muito perto...
Que numerosos são! Que vejo!... Ah!
        Com passo frouxo e incerto
Caminha uma mulher, em desalinho,
        Mais pallida que arminho.
De um lado traz o padre, e de outro o algoz
        De ventas dilatadas
E a estupida expressão de um ser feroz.
        As brancas mãos ligadas,
Veem roxas das auras matutinas,
        E das correntes finas.
Cinge-lhe o corpo esvelto a alva infamante
        Dos tristes condemnados,
E ás vezes solta um ai tão lancinante,
        Que tremem magoados
Os proprios corações mais rancorosos,
        E os monstros mais odiosos.
Vem seguida dos filhos e do esposo,
        Santissima cohorte
Que vae cahir tambem no seio iroso
        Da vingativa morte,
Que o ministro do rei, fero e iracundo,
        Arroja sobre o mundo.
Chegam junto do poste; ahi pára tudo.
        O algoz, sem mais respeito
Bate no hombro á martyr; fica mudo
        O feminino peito,
Varado pela intima agonia
        Da infrene tyrannia.
«Levanta essa cabeça, infiel traidora!
        Ordena-lhe o carrasco;
«Tu serás a primeira, que és senhora!
        E com medonho chasco
Procura, um por um, os instrumentos
        Que servem aos tormentos.
«Vê marqueza de Tavora--era a triste!
        «Que esplendidas tenazes!
«Sabes quanta virtude aqui persiste?
        «São para os teus rapazes.
«Applico-lh'as na cara, mesmo em braza,
        «E faço--taboa raza!
«E as torquezes? São rijas de uma vez!
        «Agarram como o brêo!
«Hão de arrancar os olhos ao marquez,
        «Meu amo e senhor meu;
«E emquanto lhe correr o pranto amargo
        Protesto que o não largo!
«Fidalga sem vergonha, olha os cutellos
        «Com que eu lhe parto as pernas.
«Agarro-lhes depois pelos cabellos,
        «E, lanço-os nas cisternas.
«Porém seu coração traidor, e infausto,
        «Dos corvos será pasto.
«Vá! Morre descançada, morre em paz,
        «Que eu mato os teus tambem!
«Vão todos para o monstro Satanaz!
        «E tu, que és boa mãe,
«Deves nutrir os jubilos eternos
        «Por vel-os nos infernos!
«Mas ouve, ouve mais; teu corpo amado,
        «Sou eu que o amortalho
«Nos farrapos do opprobrio e do peccado,
        «E em cinzas o retalho.
«E para mór despreso demonstrar
        «Atiro-as logo ao mar.
«Recae-a em tua fronte todo mal,
        «Infamia e maldição!
«Sepulte-se n'um torpe lodaçal
        «Teu limpido brazão,
«E fique para sempre o nome teu
        «Mais vil que o de um judeu!»
A martyr, com a vista erguida ao espaço
        Soffria silenciosa.
Rodeia-lhe o pescoço o frio laço
        E a victima formosa
E ao ver fugir da vida os aureos brilhos
        Só diz «Filhos, meus filhos!...»
Ó mães! Que dôr suprema isto traduz!
        Que turbida epopeia!
Ó povo soffredor, fóco de luz
        De onde irradia a Ideia,
Medita; o que ha de mais cruento e féro
        No coração de um Nero?!
Como é que desce tanto a raça humana?
        Como é que um Povo culto
Supporta resignado a mão tyranna
        Que lhe arremessa o insulto,
E deixa ir esmagando sob as lousas
        As filhas, mães, e esposas?
....................................
Horas depois os martyres morriam
        Ás mãos do indigno algoz;
Boatos na cidade percorriam
        Porém a plebea voz
Produz-se eternamente no vazio...
        Por isso... não se ouviu!
El-rei dava audiencia; ao seu ministro
        Fel-o marquez e conde;
O premio era brilhante mas sinistro,
        E a Historia ainda esconde
Os prantos que verteu, porque o terror
        Suffoca os ais á Dôr!
Comtudo alguma cousa se levanta
        A protestar com ancia;
Alguma aspiração sublime e santa,
        Em firme reluctancia
Descobre ás gerações os negros rastros
        Dos portentosos astros.
E chama-se Consciencia á eterna força,
        Que os seculos correndo,
Sem que a linha traçada alguem contorça,
        Pharoes vae accendendo
Nos angulos do turvo precipicio,
        Onde faz ninho o vicio.
Em nome d'essa força que defende
        O fraco, o pobre, a creança,
Gigante luminoso que se estende
        Da morte á loura esp'rança,
É que eu reprovo a impia atrocidade
        Da velha sociedade.
Sou democrata e mãe; procuro um norte
        De Liberdade e Gloria;
Acceito essa revolta ardente e forte
        Que faz tremer a Historia,
Porém condemno o immano desvario
        Que mata a sangue frio!
...........................................
Que a lei arvóre o facho augusto do Direito,
E vá depois cravar nos intimos do peito
        As garras da Inclemencia,
Que a Lei fulmine a infamia e seja mais infame
Que avilte e prostitua, e contra a ignavia clame,
        Revolta a sã Consciencia!
Se o misero infeliz que pelas praças dorme
Calcado pela dôr, medita o crime enorme
        De procurar viver;
Se presa da afflicção divaga pelas ruas,
Sem casa nem familia, ao frio, as costas nuas,
        E os prantos a correr;
Se a esposa que implorou á sociedade honesta
Um meio de vencer a fome, e a sorte infesta,
        Se encontra repellida;
E para alimentar um filho, irmão ou pae,
Arranca o seu diadema, e sobre as lamas vae
        Manchar-se, prostituida.
Se o orphão que vegeta a par do vicio ignobil,
Mais tarde é para o vicio o nauseabundo mobil,
        Se rouba e prostitue,
Como ousa revoltar-se a sociedade vil,
Se é ella quem provoca, e desbragada e hostil,
        Perverte e não instrue?
Que pensamento assiste aos monstruosos codigos?
Se os papas, deuses, reis, no crime hão de ser prodigos,
        Como é que a lei castiga
Um ser vidente e bom, que aclara a escuridão
Com o facho viril da leal Revolução?
        Como é que a Lei intriga?
Como é que ella protege o roubador agiota,
E arrasta na enxovia o desgraçado illota
        Que a fome fez baquear
Nos pelagos do mal? Ó sociedade absurda!
Á voz da Naturesa, a lei ha de ser surda
        E o odio ha de julgar!
.........................................
Matar uma mulher que é mãe, que é democrata,
Assassinar sem dó a esposa aristocrata,
        Junto dos filhos seus,
É por egual cruel, é por egual maldito!
E havia de fazer chorar todo o infinito,
        Se acaso houvera um Deus!
Por mim, que offerto o culto ao que é sereno e puro,
Que adoro o Bem sublime, e odeio quanto é duro,
        Que não conheço a fé,
Protesto contra a morte infausta de Antonietta,
De Sophia, Leonor, Rolland, gentil athleta,
        De Tavora e Corday!
A mão que referenda o crime da injustiça,
Quando podia erguer da deleteria liça
        Um sol ou um jasmim,
Assigna, sem pensar, o perennal deslustre
De um seculo, de um nome, ou de um paiz illustre,
        Da Humanidade emfim!

V

Como ha de pois a Historia olhar esse Gigante,
Que tinha em si a morte, o Bem, a luz e o crime?
Que ora se eleva a um mundo altivo e coruscante
E logo gera um mal que a Gloria não redime?
Elle era um diplomata, um patriota, um merito,
Podia ser tambem um nobre benemerito
Levando o Povo Luso ás concepções do Justo,
Se em vez de ser feroz, de ter um genio adusto
Voltasse ao sentimento um coração suave.
Julgou que ser tyranno era o mister mais grave
        Do ministro de um rei!
Fez um docel de sangue ao tribunal da Lei,
Poz um manto de lucto aos hombros da Justiça,
Pisou raivoso o clero, e foi ouvir-lhe a missa,
E como affirmação da ideia monarchista
Dos nobres ao plebeu traçou a rubra lista.
Como ha de pois a Historia olhar o athleta ousado?
Pesando com criterio os factos do passado,
Seguindo passo a passo o luminoso accesso
        Da Sciencia e do Progresso.
........................................
Ha muito que na Europa o sopro percorria
Da clara discussão da sã philosophia.
Desde o seculo doze, a duvida christã,
Buscava escalpellar o craneo de Satan.
Pierre d'Abelard examinara a crença,
E via já na fé uma utopia immensa.
Breve, Thomaz d'Aquino, imigo da Rasão,
Antepunha ao Progresso a fera inquisição.
Mas Bacon, um titan, repelle a fé-cahotica,
        E dando luz á Optica
Recebe uma intuição da Sciencia positiva.
Então larga a rotina, e só na lide activa
Depoz a base firme á ideia demonstravel.
Foi elle um ser vidente, e concebeu provavel,
Toda a gloria vindoura; em seu nobre labor
Meditava o progresso enorme do vapor;
Mas como em sua frente a infamia não assoma,
Foi um martyr da Sciencia, e victima de Roma,
A eterna desbragada, a eterna prostituta
        Que as gerações enlucta.
Mas o germen vingou; surgiu em breve a imprensa,
Excelso meteoro, a realidade immensa
Que faz de Guttemberg um centro luminoso!
Ia baquear em terra um deus medonho e iroso;
Ia a Ideia pulsar na mente e força do Homem!
        E como as trevas somem
Os raios de um bom sol, assim o novo invento
Abria par em par a estrada ao Pensamento!
O Genio eternisava em breve a Pomponace,
E o forte Rabelais batia face a face
A escolastica, e a lei theocratica e politica,
Bem como o abuso annexo á concepção juridica.
A Patria lusitana, a joia do Occidente
Á Europa mostra então o poeta Gil Vicente,
Que açouta o clero hostil com látegos de risos,
E nem sequer poupando os santos paraisos.
Na praça era o judeu sujeito a atrocidades;
Na côrte, D. Manuel escarnecia os frades.
Havia pois de um lado a força da rotina
E do outro a Ideia incuba a preparar a ruina.
Mas n'isto um sobresalto os cerebros sacode,
Roma chega raivosa, e vê que nada póde.
Copernico affirmava a terrea rotação,
Perdia o seu prestigio a santa religião!
Forçoso era impedir a affronta d'essa Idéa!
O sabio ponderou, que outr'ora na Chaldéa
Se havia já mostrado o movimento á Terra;
Porém a Curia segue em furibunda guerra,
        E condemnou-lhe a obra.
Mas eis um luctador que a força audaz redobra,
        E com coragem fria
Procura no infinito as leis da astronomia.
Inventa o telescopio e applica-o logo ao ceu.
E o mundo olha assombrado o insigne Galileu,
        Que segue passo a passo
O trajecto eternal dos mundos pelo espaço.
Se ha nome que de Gloria esplenda no universo,
        É o d'esse velho nobre
Que o clero punge e arrasta, em dôr, e pranto immerso,
        Mas que ao Genio descobre
A esteira do futuro, a via dos heroes
Que põem no Progresso os rubidos pharoes!
A quéda do Oriente, estremecer convulso
Havia dado á Ideia um vigoroso impulso,
Civilisando a mente e pondo em toda a parte
O gosto da Poesia, e pelos brilhos da arte.
Então o aureo paiz dos inclitos varões
Produz um sol gigante o esplendido CAMÕES,
A synthese do Genio, um estro democrata
Assombro dos Ideaes, talento que arrebata!
Que bella actividade! Um cyclo era uma escola
        De sublimado intento!...
Porém vê-se descer o manto de Loyola
        Por cima d'esse advento,
E logo a aurora cae nas garras do terror,
E logo a humana gloria exprime no estertor
        Que a prostra um assassino!
Comtudo avança o Bem! Luthero, Huss e Calvino
        Feriram mortalmente
O abuso, a tyrannia e o repugnante agente
        Das penas infernaes,
Geradas no rancor das hyenas clericaes.
A lucta assim travada é turbulenta e audaz!
De um lado impera altivo o monstro Satanaz.
E do outro a aspiração das comprovadas cousas.
A aurora veste lucto, a terra veste lousas,
E o sangue corre a flux no precipicio escuro...
Mas elle fecundou os germens do Futuro!
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Keppler, Newton, Brahé, tinham desfeito o mytho
Da creação divina; os livros do infinito
Já tinham revelado, em phrases de planetas
Da grande lei sidérea as deslumbrantes metas.
Descartes ampliára as lucidas conquistas
E profundára o abysmo ás vãs ficções deistas;
E como o jesuitismo erguesse um throno ao mal,
Surgiu-lhe o valoroso e hostil Blaise Pascal,
Com satyra cortante e lucido criterio,
Traçando-lhe no Tempo o eterno cemiterio.
Desfibrava-se a pouco a lenda theologica,
E punha-se a attenção na historia geologica,
Gognel, Jussieu, Buffon, tinham rasgado a entranha
        No valle, e na montanha,
Á esphera onde se agita o Genio e o desatino.
Seguiram-lhe o trajecto um Pallas e Arduino,
        E todos, sem sentir,
Fizeram o passado esmorecer, ruir.
A antiga historia china oppunha-se á utopia
Da lenda de Moysés; a sciencia cada dia
Os cerebros levava á nova experiencia,
Que em breve provaria á forte intelligencia
        A historia da Materia
No mar, na vida, e morte, e sons, e luz etherea.
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Brotava na Consciencia a aspiração politica;
Deixara a Inglaterra a fórmula mephitica,
        E em todos os sentidos
Se pressentiam já os turbidos ruidos.
Voltaire e Diderot entravam no futuro.
        Desmoronando o muro
Que ainda protegia a treva e o fanatismo.
Ficou pois fulminada a crença e o mysticismo!
Nenhum abrigo havia aos golpes do alvião
Vibrados pela firme e rija Evolução.
Os reis, mesmo a sorrir abriam o jazigo,
Onde ia sepultar-se o clero, o seu amigo,
Sem verem que aluida a base do edificio
Que tem por cima o odio, e em baixo o precipicio,
Desaba fatalmente em multiplas bastilhas.
Tinham sulcado o oceano as portuguezas quilhas,
E o genio dos heroes deixara esteiras certas
Á bella exploração das ricas descobertas.
No clima luxuriante, e terras do Equador
Eram a flóra e fauna os ninhos do esplendor,
E o Homem que estudava, o Homem já sabia
Que Deus era ignorante, e muito, em Geographia.
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N'este mar revoltoso é que se eleva o homem
Que uns coroam de luz, outros na campa somem!

VI

O marquez de Pombal, producto do seu meio,
Trazia na Consciencia o salutar anceio
        Das santas cousas bellas.
Mas um facto mental, o facto do attavismo,
Acorrentava-o sempre ao velho despotismo
        Dos thronos e das cellas.
A corrente soprada além, da heroica França,
Fazia-lhe pulsar a magestosa esp'rança
        Das creações mais caras;
Porém n'esse combate imigo do Direito,
Cedia tristemente á voz do Preconceito,
        E ás perversões ignaras.
Demonstra-o fartamente o proceder confuso
Com que arrojava ao Povo um turbilhão diffuso
        De mortes e afflicção,
Curando juntamente, e com visivel gloria,
De lhe aplainar a rude e fria trajectoria,
        Por meio da instrucção.
Affirma-o sem rodeio o manifesto empenho
Com que guerreou Bocage, o sublimado engenho
        Do seculo passado,
Por seus bellos ideaes, modernos e atheistas,
Expostos com vigor, e com profundas vistas
        De um espirito avançado.
Comprova-o a friesa usada com Fylinto
Que longe do seu ninho, o doce riso extincto,
        Chorava, em lyra de ouro,
As ruinas da ventura, o azul do patrio lar,
As aguas do Mondego, e as vibrações do luar
        Entre os jasmins e o louro.
A ethopéa social dos seculos transactos,
Reflecte-se e vigora em seus funestos actos.
Fluctua sem cessar seu espirito viril,
Que ora se eleva ao bello, ora se entrega ao vil.
Mas n'elle transparece uma tendencia rude
        Que punge a leal Virtude!
A statica mental aperta-a pelos pulsos;
E a dynamica então imprime-lhe os impulsos
        Da progressiva lida;
E assim n'este vaivém lhe corre toda a vida.
Porém quando abordou á estancia derradeira
Deixava atraz de si a sanguinosa esteira,
Onde o espectro do pobre, e justo, e velho, e creança
Reclamam com vigor criterio e segurança
Ao tribunal da Historia, onde serão julgados
Os sabios, os heroes, os reis e os scelerados.
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Tenho attacado o clero, aspiro á excelsa luz,
Detesto o ignobil lenho, e sinto por Jesus
O affecto que daria a irmão, se irmão tivera,
Venero o positivo, e nunca a van chimera.
Meus filhos, castos soes, o meu thesouro immenso,
Por quem me sinto grande, a quem adoro e incenso,
As heras infantis que enleio na Consciencia,
A força que me impelle á lucta da inclemencia
Que aqui, n'este paiz de cousas pequeninas
Odeia a quem cultiva as rosas christalinas
No coração do Bem, Progresso e Liberdade,
Seguem a religião do Justo e da Verdade,
        É a sua crença ideal,
Resume-se no amor do seu sentir filial.
Mas tendo a mente forte e despresando os idolos,
E combatendo firme os monumentos frivolos,
        Politico-sociaes,
Revoltam-me a Consciencia os actos tão brutaes
        Da vida do marquez,
E vejo com tristesa o nome portuguez
        Coberto pelo horror,
Quando podia ser um foco de explendor.
A queda do jesuita é justa, é rasoavel;
Expulsa essa barreira imiga insuperavel,
Podia a sociedade erguer-se da ignorancia,
Dormir em paz a Mãe, sorrir a loura infancia
Ao Pensamento novo, a santa aspiração!
É digno de louvor quebrar á inquisição
Os braços da vingança a ira da torpesa.
Mas cobrem-se de lucto as leis da Naturesa,
Mas ouve-se um protesto, a palpitar fremente,
Ao ver, cheio de affronta, um martyr impotente,
Rojado pelo chão, manchado pela lama!
        E pelas nações clama
A Ideia humanitaria, amena, e justiceira,
Vendo arrojar um ente á estupida fogueira!
E embora fosse um padre, embora um jesuita,
Embora fosse irmão da raça atroz, precita,
        A minha voz sentida
Protesta contra a morte imposta a Malagrida!
        Protesto! E emquanto houver
Um coração de luz em peito de mulher,
Meu brado ha de correr nos angulos do mundo,
        E em todo o mar fecundo!

VII

Que se ha de então fazer aos grandes luctadores,
Que lançam sobre a Historia as olorosas flores,
E regam com seu sangue os fructos do porvir?
Que fontes de esplendor iremos nós abrir
Ao vidente Danton, a Lincoln, a Blanqui,
        O martyr que sorri
Por entre a cerração da noute do tormento?
Que havemos de offertar aos soes do Pensamento?
Nunca apoiei Thiers, nem o chacal da Russia!
Detesto a immanidade, e a vingativa astucia...
O sangue da Communa, as lagrimas de Jessa,
Formaram no silencio a fulgida cabeça
        Da indomavel revolta!
O monstro que commanda, em meio de uma escolta
As manobras crueis que geram a orphandade,
É mais feroz que um tigre, e avilta a Humanidade,
        E deve ter na mente
A infamia de Javheh, e os odios da serpente.
Como hei de eu incensar a monarchista treva?
Como hei de então louvar um ser de fronte seva?
Pombal beijou a patria, e espedaçou-lhe o seio;
Fez guerra ao Preconceito, e prostergou o anceio
        Dos crentes do porvir!
Levou seu nome á Gloria, e fel-o após cahir.
        No sangue inda escorrega
Quem segue a lusa historia. A sã Justiça nega
Um preito, a quem desdenha a humanitaria via,
E lança a Liberdade ás palhas da enxovia.
Fique acima de tudo o limpido criterio;
Formar uma cidade onde era um cemiterio
Seria expôr a vida aos morbidos prejuizos.
Vasar em molde infiel historicos juizos
Será viciar tambem o pensamento ao Povo.
Justiça! Ha de o vindouro escalpellar de novo
A nossa actividade; e então... tremendo encargo!
Ou ha de ter no peito um sentimento amargo
Ou ha de achar mesquinha a obra dos avós!
Salvemos o Futuro, e que elle creia em nós!

FIM