Title: Effeitos do Hypnotismo
Author: A. Armando
Release date: December 16, 2008 [eBook #27543]
Language: Portuguese
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A. ARMANDO
EFFEITOS DO HYPNOTISMO
COMEDIA ORIGINAL EM 1 ACTO
Representada pela primeira vez no Theatro Recreativo da Lapa, em 27 de Abril de 1890, e depois n'outros theatros sempre com geraes applausos.
PREÇO 120 RÉIS
LISBOA
Deposito—Livraria Bordalo
42, Travessa da Victoria, 1.º
1891
VENCESLAU DAS NEVES | Carlos Braga. |
ELVIRA, sua filha | D. Isabel Ficke. |
FELISBERTO, estudante | M. Alfredo. |
ANACLETO, ajudante de pharmacia | A. Armando. |
GERTRUDES, criada | D. Jesuina Saraiva. |
SIMPLICIO, criado | J. Caldeira. |
UM GUARDA NOCTURNO | Hyppolito Flor. |
Lisboa—Actualidade
(Sala bem mobilada em casa de Venceslau. É noite)
Gertrudes (arrumando os moveis).—Como anda tudo em desarranjo! tambem não admira, parece que Rilhafolles se mudou cá para casa. O patrão com a mania do hypnotismo. Desde que fomos á Trindade ver a tal sessão, que não pensa n'outra cousa. O Simplicio, o creado, ás contas com a musica, constantemente de trombone na mão a atordoar-nos os ouvidos. A menina Elvira sempre triste e a chorar. O pae quer casal-a á força com o seu pupillo, um tal Felisberto que está a estudar em Coimbra, e tem, segundo diz o patrão, uma fortuna de mais de dez contos de réis. A menina, porém, morre de amores pelo visinho da pharmacia, o sr. Anacleto, um excellente rapaz, muito intelligente e muito amavel, mas que para o patrão tem um grande defeito: é pobre... (Entra Simplicio a tocar trombone, sem ver Gertrudes). Ai! que susto que você me metteu!...
Simplicio.—Eu não lhe metti nada, menina Girtrudes!
Gertrudes.—Eu não digo! não larga nunca o trombone... Você não tomará juizo uma vez?...
Simplicio.—Ó menina Girtrudes não diga arestas... A musica é o incanto dai alma... Vocêmecê não conhece os grandes maiestros, o Azul... ou o Azul, não... o Verde. O Offenbaca... etc., e etc. É para chegar á altura delles que eu estudo de dia e de noite e vou todas[4] as semanas dar lição com o mestre da phylarmonica do Poço do Bispo. Quer a menina entrar tambem para a phylarmonica do Poço do Bispo?...
Gertrudes—Ora não seja tolo! Para o poço precisava você ir, mas era com uma pedra ao pescoço. Era melhor que você aprendesse a ler e a escrever para não fazer tantas asneiras quando vae ás compras. Ainda hoje a menina lhe disse que trouxesse meio kilo de azeitonas de Elvas, e você trouxe das outras.
Simplicio.—Olha que grande cousa... Não havia na Praça azeitonas d'Elvas e truxeas de outra terra... Se você não fosse dizer á menina já ella o não sabia... Parece-me que as azeitonas não trazem letreiro que diga se são d'Elvas ou não...
Gertrudes.—Pois você não sabe, seu alarve, que as azeitonas d'Elvas são verdes e as outras pretas?
Simplicio (muito espantado).—Ah! são verdes!... então são parentas do grande maiestro... elle tambem era verde...
Gertrudes.—Cale a bocca e não diga mais tolices.
Simplicio.—Não me chame tolo, menina Girtrudes, olhe que eu afino!...
Gertrudes.—Ahi vem a menina, para o fazer desafinar...
Elvira (entrando).—Estás aqui, Gertrudes, preciso fallar-te. (a Simplicio). Vae lá para dentro.
Simplicio.—Sim, senhora, (ap.) Vou ver se apanho o sol. (Sae)
Elvira.—Sou muito infeliz, Gertrudes.
Gertrudes.—Seu pae continua a teimar no casamento com o pupillo?
Elvira.—E ainda mais, agora como anda com a mania do hypnotismo, quer á viva força hypnotisar-nos a todos, e mandou vir o Felisberto para aqui passar as férias. Diz elle, que, como esse rapaz é estudante ha de perceber alguma coisa de hypnotismo e poderá illucidal-o sobre o modo de nos hypnotisar.[5]
Gertrudes.—O patrão tem macaquinhos no sotão!
Elvira.—Por mais que eu lhe diga que não amo esse rapaz, teima sempre em que hei de casar com elle.
Gertrudes.—E que ha de a menina fazer?
Elvira.—Era isso mesmo que eu vinha perguntar-te. Tu que me és tão dedicada, has de descobrir um meio de me livrar d'esse maldito Felisberto.
Gertrudes.—Eu?... (pensando) Ah! já sei! Diga-me uma coisa, o sr. Felisberto julga que a menina o ama e annue ao casamento, não é verdade?
Elvira.—Sim, porque meu pae é quem dita as cartas e tem-me obrigado a dizer sempre o que não sinto e que o meu coração repelle.
Gertrudes.—Muito bem, n'esse caso, está tudo remediado...
Elvira.—O quê, tens alguma ideia?
Gertrudes.—Mas uma ideia de alto lá com ella!
Elvira.—Dize, dize depressa.
Gertrudes.—O pupillo de seu pae chega breve a Lisboa?
Elvira.—Hoje mesmo, no comboyo das 9 horas.
Gertrudes.—Perfeitamente, trata-se em primeiro logar de conseguir que seja eu a primeira pessoa com quem elle falle.
Elvira.—E depois?
Gertrudes.—E depois... é simples. Como elle é bastante simplorio, apesar de ser estudante, eu facilmente o convencerei, que para se tornar mais agradavel aos olhos do seu tutor, deve mostrar-se muito entendido na sciencia do hypnotismo e dizer mesmo que é capaz de hypnotisar a menina...
Elvira (com susto).—A mim?
Gertrudes—Sim, a menina ou qualquer outra pessoa.
Elvira.—Mas não comprehendo...
Gertrudes.—É facil. O patrão fica muito contente com esta confissão, visto que actualmente todo elle é hypnotismo. Ha de pedir ao pupillo que proceda a uma experiencia. Elle, ainda aconselhado por mim, escolhe de preferencia a menina para a experiencia.
Elvira.—Mas, eu...
Gertrudes.—Presta-se a isso, depois de mostrar uma certa hesitação. Elle começa a fazer uns certos gatimanhos... a menina adormece, elle julga que isto é para agradar ao sr. Venceslau...[6]
Elvira.—Mas...
Gertrudes.—Qual mas, nem meio mas; depois a menina continua a dormir... a fingir, já se sabe... e não acorda nem á mão de Deus Padre. O sr. Felisberto vê-se em maus lençoes para conseguir tornal-a a si, a menina não cede... ainda mesmo que elle a assopre... dorme sempre... O patrão impacienta-se. Eu começo a fazer uma lamuria de mil diabos:—ai! a minha rica menina que fica hypnotisada para sempre! O patrão grita. O pupillo de seu pae arranca os cabellos... E quando todos estão no cumulo do desespero...
Elvira—Que fazes tu?...
Gertrudes.—Que faço?... Salvo a situação lembrando o sr. Anacleto, que é só quem póde salvar a menina, fazendo-a acordar...
Elvira.—E Anacleto?...
Gertrudes.—O sr. Anacleto estará de combinação comigo e virá logo que o chamem, mostrando-se, é claro, um sabio em hypnotismo, depreciando o mais possivel o tal sr. Felisberto... E, feito o milagre... porque a menina acordará logo que o sr. Anacleto lhe ordene... o patrão ha de necessariamente consentir no seu casamento com aquelle que a menina ama... repellindo com indignação o tal hypnotisador das duzias!...
Elvira.—Oh! mas isso tudo é muito arriscado... E se meu pae descobre que o illudimos?
Gertrudes.—Qual descobre, respondo pelo bom resultado de tudo.
Elvira.—Vê lá, Gertrudes, em que te mettes?...
Gertrudes.—Descance que não ha de haver novidade. Vou lá abaixo á botica prevenir o sr. Anacleto e volto depressa, porque o sr. Felisberto não deve tardar, e é forçoso que eu falle com elle primeiro que o patrão, aliás vae-se tudo quanto Martha fiou!... Até já.. (Sae pelo F.)
Elvira (só).—É uma excellente rapariga esta Gertrudes, oxalá que o seu estratagema dê bons resultados, (sae D. B.)[7]
Venceslau (só, entrando a ler o Diario de Noticias).—«E finalmente conseguiu fazer fallar uma menina que era muda de nascença.» (falla) É maravilhoso!... sublime!.. E não poder eu conseguir o mesmo... Tambem ainda não procedi a uma experiencia séria. Minha filha não se quer prestar, a creada diz que se vae embora se eu teimar em hypnotisal-a... e quem diabo hei de eu hypnotisar?... Ah! se fosse no tempo da minha defunta esposa, que Deus lá tenha por muitos annos e bons sem a minha companhia! Ah! se fosse n'esse tempo, hypnotisava-a a ella!
Simplicio (entrando a tocar trombone sem reparar em Venceslau).—Não consigo chegar ao sol!...
Venceslau.—Hein! que é isso? Pois tu vens para aqui tocar trombone?...
Simplicio. (cae de joelhos em frente de Venceslau, abraçado ao trombone).—Ah! patrão, perdoe, mas como não estava aqui ninguem...
Venceslau.—Então eu não sou ninguem, bruto?
Simplicio.—Bruto, sim senhor, patrão... é isso mesmo... é o que eu sou... eu devia tel-o visto e não o vi... Mas que quer, a musica... o trombone... tiram-me a vista dos olhos...
Venceslau.—Vou pôr-te no andar da rua, não posso aturar-te mais, já toda a visinhança se queixa do teu trombone ...
Simplicio.—Oh! meu rico patrão, meu patrão rico, não faça o que diz, eu juro por esta... (quer fazer uma cruz com as mãos e deixa cair o trombone?) Ai! O meu rico trombone... juro não tornar a tocar senão aos domingos quando forem dias santos...
Venceslau.—Então os domingos não são sempre dias santos, estupido?
Simplicio.—Para mim, não sr.; quando o patrão não me deixa sair são dias de semana...[8]
Venceslau.—Está bom, vae para casa do diabo...
Simplicio.—Não sei onde mora...
Venceslau (tendo uma ideia).—Ah! espera ahi. (ap.) E se eu o hypnotisasse a elle?... ah! que grande ideia... experimentemos... (alto a Simplicio.) Tu queres que eu te perdoe e consinta que continues a tocar trombone?
Simplicio.—Se quero, o trombone, é o meu incanto...
Venceslau.—Bem, então has de fazer o que eu te mandar.
Simplicio.—Prompto, patrão, diga que eu cá estou.
Venceslau.—Bem, senta-te aqui. (indica um fauteuil)
Simplicio.—O quê? assentar-me na cara do patrão... isso é que não...
Venceslau.—Senta-te aqui n'este fauteuil, já te disse.
Simplicio.—N'esse fotoi-lhe... é que eu não assento... O assento...
Venceslau.—Então, despeço-te.
Simplicio.—Despedir-me... isso nunca... assento... assento...
Venceslau.—Vá, depressa. (Simplicio vae a sentar-se e cae no fauteuil.)
Simplicio.—Ih! como isto é mole!...
Venceslau.—Agora, cerra os olhos.
Simplicio.—Cá estou a serrar. (ap.) Que demonio quer elle fazer?
Venceslau (comsigo).—Está quasi hypnotisado... Agora vou ver se me responde. (ao ouvido de Simplicio) De que gostas tu mais?
Simplicio (dando um salto?)—Não me grite aos ouvidos, patrão, que eu não sou surdo.
Venceslau.—Que alarve, é bruto até depois de hypnotisado!
Simplicio.—Qual hypotismado nem meio hypotismado... eu estou mas é assentado... assentado é que eu estou...
Venceslau.—Calas-te ou não te calas?
Simplicio.—Bem, cá estou calado.
Venceslau.—Vou provocar-lhe o somno hypnotico... agora... está quasi a dormir... (n'este momento Gertrudes entra e pára a ver o que se passa.)[9]
Gertrudes (ap.)—Olá! o patrão a hypnotisar o Simplicio... agora quero ver isto...
Venceslau.—De que gostas tu mais?
Simplicio.—De tocar trombone... (Gertrudes pega no trombone que Simplicio tem deixado ao F. em cima d'uma cadeira, toca e sáe rapidamente.)
Venceslau e Simplicio (assustados.)—Ai! (Simplicio, ao levantar-se bate com a cabeça na cara de Venceslau.)
Venceslau.—Irra, que me tiraste um olho!
Simplicio (correndo a pegar no trombone.)—Mas como demonio tocou o meu trombone?...
Venceslau.—Como tocou? foi o hypnotismo... camelo!
Simplicio (admirado.)—Hein? pois o trombone tocou sem ninguem lhe tocar? É assombaroso!... (tocam a campainha, Simplicio dá um salto). Ai!
Venceslau.—Talvez seja o meu pupillo. (a Simplicio) Vae abrir, e se fôr o sr. Felisberto, que chega de Coimbra, encaminha-o para aqui, e diz-lhe que espere que eu vou preparar-me para o receber. (Simplicio não se mexe) Então, tu vaes ou não?
Simplicio.—Eu, não sr.
Venceslau.—Não vaes, porque?
Simplicio.—Pois o patrão não vê que é ainda o hypotismo... (tocam outra vez.)
Venceslau (correndo atras de Simplicio.)—Oh! Cavallo, vaes ou não vaes?
Simplicio.—Lá vou, patrão, lá vou abrir a porta ao hypotismo... (ap.) Que hypotismo tão massador! (sae.)
Venceslau (só.)—Agora vou mudar de fato para receber o meu pupillo e futuro genro, (sae E. B.)[10]
Felisberto (fallando com Simplicio?)—O meu tutor está bom?
Simplicio.—Um pouco hypotismado...
Felisberto.—Hein?
Simplicio.—Olhe, ahi vem a Girtrudes que póde explicar-lhe melhor. (ap.) Eu vou ver se apanho o sol. (sae).
Gertrudes (entra F.)—Olha o sr. Felisberto por cá, então como passou?
Felisberto.—Menos mal.
Gertrudes.—E os seus estudos, bem; approvado nos exames?
Felisberto.—Bem, bem approvado... não... estive quasi a sel-o, mas afinal reprovaram-me.
Gertrudes.—Ih! como o patrão vae ficar zangado comsigo!
Felisberto.—Oh! mas é que eu não lhe digo a verdade, era o que faltava. Para elle me diminuir a mesada ou não me dar a mão da menina Elvira, que eu amo tanto.
Gertrudes.—Pois para conseguir isso tudo, precisa agradar muito ao patrão, aliás é capaz de dar o dito por não dito. E o senhor fica a chuchar no dedo a respeito de noiva...
Felisberto.—Oh! hei de fazer todo o possivel para agradar ao meu tutor. Principiarei por dizer-lhe que fui approvado nos meus exames.
Gertrudes.—Isso não basta, é preciso muito mais.
Felisberto.—Muito mais?
Gertrudes.—Sim, por exemplo: ser hypnotisador.
Felisberto (admirado.)—Hein? Mas que diabo é isso, já ha boccado o Simplicio me disse que o meu tutor estava um pouco hypotismado!... Não percebo nada.
Gertrudes.—Pois o sr. não sabe que está em Lisboa um celebre doutor hespanhol que dá sessões de hypnotismo no salão da Trindade?
Felisberto.—E depois?
Gertrudes.—E depois o sr. Venceslau quiz que nós fossemos com elle assistir ao tal hypnotismo e agora o verás,[11] metteu-se-lhe aquillo na mioleira e não pensa noutra coisa. Já hypnotisou o Simplicio e tambem me quiz hypnotisar a mim, mas eu não consenti...
Felisberto.—Mas que tem o meu casamento com o hypnotismo?
Gertrudes.—Tem tudo. Para agradar ao patrão, precisa mostrar-se hypnotisador, dizer que tem estudado muito sobre isso, que já tem feito experiencias, e que está prompto a fazel-as diante do seu tutor, escolhendo até para objecto das suas experiencias a menina Elvira.
Felisberto.—Pois eu hei de fazer experiencias com a minha noiva, diante do pae?...
Gertrudes.—Assim é preciso... se não quizer ver ir o casamento por agua abaixo...
Felisberto.—Oh! isso, jámais, em tempo algum... E a menina Elvira prestar-se-ha á experiencia?...
Gertrudes.—Se presta... se ella ama-o loucamente...
Felisberto.—Loucamente! Oh! céus! que felicidade!
Gertrudes—E foi ella até que se lembrou da experiencia... O sr. Felisberto mandal-a-ha sentar n'uma cadeira, começará a fixar os seus olhos nos d'ella, a apertar-lhe as mãos, em summa, imitará o melhor possivel um hypnotisador verdadeiro... A menina finge-se adormecida e responderá a tudo que o sr. lhe perguntar.
Felisberto.—E depois?
Gertrudes.—Depois o patrão fica muito contente e trata de casal-os o mais breve possivel para possuir um genro hypnotisador.
Felisberto.—És uma rapariga esperta.
Gertrudes.—Ora, isso são favores.
Felisberto.—Crê que não te has de arrepender em ter concorrido para a minha felicidade. Hei de gratificar-te bem em podendo dispor da herança de meu pae.
Gertrudes.—Eu não trabalho por interesse e só o que desejo é ver a menina Elvira muito feliz. Sinto passos. Talvez seja o patrão. É bom que não nos veja juntos, poderia desconfiar. Eu vou dizer á menina que está tudo combinado, e o sr... hypnotise-a bem...
Felisberto.—Descança, não farei tolice.
Gertrudes.—Até logo. (ap. rindo) É mais tolo do que eu pensava!... (sae D. B.)[12]
Felisberto.—Que mania tão esquisita a do meu tutor!... Oxalá que eu seja mais feliz com o hypnotismo do que fui com a mathematica...
Venceslau (entra.)—Oh! meu querido pupillo, como estimo ver-te em minha casa. Então chegaste bem? (abraça-o.)
Felisberto.—Perfeitamente. E o meu estimavel tutor está como parece? e sua filha continua a passar bem?
Venceslau.—Todos de saude. Mas, dize-me, como vaes tu com os teus estudos? fizeste exame, sahiste bem?
Felisberto (atrapalhado.)—Sim, fiz tres exames... e sahi em todos...
Venceslau.—Approvado?...
Felisberto.—Sim, foi isso mesmo. (ap.) Se elle percebe que minto!
Venceslau.—Folgo immenso. Mas mudando de assumpto, desejo interrogar-te sobre uma coisa que me tem feito andar a cabeça a rasão de juros!
Felisberto (ap.)—Temos hypnotismo pela prôa! (alto) Falle, meu caro tutor.
Venceslau.—Dize-me, nos teus estudos, porque tu has-de ter estudado muito para sahires approvado em todos os exames?
Felisberto.—Oh! muito, tinha noites em que não dormia... (ap.) Senão 9 horas!...
Venceslau.—E n'esses estudos não aprendeste nada sobre esse grande phenomeno incomprehensivel...
Felisberto.—Qual phenomeno... o phyloxera?
Venceslau.—Não, o hypnotismo...
Felisberto.—O hypnotismo, ora se tenho aprendido, e tenho-me até dedicado a um estudo especial sobre essa insondavel sciencia...
Venceslau (muito admirado.)—Sim, é certo?
Felisberto.—Tão certo como eu ter sido approvado nos meus exames.
Venceslau.—Oh! então não ha nada mais certo. E já tens feito algumas experiencias?
Felisberto.—Immensas experiencias.
Venceslau.—E com bom resultado?[13]
Felisberto.—Optimo, optimo resultado... a ponto de causar o pasmo e a admiração dos meus collegas!
Venceslau (abraçando-o).—Oh! Felisberto! tu vens do ceu aos trambulhoes! Tu vaes fazer-me um favor... um favor maior que o Pan-Tarantula...
Felisberto.—Diga, diga, meu caro tutor, eu estou prompto para tudo.
Venceslau.—Tu vaes proceder a uma experiencia na minha presença?
Felisberto.—Oh! meu tutor da melhor vontade, tanto mais que isso é para mim a coisa mais facil d'este mundo. E diga-me, quem se presta ás minhas experiencias, é mesmo o meu tutor?
Venceslau.—Eu não, eu quero ver acordado.
Felisberto.—Então, quem hade ser?
Venceslau (pensando).—Eu sei.. o Simplicio, talvez?
Felisberto.—Não serve...
Venceslau.—Não serve, porque?
Felisberto.—Tem a mania da musica e a musica não se dá com o hypnotismo...
Venceslau.—Oh! n'esse caso, só se for minha filha, porque a Gertrudes, essa não se presta... é muito esquiva, já o sei.
Felisberto.—Pois seja sua filha... deve dar um excellente exemplar... Queira chamal-a...
Venceslau.—Vou já... (pensando) Mas ouve lá... a experiencia á noite não terá perigo?... são mais de dez horas e talvez fosse melhor irmo-nos deitar e deixarmos isso para amanhã depois de almoço...
Felisberto.—A menina Elvira com a barriga cheia... o meu tutor não sabe o que diz... isso poderia ser-lhe fatal... E demais, á noite o somno vem sempre com mais facilidade... nada, deve ser agora e vou dispor tudo para isso.
Venceslau.—Bem, assim o queres, seja agora; tu que és hypnotisador lá tens as tuas razões. Volto já. (sae).
Felisberto.—Vou metter-me numa camisa de onze varas... eu que nunca li uma linha sobre hypnotismo... fazer-me assim[14] de pé para a mão um sabio... E se a pequena adormece a valer... e eu não sou capaz de a acordar... ora, qual historia, se ella está de combinação e adormece a fingir... não ha perigo algum... Ah! ahi vem o meu tutor e a minha noiva. Vamos, coragem e atrevimento...
Elvira (entra com o pae).—Sr. Felisberto, como está?
Felisberto.—Eu bem, e a sr.ª D. Elvira?
Elvira.—Menos mal, (troçando d'elle) com muitas saudades suas!...
Felisberto.—Oh! como sou feliz! (aperta as mãos de Elvira).
Venceslau.—Então, Felisberto, sempre estás disposto a dar uma sessão de hypnotismo?
Felisberto.—Se isso é do agrado da minha noiva!
Elvira.—Não sei bem, sempre tenho medo que haja perigo... Se o sr. me adormece para sempre?...
Felisberto.—Oh! não receie... tenho estudado a fundo essa maravilhosa sciencia e conheço-lhe todos os segredos... Posso fazer com que o somno lhe dure muito ou pouco, a meu bello prazer... (ap.) Isto é que é mentir...
Elvira.—Oh! n'esse caso, se o sr. responde pelo resultado, estou prompta a fazer a vontade a meu pae.
Venceslau.—Sim, Felisberto é um rapaz estudioso e como se tem dedicado particularmente a este phenomeno, ha de fazer tudo o que quizer.
Felisberto.—Vamos então dar principio. (colloca um fauteuil no meio da casa) A menina aqui. (colloca outro a distancia) O meu tutor ali. Não ha ninguem que queira assistir? São sempre convenientes os espectadores...
Venceslau.—Só se fôr o Simplicio e a Gertrudes?
Felisberto.—Pois sim, que venham.
Venceslau (chamando).—Gertrudes! Simplicio! (entram os dois, Simplicio traz o trombone escondido atraz das costas).
Gertrudes (da D. B.)—O sr. chamou?
Simplicio (da E. B.)—Foi o sr. ou o hypotismo que me chamou?[15]
Felisberto.—Sentem-se aqui muito calados (Gertrudes senta-se—A Simplicio que fica em pé) Não ouviste, senta-te.
Simplicio.—Nada, eu estou bem em pé, muito obrigado, não se incommode. (Felisberto empurra Simplicio para um fauteuil, Simplicio cae e bate com as costas no trombone) Ai! que lá arrombei o trombone...
Felisberto—Cala-te!
Simplicio (examinando o trombone)—Mas é que custou...
Felisberto.—Calas-te ou não?
Simplicio (continuando)—Seis tostões...
Felisberto.—Oh! fallador!... (vae para bater-lhe).
Simplicio.—Não bata, não bata... que o dar doe... Vou estar callado que nem um gato (ap.) em janeiro...
Felisberto.—Bem, veremos, (a Elvira) Vou começar. (finge hypnotisar Elvira) É um excellente exemplar, está quasi, mesmo quasi... Agora recommendo o maximo silencio a todos os espectadores...
Simplicio.—Eu cá não digo nada...
Venceslau.—Silencio!
Felisberto—Qualquer indiscripção pode ser fatal... Está hypnotisada, queiram ver. (todos vão ver).
Venceslau.—É maravilhoso!... hypnotisada tão rapidamente!...
Simplicio.—Talvez não dormisse bem de noite...
Felisberto.—O que é a ignorancia!... Vozes de burro não chegam ao ceu!... Todos para os seus logares... Agora vou obrigal-a a fallar... (colloca-se á direita de Elvira) Sabe quem está á sua direita?
Elvira.—Sei...
Felisberto.—Quem é?
Elvira.—Um idiota!
Simplicio.—É o sr. Felisberto...
Felisberto (um pouco atrapalhado).—Cala-te, não percebeu bem. Vou perguntar outra vez. Perguntei quem estava á sua direita?
Elvira.—Já disse, um idiota!...
Felisberto (zangado).—Hein? um idiota? (ap) Que quer isto dizer?
Venceslau.—Então, não te zangues, talvez os hypnotisados[16] não lessem o Manual de Civilidade. Pergunta-lhe outra coisa; por exemplo: quantos exames fizeste e se saiste approvado?
Felisberto (com medo).—Não sei se isso...
Venceslau.—Pergunta, pergunta.
Felisberto (contrafeito).—Então lá vae. (ap) Não sei o que sinto. (alto) Sabe quantos exames eu fiz?
Elvira.—Sei que fez trez e ficou reprovado em todos...
Felisberto.—Oh! é falso! (ap) Como adivinhou ella?
Venceslau.—Já vejo que continua a não atinar.
Felisberto (muitissimo atrapalhado).—Não sei explicar...
Venceslau.—Se me dás licença, agora vou eu interrogal-a...
Felisberto (querendo oppôr-se).—O melhor é terminar...
Venceslau.—Não, só uma pergunta e nada mais. (a Elvira) Dize-me, sabes quem eu sou?
Elvira.—É meu pae.
Venceslau.—Oh! agora acertou. (a Elvira) E dize-me, que viste tu hoje de mais notavel?
Elvira.—O seu pupillo a beijar a Gertrudes!
Venceslau.—Hein? Pois tu beijaste a minha creada?
Felisberto (afflicto).—Eu não beijei nada... é falso... pode interrogar... (indica Gertrudes).
Gertrudes.—Beijou, sim, senhor, e se eu não fujo tão depressa... não sei o que me faria mais...
Felisberto (sem perceber nada).—Oh! ceus! que quer isto dizer?... não quero mais hypnotismo... acorde, Elvira... acorde...
Venceslau.—Não se mexe...
Felisberto.—Acorde... acorde...
Venceslau.—Meu Deus! estou com medo!...
Felisberto.—Então, acorda ou não? (ap. a Elvira) Para graça já basta...
Gertrudes (a chorar) Ai! ai! que a minha rica menina fica hypnotisada para sempre!...
Felisberto (ap).—Valha-me Deus! Querem ver que a hypnotisei a valer? (alto) Vão buscar um leque.
Simplicio (indo buscar um abano).—Prompto. O leque do fogão.
Felisberto.—Soprem todos... (elle abana Elvira, os outros sopram-lhe a cara).[17]
Venceslau (a chorar)—Ai! que matou a minha filha! Elvira! Elvira!
Simplicio (fazendo grande lamuria).—Ih! ih! ih! povre menina... morrer assentada n'uma cadeira... que morte tão affrontarosa!...
Felisberto (cada vez mais assustado?)—Façam bulha, muita bulha, a ver se assim...
Simplicio—Ah! quer bulha, então espere... (toca trombone. Todos batem com as cadeiras e fazem toda a bulha possivel).
Felisberto—Toquem, toquem todos... (todos imitam diversos instrumentos, batem á porta do F.)
Venceslau.—Bateram. Vão abrir a ver se é alguem que salve a minha filha. (Simplicio vae abrir. Apparece um guarda nocturno).
Guarda.—Que bulha é esta?... Os senhores estão doidos? Está a visinhança toda alvoraçada!... Parece que se mudou para aqui alguma phylarmonica...
Venceslau.—Ai! Valha-me pelas chagas de Christo!
Guarda.—Mas que foi, que foi? (vendo Elvira) Uma mulher desmaiada?
Venceslau.—Foi este estupido do meu pupillo que hypnotisou minha filha... e agora não consegue acordal-a...
Guarda.—E que se ha de fazer?
Venceslau.—Eu não sei, não sei...
Gertrudes (ap.)—É occasião! (alto) Sei eu...
Venceslau.—Tu?...
Gertrudes.—Sim, eu... conheço quem é capaz de acordal-a n'um instante...
Venceslau.—Mas corre, corre... Dou tudo pela vida de minha filha!...
Gertrudes.—Não é preciso correr muito, mesmo aqui da janella... (corre á janella) Sr. Anacleto, sr. Anacleto, a menina está muito mal...
Anacleto (fóra.)—Ahi vou, ahi vou já...
Simplicio (ap.)—Então os boticairos é que tiram o hypotismo?...
Venceslau.—Mas quem é esse Anacleto?[18]
Gertrudes.—O ajudante da pharmacia cá debaixo, rapaz muito intelligente e... olhe, elle ahi está...
Anacleto (entra.)—Onde está a menina Elvira?
Gertrudes.—Ali, n'aquelle fauteuil quasi morta...
Anacleto (correndo a Elvira e tornando-lhe o pulso?)—Ella está mas é hypnotisada... e quem foi o audacioso que a hypnotisou sem ter conhecimento algum d'esta maravilhosa sciencia?
Simplicio.—O audaçacioso foi o sr. Felisberto, (indica-o).
Anacleto.—O sr.?
Felisberto.—Mas eu lhe explico...
Anacleto.—Não admitto explicações... o que o sr. precisava era ir já para o Governo Civil...
Guarda.—E cá estou eu para o acompanhar...
Venceslau.—Asseverou-me que conhecia a fundo a sciencia do hypnotismo!...
Anacleto.—É inacreditavel tanta audacia!...
Felisberto.—Mas, eu, cumpre-me explicar-me...
Anacleto.—Cale-se, senhor, e deixe-me salvar esta infeliz menina que seria victima da sua estupidez... se não me chamam tão depressa...
Venceslau (alegre.)—Não ha então perigo?
Anacleto.—Para mim não existem perigos... Posso fazel-a acordar em eu querendo... basta um pequeno sopro...
Venceslau.—Veja se encontra outro meio, que isso de sôpros não me cheira... (tapa o naris.)
Simplicio.—Pois sim, sim, assopre-a e verá... eu até já a abanei, e ella nada.
Felisberto.—Quem tem a culpa d'isto tudo... é... (vae para indicar Gertrudes.)
Anacleto (interrompendo-o.)—Cale-se, cale-se, se não quer que eu o hypnotise para sempre... como o sr. ia fazendo a esta menina...
Venceslau.—Mas acorde-a, acorde-a, estou ancioso por ouvir minha filha...
Anacleto.—Já vae, já vae, primeiro quero proceder a uma pequena experiencia para provar a esse charlatão que[19] valho muito mais do que elle... (a Elvira) Diga-me, sabe quem a hypnotisou?
Elvira.—Foi um parvo...
Simplicio (dando palmas.)—Muito bem, muito bem...
Felisberto (querendo bater-lhe.)—Ah! atrevido... Mas, sr. Venceslau, repare que estão abusando...
Venceslau.—Cale-se, já se lhe disse...
Simplicio.—Parece que é surdo!...
Guarda.—Talvez seja melhor leval-o até á esquadra...
Anacleto (a Elvira.)—Agora, diga-me, quer casar com o parvo?...
Elvira (fingindo-se assustada.)—Oh! nunca! nunca! Antes morrer!
Anacleto.—É extraordinario o pavor que lhe causa esse alfenim...
Felisberto (correndo para elle.)—Senhor!
Guarda (detendo-o)—Silencio, quando não... (leva a mão á espada?)
Anacleto (a Elvira.)—E com quem quer casar?
Elvira.—Com aquelle que conseguir acordar-me d'este somno invencivel!...
Anacleto (soprando-lhe a cara.) Oh! acorde, então...
Elvira (acordando rapidamente.)—Ah! aonde estou? aonde estou? (todos applaudem Anacleto, menos Felisberto.)
Venceslau.—Nos meus braços, minha filha!... (abraça-a)
Elvira.—Meu pae! meu pae! (vendo Felisberto e fingindo um grande medo) Oh! aquelle homem! aquelle homem quer-me mal...
Felisberto (querendo explicar-se.)—Mas repare que eu...
Elvira (fugindo d'elle.)—Não se chegue, não se chegue...
Venceslau.—Sae d'aqui, sae d'aqui...
Felisberto.—Não sahirei sem uma explicação... Foi essa creada que...
Venceslau.—Não quero explicações...
Simplicio. (com importancia.)—Nós não queremos explicações...
Venceslau. (ao guarda.)—Queira acompanhar esse rapaz ao hotel de Veneza e que lhe arranjem um quarto, aqui tem dinheiro para pagar esta noite, amanhã mando-o outra vez para Coimbra. (dá dinheiro ao guarda)
Felisberto.—Mas, meu tutor...[20]
Guarda—Homem, venha a bem, quando não... (empurra-o.)
Simplicio (empurrando-o.)—Cale-se e vá para Veneza... (sae o guarda levando Felisberto aos empurrões.)
Venceslau.—Emquanto ao sr. não sei como hei de pagar-lhe...
Anacleto.—Facilmente... Concedendo-me a mão de sua filha...
Venceslau.—Ella... porém..
Elvira.—Eu amo ha muito este senhor...
Venceslau.—Bem, seja, mas com uma condição...
Elvira e Anacleto.—Qual?
Venceslau.—É que hão de ficar vivendo em minha casa... quero ter sempre um hypnotisador a meu lado...
Anacleto.—Está dito, havemos de fazer experiencias em familia...
Venceslau.—E viva o hypnotismo!...
Anacleto, Elvira e Gertrudes.—Viva!
Simplicio.—Um viva sem hymno não vae bem... (começa a tocar o hymno no trombone.)
Venceslau.—Oh! descarado!... (vae para bater em Simplicio.)
Simplicio.—(fazendo-lhe signal que não bata, recita com valsa na orchestra):
Não me bata, meu patrão
Peço por Nosso Senhor,
Que eu prometto ir aprender
A ser hypotismador.
Quero depois a Girtrudes,
Uma vez hypotismar
P'ra ver se ella não acorda
Quando eu a fôr assoprar!...
E convido desde já
Com todo o patriotismo...
A virem aqui gosar
Essa sessão d'hypotismo...
Scena intima, monologo em verso, 2.ª edição, 100
O que eu sei!... cançoneta desempenhada pela actriz Mercedes Blasco, 100
A nota do banco, monologo em verso, 2.ª edição, 100
O meu desgosto, cançoneta com musica do Meu amigo Banana, 100
Ociosidades, primeiros versos, 200
A mala de viagem, monologo em verso recitado pelo actor Carlos Santos, 100
O vestido de chita, monologo em verso, 100
O veterano, monologo em verso, 100
Typ. Machado, Rua dos Douradores, 21