Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº 10 (de 12)
Author: Camilo Castelo Branco
Release date: February 26, 2009 [eBook #28201]
Most recently updated: January 4, 2021
Language: Portuguese
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BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA
NOITES DE INSOMNIA
OFFERECIDAS
A QUEM NÃO PÓDE DORMIR
POR
Camillo Castello Branco
PUBLICAÇÃO MENSAL
N.º 10—OUTUBRO
LIVRARIA INTERNACIONAL DE |
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ERNESTO CHARDRON 96, Largo dos Clerigos, 98 PORTO |
EUGENIO CHARDRON 4, Largo de S. Francisco, 4 BRAGA |
1874
PORTO
TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA
68—Rua da Cancella Velha—62
1874
BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA
NOITES DE INSOMNIA
SUMMARIO
Beatriz de Vilalva — Se o poeta Bernardim Ribeiro foi commendador — Resposta de José Anastacio — Prefacio ao sonho do Arcebispo — O ultimo carrasco — Curiosidades artisticas — Cantada e Carpida — Bibliographia
Era o nome da encantadora bastarda do capitão-mór da Lixa.
Vivia, com sua mãi, na quinta de Vilalva, com que fôra dotada, aos quinze annos, para casar, aos dezoito, com o morgado de Pildre, Vasco Pinto de Magalhães.
Isto são cousas antigas. Era no anno de 1834. Ha quarenta annos. Um seculo d'outras eras, quando vinte annos eram mocidade innocente, e, aos quarenta, o homem tenteava com timido pé os umbraes do mundo. Agora, dentro de quarenta annos, fenecem e reverdecem duas mocidades e duas velhices; o revolutear das variadas paixões, gastando a alma e safando o cerebro, desmemoría o homem de si mesmo; em cada decada atrophia-se-lhe o coração com as velhas imagens, e resurgem-lhe, com as imagens novas, outras faculdades affectivas. Quarenta annos! Eu, quando me[6] lembro que vi Pedro IV, e por pouco não fui contemporaneo de João VI, entro em duvidas se conheci o marquez de Pombal, e receio que me peçam noticias do terremoto de Lisboa, como testemunha presencial.
Beatriz orçava então pelos dezesete. No anno seguinte, devia casar-se com o morgado de Pildre, que tinha cincoenta e seis annos, e uma casaria negra, ás cavalleiras de Amarante, com duas torres senhoriaes escalavradas pela artilheria, no tempo dos francezes.
Aborrecia-o a bastarda do capitão-mór da Lixa; mas obedecia ao pai, que dava ordens breves e seccas, e condescendia aos conselhos da mãi, mulher da plebe, que almejava metter sua filha na casa de Pildre, sem se lhe dar que a morgada a constituisse avó dos filhos do capellão—o menos escandaloso dos cooperadores anonymos da conservação das varonias e proseguimento das raças.
Obedecia principalmente Beatriz, porque não amava ninguem, não conhecia homem nenhum para comparar. Tinha, apenas, a razão a dizer-lhe que um marido não devia ser velho, e que a sua estrella era má.
N'este tempo, voltaram ás suas casas os frades expulsos. Alli perto de Vilalva, á casa do Pomar, chegou, vindo do convento da Graça, de Lisboa, um egresso de vinte e tres annos, com dous apenas de professo. Um guapo[7] moço, esbelto, rosado, vivo, sanguineo, um frade que rasgára alegremente o habito, e dera vivas á liberdade quando o mandaram sahir da cella. Eu conheci-o. Era um donoso velho, a arvore no outono, com a folhagem amarellida, mas ainda frondosa, copada, recordando as refrigerantes sombras dos meios dias de julho.
O que não seria elle, o egresso João de Queiroz, aos vinte e tres annos, ao sahir do convento, a desbordar exuberancias de vida represada, a desforrar-se da violencia com que lhe desfolharam, como improprias do homem immolado, as flôres de seis primaveras!
O capitão-mór, quando viu o ex-frade, tão convisinho de Vilalva, mandou acautelar a filha; e, de passagem, contou á mãi uma duzia de casos funestos acontecidos com frades, no seio das trinta familias fidalgas de Amarante, Lixa, Fafe e terras circumjacentes.
A mãi de Beatriz não acautelou bastantemente a rapariga; pareceu-lhe demasiado o recato do pai, á vista do recolhimento e da gravidade de padre João, afiançado por todas as mães das mais secias moças da freguezia, e, sobre tudo, pela compostura do sacerdote, já no altar, já no pouco trato que tinha com elle no adro da igreja.
Comtudo, se a presumptiva sogra do morgado de Pildre attendesse á experiencia do[8] capitão-mór e á silva de malfeitorias fradescas que lhe elle contou, evitaria, quando menos, que Beatriz não andasse sósinha pelos miradouros da quinta, nem fosse ao fundo da tapada, que embeiçava na serra, quando ouvia um tiro, e os cães da caça latiam na encosta.
Não sei que alma escrupulosa avisou o capitão-mór dos colloquios de Beatriz com o egresso, interpondo-se, verdade é, o muro que dividia a quinta dos montados, por onde o padre esperava a «estranha caça» á imitação dos menos felizes navegadores de Camões.
O sisudo fidalgo da Lixa, sofreando os impetos do sangue ostrogodo, absteve-se de immolar á memoria ultrajada dos avós aquelle dom ribaldo tonsurado. Receoso, talvez, de que o padre, colligado com os constitucionaes, repellisse qualquer offensa, em desprezo dos pergaminhos do fidalgo, dicidiu-se a guardar silencio, e apressar o casamento, conforme á anciosa vontade do morgado.
E, á volta de poucos dias, estava prompto o enxoval, e marcada a seguinte semana para o consorcio.
Na vespera, porém, do dia prefixo, Beatriz de Vilalva desappareceu, depois de haver chorado torrentes, pedindo inutilmente á mãi que a não obrigasse a casar com o detestado velho, se a não queria levar a matar-se por suas mãos.[9]
Quando se divulgou, na madrugada do dia 3 de setembro de 1834, a fuga de Beatriz, o capitão-mór remexeu com a authoridade da pessoa e com as coleras de pai as justiças de Lixa e de Amarante.
A primeira e unica suspeita do rapto foi o egresso; mas o egresso, quando foi procurado em sua casa, sahiu á sala a receber os officiaes de justiça com tanta serenidade quanto espanto, ao dizerem-lhe que elle era o raptor da filha do capitão-mór.
—Eu!—exclamou padre João de Queiroz com as mãos estendidas na cabeça—eu, senhores! eu raptor de mulheres!...
E, chamando sua velha mãi, disse-lhe com um solemne e brando socego:
—Minha mãi, estes senhores dizem que eu roubei a snr.ª D. Beatriz de Vilalva.
—Credo!—bradou a velha afflicta.—Credo!...
—Nada de exclamações, minha mãi—atalhou padre João.—O nosso dever é franquear a estes senhores todos os cantos d'esta casa. Queiram seguir minha mãi, cuja vida honrada de sessenta annos não permitte que os senhores a considerem receptadora de meninas roubadas. E, entretanto que os senhores passam busca, eu vou vestir-me para os acompanhar á presença de quem aqui os mandou, e não terei grande magoa de entrar na[10] cadeia, logo que fui ferido por tão perversa calumnia. O mais pungente do insulto já cá o tenho cravado na alma.
Em quanto os officiaes de justiça cumpriam o mandado, e o padre se vestia para depois acompanhal-os, um cavalleiro açodado, e que entrára do lado de Amarante á desfilada, apeou no terreiro da casa do Pomar, perguntando se alli estavam os meirinhos. A resposta affirmativa, tornou o emissario do juiz dizendo que sustassem a diligencia, porque á beira do Tamega se encontrára a capa da menina e um bilhete em que fazia declarações.
Padre João de Queiroz voltou-se contra o escrivão, e disse placidamente:
—Diga vossa mercê ao snr. capitão-mór da Lixa que eu lhe perdôo.
Os aguazis sahiram quasi edificados, desfazendo-se em satisfações ao egresso que os despediu com um amoravel e pacientissimo sorriso de bem-aventurado.
O bilhete de Beatriz declarava que a misera menina preferia morrer a casar-se á vontade despotica de seu pai, e invocava o testemunho de sua mãi a quem ella o havia predito com baldadas supplicas. Acrescentava que lhe rezassem por sua alma, e que morria confiada na misericordia divina.
A mãi, vendo o bilhete e reconhecendo a letra, pegou de berrar que tudo aquillo era[11] impostura; que a filha lhe tinha dado opio para ella dormir mais de quinze horas sem acordo; que a sua filha estava escondida; e que o bilhete e a capa á beira do rio era tramoia de padre João para se escapar á justiça. E, dadas estas razões que a muita gente pareceram signaes de demencia, pegou de si, foi-se para a porta do egresso, e começou a berrar aqui d'el-rei contra elle.
No entanto, gente mais ajuizada procurava entre as ramarias dos salgueiros, que formavam grutas na ourela do Tamega, o cadaver da suicida. Depois de laboriosas pesquisas, descobriram no remanso da corrente que descahia de uma açude, um sapato de cordovão, que uma criada de Vilalva declarou ser de sua ama.
Como anoitecesse, cessaram as diligencias, e a justiça e o publico prescindiram do cadaver para dar como praticado o suicidio.
Não obstante, a mãi de Beatriz continuou a gritar contra o roubador de sua filha, ainda depois que o capitão-mór a removeu d'alli para a sua quinta de Ovelha, nas vertentes do Marão—sitio azado para qualquer pessoa desditosa gritar á vontade, e sem grande incommodo dos visinhos.
Corridos seis mezes, o tragico successo estava esquecido, ou apenas era recordado quando o padre Queiroz apparecia em Amarante,[12] e as pessoas de bem o apontavam como victima da calumnia, que o teve no gume da perdição; ao passo que ninguem accusava de assassino de sua filha o estupido e ambicioso capitão-mór que a quizera atar ao torpe cadaver do morgado de Pildre.
Padre João apesar de bemquisto e indemnisado pelo respeito das pessoas honestas, denotava no aspecto profunda tristeza, e aos seus intimos dizia que tinha saudades da paz do convento; e, logo que se lhe ageitasse modo, iria parochiar em algum presbyterio rural, bem longe d'aquella terra onde a aleivosia lhe matára para sempre o contentamento da liberdade e da familia. Instavam os amigos em despersuadil-o; mas assim que vagou uma igreja modesta no arcebispado, e nas visinhanças de Villa Nova de Famalicão, obteve-a de prompto com a sua reputação de liberal, e mudou-se para lá com immensa magoa dos seus conterraneos.
Pouco tempo depois, correram estranhos boatos ácerca do padre e de Beatriz. Dizia-se que uma mulher de Felgueiras, de má nota, e muito da casa do Pomar, estando em[13] artigo de morte, dera a perceber que morria com um grande remorso; e muito apertada pela pessoa a quem revelára os seus trabalhos de consciencia, começou por dizer que a menina de Vilalva não se tinha afogado; porém, como as intermittencias no exprimir-se fossem longas, e o arrancar da vida começasse o seu derradeiro paroxismo, a moribunda expirára sem dizer mais nada.
E mais se dizia que, por uma noite de lua cheia, uns viandantes da Lixa, na subida do monte de Santa Quiteria, haviam encontrado um homem a cavallo em um possante macho, em companhia de uma mulher, por tal maneira envolta em um capote, que apenas se conhecia ser mulher pelas andilhas; e que um pouco atraz encontraram um criado a pé, o qual se retrahira para a sombra de um vallado quando os viu; mas apesar d'isso, o conheceram, e juravam ser o criado de padre João de Queiroz.
Estas atoardas não provavam nada em juizo; ainda assim, o vigario capitular oficiou ao prelado para que se devassasse secretamente da vida do abbade de S. P. de E***[1]. A syndicancia, habilmente dirigida,[14] elucidou que o egresso abbade vivia exemplarmente. Que a sua familia era um criado e ninguem mais; que a residencia era só, triste e silenciosa como um cenobio monastico; emfim, que os freguezes respeitavam o seu pastor; e que, á excepção da casa do morgado de E***, padre João não entrava em casa alguma, senão em exercicio das suas obrigações, religiosissimamente cumpridas.
Depois, mais nada.
Profundo silencio. Os personagens da historia mysteriosa foram morrendo com a costumada regularidade. A mãi de Beatriz acabou em cheiro de douda. O capitão-mór morreu mais preoccupado com a derrota do Remechido que com o desastrado destino da filha. O morgado de Pildre, cuidando que se despicava do injurioso menospreço de Beatriz casando com uma senhora geitosa, vinculou-se matrimonialmente com uma sobrinha bonita e pobre; porém, passados tres annos, quando houve a certeza de que não era pai, mas sim tio-avô de seu filho, rebentou de paixão exacerbada pela anasarca. Contavam-se no discorrer dos tempos, estes casos, que faziam rir. Eu mesmo, ha vinte e seis annos, os ouvira n'aquella casa de Pildre, quando já era morta a viuva do morgado e fallecido o directo successor do vinculo, achando-se na administração do morgadio um meu amigo, já tambem—e[15] ha quantos annos!—sepultado no cemiterio dos Prazeres em Lisboa.
Quando, ha quinze annos, vim, pela primeira vez, a S. Miguel de Seide, conheci o abbade de S. P. de E***. Procurou-me, pedindo-me que lhe escrevesse uns versos funebres para a eça de uma senhora de casa illustre. Não comprehendi logo o destino dos versos. Explicou-me o abbade que a poesia, copiada em boa letra, seria pregada na eça, e assim exposta á contemplação do publico. Escrevi duas oitavas com mais sentimento do que as escreveria se conhecesse a defunta. Eis aqui como me relacionei com o egresso graciano, ligado á lenda d'aquella menina, que tivera um nome digno das trovas plangentes de poeta de soláos—Beatriz de Vilalva.
Cincoenta annos contava então o abbade. Rosto de saude e alegria. Poucas carnes; compleição fina, mas forte; raros cabellos grisalhos; trajo serio, limpo, elegante; maneiras polidas; dizeres sentenciosos; anecdotas chistosas,[16] mas decentes; casos do seu convento; tradições ineditas do seu ex-conventual José Agostinho de Macedo, e d'outros cerdos que não deixaram tão illustre memoria a ensombrar obscuras infamias. Era optimo conversador o abbade, e revia, no seu fallar, alguns signaes de ter estudado applicadamente philosophia. Disse-me que fôra o primeiro estudante do curso, e que o snr. D. Miguel I, assistindo ao seu exame de logica, o premiára em publico com a medalha da sua real effigie. Bom avaliador e juiz! O snr. D. Miguel I foi grandemente entendido em logica: toda a gente sabe isto, não obstante me asseverar o abbade que sua magestade não estudara logica; mas premiava os martyres que a estudavam, a fim de animar os outros votados ao martyrio.
Com o lapso do tempo, relacionei-me com a familia herdeira da defunta que eu cantei ou chorei. N'esta casa vi algumas vezes o abbade, e outras na sua igreja. Aconteceu ir eu alli ser padrinho de uma criança d'aquella familia. Antecipei-me á hora dada. Detive-me a observar a residencia de padre João de Queiroz—silenciosa como um grande tumulo, com dous ciprestes á porta, com um rocio coberto de arbustos e herva espontanea a entestar na escada ingreme do sobrado. Tres janellas de rotulas fechadas e espessas. As paredes tapizadas de musgo e fetos a vegetarem[17] das fisgas. Duas pombas pretas a arrulharem na cornija. Um pardal a sacudir as azas molhadas no beiral do telhado. E á volta d'isto o rumorejo dos pinhaes circumpostos.
Sentei-me no beiral do adro, a olhar para uma janella interior da residencia, e a scismar nos vinte e cinco annos que o abbade para alli trouxera, e nas noites e dias dos outros vinte e cinco alli passados, com resignação, e até com alegria, tão só e desatado dos agrados da companhia, e com tantos predicados para dar e receber na convivencia uma honesta felicidade! Quando esta meditação me estava enlevando áquella suave tristeza que faz os homens melhores e o fardo da vida mais leveiro, assomou um rosto de mulher na janella onde eu, sem intenção, fitára os olhos; e, apenas me viu, retrahiu-se tão de subito como se dentro tirassem por ella a repelão.
Isto abalou-me. A mulher parecera-me bonita; mas não ha que fiar nos conceitos da minha vista, que pouco alcança a curta distancia; quer, porém, fosse feia, figurou-se-me quasi bella: era o bastante para dar larga tela ao nebrí da poesia, que, lá do alto, crê vêr uma rôla onde ás vezes está uma cegonha.
N'este comenos, chegou o abbade, e a criança no collo da ama, e o pai com a madrinha, e o sacristão e as testemunhas, vindo[18] todos da casa do meu compadre, onde inadvertidamente esperavam que eu fosse.
Finda a ceremonia, o abbade offereceu-me a sua casa por mera civilidade. Meu compadre acudiu logo, dizendo que nos esperava o almoço. Partimos para E***, e o abbade acompanhou-nos, depois de ter ido a casa despir a batina, e revestir-se aceadamente, de casaca preta com habito de Christo, collete de velludo, bota de verniz, e chapéo alto de brilhante sêda.
Em quanto elle se demorava, depois de almoço, no quarto de minha comadre, alegrando-a com apropositadas anecdotas—que as tinha para tudo—fui eu com meu compadre vêr o pomar de fruteiras peregrinas.
—Gosto muito d'este abbade—disse eu.—Parece-me um bom caracter, pela satisfação e alegre rosto com que se entrega á sua obscura missão, podendo com as qualidades que tem aspirar a melhor posição na vida ecclesiastica!
—Não quer. Affeiçoou-se a isto, e nunca mais d'aqui sahiu. Eu amo-o com ternura. Já foi elle quem me baptisou. Devo-lhe provas de profunda estima. Tem sido elle o anjo pacificador das desordens grandes que tem ameaçado a estabilidade da nossa familia.
—Verdadeiro pastor!—atalhei eu com sincero respeito. E acrescentei, passados instantes:—A[19] senhora, que vive com elle, é sobrinha?
—A senhora?!—acudiu meu compadre.—Está enganado. Elle não tem mulher de casta nenhuma em casa. Vive com um criado velho, que já veio com elle em 1835.—Perdão! eu vi hoje lá uma senhora na janella que diz para o pateo.
Riu-se meu compadre, e, remoqueando, ajuntou:
—O meu amigo, provavelmente, estava a idealisar castellãs na residencia que tem ares de castello arruinado, e figurou-se-lhe vêr uma sobrinha do abbade.
—Compadre—repliquei—eu sei quando vejo castellãs e sei quando vejo sobrinhas d'abbades. O senhor tem a certeza de que não ha mulher n'aquella casa?
—Tenho tanta certeza como estar eu com o meu amigo n'este pomar.
—Então, permitta-me dizer-lhe que o seu abbade é um patife.
—Ó compadre!... Um patife?!
—Ou dous patifes em um só abbade. Demonstro: se é sobrinha, e por tanto uma familiar licita e honesta, não havia razão para escondel-a, nem ella para se esconder rapidamente de mim: logo, não é sobrinha; e, se não é sobrinha, é... conclua vossê a demonstração.[20] Que é a mulher que vive com um abbade, e não quer ser vista?
—Que imaginação! que romancista!—exclamou meu compadre—Desengane-se. Este homem póde ser que não seja o padre mais virtuoso, nem aspire a ser canonisado; mas mulher em casa nunca teve alguma, nem, ha vinte e cinco annos, alguem lh'a conheceu na freguezia ou fóra d'ella. Que mais quer que eu lhe diga?
—Que me creia; que se convença de que o seu abbade tem na residencia uma mulher; que esta mulher é bonita; que eu dava n'esta santa hora dous beijos...
—N'ella?
—Não, em vossê, se me descobrisse o mysterio d'aquella mulher, alli sequestrada do mundo, e absorvida toda na felicidade de um homem, que a esconde com tanta avareza, que os seus mais particulares amigos ignoram que tal creatura exista.
O meu compadre, feita uma longa pausa de reflexão, disse:
—Terá vossê razão!...
—Não é razão: é olhos. Juro-lhe que a vi.
—O que lhe posso dizer é que nunca entrei ao interior da residencia, nem pessoa alguma que eu saiba. Tem uma saleta onde era d'antes adéga, e onde recebe as pessoas que[21] o procuram. Quando esteve, ha annos, doente, e precisava de medico, e de receber mais forçosamente quem o visitava, passou a cama para a saleta ao rez do pateo. Eu ia lá todos os dias, e nunca vi ao pé d'elle senão o criado; mas scismava com um rumor de passos no sobrado superior; e elle dizia-me que eram ratos.
—Eram ratazanas—corrigi eu.
—Pois seriam...—condescendeu o compadre, e prometteu esforçar-se por satisfazer a minha curiosidade.—Outra cousa,—disse-me elle quando iamos entrando em casa de volta do pomar.—Aqui vem todos os annos, em setembro, um rapaz estudante de Coimbra, que é sobrinho do abbade. Este rapaz dorme lá em cima. É crivel que elle, tão precavido com os outros, não escondesse a amante das vistas do sobrinho?!
—E quem nós diz a nós que o sobrinho não é filho, e que a amante não é mãi do tal rapaz?
—Onde isso já vai! Já vossê inventou prole ao homem para ter motivo para o segundo tomo do romance! Ora, meu amigo... Não me disse que ella era rapariga e bella?
—Rapariga, não disse.
—Note que o tal rapaz tem vinte e dous annos.[22]
—E ella póde ter quarenta, e ser mãi, e ser ainda bella.
—Isso é verdade. Seja como fôr, estou picado. Hei de esgotar todos os recursos da minha espionagem; mas com uma condição: o que eu poder descobrir, dir-lh'o-hei; mas vossê não o divulgará, sob pena de me dar remorsos de publicar as fragilidades de um homem a quem devo as maiores finezas.
—Pois se receia que eu, levado do furor romantico, venha a assoalhar os MYSTERIOS DO SENHOR ABBADE, nada indague, e nada me diga. Eu sou um homem que conto a minha vida quando não posso, por ignorancia, contar a vida alheia. Antes quero não saber nada. Passe por cá muito bem o snr. abbade, e não perturbe vossê a paz d'essa familia, onde bem póde ser que as lagrimas tenham delido as maculas de muita culpa. Se elle é padre, tambem póde ser pai. Pater, pai, padre. E pater é pai, como diz, nas Odes modernas, o meu amigo Anthero do Quental. Fiquemos n'isto.
Dobraram-se os annos, desde 1861, sem que eu me intromettesse na vida intima do[33] abbade. Em 1870, ultima vez que o vi, estava elle em Famalicão, na feira-grande de maio, apostando ao monte com muita felicidade. Reparei pouco n'esta perfida ventura de quem joga, e dei grande attenção á rapida velhice do padre. Poucos vestigios conservava do robusto homem dos cincoenta annos. Estava decrepito, enrugado, curvo, movia-se arrastando uma perna, trajava negligentemente; o collarinho da camisa surrado nos vincos revelava a invencivel desconsolação da doença, a dolorosa convicção de que a morte não merece ser requestada com camisa lavada.
Deteve-se commigo uns quinze minutos, expondo-me a sua enfermidade, com tristeza, sem esperança, mas conformado com a previsão da sepultura. A doença estava acertadamente qualificada: era uma alteração de sangue. Poucas são as pessoas que podem gabar-se de saber de que morrem.
E então me disse umas palavras que me deram rebates da historia de Beatriz de Vilalva, consoante a eu ouvira adulterada na casa de Pildre.
Contou-me, ao proposito de um sujeito de appellido Queiroz, que passára cortejando-me, que aquelle sujeito era seu primo em terceiro grau; por quanto, seu avô era bastardo dos Queirozes Coimbras, e casára com uma abastada[24] lavradora da casa e quinta do Pomar no concelho de Felgueiras.
A denominação da quinta suscitou-me a primeira reminiscencia; mas com a natural indecisão em cousas tão remotas.
Depois, como a conversação descahisse para saudades da mocidade, notei-lhe o recolhimento subito, e logo um suspiro muito intimo do seio, e um leve orvalhar de lagrimas.
—A mocidade...—disse elle.—Prouvera a Deus que eu não sahisse do meu cubiculo antes dos quarenta annos! Eu não saberia a esta hora que tive mocidade; e, ao termo da vida, olharia sem saudade para o passado, e sem abalo do porvir.
—Mas...—volvi eu intencionalmente—se não enganam as apparencias, a vida de v. s.ª correu serenamente e alumiada pela virtude, como os arroios nas noites do estio prateados pela luz do luar...
—Enganam as apparencias—replicou o abbade, apertando-me convulsivamente a mão como a despedir-se.—A minha vida teve uma só tempestade; mas essa durou cincoenta annos. A final, ferrei ancora, e achei terra; mas terra do sepulcro. A sua curiosidade—bem lh'a vejo no rosto—ha de ser satisfeita em breve. Espere que a maledicencia, que eu pude enganar cincoenta annos, se vingue no meu cadaver. O mundo tolera; mas não perdôa a[25] quem o sabe illudir. Se, a final, se não vinga no vivo, vinga-se no morto. E adeus. Se eu poder, irei visital-o a Seide, e conversaremos mais detidamente.
—Se v. s.ª me permitte, irei a sua casa.
—Não vá; que a minha residencia é triste como uma caverna onde não penetra raio de sol.
Era meu dever não desfiar a lugubre imagem, porque eu bem conhecia os fios mysteriosos que a teciam. Elle afastou-se, e eu, com tão poucos dados, fiquei conjecturando se aquelle seria o egresso da lendaria Beatriz de Vilalva.
Era. O leitor, de sobra, sabe que era elle.
Dous mezes depois, vi annunciada a morte do abbade de S. P. de E***. Estava eu no Porto, e anciei saber as particularidades d'aquelle trespasse.
Quanto ao morrer, disseram-me que de uma ligeira esfoliação em uma perna resultára uma rapida gangrena, e a morte seguintemente.
Quando alguns freguezes entraram á residencia,[26] alvorotados pelo dobrar do sino, viram á beira do morto uma senhora que nunca tinham visto, e o mancebo que já conheciam como sobrinho do abbade.
Esta senhora tinha os cabellos brancos, as faces cavadas, e a luz dos olhos embaciada pelas lagrimas. Perguntaram-lhe se era irmã do snr. abbade. Respondeu que não.
Abriu-se o testamento do defunto, e leu-se que tudo quanto n'aquella casa existia, tirante os utensilios da igreja, pertenciam á snr.ª D. Beatriz Pacheco Leite de Menezes, sua herdeira universal. Declarava que o testamento seria apresentado pela mesma senhora, e os necessarios esclarecimentos ácerca da idoneidade da herdeira os encontraria quem os solicitasse confirmados por escriptura na nota do tabellião, que mencionava.
A herança do abbade montava a doze contos de reis em dinheiro, producto das heranças provindas de irmãos fallecidos sem descendencia, e de uma quinta no concelho de Amarante, intitulada Vilalva. Por onde se infere que padre João de Queiroz havia comprado aos herdeiros do capitão-mór da lixa a casa onde Beatriz tivera o berço, e onde ia encontrar o leito da morte.
Quando o defunto era conduzido á sepultura, Beatriz de Vilalva sahiu com seu filho d'aquella casa onde vivera enclaustrada desde[27] 1835 até 1872, trinta e sete annos sem ouvir de labios estranhos uma saudação. Acompanhou-os um velho—aquelle mesmo criado que a conduzira á casa de Felgueiras na noite da fuga, e levára á beira do Tamega a capa com o escripto, e atirára á corrente os sapatos.
Um dia, amanheceu á porta da quinta de Vilalva aquella familia desconhecida na terra. O criado abriu as portas. Beatriz correu direita a um dos quartos da casa. Atirou-se contra um leito, como quem abraça um cadaver, e chamou a estridentes gritos sua mãi. Ella imaginava que a douda morrera alli, depois de a ter amaldiçoado. O filho arrancando-a do quarto escuro, tirou-a para uma sala carinhosamente, e disse-lhe:
—Minha querida mãi, se a senhora não amou quanto devia essa infeliz que morreu louca, Deus lhe perdoou pelo muito que padeceu sepultando-se viva para esconder a sua culpa; e eu lhe provarei que Deus teve compaixão da sua penitencia, enchendo-me o coração do extremoso amor com que farei a felicidade dos seus ultimos annos.
Beatriz lançou-se a soluçar nos braços do filho, ungindo-lhe o rosto de lagrimas.
*
* *[28]
As pessoas antigas d'aquelles sitios não cessam de procurar occasião em que vejam aquella formosissima Beatriz por cuja alma rezaram, posto que o parocho lhes dissesse que a alma da suicida havia cahido de chofre e a prumo no inferno.
E, de feito, lá vêem a miudo passar pelos maus trilhos que conduzem á casa dos pobres e dos enfermos uma senhora vestida de negro, precedida do criado ancião que a conduz.
—Bemdito seja o Senhor!—exclamam pondo as mãos as velhas que a conheceram menina.
E ella acercando-as de si, pergunta-lhes os nomes, recorda-se, chora, e consola-se, quando alguma d'ellas póde acolher-se ao regaço da sua beneficencia.
Se Deus lhe não houvesse perdoado, seria feito á imagem do homem.[29]
[1] Certo respeito, demasiado talvez, me cohibe de declarar extensamente o nome do abbade, e o padroeiro da abbadia. Os leitores, convisinhos do local onde escrevo, sabem que não estou phantasiando.
Ha bastantes annos que eu sahi com este repto aos biographos do author das Saudades:
«O meu parecer é que Bernardim, e tambem Bernaldim Ribeiro, ou Bernardim Reinardino Ribeiro, como Faria e Sousa o chama, nem foi governador de S. Jorge da Mina, nem amou a infanta D. Beatriz, nem sahiu da sua terra, para Lisboa, senão depois que ella já tinha sahido de Lisboa para Saboya. Corre-me obrigação de pôr as clausulas d'este meu juizo, tão encontrado com o de doutos investigadores. Fal-o-hei em pouco, porque não cabe n'este genero de escriptos grande cavar em terra d'onde o que sahe, para o commum dos leitores, é pedregulho.
Em primeiro, tenho como provavel que[30] Bernardim Ribeiro, sob o pseudonymo de Jano, falla de si na ecloga 2.ª Ahi diz elle:
Quando as fomes grandes foram,
Que Alemtejo foi perdido,
Da aldêa que chamam Torrão
Foi este pastor fugido:
Levava um pouco de gado, etc.
E continúa:
Toda a terra foi perdida;
No campo do Tejo só
Achava o gado guarida,
Vêr Alemtejo era um dó;
E Jano para salvar
O gado que lhe ficou,
Foi esta terra buscar, etc.
«Temos, pois, o poeta allegorico do Torrão—naturalidade que todos os biographos unanimemente dão a Bernardim Ribeiro—em Lisboa no anno das grandes fomes, que foi em 1522. Ora, D. Beatriz, em 5 de agosto de 1521, tinha sahido para Saboya.
«Nenhum biographo até agora assignou o anno do nascimento ou o da morte de Bernardim Ribeiro. Póde, se o meu modo de decifrar a ecloga é plausivel, marcar-se-lhe o anno do nascimento em 1500, ou 1501 mais exacto, porque o pastor, n'outro ponto da mesma ecloga 2.ª diz:[31]
Agora hei vinte e um annos,
E nunca inda té agora
Me acorda de sentir damnos... etc.
«Quanto ao governo de S. Jorge, capitania-mór das armadas da India e commenda de Villa Cova, é tudo isso um equivoco do author da Bibliotheca Lusitana, com o qual se bandeou a boa fé de escriptores de grande porte. O Bernardim Ribeiro, governador de S. Jorge da Mina, assistiu em 1526 ao cerco de Mazagão, d'onde sahiu abrasado d'uma explosão de polvora. (Veja a Chronica de D. Sebastião por D. Manoel de Menezes).»
*
* *
O snr. Innocencio Francisco da Silva, no tomo VIII do Diccionario bibliographico, pag. 379, não aceita como bastantemente decisivos os meus reparos. Traslado as razões do insigne escriptor:
«O snr. Camillo Castello Branco, em uma nota do folhetim que com o titulo Dous corações guizados publicou..., não só põe em duvida, mas nega redondamente que Bernardim Ribeiro, author das Saudades, seja o mesmo a quem os biographos attribuem as qualidades[32] de commendador, governador de S. Jorge da Mina, e amante da infanta D. Beatriz, etc. Salvo o respeito devido ao nosso... romancista e meu presado amigo, parece-me que o juizo definitivo que se haja de assentar sobre estes pontos depende ainda de ulteriores averiguações. Deixo-as a quem tiver por ellas o tempo e a paciencia que de presente me faltou.»
Ulteriores investigações que fiz em cartapacios genealogicos e coevos levaram-me da certeza á evidencia de que Bernardim Ribeiro, o poeta, não era Bernardim Ribeiro Pacheco, o commendador de Villa Cova da ordem de Christo e capitão-mór das naus da india, casado com D. Maria de Vilhena, filha de D. Manoel de Menezes, nem ainda o outro Bernardim Ribeiro, governador de S. Jorge.
Do poeta, que pertencia a familia nobilissima do Torrão, logo veremos que não se esqueceram os genealogicos contemporaneos.
Do seu homonymo, para quem Barbosa Machado facilmente usurpou a immortalidade do outro, sei o nome de paes, de avós e de filhos.
Era filho de Luiz Estevianes Ribeiro, criado e thesoureiro do infante D. Fernando (filho de el-rei D. Manoel) e fidalgo de sua casa. Nasceu em Lisboa, junto á ponte de Alcantara, na quinta da Rola, que D. João I dera a um de seus avós.[33]
Casou com D. Maria de Vilhena, filha de D. Manoel de Menezes.
Assistiu á batalha de Alcacer-Quivir, e ficou captivo. Voltando ao reino, foi despachado capitão-mór das naus da India em 1589, como paga de ter votado a favor da successão de Philippe II, e n'esse mesmo anno teve a commenda de Villa Cova.
Se o poeta Bernardim Ribeiro tinha em 1522 os vinte e um ou vinte e dous annos que se inferem dos versos citados, orçaria em 1589 pela idade dos noventa, pouco viçosa para capitanear a frota da India.
Dizem que o Bernardim Ribeiro, poeta, deixára uma filha.
O Bernardim, commendador, deixou dous filhos e uma filha: Luiz, Manoel e D. Maria de Menezes.
Luiz Ribeiro Pacheco herdou a commenda de seu pai, e serviu-a em Ceuta. Casou com D. Catharina de Athayde, filha de Francisco de Portugal, e já viuva de Fernão Gomes Dragão.
Manoel serviu commenda em Tanger, e morreu solteiro.
D. Maria de Menezes casou com Luiz da Cunha, cognominado o Pequenino.
De Luiz Ribeiro Pacheco nasceu Bernardim Ribeiro Pacheco, fallecido antes de casar.[34] Os haveres vinculados passaram para sua tia D. Maria de Menezes.
Temos ainda outro Bernardim (ou Bernardino) Ribeiro, que era o governador de S. Jorge da Mina, e sahiu abrasado do cerco de Mazagão em 1526, consoante a Chronica de D. Sebastião, por D. Manoel de Menezes.
Tres Bernardins andam, pois, fundidos no cantor da Menina e Moça, Deus sabe com que bullas em affinidades intellectuaes: parentes com certeza eram.
Se um dos tres amou a filha d'el-rei D. Manoel, de semelhante ousadia é justo censurar-se o poeta, embora d'ahi lhe promane a sua romantica immortalidade. Se o matassem na rua Nova os moços do monte d'el-rei, como dizem as Memorias ineditas de Diogo de Paiva de Andrade, a catastrophe assim contada no poema, no romance, ou na tragedia maiores realces daria ao desditoso provençal. Morrer assim, ou morrer commendador, e macrobio, como querem Garrett, e Costa e Silva e tantos outros engenhos atilados, são cousas diversissimas para a arte, que houver de assentar o pedestal do solitario bardo da serra de Cintra.
Mas a verdade é outra.
No principio do seculo XVIII ventilava-se uma questão de vinculos entre familias do Torrão que se assignavam Ribeiros e Mascarenhas,[35] e appenso aos autos andava um instrumento antigo em que João Ribeiro, filho de Gonçalo Ribeiro, senhor de Aguiar de Neiva e Couto de Carvoeiro no almoxarifado de Ponte do lima, provava ser primo co-irmão de Bernardim Ribeiro, fidalgo principal e muito conhecido pelos seus versos intitulados Menina e Moça. O referido instrumento era passado em 1552, sendo já fallecido Bernardim Ribeiro.
Dos Mascarenhas, que venceram o pleito, era ascendente Manoel da Silva Mascarenhas, que servira em Tanger e nas armadas de Castella com o general D. Fradique de Toledo. Voltando a Portugal em 1640, foi um dos denunciantes da conjuração de 1641; e em premio d'isso o galardoou D. João IV com a alcaidaria da Torre de Outão, e ao mesmo tempo exerceu as funcções de guarda-mór da alfandega de Lisboa. Este Manoel da Silva Mascarenhas editou em 1645 as poesias do seu parente, mudando o titulo de Menina e Moça para Saudades de Bernardim Ribeiro.
D'este ramo não houve successão que hoje possa gloriar-se de parentesco remoto com o poeta. Manoel da Silva Mascarenhas foi casado com D. Garcia Pereira, filha de João Sodré, de Ourem; mas não deixou filhos legitimos. Teve dous bastardos: um mataram-lh'o em Setubal; do outro não fazem cabedal os linhagistas.[36] Se o leitor e eu tivessemos pachorra, iriamos esquadrinhar a circulação sanguinea de nove ou dez gerações até encontrar globulos muito depauperados do sangue de Bernardim Ribeiro na familia Leites Pereiras de Mello, de S. João Novo, no Porto.
Mas um descobrimento de tão magna valia tanto importa á familia Leite Pereira, como ao leitor, como a mim,—um dos bons tolos que tem produzido a heraldica n'este seculo XIX!
SATYRA FEITA A FRANCISCO DIAS, TENDEIRO, COM LOJA DE MERCEARIA NA RUA DAS ARCAS, CHAMADO POR ALCUNHA O DOUTOR BOTIJA, EM RESPOSTA DE OUTRA, QUE FEZ A UM SUJEITO, DE QUEM NÃO TINHA O MINIMO CONHECIMENTO, NEM O MENOR ESCANDALO.
Em quanto agora, o rude teu caixeiro
Unta as guedelhas no mofino azeite,
Que sobra do nojento candieiro;[37]
Em quanto se entretem no porco enfeite,
E fervoroso tu lhe estás prégando
Para que nas balanças menos deite:
Ó mofino, meus versos escutando,
Melhor aprende a venerar a gente,
Que os jumentos, quaes tu, sabe ir picando.
Que sequaz te induziu, feio demente,
A romperes c'o a ovelha? que pateta
Nas garras te lançou do mal presente?
Foi talvez o politico de treta,
Humanado morcego, que na escura
Noite, á lambuge sahe da branca e preta[2]?
Calvo peralta, que sem tom murmura:
Venero-o; que é burrinho sustentado
Pelos serviços do defunto cura.
Foi algum minorista relaxado
Heroe dos Ganimedes, padre velho,
Nos dogmas de Lieu controversado?
Bibliographico vão de alto conselho:
Governa-te por esse moralista,
Que vende em praça o gato por coelho.
Nem estes, nem o secco rabulista,
Aguia manhosa, que folgando espera
Comer, nas garras, quem tentar na alpista.
De que hoje te arrepelles defendera,
Por chamares ao circulo um amigo
Que de asnos despicar-se não quizera.[38]
Eia commigo, pedantão, commigo,
Que da Laconia os cães excedo na arte,
Com que em vereda os lobos maus persigo.
Não determino os versos censurar-te;
Supposto manifestem que os favores
Calliope comtigo não reparte.
Nem respondo tão pouco aos rimadores,
Que dão ás aguas de Hyppocrene o gosto
N'um cantar, como aos echos dos tambores.
Phebo a taes ignorantes volta o rosto:
Das lyras que no Olympo ouvir estima,
N'um ão com um ão o gosto não tem posto.
Nem menos aos exemplos teus da rima:
Sem ella os campos lacios, e os da aurora,
Deram plectros, que a todos vão de cima.
Nos mil volumes, creio lês por fóra;
Mas excede na orelha um mau jumento
Quem de Apollo as acções assim decóra.
Menos respondo ao baixo atrevimento,
De me accusares por fallar das artes,
Em meio de qualquer ajuntamento.
Comtigo n'isto a injuria bem repartes;
O sabio no lugar onde apparece
Das mãos não larga Homéro, nem Descartes.
Ditoso quem no mundo isto conhece!
Ditoso aquelle, que d'um n'outro errando,
Vagueia, té que a aurora lhe amanhece!
Cada um na sua herdade anda lavrando:
Tu desvelas-te em ser rico tendeiro,
Eu em andar nas artes estudando.[39]
Nenhum d'estes defeitos, eu requeiro
Para abaixar-te a longa orelha; emprégo
Outro arrocho maior, maior fueiro.
Por isso de outros erros te não prégo:
Qual é o de seguires que entre os homes
O lynce represente ser um cego.
Teme-os embora tu, que d'elles comes;
Mas olha que ao cobarde a espada corta:
Nunca livre obra, quem receia fomes.
Quem te mette a induzir na estrada torta,
O que voar pretende além dos céos?
A porta da virtude é estreita porta.
Pondera, se com taes descuidos teus,
Não podia opprimir-te, envergonhar-te,
Se vergonha consente o mal nos seus.
Vê se bastante era isto a depennar-te,
D'essa vaidade, com que te apresentas
Decidindo de leve em qualquer parte.
Bem como as aves já de orgulho isentas
A gralha depennaram, que entendia
Encobrir suas plumas macilentas.
Que mal c'o as do pavão se revestia,
Eis lh'as depennam logo, e perseguindo
Vão todas a infeliz, que lhes fugia.
Hoje atravessa os mares repetindo:
Ao vaidoso mui mal serve a vaidade:
E de echo o exemplo teu lhe está servindo.
Se não tiveste geito para abbade,
Nem para leigo ser da Estremadura,
Quem te mette a inculcar letras de frade?[40]
A natura não é contra natura:
Para Minerva, e Clio não tens ara,
Que um bom senso, não soffre má figura.
Qual das celestes musas não julgára,
Se teus metros Apollo a lêr vos dera,
Que em seu presidio Circe te hospedára?
E que tornar-te em burro pretendera,
Com mania de versos maus fazeres,
Como n'outros por magica fizera?
Para o que seus veneficos poderes,
Ajuntando, com vara diamantina
Te deu, ferindo o chão, a orelha a veres?
Mas Phebo a cousas taes me não destina.
Só na grandeza enorme da ambição,
Que te occupa, meu rude plectro afina.
Já sinto se me inflamma o coração,
Ah! Menippo cruel da mercearia,
Nas tramoias da tenda sabichão!
Onde férvido corres á porfia,
Uns dinheiros, sobre outros encofrando,
Sem afrouxares nunca em tal mania[3]?
Não vês que eterno mal estás cavando
A vida, que respiras, praguejada
Pela miseria dos que estão penando?
Quem te encontra de capa esfrangalhada,
Surdindo já pelo sapato o dedo,
Porcas as mãos, a cara besuntada,[41]
O ar do rosto, de quem come azedo,
As melenas hirsutas, mal corridas,
Figura, que promove o nojo e medo:
Diria: «que mal correm as medidas
A este pobre!» a não te conhecer
Pelo mais traficante busca-vidas.
Com que razão, te intentas defender,
Sendo não só nos males teus culpado,
Mas nos de quantos menos podem ter?
Não sei como respiras socegado
Encontrando no mundo a cada passo
O triste, que tu fazes desgraçado!
Podes voltar as costas, ó escasso,
Á vista da miserrima figura,
De quantos mata o famulento laço?
Do pobre, que esforçar-se em vão procura,
Contra o peso dos annos, que servindo
Lhe estão de açoute, até á sepultura?
Do enfermo, que o grave mal sentindo,
Olha, e vê a terrivel desnudez
Estar-lhe aos pés a fria cova abrindo.
Presumo que em tal scena te não vês,
Ignorante selvage inda peor,
Que os mouros de Marrocos, ou de Fez.
Não te abrandam os echos do clamor
Da misera viuva, rodeada
Dos tenros fructos do passado amor,
Que rota, lacrimosa, esguedelhada,
Um dia vê raiar, vê outro dia,
Sem que lhe digam: «toma, desgraçada!»[42]
Avaro sabichão da Barberia,
Aos golpes morrerás dos crueis damnos,
Que aos tristes motivar tua mania.
Pondéra meus sinceros desenganos,
Que de outro peso são, que os palavrosos
Discursos teus, errados, e profanos.
Fizeram na terra o mal os cobiçosos;
N'elles origem teve este direito,
Que faz o rico, e faz os desditosos.
N'elles é que se viu o homem sujeito:
N'elles a causa da ignorancia existe,
Pois ninguem conhecer quer seu defeito.
Porque de erros tão feios não sahiste,
Se ser tentavas critico dos homes?
N'um bom exemplo a boa lei consiste.
Outra vereda é licito que tomes;
Seja essa a de tendeiro, em que nasceste
Entre os exemplos já, de unhas de fomes.
Olha a quanto por nescio te expozeste!
A perderes do ser de humano a gloria,
Porque outro avaro Midas te fizeste!
Na terra gravarão triste memoria
Teus vicios, e acções escandalosas
Nunca sonhadas na mais vil historia.
Com que horror te olharão castas esposas,
Sabendo que aprouveste á tua dar
Um tostão, vendo-a enferma? E que repousas!
Com que odio chegarão a recordar
Não seguiste as leis do deus vendado,
Por mais cobres na burra accumular?[43]
Morrendo viva o mal aventurado;
(Dirão ellas) nem d'elle se encarregue
O Charonte no Averno ao remo usado.
De Ixion, e Tantalo aos trabalhos chegue;
Nas garras das harpias monstruosas
Com elle, a grã discordia irada prégue.
Cáia aos pés das Euménides raivosas,
Que as cabeças de viboras povoadas
Cingem de escuras fitas sanguinosas.
Gema nas mãos das funebres e iradas
Scyllas biformes, cuja enormidade
As montanhas assombra inanimadas.
Que inda pequena é calamidade
Para quem dobra aos pés uma innocente
Dos vicios, que disfarça em castidade.
Ah! mofinento critico, indolente,
Para opprobrios respiras n'este mundo,
Alvo já dos rapazes, e da gente!
Vê porque nome trocas o profundo
Socego da virtude, tão querido,
Menippo turbulento, vil, e immundo!
Vê porque gloria vives opprimido,
Querendo bravo dar a conhecer-te,
Pela besta maior que tem nascido!
Sahe vacillante quem chegou a vêr-te
Sobre côxo banquinho repimpado
Ao canto do balcão, sem nunca erguer-te.
Quando ao mais alto o dia tem chegado
Ergueres essa cara agolfinhada,
Isto dizendo ao caixa enlabuzado:[44]
«Ouves, tratante, uma hora é já passada:
Vai vêr no Talaveiras se sobeja
Alguma cousa, muito acommodada.
Senão, á cêa basta que isto seja;
Que eu por mim, te confesso, estou impando:
Inda a sardinha de hontem cá branqueja.»
Sahe aturdido quem te viu ceando
Negra bolacha, e na herva mal cozida,
Pingo e pingo o azeite alto deitando.
Mosca que ao prato vem, dobra a lambida
Mesa de cão; e ao longe teu caixeiro
Comendo está n'um canto por medida.
Mofino, que avançado no terreiro
O mundo desafias, teme agora
Morrer na espada do feroz Rogeiro.
Teme, teme os clamores, muito embora,
Da grã calamidade, que gemendo
Triste escrava do avaro, amarga chora:
Da grã calamidade, que volvendo
Os olhos para os céos, efficazmente
Expondo o mal, que á força está fazendo.
Eterno Padre, Justo, Omnipotente,
(Diga, vendo-se toda rodeada
Da miserrima, triste, e pobre gente)
Não posso respirar mais subjugada.
Aos erros da avareza repetidos
Por cujas mãos tyrannas fui criada.
Mil vezes entre funebres gemidos,
Vi abraçar os pés aos avarentos
Homens, estes que trago perseguidos.[45]
Dizendo-lhes com ais, e pensamentos
Que as montanhas curvavam de gemer:
Ó vós, causas crueis d'estes tormentos!
Já que os templos dos numes soffreis vêr
Desornados, dos numes que piedosos
Vos deram vida, humanidade e ser:
Já que os olhos cerraes aos magestosos
Preceitos seus, no coração gravados;
Já que abusaes de serem generosos,
Ao menos vos commovam, desgraçados,
Miseros gostos nossos, innocentes
Combatidos da fome, e destroçados.
Não sejaes fortes com as humildes gentes:
Possa-vos compungir esta lembrança:
Que sois co' os irmãos vossos, inclementes.
Possa abalar-vos da primeira usança
As leis, restituindo á natureza
A gloria, os bens, o ser, a segurança.
Nada, ó Jove, abrandou sua dureza;
As razões todo o vicio aos homens tiram;
Mas a razões não olha o da avareza.
Ah! fulminante deus, quanto sentiram
Esses que desthronar-te já quizeram,
Que as penhas sobre penhas enxeriram!
Desata sobre avaros, que offenderam
Da natureza as leis n'um semelhante;
Que commetter mil males me fizeram.
Desata já das nuvens coruscante
Raio que envolva em subtil cinza quantos
Mofinos tem o mundo, ó deus tonante,[46]
E dizendo isto, cáiam mil e tantos
Coriscos logo, serpenteando os ares,
Que te acabem entre horridos espantos.
Eis, clamarás então: santos altares,
Valei, valei!—porém mal acabando,
Tornado em cinzas te verão ficares.
Oh! quanto os teus, teus males alegrando
Correndo logo em turba, o cofre abrindo,
Vejo as mãos para os céos alevantando!
Uns o arroz da tenda já medindo,
Outros de um ar choroso mascarados
De quando em quando para um canto rindo!
A fama de improviso aos desgraçados
Corre, e por cem boccas apregoa,
Teus fins terriveis, mal aventurados.
Nenhum mais se entristece, nem magôa.
É justo o céo, é justo, pois castiga
Os avaros. Eis quanto n'elles sôa.
Pedante, não maltrates a barriga,
Entre saccos, e saccos de alimentos;
Não sejas mais avaro que a formiga.
Não queiras ser com muitos avarentos
Semelhante a Lycurgo, rodeado
De cofres, expirando nos tormentos.
Vive de tua esposa acompanhado,
Tendeirinhos pequenos fabricando,
Que bem obra quem segue o decretado.
Vai as medidas tu satyrisando,
Que para bocca d'asno o mel não é;
Deixa de andar as musas inquietando.[47]
Para critico seres, tens mau pé:
Não murmures de outeiros, que em verdade,
N'elles Apollo o bom, e ruim vê.
E se fumos desejas ter de abbade,
Mostrando-te doutor de mitra, e toga,
Com primazias de robusto frade;
Aos ratos deixa a tenda, e desafoga:
Segue do Paiz Baixo essa mofina
Estrada; e vai firmar-te á synagoga.
Porque entre os phariseus da lei rabina,
Te inculcarás mui bem, já me percebes[4];
A natureza mais do que a arte ensina.
Entre nós os do Luso, não recebes
Louvor algum; olham-te mau tendeiro,
Um vil que na ambição nunca assás bebes.
Não saques mais as gentes a terreiro,
Que aos maus sou formidavel, arrebato
Nos cornos a capinha mais ligeiro.
As virtudes abraça de barato;
Olha que serás mais atassalhado,
Que na bocca do cão raivoso, o gato.
Sou semelhente ao genro desprezado
Por Licambo, ou bem ao inimigo
Vingativo do bufalo malvado.
Vende o bom bacalhau, o melhor figo:
Argumenta c'o teu almotacé:
Detesta os vicios, anda só comtigo,
O Alcorão não sigas de Mahomet.[48]
*
* *
A mais completa noticia que temos de José Anastacio da Cunha deve-se ao esclarecido investigador, o snr. Innocencio Francisco da Silva (Dicc. bib., t. IV, pag. 221-231). Aqui encontramos pela primeira vez a sentença inquisitorial que condemna José Anastacio da Cunha a ouvil-a no auto publico de fé, com habito penitencial. A sentença confisca-lhe todos os bens, encerra-o por tres annos na congregação do oratorio, com dous dias de penitencia em cada mez no primeiro anno; findo o triennio da reclusão, desterra-o por quatro annos para Evora, e veda-lhe perpetuamente o ingresso em Coimbra e Valença.
Concluidos os tres annos de reclusão, José Anastacio requereu á mesa do santo officio que lhe commutasse o degredo dos quatro annos em residencia na congregação do oratorio. A inquisição condescendeu.
Os delictos do condemnado estão substanciados no exordio da sentença que reza assim: «...e pareceu a todos os votos que o réo pela prova da justiça e suas confissões estava legitimamente convicto no crime de heresia e apostasia por se persuadir dos erros do deismo, tolerantismo, e indifferentismo, tendo para si, e crendo que se salvaria na observancia da lei natural, como a sua razão e a sua consciencia[49] lhe ditasse, sem a sujeitar a algumas leis ou preceitos e sem a regular pelos dogmas da religião revelada que não acreditava; tendo tambem por injustas e tyrannas as leis com que a igreja obriga os fieis a captivar os seus entendimentos e a sujeitar os seus discursos em obsequio da fé e das verdades reveladas que lhes propõem para crerem sem duvida nem hesitação alguma: persuadindo-se igualmente que qualquer pessoa se salvaria em toda e qualquer religião que seguisse e fielmente observasse, capacitado que obrava bem, ainda que errasse, não sendo por malicia, mas só por falta de conhecimentos», etc.
A inquisição já não tinha garras n'aquelle anno de 1778. Vinte annos antes, um réo com menos delictos, seria queimado. José Anastacio orçava então pelos trinta e quatro annos; era tenente do regimento de artilheria do Porto, e lente cathedratico da cadeira de geometria na universidade.
José Monteiro da Rocha, lente de astronomia, figadal inimigo de José Anastacio, teve o maior quinhão no vingado odio que o perdeu. Em um debate scientifico degladiado entre os dous sabios, encontro o professor de geometria assim apreciado por Monteiro da Rocha[5]:[50] Estes papeis respiram tanta arrogancia e presumpção, contém tantas falsidades e imposturas, e desmandam-se em allusões tão satyricas, e dicterios tão grosseiros, insolentes, e malignos que bem manifestamente dão a conhecer que o author tem o miolo desconcertado ou damnado o coração.
Se tinha o coração damnado, a inquisição expungiu-lhe o virus hydrophobo, e Monteiro da Rocha fez uma boa acção proporcionando ao seu inimigo o ensejo de reconciliar-se com S. Domingos, mediante sete annos de reclusão e confisco de bens.
O insigne mathematico falleceu aos quarenta e tres annos de idade, na calçada de Nossa Senhora das Necessidades, nos braços de sua mãi, que elle adorava extremosamente.
O snr. Innocencio Francisco da Silva publicou em 1839 as Composições poeticas do doutor José Anastacio da Cunha, incluindo n'ellas a Voz da Razão que não era de José Anastacio. O illustrado bibliophilo reconheceu depois e confessou o seu engano, por se ater ao boato publico.
Nas mais completas collecções de poesias ineditas do douto philosopho não entra a Voz da Razão. Prezo-me de ter possuido as suas poesias completas, e não vi rastro d'esse poema nem d'outros com a mesma tendencia irreligiosa.[51]
No Diccionario bibliographico, tom. IV, pag. 226, o snr. Innocencio Francisco da Silva, considerando extraviada a maior parte das poesias do seu biographado, escreve: «... João Baptista Vieira Godinho, outro intimo amigo de José Anastacio, fallecido no Rio de Janeiro a 11 de fevereiro de 1811, no posto de tenente-general, teve tambem em seu poder muitas composições do sobredito; porém, confiando-as algum tempo antes de morrer ao conde de Linhares, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ignora-se o destino que tiveram.»
Podiam ter peor destino. Vieram á minha mão em 1872. É um volume em 8.º encadernado em marroquim, dourado por folhas. Contém parte 1.ª e parte 2.ª dos versos. É prefaciado por J. B. V. G. (João Baptista Vieira Godinho), que se propõe reunir as poesias do seu desgraçado amigo. Não sei como este volume sahiu da livraria do conde de Linhares. Eu comprei-o ao livreiro Rodrigues, do Pote das Almas, em Lisboa; e elle comprou-o aos herdeiros do jurisconsulto Pereira e Sousa. O livro, a final, entrou no pantheon mais digno que lhe podia occasionar o fado dos livros que não é sempre o melhor: está na livraria do snr. visconde de Azevedo, no Porto.
Presumo, todavia, que Vieira Godinho não logrou colligir todas as poesias do seu amigo.[52] A Satyra, que o leitor acabou de lêr, pertence a outro codice.
Tambem possuo da letra de José Anastacio a versão muito emendada do 1.º e 3.º acto do Mafoma de Voltaire. Diz lá uma nota de Pereira e Sousa que aquelles mesmos papeis estiveram no cartorio da mesa do santo officio. Por isso eu os guardo com muita veneração, e os beijo reverentemente, pensando que elles passaram pelos bentos dedos do cardeal de Cunha, inquisidor geral.
[2] Diogo José da Serra, um escandaloso vadio d'esta cidade, tão ignorante como devasso. Este homem foi quem induziu á factura da Satyra o doutor Botija.
[3] Calumnia que os herdeiros de Francisco Dias estimariam que não o fosse. O poeta arguido de avarento morreu pobrissimo.
[4] Francisco Dias Gomes era de geração judaica.
[5] Documento inedito de que tambem possue traslado o snr. Innocencio Francisco da Silva.
O correspondente lisbonense do Jornal da Manhã, indigitando o rastilho de futuras combustões no arranjo social das cousas portuguezas, malsina, sem nomeal-os, uns opusculos mensaes, onde se exhibem contra a casa de Bragança ineditos attribuidos falsariamente a arcebispos. Os opusculos accusados com injusta malquerença são as Noites de insomnia, e os manuscriptos arguidos de fraude são os dous[53] innocentes dislates de um illustremente desgraçado talento, cujos autographos offereço a quem, na duvida, quizer examinal-os.
Em nenhum dos dous artigos (a Catastrophe, e D. Maria Caraca) é atacada a dynastia brigantina, e menos ainda a legalidade que assiste á testa coroada, com que mui jubilosamente me envaideço e sobremodo me honro, em nome do partido da ordem, cujo estandarte as Noites de insomnia, desde ora avante, desfraldam.
As noticias, historicamente relativas á familia ducal e real de Bragança, publicadas n'estes livrinhos, não pesam sobre a memoria do esclarecido arcebispo;—são todas de minha lavra, e de minha responsabilidade perante os doutos. Todavia, se alguem me rastreia, n'esse lavor meramente historico, o insidioso plano de aluir o throno, sou obrigado a declarar que não se acham ainda bastantemente decisivas as minhas intenções a respeito de sua magestade, nem me parece que cheguem as cousas a termos de eu ter de desthronar o snr. D. Luiz I. E, dado que razões imprevistas, mas rijas, me impulsem a exterminar a casa de Bragança, hei de fazer quanto em mim couber, na hora do maior perigo, por ter mão... na manta real. Por onde se vê que, em materia de Coriolanos, Belisarios, e outros, ainda os ha por aqui, na patria dos Pachecos.[54] Iniquissimamente, pois, me culpa o escriptor referido, quando me arrola entre os obreiros subterraneos da oligarchia; e ao mesmo tempo incute pavores no animo d'um alto personagem. Por causa d'estes alarmas, temos visto a timidez que se denuncia, e denota pouca firmeza de consciencia, debilidade de espirito, incerteza juridica do lugar que se occupa, braço inerme para a defensão da real e sagrada propriedade. Se conhecem a pusillanimidade d'aquelle a quem cumpre ser forte, e até heroe no cairel da voragem, não lhe mettam espantos na alma com phantasmas; robusteçam-no para a provação, quando a hora troar, a hora maldita em que o povo açacala as garras, e golfa das tabernas com bramidos de leão. Se não querem prevenir as catastrophes, porque não ha prevenções contra a fatalidade, não se finjam previstos, pondo estas innocentes Noites a espreitar Cesar pelo olho esquerdo de Bruto.
Quanto ao arcebispo de Mitylene, não se diga que elle me deixou, como herança de rancores demagogos uns papeis, de que eu estou estillando petroleo para o holocausto da casa de Bragança. Posto que o celebre jurisconsulto, depois de alienado, se imaginasse proscripto dos seus direitos ao ducado brigantino, nunca lhe coou da penna de ferro injuria contra[55] a familia real, que era, pouco mais ou menos, a d'elle.
Verá o leitor, no seguinte artigo, quanto o vidente de mundos defezos ás pessoas que se dizem ajuizadas, respeitava seus regios predecessores, e nomeadamente seu avô o snr. rei D. Manoel, e seu mais remoto avô o snr. D. Affonso Henriques, que elle viu em Villa-Real, trezentos annos antes da povoação d'aquella villa.
Verdadeiramente, a gente não sabe se os doudos são os que vêem cousas estranhas, se somos nós que não vemos senão trivialidades. Gerard de Nerval pende a crêr que os doudos são os que tem o condão extraordinario de vêr o invisivel aos parvoeirões. Regra geral: assim que um homem descamba da linha recta que vai desde o almoço até á cêa através do jantar, a razão humana desconfia d'elle. Se este homem suspeito, unicamente, lesa os seus interesses, chamam-lhe, com piedosa indulgencia, tolo: se, por demasia de espiritualidades, damnifica os interesses alheios, estigmatisam-o de mentecapto. Qualquer das qualificações impellem á morte moral. Eu ainda não atinei bem com a denominação ajustada ao doutor D. Domingos de Magalhães, porque no seu modo de escrever historia, philosophia e moral, se revela muito mais acerto, critica e sciencia que nos livros de uns homens que não se[56] acham bem definidos nas diversas doenças apyreticas do cerebro. Eis aqui um rapto de luz que elle denominou:
(INEDITO DO ARCEBISPO DE MITYLENE, ESCRIPTO NO PERIODO DA ALIENAÇÃO)
No decurso de dezeseis gerações não veio ao mundo nem assomou ao pensamento de nenhum sabio o que a actual inspiração ensina, e communica a todos pelo modo mais extraordinario e divino, ou pela fonte mais pura e heroica do santo e actual desaggravo. A Divina Providencia jámais se revelou tão benefica e misericordiosa, nem tão solicita e desvanecida para com a pobre e triste humanidade, que escurece o beneficio e parece desprezar o seu author divino, só pela torpe e abominavel gloria do seu desprezado egoismo e da sua indomita soberba. Estava já endurecido o coração de Pharaó, e não consentiu a sua vil injuria que o infinito poder da vara e a sua misericordia o livrassem da ira do mar e do justo castigo das aguas.
O sonho actual é de outro Pharaó, que só viu as sete vaccas gordas, e não quiz ou não pôde vêr as magras, e as deixou todas para traz e desprezadas em poder de herejes e de inimigos do santo nome e da fé. Diz a historia[67] que Pharaó viu primeiramente sete vaccas gordas, e que a estas se seguiram sete vaccas muito magras e muito definhadas, que mal podiam sahir do rio aonde se banhavam e bebiam. Ás nossas sete vaccas são sete seculos de dezeseis gerações, que deixamos para traz das costas, magros, definhados e proscriptos, que terminaram pela mais negra, medonha e absoluta penuria de todo o recurso e remedio. A mãi e o pai comem a carne do filho, os mortos jazem sem sepultura, a impiedade triumpha, a verdadeira fé anda foragida, a injuria do Senhor substitue o culto, e sobre as cadeiras de Moysés já não se assentam os escribas e os phariseus; os mais depravados inimigos perseguem em nome do Senhor todos os seus santos ministros, e predizem pelas suas obras o fim do mundo, e a necessidade do ultimo e geral escarmento.
Tal é o quadro da abominavel heresia, e da mais atroz injuria, que se pode levantar contra o Senhor em nome do demonio sem o proclamar como Anti-Christo; o vituperio de tão grande affronta avexa os filhos do Divino Amor, o mais horrivel pesadelo coarcta as suas faculdades, e o delirio do sonho chama e reclama a necessidade do mais santo esconjuro, e da mais afouta e intrepida penitencia. Felizes as mulheres estereis, e mil vezes mais acordado, ou menos infeliz e desprezivel[58] será o aborto, que não recebeu a agua do baptismo nem chegou a uso de razão para não soffrer a injuria da maldita geração do peccado, e do seu enorme e horroroso castigo.
Passados sete seculos como um sonho, quebraram o preito, apagaram a gloria, e amofinaram o beneficio de seiscentas batalhas e de outras tantas victorias, riscaram das paginas mais gloriosas da nossa historia monumentos eternos para escrever o geroglifico da maior vileza que nega as façanhas aos heroes, e depõe a estatua do seu pedestal para a substituirem pela mais desprezivel do seculo, e pelo que tiver deixado nome mais injurioso, conspurcado e escravo.
Descobriram os nossos antigos o Brazil, e fundaram n'elle a maior colonia do mundo, que se fundou sem o vicio dos perseguidos e dos emigrados religiosos e politicos; e os que tiveram esta gloria são desprezados, e os seus herdeiros perseguidos. O usurpador que se fez possuidor para proclamar o falso principio de independente, e que entregou os estados ao ouro, e ao poder da Inglaterra foi levantado e exaltado; porque emprehendeu entre nós a mesma façanha e legou o seu vil commettimento ao partido mais vil e fementido, atroz e degenerado, que pode organisar-se em nome de uma seita protestante e heretica para commetter esta grande aleivosia e[59] diabolico mandato. D. Affonso Henriques ainda dorme o somno dos seculos; os seus heroicos serviços ainda não foram julgados pela posteridade; parece que o grande vulto espera que a fama das suas façanhas o alevante sobre todos os porticos e sobre a fronteira de todos os templos e igrejas catholicas. Que fará a mais hedionda e vil injuria d'este sonho abominavel dos herejes? Levanta o impio e exacerba o catholico, vende a terra da patria; e, para ter sepultura em paiz protestante, pactua com o demonio a quem entregou a alma a traição e o aleive; o seu desdouro é o mais abominavel tramite e caminho do inferno.
Fez em Lisboa injuria ao veneravel corpo e santelmo d'el-rei o snr. D. Manoel, meu presado avô. Os usurpadores apodrecem em seus sarcophagos, e os reis legitimos recendem e perfumam a desfeita porque não legaram a vileza do seu coração, deixaram os estados, os eternos monumentos, os mosteiros e a maior grandeza do reino, e não roubaram nem atraiçoaram nem renegaram de Deus nem da patria, nem abandonaram a justiça nem venderam as suas consciencias.
Como pôde a nação chegar apesar de tão emeritas virtudes e de tão relevantes serviços ao ultimo estado de degradação e vilipendio? Devemos presumir que a nação sempre foi perversa, e que os heroes foram poucos[60] mas estrenuos, e tão briosos e fieis que conquistaram do mundo a maior fama, do Senhor o mais desusado e grandioso favor e auxilio. São poucos os heroes? quantos monarchas illustraram o throno? quantos fieis e valentes venceram em Ourique? quantos foram os mais dignos missionarios do Oriente? quantos Pachecos e Albuquerques? quantos Castros e Mascarenhas? quantos Magalhães e Gamas? Aonde estão as suas estatuas? que é feito do corpo santo de S. Francisco Xavier?
São estas as perguntas que vos dirijo, as invectivas que hei de fazer-vos até o fim: eis o martyrio que appeteço e a santidade que o Senhor me concede, como propheta, para vingar a injuria de sete seculos, o sonho e o pesadelo do mais atroz delirio. Os filhos de S. Francisco, de S. Domingos, de S. Theotonio, e de Santo Antonio que dormem nos claustros dos extinctos e abominados conventos; os monges negros de S. Bento, os inimitaveis de S. Bernardo, toda a familia de Santo Agostinho, os proceres d'Alcantara e de Bruno fallam pela nossa bocca, e dirigem o nosso pensamento n'esta humilde e generosa tarefa. Que fizeste, ó impio, de tanta santidade que perverteste, e da sua grande fama e publica utilidade?
No sonho de sete seculos não pôde a sabedoria de tão grandes heroes levantar o eterno[61] monumento do actual desdouro e da sua fatal cegueira? Somos nós o vingador das injurias, porque o Senhor nos conserva e defende, afouta e encaminha para o nosso honroso e santo ministerio. Está por terra o edifficio de nossa grandeza; vê o mundo, admira e contemplam os anjos a nossa actual miseria e compadecem-se d'este ruinoso estado: só não se move o povo, só o interdicto dorme o maldito somno da morte, e não delira nem appetece a eterna felicidade de sua salvação e liberdade!
Sabemos que o actual abominio tenta exterminar toda a geração d'ourique, e cassar as promessas do Divino Salvador matando o Promettido e Desejado; e d'este projecto ri e zomba, e escarnece a nossa fé pela vaidade do sonho ser digna e merecedora de mais prompto desprezo; mas não basta que o Senhor defenda uma causa para que se considere heroica: convém que o homem e o povo eleito e escolhido para a façanha se mostrem dignos, timbrosos, sobranceiros ao maior perigo e intrepidos e confiados na justiça do commettimento, e na gloria da Divina Protecção. O sonho, que desdoura o homem, cerca de terror o timido e fugitivo escravo do demonio, porque não confia no poder do seu senhor, nem na justiça da causa nem na certeza do seu delicto.
Todas as vezes que me occorre algum nobre pensamento do Divino Amor e do seu desaggravo,[62] não posso resistir ao desejo de o exarar. O amor de Deus é um sentimento imperioso, porque Deus é o summo bem: o que tem a felicidade de vêr o Senhor não póde deixar de o amar sobre todas as cousas; porque assim o exige a natureza do bem que nos arrebata. Se o triste e mesquinho não ama o Senhor sobre todas as cousas, outro espirito assenhorêa a alma do possesso, e pode dizer-se que impera n'ella o demonio. Quem não é por mim é contra mim. A manifestação mais perfeita de amor é o desaggravo da offensa; o que não desaggrava não ama: porque ao summo bem corresponde o amor mais perfeito: não amando, aborrece; e, na presença da injuria e do escandalo do desacato, toma sobre si e á sua conta toda a cumplicidade da offensa, e faz-se digno do mesmo rigor da pena, e do maior castigo devido á perpetração do delicto.
Os mais revezados delictos maculam a geração actual; é uma herança que recorda a dureza de Pharaó e a obstinada e cruel memoria de Herodes e Pilatos. No Egypto a vara do poder, na Judêa o Divino Verbo, que veio ao mundo para nos regenerar, pesam e sentem a falta de desaggravo, e só lamentam a dureza do povo e a sua affectada cegueira. É um sonho, que sempre se repete, e que manifesta bem palpavel n'este mundo das illusões o irresistivel poder do maleficio, que actua sobre os[63] escravos do peccado e filhos da ira e da sua perversa condição. Fuja o homem de commetter o peccado imperdoavel; porque em sua fatal herança não só deturpa e cega, senão que domina e arrasta a alma para a maior perdição, e para o fundo do abysmo.
A quantos d'estes póde aproveitar o desaggravo e o martyrio ninguem ha que ignore, e muitos desejam ser purificados pelos heroicos processos da santa penitencia da fé, mas ninguem os sujeita, nem ha força que os violente; e tremem do exito, vivem no fóco da calumnia e do erro, da perseguição, e d'um para outro dia soffrem a tremenda metempsychose da furia do dragão. Fallamos ao povo que conserva o direito de propria consciencia e algum vislumbre de boa fé para que procure e abrace a salvação da indulgencia e do martyrio, que tem diante.
Quando o fiel d'uma balança pende por força irresistivel para o abysmo, são felizes os que se lançam na outra concha; porque a força contraria os impelle e ascende mais do que a natural virtude dos seus corpos diaphanos. Que bella monção para tão feliz viagem! que bello sonho para os sete seculos venturosos que se hão de completar na eternidade!
Quando nosso Senhor veio ao mundo era o cordeiro immaculado, e veio para o eterno sacrificio do Amor Divino. Nasceu em um presepio,[64] e podia nascer em um monte, que era dado a sua santidade, e fóra do redil aonde nascem quasi todos os cordeiros, mas nasceu em um presepio para nascer entre os pastores e bem resguardado dos lobos, que procuravam o innocente para o matar. Em Bethlem e no templo, quando o menino foi ao Agrado e esteve entre os doutores, renovaram os insanos judeus as suas tentativas e machinações; e por isso o meu Senhor fugiu de Bethlem para o Egypto e d'este a primeira e a segunda vez para a Lusitania; d'onde finalmente sahiu para a grande e heroica missão, que nos remiu no calvario. S. Thiago e S. João eram irmãos do Senhor; veio ás Hespanhas o grande apostolo, e veio tambem S. João, mas nenhum teve o seu martyrio na Peninsula. S. Thiago foi receber á Judêa a sua promessa. S. João foi ao imperio dos Cesares, e á terra do paganismo e do amor depravado da louca e desnudada Venus. Voltaram os seus corpos? que recondito conserva o virginal de S. João? Este sonho póde condizer com a Rodhoma por ter S. João recebido no calvario a santa maternidade da Virgem minha Senhora.
Desde que nascemos para o santo ministerio do actual desaggravo de dezeseis gerações, um presentimento feroz persegue e incita a indomita heresia para nos matar; o veneno é a sua arma; actualmente só o mais decidido milagre[65] me podia salvar da furia; eu presagío que o meio heretico só tende a abysmar os seus altares e instrumentos. O tetrico sonho da ira impotente subjuga os escravos que se irritam e despedaçam, como as ondas que quebram contra o invulneravel rochedo, e se abysmam pela inutil furia do seu audaz commettimento. Os judeus levaram a sua insania ao cabo, e veio o maior castigo do povo e sobre a terra com a justa ira do Senhor: o ultimo propheta foi morto entre o templo e o altar, e a prophecia foi negada para sempre ao judeu, que só tem actualmente a de Jonas, que foi sempre mandado em missão de Ninive e de Babylonia aos pagãos e gentios. A Virgem minha Senhora inaugurou no Carmo o centro da adoração, e transferiu para o novo reino de Sião o docel de sua prophecia aonde se conserva. Se em vez do culto devido á santidade do Senhor o nosso reconhecimento hereditario se convertesse em fel d'injuria, e dessemos ao meu Senhor e á sua Santissima Mãi o calix da maldição dos judeus—deviamos recear que viesse sobre nós o mesmo flagello, e que a falta de desaggravo nos equiparasse para a pena do escarmento ao detestavel povo e aos seus perfidos ministros e traidores.
O nosso centro de desaggravo installou-se na Penha da Estrella e debaixo do docel e da egide da Virgem minha Senhora. Quantos mezes[66] se conspiraram para apagar aquella luz sacrosanta, e comprometteram as suas almas n'este malfadado empenho e ousadia? O seu pensamento era só um, e a nossa morte o unico desenlace de todos os estratagemas. O ministro executor do barbaro decreto trepidou, e desde que chegamos a esta villa até o presente as suas combinações e ardis tem-se resentido da mesma canha e imbecilidade. O coche funerario que me destinava a tyrannia converteu-se na traquitana, que me conduziu á estação; o decreto de despejo que me lançava fóra de casa em Lisboa e d'esta villa ha de executar-se pelo santo direito do talião divino contra os vergonhosos authores, porque todos os seus meios eram d'impios sem fé e sem verdade de juramento, de crueis perseguidores de fieis, e de profanadores dos templos e de sua maxima santidade.
O sonho, que actualmente nos alevanta de toda a desanimação produzida pela heresia, é dos sete seculos magros, que hão de ser coroados por outros sete seculos pingues e ferteis, heroicos e cheios de fartas e de briosas chronicas, que encerrem as façanhas dos fieis, a succinta historia dos povos, e o precinto da catholica santidade e igualdade de todos os filhos e do mesmo Pai santo e commum no céo e na terra. As casas de Bragança e de S. Bruno sempre foram perseguidas pelos nobres e falsos[67] fidalgos: todas as suas façanhas tem sido commandadas por pessoas de familia no fervor do nobre enthusiasmo do povo, executadas pelo devaneio e pelo assombro do milagre, por ficarem em esquecimento e sem galardão do mundo e só com o grande e extraordinariamente mais real e verdadeiro do proprio som e merecimento: por esta razão faltam as estatuas aos heroes, e vem no meio da enxurrada as obscenas dos mais tredos e falsos pyrilampos.
Os seculos, que estão para succeder invocam a audaz cooperação do povo, e exigem que o novo heroe seja o mesmo comicio, e a centuria, que defender o templo e desvanecer o seu culto. É necessario que a Terra Santa reuna o povo mais digno, e que a authoridade e o poder divino unam o capitel e a cimalha do novo edifficio, e commandem a pureza da fé e a sua excellente doutrina com o mais sonoro e metallico alarido de desaggravo e de arguição. Todas as nossas instituições tendem ao valente ensejo d'esta restauração do povo para o fazer nobre e para o exaltar pelo martyrio e por meio da virgindade e da santidade da crença; a corrupção corre em veias e carcome o amago do tronco que apodrece e cahe: a nova arvore estende as suas raizes por todo o mundo e ha de cobrir com os seus copados ramos todas as plagas,[68] e zonas da esphera: o castello que era do procere o do conde ou do rei e senhor, será de Deus e do padre santo, do fiel e do mais devoto e digno de seu sublime culto. Todos os heroes rivalisarão com os filhos de Javão, e dar-se-ha o premio ao que desvanecer maior virtude e sacrificio com mais encarecidas provas, e com mais heroico desinteresse.
O snr. D. Affonso Henriques vestia o talar ecclesiastico para fallar do pulpito, e para narrar as maravilhas de todas as suas victorias, se vinha ao reino algum rei ou principe estrangeiro convidado pelo desejo de estudar as nossas proezas e façanhas e para se informar do seu alarido: o grande monarcha não desejava fallar de assento sem subir ao pulpito, porque n'esta cadeira de verdade recebia as suas inspirações e mais fortes commoções e graças. Todos os estrangeiros estranhavam o monarcha, e o seu habito de paz, que era o talar, senão a batina de estudante: quando o viam subir ao pulpito alguns riam; depois que sentiam as commoções de sua eloquencia e persuasão louvavam o orador e choravam quando o orador chorava, commoviam-se e aplaudiam segundo o costume do tempo com tão fortes demonstrações e signaes, que chegavam a interromper o discurso. N'este emphase de sua justa admiração pediam ao rei que repetisse, e como nada levava estudado[69] progredia ao acaso e sempre com o maior espanto e alarido deixava o auditorio, e corriam a tomar o seu supplicio e disciplina pelo desacato que os mouros commetteram em Ourique na occasião da batalha contra o Santissimo Sacramento, que estava na ermida de Nossa Senhora do Monte.
Qual é o povo perdido? é o gentio de todos os seculos; que corre com os que correm, que dorme com os que dormem, que se deixa corromper pelos corruptos e se faz perverso por falta de sal e de doutrina que o preserve e conserve. A sociedade de homens notaveis e dos falsos proceres correu atraz da illusão, e levou comsigo e arrastou o maior numero; vive no meio do fôro a parte sã e sensata. Quem acordará os dormintes e levantará do pó os que jazem feridos pela scentelha do maior erro e catastrophe? Só o Senhor nos póde acudir e soccorrer: levantai as vossas vistas, exaltai o vosso pensamento, fazei-vos fortes no reducto das vossas consciencias do desaggravo e esperai do santo alfageme o milagroso remedio e toda a sua recompensa.
Estes são os nossos sonhos. Pensava no sonho de Pharaó o santo José filho de Jacob, e só o Senhor alevantou o véo do mysterio, e deu ao mysterioso numero a sua santa e verdadeira significação. Ha sete peccados mortaes, e contra estes outras sete virtudes, mas[70] vem primeiro os peccados ao mundo antes que venha o remedio da virtude que supprime o peccado correspondente: a sabedoria consiste em desvanecer a virtude para que não tenha lugar o peccado, que a escurece e affronta. Este terá sido o sonho e o constante pensamento da casa de Bragança no decurso de dezeseis gerações? é certo que só o Senhor nos concede o mysterio d'este desvanecimento e a sua gloria futura; venha o povo, e furte a virtude ao merito, e deixe a torpeza dos bens aos vis forasteiros, que surgem do inferno por tão negro e absurdo estipendio, e usurpação.
No meio dos seus sonhos e prophecias o santo rei d'Ourique previa e affirmava, que o seu successor da 16.ª geração havia de ser rei e papa, e era tão firme n'esta sincera e antecipada previsão, que algumas vezes via a propria figura, e se compadecia das tramas e desgraças que o haviam de perseguir, e dos males que haviam de sobrevir ao reino, e das heresias em que já o via e considerava submerso e como amortecido pelo diuturno interdicto e geral perdição. S. Affonso devia aos estrangeiros e ás cruzadas extraordinarios favores; o seu pensamento de grande estadista e o grande desejo que teve de ser util á santa causa da fé, fez com que pedisse e solicitasse de sua santidade um decreto para[71] que o nosso reino fosse considerado reino da cruzada com todas as suas indulgencias que obteve a grande contentamento de todos os cavalleiros da cruz, e com grande desgosto e tristeza de todos os falsos monstros do culto, e membros podres da nobreza. Este decreto causou grande alarma, o povo defendeu a medida, que até os ecclesiasticos combatiam com muito alarido de fingido zelo pelo bem da Igreja. Este conflicto ameaçou o reino nascente, veio o nuncio de Roma, lançou interdicto, e triumphou o rei com o povo, porque seu coração era real e tão recto e justo, que não soffria a menor injuria do templo, e desaggravava os desacatos dos mouros com o mais cruel supplicio de seu corpo e quasi á vista do povo e para o edifficar como exemplo. A este tempo já muitos ecclesiasticos seguiam o ocio da paz e principiavam a gozar e appetecer as delicias de Capua: os simoniacos engordavam capões e perús para as festas do anno e deixavam nús os pobres, e desamparados os orphãos e as viuvas; que faria o rei? mendigar o soccorro do padre santo e a virtude de sua santa indulgencia e receber do Divino Salvador a inauferivel do futuro remedio e prophecia, e de Roma a anachronica certeza dos males que principiavam a devorar a santidade da curia e a corcomer o corpo d'aquella santa e bemfazeja arvore.[72]
A prophecia é dada ao rei; foi David propheta e Salomão, Pharaó sonhava, e o rei até quando sonha deve prophetisar para que o povo descance e confie na sua sabedoria e providencia. Todos os prophetas tiveram honras reaes e de santos, recebiam corôa de martyres e eram mandados ao povo, ou por causa do povo aos seus reis e ministros do governo.
Se o rei for santo certamente ha de ser propheta; porque todos os reis legitimos são constituidos por causa do povo; e por isso bem decidiu a santa sé pontificia quando deixou o complemento da santidade de S. Affonso reservada para o computo da 16.ª geração: mas pareceu-nos que a ultima prova se devia presumir e dar por existente ou por verificada e cumprida como promessa divina, ou desnecessaria e superabundante.
Assim aconteceu sempre em Roma com o milagre d'Ourique; mas nem sempre o povo recebeu a fé viva d'este santo milagre: os que vivem da falsa opinião e exploram as más disposições erram e perdem as suas almas, e não cessam de condemnar as alheias; estes iracundos da propria alma tramam e conspiram com todos os aventureiros, para levantar o idolo de suas paixões e sensuaes appetites: não vos pareça menor o numero dos defensores da boa e santa causa, nem deis por perdida[73] a mais arriscada e perigosa do juizo humano em quanto se conservar pura da fé, isenta de contagio, estrenua e airosa pela virtude do desaggravo, e pela mais sublime e divina da sua penitencia e martyrio: se fôr desvanecido por virgens, se não tolerar o desacato, nem a vil affronta do impio, nem o sarcasmo do judeu e do protestante, nem a simonia do falso e perfido, nem a atrophia das almas sem as marcar com o ferrete, e sem as entregar ao indefectivel juizo da santidade e da fé.
O nosso sonho foi uma visão ou previsão de S. Affonso, que se verificou em Villa Real, n'esta antiga villa ou cidade: nós vimos em sonho o que S. Affonso no seu tempo previu como propheta: o sonho tem uma historia necessaria para a sua explicação; e como vem os factos traçados e encaminhados para este mesmo fim, temos unicamente a acrescentar o seguinte.
S. Affonso foi rei d'Ourique por justa e divina acclamação, as côrtes e os poderes do estado applaudiram a eleição, juraram seus preitos, e deram todos os documentos de boa fé e de cordial testemunho, do sincero empenho e da resolução em que estavam de todos os sacrificios para sustentar a acclamação e para continuar a guerra aos infieis. S. Affonso pretendeu o voto universal por ser causa de milagre e de grande sacrificio e do maior testemunho,[74] e muitos ecclesiasticos que viviam nos prazeres do ocio, e que sentiam vêr retaliados pela guerra os campos das suas prebendas e passaes, e muitos ignobeis e falsos nobres, que seguiam a lei de seu egoismo, e d'estes em o maior numero commentavam a acclamação desfavoravelmente e persuadindo o povo a que não aceitasse o rei porque esta acclamação havia de causar grande descontentamento em Hespanha e traria comsigo algum maior dissabor da parte do supremo pontifice.
Havia com effeito da côrte de Roma duas exigencias muito fortes e constantes perante a côrte de Portugal: a primeira por causa do fôro de S. Pedro que é de morgadio do Divino Salvador, e a segunda por causa das cruzadas; por se dizer, que não irão do reino as cruzadas á Terra Santa, como eram obrigados todos os fieis. Sempre o conde-rei se tinha desembaraçado d'estas interpellações com muito favor, e não cessava a intriga de urdir novos ardis; por virem de fonte conhecida e poderosa, que era a côrte de Hespanha: mas obteve S. Affonso a bulla, que declarava o nosso reino Terra Santa e reino de cruzada, o seu rei como benemerito filho da santa Igreja e como antigo cruzado da Terra Santa de Palestina, e applicasse o fôro do Divino Salvador para as despezas da guerra. E logo a invicta monarchia obteve o suffragio e principiou a julgar-se[75] invencivel: mas os seus inimigos não dormiam, e agora veremos o que urdiram em Roma mais calumnioso e atroz.
Formaram em Hespanha um processo secreto contra o rei com muitas testemunhas de Portugal, gente vil, desconhecida e de negra e atroz calumnia: os seus depoimentos recheados de torpezas e de peccados phantasticos que attribuiam ao rei, e com o principal artigo d'esta infame accusação que o monarcha a quem davam titulo de ambicioso seguia a falsa lei da polygamia, e que era no seu modo de viver semelhante aos reis mouros, e que tinha uma e duas mulheres em cada terra e que obrigava os meninos a beijar-lhe a mão como pai de todos, ou como papa; e que não havia mulher casada que não tivesse algum filho parecido com o rei, e que estava o reino cheio de malhados, e que por este signal se conheciam em melhor sombra do que os filhos dos negros. E mais diziam, que o rei só era generoso e de real doação para as mulheres, e que os homens andavam diante do soberbo califa como escravos d'harem. Levavam este recado os malignos tão bem encadeado, como se fosse verdadeiro: o demonio os ensinava a mentir a Deus e a jurar falso; verdadeira mentira é todo o engano, que se faz ao padre santo, que é vigario do Senhor.
E com o mesmo intuito e abominavel pensamento[76] de homens de consciencia perdida, por terem paz occulta com os mouros e longas tregoas, e por não quererem renunciar aos commodos e seu egoismo, acrescentava a calumnia, dizendo que S. Affonso era hereje, e pretendia provar a accusação com tres factos: primeiro, por subir ao pulpito de habito talar e de cota, para prégar como prégava a favor do divino apparecimento, que os calumniadores impugnavam e davam por fabuloso, dizendo que nenhum bispo portuguez se jactava do milagre, nem prégava a favor da sua existencia, e que os seus padres tambem não prégavam tal façanha, e por isso subia o rei ao pulpito para o seu falso ministerio. O segundo facto que ligava ao primeiro consistia em dizer que distrahia das cruzadas os seus cavalleiros, e que os convidava para ficar no reino, e angariava para a deserção das suas bandeiras nacionaes com grandes promessas e doações de terras, que tirava á santa Igreja, e que n'este numero admittia sem escolha muitos e grandes herejes da mesma falsa escola dos homens mais ambiciosos, e que este D. Affonso era tão sofrego de ambição que tinha guerreado com sua mãi, e que a tivera presa até que morreu no castello de Lanhoso.
E ligavam a estes factos outro de maior atrocidade; porque directa e indirectamente[77] offendia a santidade do summo pontifice, mas a nada d'isto attende a calumnia, quando vem proferida pelo maligno espirito contra a maxima verdade divina; e diziam os calumniadores e verdadeiros herejes que S. Affonso obtivera a bulla do privilegio pontificio do reino por meio de grande e manifesta obcecação e por falsa causa que allegou, e que era o maior inimigo das santas cruzadas, e que no seu lidar e batalhar era semelhante ao demonio, e que jámais deixava de ferir o seu adversario, e que ás vezes o feria pela malha com a sua espada quatro e cinco vezes superior á abertura da malha ou rede de ferro, e que este milagre era do demonio; e que elle tinham vencido em Ourique contra a opinião dos seus generaes por ingerencia do demonio e por ser grande hereje.
O processo era secreto, e D. Affonso não pôde prevenir o exito da injuriosa e negra calumnia; andava lidando com mouros ao pé de Cintra, aonde tinha castello fronteiro, e tinham os mouros o seu sustentado pelos seus navios, e gente de mar e chegavam com as suas correrias até Lisboa e talavam os campos, matavam e roubavam; e alli vivia ao pé S. Affonso solicito do modo porque havia de extinguir o covil, e já tinha certa a sua presa, quando o surprehendeu a noticia que vinha de Traz-os-Montes vencendo leguas e horas, de[78] que andava um nuncio de Roma pelas igrejas principaes das villas e terras do reino a publicar um interdicto contra o rei e contra os seus soldados, se não abandonassem o rei no mesmo momento.
Apenas recebeu a tristissima noticia com todas as certezas do que se publicava e ordenava, o rei chorou por tres causas: pela futura sorte do reino; pelo erro d'aquelles perfidos calumniadores; e pela fraqueza humana que sujeitava o vigario do Divino Salvador a tão capciosa e calumniosa illusão. Fallou aos seus, e nenhum o deixou só n'aquella altura; e contra a opinião dos que julgaram que devia aceitar uma tregoa proposta pelos mouros pela causa principal do perigo em que viu aquelle castello de Cintra, resolveu tomar o castello na mesma noite, e o mesmo foi que ser o rei o primeiro a saltar dentro—ainda havia luz—e tomou o castello em duas horas. Deu immediatamente as suas providencias, e partiu para Traz-os-Montes e correu na distancia de mais de sessenta leguas a outro maior perigo, por vir de Hespanha o nuncio, e de Roma, d'onde menos se devia esperar, o flagello. O providente monarcha deixou a tregoa com o castello tomado; os mouros já não lucravam o armisticio, mas tinham proposto a suspensão, e não podiam recusar o arbitrio.
Chegou D. Affonso em menos de tres dias[79] e de tres noites sempre armado de ferro, com a morte de alguns cavallos que deixou estafados para tomar outros, e já ninguem o acompanhava quando entrou em Villa Real, aonde o nuncio tinha publicado o abominavel interdicto, e já ia no caminho de Lamego em direcção a Coimbra. O rei manda prevenir o legado de que estava em Villa Real para fallar com elle e de que o esperava n'aquella capital para o receber com todas as honras devidas á sua alta categoria e jerarchia. O nuncio era o principe real d'Hespanha.
Com esta providencia mandou tocar os sinos de alarma. A tropa que estava na terra reuniu para um lado, para o outro reuniu todo o collegio das humanidades com os seus balandraus e opas, mas sem cruz e sem nenhum ecclesiastico, porque estes se reuniram e assentaram por votos da maioria, que não deviam apparecer ao monarcha nem concorrer ao templo. O rei só com o seu talar á porta da igreja que estava n'esse tempo no sitio aonde está actualmente o templo incompleto da Senhora do Carmo esperava o concurso no meio de maior anciedade, e nenhum se resolveu a entrar. A irmandade e a tropa ouviam grandes vivas ao rei, e cada um sonhava que eram os vivas do outro bando, e não se moviam: o rei já não podia esperar, porque recebeu a certeza de que o nuncio não voltava[80] a Villa Real, antes havia de acclamar a sua desgraçada e infausta commissão até Lisboa.
Que faria? Chorava aquella desgraça e tendo resolvido correr atraz do nuncio para o informar e para pedir recurso do interdicto por não ter sido ouvido nem convencido de tão graves causas, via-se só á porta da igreja; olhou e viu a distancia o successor de dezeseis gerações, que caminhava para o templo com o poder do summo pontifice e do provigario do divino Salvador, entrou, despiu o habito talar e partiu.
Nós vimos a scena que S. Affonso viu e previu, mas de que modo? Ouvimos os vivas, reconhecemos os dous bandos, vimos a porta meia aberta do templo, a estatua do homem ou do heroe, e sentiamos que se recolhia por nos vêr; marchamos só para o ministerio do templo, e os bandos receosos, desconfiados, mas desejosos de nos acompanhar não se moviam: perguntei de quem era o busto? que motivo tinha o povo e o exercito para se conservar em tão grande espectação, e recolhi a historia, que fica narrada, por muito santa e por muito verdadeira.
Antes de me dirigir ao convenio, estava eu no meio de muitos individuos contemporaneos, que ora me convidavam para o fumo de tabaco, ora para assistir a algum funeral; ora me assustavam com o perigo de grandes traições[81] que se armavam contra nós, e como as desprezei? deixando-os e ficando só.
E como levamos a narração de interdicto a esta altura devemos acrescentar em poucas palavras o que mais occorreu. D. Affonso devia estar cançado da lida e da jornada, o que mais tinha mortificado aquella indomita vontade com o receio do perigo que ameaçava o estado; apenas se confirmou no seu nobre intento com a previsão de santo remedio, cahiu cançado. Tinha em Villa Real um filho semelhante aos que trazia em outras terras, só este o acompanhava e seguia: com um afilhado que trazia nos estudos para adiantar o pobre mais esperançoso, porque d'isto tinha elrei cuidado e geral intendencia; e o encarregou de lhe trazer alguma comida, e apenas comeu logo partiu para Lamego, e o acompanhou aquelle mancebo, que veio a ser conde de muito e grande merecimento no reino da Galliza.
Em Lamego tinha o nuncio repetido o enganoso interdicto, e partiu logo para Vizeu, seguiu o rei aquella falsa e perfida colera de mal avisado vaticinio até Vizeu, aonde viu a mesma parodia de Villa Real e a scena de Lamego, e preparou-se de prevenir o nuncio em Coimbra: o que conseguiu matando-se com trabalho, d'indomito e de invencivel lidador.
Em toda a parte o rei encontrava ciladas de traição e de morte que o povo logo descobria;[82] e como julgava estes odios vindos d'Hespanha, matava immediatamente os traidores; e dizia: «Assim como o nosso rei está interdicto, nós faremos justiça.»
Em Coimbra preveniu o nuncio, e convenceu-o facilmente da injustiça que commettia pelos principios do direito, e até á vista dos poderes que trazia de sua santidade; e reuniu um conselho de sabios, que accordou no meio que se devia seguir; o nuncio pareceu accordar, mas trahiu a sua missão; de madrugada affixou interdicto e fugiu. Então foi apanhado pelo rei com tres matadores d'Hespanha, e d'estes não ficou um.
Luiz Negro é o nome, terrivelmente adjectivado, do ultimo carrasco legal, que morreu no Limoeiro, ha poucos mezes.
Na provincia transmontana contam-se ainda, nos saraus aldeãos, as lendas sinistras do facinoroso soldado de dragões de Chaves.[83]
O Ultimo carrasco é o bosquejo d'esse personagem, tão decahido da sua antiga importancia, mas tão considerado ainda no funccionalismo, que lhe concederam as honras, quando o desbalizaram do ordenado.
O snr. visconde de Ouguella possue, do proprio pulso de Luiz Negro, o escorço dos factos que o constituiram homicida legal, com estipendio; todavia, não podemos favorecer a memoria d'este executor da justiça, asseverando que elle cumpriu os seus deveres; por quanto, do contexto da obra vêr-se-ha que Luiz Negro, quando tinha de enforcar, pagava a quem o substituisse.
No prologo do Ultimo carrasco, no recamado estylo com que todos os seus escriptos se opulentam, o snr. visconde de Ouguella detem-se na antiga idéa de abolição da pena de morte. Entre os mais energicos apostolos d'essa humanissima missão, está Carlos Ramires Coutinho, desde que passou dos bancos da universidade para a tribuna forense.
Os primeiros brados, que resoaram na imprensa, nos tribunaes e na consciencia publica, sahiram da alma liberrimamente generosa d'aquelle moço. Os annos volveram-se, os attritos do desengano desbotaram-lhe o verniz de muitas e queridas illusões; mas o sentir profundamente humanitario lá se lhe insurge, apesar dos dissabores, em pró das classes[84] cuja emancipação os preconceitos retardam. Nem as insignias titulares, nem o egoismo tão irmanado com os bens da fortuna enervaram a alliança que travou o visconde de Ouguella com as aspirações da democracia. Para elle o titulo não é a inerte e absurda indifferença de fidalgo, nem da superabundancia de meios surtiu a atrophia dos fidalgos sentimentos que a pobreza, talvez, obrigasse a transigir com a fatalidade das circumstancias.
Queremos dizer que dos escriptos do visconde de Ouguella reveem, principalmente, os impulsos liberaes de um animo que não enfraquece nem descança na lucta. No prefacio, que vai lêr-se, do Ultimo carrasco resaltam um altissimo condoimento da ignorancia, que sob-põem o collo ao jugo, e uma vehemente invectiva aos que, se podessem, apagariam a immensa luz que lhes abriu caminho por onde se passaram dos tamboretes de couro para os flaccidos sophás.
É dolorosa a tarefa.
São pungentes, tambem, as recordações.
Todavia a feição singular d'este nosso seculo[85] exige imperiosamente estas luctas, e obriga-nos a estas pugnas, as mais das vezes, inglorias.
Seja assim.
Tão rapidamente se photographam, hoje, as metamorphoses dos apostolos, allucinam-se com tanta promptidão os espiritos, e desvairam-se as consciencias em tão loucas vertigens, que temos nós—nós, os exploradores obscuros, e audazes obreiros—de lidar e mourejar constantemente, para affirmar, a cada hora, estes principios sacrosantos, que consubstanciam, e determinam a religião do dever.
Ainda ha pouco, uma das mais esplendidas intelligencias da peninsula, rica de todas as opulencias d'este nosso sólo do occidente, marcada com o sello divino, precursora da boa nova, sentinella e espia vigilante das mais puras crenças em que se basêa a democracia, esqueceu, nos delirios que dá o mando e o poder, todas as inspirações, e toda a religião do povo—religião das massas, que, elevando-o, o engrandeceram e divinisaram—e, acommettido pelas vaidades pueris dos Nabuchos de todos os tempos, exilou, deportou, e fusilou como se fôra elle—elle, o tribuno das escolas e dos congressos—um duque d'Alva nas ferocidades das conquistas do imperio de Carlos V, ou um deploravel Telles Jordão, nascido para sicario de todas as reacções.[86]
É triste, é lamentavel, é afflictivo, que o Demosthenes da peninsula hispanica, berço na actualidade da familia mais heroica da raça latina, deslembre e olvide, nas allucinações, que ensombram o fastigio do poder, principios inconcussos e sagrados, e venha dar senão razão, pelo menos pretexto a essas hordas barbaras de hunos, vandalos ou não sabemos se de bandoleiros, que atravessam e devastam as Vascongadas, a Navarra, e a Catalunha, missionando crenças, que seriam ridiculas e apenas abjectas, n'este seculo, se um rasto de sangue, de fogo, e de metralha não enchesse de terror e de luto as povoações por onde caminham e perpassam.
Não ha razão d'estado, não ha lei de salvação popular, não ha causa nenhuma, por mais ardilosa, machiavelica ou especiosa que seja, que consagre nunca, e em caso nenhum, uma offensa feita ás leis geraes por que se rege a humanidade.
A vida humana é inviolavel sempre, e para todo o sempre.
Errem os homens—embora!—Succumbam momentaneamente as idéas grandiosas de emancipação dos povos—resignemo-nos, e esperemos. Mas salvemos todos esta arca santa, este sacrario das mais nobres aspirações da democracia.
Dêmos ao sacer esto das doze taboas a[87] unica e verdadeira interpretação das sociedades modernas.
Não votemos o criminoso, qualquer que seja o seu delicto ou a penalidade em que incorreu, aos deuses infernaes. Rehabilitando-o, votemol-o á sociedade, ás verdadeiras crenças, á familia, e á patria.
A Vida do homem é sagrada.
Como são sagrados todos os direitos absolutos, como é sagrado e mysterioso o fim do homem, como é sagrada, indescortinavel, desconhecida e insondavel a causa da existencia humana, a razão da vida harmoniosa do universo, o pensamento supremo, que presidiu a todos estes esplendores, que se formulam e desenrolam nas magnificencias da creação.
E é o homem, na pequenez da mais miserrima e limitada existencia, na ignorancia fatal das suas transformações futuras, nas trevas densissimas do seu porvir, que diz a outro homem—a um irmão seu, ao Abel da sua raça: «Eu mato-te, assassino-te, á face d'este sol esplendido, em presença de toda a creação, com a consciencia segura e tranquilla de que Deus me ouve, me vê, e me escuta, em nome d'umas leis que eu inventei, e escrevi,—por que eu, homem, pelo facto de ser legislador e juiz arvoro-me em carrasco, e rasgo e devasso consciencias, analyso e preso intenções, forjo e imagino crenças, e condemno[88] em nome de Deus vivo, e da justiça absoluta de que me faço interprete, magistrado e saião!»
Crêmos firmemente que a misericordia divina alcança ainda estas sinistras e ferozes aberrações dos verdugos e dos algozes.
Perdoai a todos, Senhor, e quando o perdão da vossa infinita bondade, n'esses effluvios repassados de sentimento, como pai e creador, descer sobre nós, que a vaidade pharisaica, o orgulho ignobil de todos os sacerdocios, e de todas as theocracias, scepticismo inconsciente de todas as ignorancias, e a blasphemia perdoavel, nascida do desespero, e da miseria, achem, nas pregas do vosso manto d'esquecimento, lugar onde se abriguem, pela omnipotencia do vosso poder, e pela misericordia infinita dos vossos designios.
Que a religião do futuro seja um hymno de gloria, um hossana de perpetuo louvor, onde só a myrrha e o incenso subam aos vossos altares—e que as carnificinas humanas desde os homicidios nos dolmens dos deicidas até ás fogueiras do fanatismo catholico desappareçam e se extingam em presença do verdadeiro culto, que o ente humilde, e inconsciente da sua missão, na terra, presta á sublime causa, ao Ente que regula e dirige o universo.
VISCONDE DE OUGUELLA.[89]
No principio d'este seculo, as melhores pinturas ornamentavam as salas dos marquezes de Borba, de Angeja, de Abrantes, de Tancos, de Lavradio, de Bellas, e do visconde da Bahia que primava em originaes de grandes mestres. Manoel Joaquim Collaço e um padre João Chrysostomo, ambos de Lisboa, e ha muitos annos fallecidos, colleccionaram excellentes quadros. O possuidor das mais ricas estampas era, por esse tempo, um José Joaquim de Castro, vulgarmente chamado o Agua de Inglaterra, não sabemos se em razão de a preparar, se por descender do hebreu Jacob de Castro Sarmento que a inventou.
Fr. José Mayne, confessor de D. Pedro III, legou á academia das sciencias o seu museu, e não sei se a sua galeria dos melhores pintores coevos, em que sobresahiam os quadros de Joaquim Manoel da Rocha, habilissimo na pintura da natureza morta. Tambem fr. Manoel[90] do Cenaculo, arcebispo de Evora, colleccionou soberbas pinturas, que tiveram variados e obscuros destinos.
No convento de Bemfica houve um quadro original de Wandyck: era o da Crucifixão. Presume-se que pouco mais possue Portugal d'aquelle grande artista. Na sala do marquez de Alegrete (Penalva), havia um quadro de Raphael. Existia outro na igreja do seminario de Brancannes. Fallamos sempre no preterito, porque duvidamos que taes preciosidades se conservem, assalteadas, a um tempo, pelo desamor das artes e pelo amor ao dinheiro.
No templo de Belem ha tres quadros de Manoel Campello. O que representa Jesus Christo vergado sob a cruz está na escada principal do extincto convento. Os outros são o da Coroação dos espinhos e o da Resurreição.
Na tribuna da igreja de S. Roque ha o painel que representa a vinda do Espirito Santo: é de Gaspar Dias. Em 1740, o celebrado Pedro Guaranti arrebatou-se na contemplação d'aquella obra prima. É tambem do insigne pintor o Senhor do Horto que existe em Belem, e o de S. Roque, na capella da invocação do mesmo santo. São obras de primeira execução.
No refeitorio de Belem, o quadro do nascimento de Jesus é do celebre Simão Rodrigues. De fr. Marcos da Cruz, coevo de D. João III,[91] havia na igreja do Carmo, de Lisboa, o painel de Santa Maria Magdalena de Paris. Os do arco cruzeiro de Jesus, já damnificados no fim do seculo passado, tambem eram d'elle ou se lhe attribuiam. (Vej. Mem. hist. do ministerio do pulpito, por fr. Manoel do Cenaculo, pag. 135).
De quadros de Vieira Lusitano temos antiga noticia de existirem o de Santo Agostinho na portaria do convento da Graça, o de S. Francisco na capella-mór da igreja, o de S. Pedro e S. Paulo em casa dos condes de Povolide, e alguns na igreja dos Paulistas.
Na casa de Tancos (Atalaias) estiveram oito paineis de Jacob Bassano, pelos quaes o principe Eugenio (1663-1736) mandou offerecer duzentos mil cruzados, que foram rejeitados. Entre aquelles inestimaveis quadros havia um de Leonardo de Vinci, alguns de Corregio, de Miguel Angelo, de Salviati, e de Antonio Tempesta. Um primoroso Luiz XIV a cavallo era do famigerado Lebrun.[92]
A marqueza de Tavora, D. Leonor, justiçada no patibulo em 1759, foi a mais formosa fidalga das côrtes de D. João V e D. José I.
Morreu aos cincoenta e nove annos. Subiu intrepida ao cadafalso. Parecia inflexivel ao espectaculo do cutelo. Nem uma lagrima, nem um gemido supplicante! Mas o meirinho das cadeias e tres algozes tinham ordem de lhe arrancarem o pranto em um mais doloroso supplicio, que não constava da sentença.
Começaram, pois, mostrando-lhe, um a um, os instrumentos das execuções, que se haviam de fazer no marido, nos filhos e parentes: as aspas, em que deviam ser amarrados, as macetas de ferro com que haviam de ser-lhes quebrados os ossos dos braços e pernas, as cordas destinadas ao garrote, e a olandilha com que os desmembrados cadaveres seriam tapados até se accenderem as fogueiras.
A marqueza então chorou.
Quando o algoz lhe desvelou o collo para a degolar, D. Leonor, com gentil pejo, murmurou: «Não me descomponhas.»[93]
Testemunhas d'este transe deixaram á escripta e á tradição oral que a marqueza era ainda magestosa no garbo, na altivez, nas reliquias admiraveis da belleza, raro permanecente em annos tão adiantados.
Quando tinha cincoenta, acompanhou á India o vice-rei seu marido.
A familia real foi despedil-os até á praia, alli mesmo áquella praia de Belem, onde, nove annos depois, se passou a horrenda carnagem.
Foi em uma graciosa manhã da primavera de 1750, aos 28 de março.
D'entre os milhares de concorrentes á praia, por onde a heroica marqueza demandava o bergantim da sua nau, sahiu um poeta dos melhores entre os pessimos d'aquelle tempo, ajoelhou diante da vice-rainha, e depositou-lhe na mão, que o levantava da postura humilde, um rolo de papel atado por laçaria de seda variegada.
A marqueza desenrolou, leu as primeiras linhas, sorriu-se amoravelmente, e disse:
—Não lhe perdôo a lisonja. Esqueceu-se que tenho cincoenta annos?
—A natureza é que se esqueceu de v. exc.ª depois que lhe aperfeiçoou os vinte e cinco annos—respondeu o galã.
A poesia constava d'isto:[94]
Á ILL.ma E EXC.ma SNR.ª MARQUEZA DE TAVORA NA HEROICA RESOLUÇÃO DE ACOMPANHAR SEU QUERIDO ESPOSO, O SNR. MARQUEZ DE TAVORA AOS ESTADOS DA INDIA.
Vai, ó formosa heroina!
do mar essas ondas sulca;
que, se és Venus na belleza,
Venus nasceu das espumas.
Vai, divindade, não temas
da salgada agua as furias,
que até impera nos mares
a immortal formosura.
Vai ser de Thetis inveja,
ser de Neptuno ventura,
das sereias lindo encanto,
das nymphas formosa injuria.
Os tritões, e as nereidas
sendo alegres testemunhas,
a nau carroça, tu, deusa,
passeia as ondas ceruleas.
Vai, que é pequeno hemispherio
um só mundo ás luzes tuas,
e quem em um só não cabe
justamente o outro busca.
São do sol os diamantes
producção brilhante, e sua;
se produz lá um sol tantos,
tres que farão? Conjunctura.[95]
Vai examinar o Oriente
d'onde sahe a luz mais pura;
verás do teu nascimento
pelo exemplar copia justa.
Vai, que d'esta vez, senhora,
ficará, por tua industria,
a valentia formosa,
a formosura robusta.
Vai, vai só com teu esposo,
tudo o mais creio se escusa;
onde basta a sua fama,
sobeja a sua figura.
Sem violencia no estrago
terão teus raios fortuna;
se ao sol barbaros adoram,
logo que chegas, triumphas.
Interesse, e não fineza
tua heroica acção inculca;
com este excesso que obras
immortal gloria procuras.
Se anima entre os dous corpos
uma só alma, e não duas,
pois a não partes na ausencia,
melhor a vida asseguras.
Á dôr da saudade foges,
tens razão, mostras desculpa
por um estrago suave
trocar uma morte dura.[96]
Agua, e fogo são contrarios,
teu amor naturaes muda;
pois faz em novo milagre
que o incendio ao mar se una.
Vai! Conheça o mundo todo,
mais alto poder divulga,
que o sexo que em ti domina,
o sangue que em ti circula.
*
* *
As esperanças bem fundadas na sensatez e bravura do marquez de Tavora não foram menos cantadas que a gentileza da esposa. O regulo Canajá, infesto devastador de Diu, sentiu-lhe o peso do braço vencedor. Arderam as esquadras do inimigo, espavoridas ainda do arrazamento da fortaleza de Neudabel. O Bounsuló e o Marata fugiram-lhe a furia, levantando o assedio de Neutim. O rei de Sunda perdeu os seus fortes, e as terras de Pondá e Zambaulim. Em quatro annos de vice-reinado, o marquez de Tavora ceifára louros que lhe promettiam sombra e gloriosa resalva das contrariedades da fortuna.
E, apenas devolvidos cinco annos, depois que desembarcára, n'aquella mesma praia de Belem, que espectaculo! Um algoz lhe mostra os corpos despedaçados da esposa, dos filhos e do genro. Depois explica-lhe por miudo[97] a acção dos instrumentos que o vão atormentar. E depois...
Repugnam os sabidos pormenores d'aquelle supplicio.
A descripção previa, feita aos padecentes, diz o snr. Soriano, na Historia do reinado d'el-rei D. José I, que deve com toda a razão ser attribuida ao cruel e ferocissimo coração de Sebastião José de Carvalho.
Ora, o snr. John Smith, author das Memorias do marquez de Pombal, diz que todas as ferocidades d'aquelle supplicio, constantes e não constantes da sentença, promanaram directamente do coração de D. José I.
Lá se avenham os dous algozes na presença do Supremo Juiz.
(Henry Murger—Pinheiro Chagas)
Henry Murger. Scenas da vida de Bohemia, traducção de Gustavo A. Barbosa. Livraria Internacional. Porto. 1874, 8.º—424 pag.—É um romance urdido com os brilhantes fios da mais extravagante, verdadeira e esplendida vida de uns rapazes francezes que, ha quarenta annos, se chamavam os bohemios,[98] e depois attingiram o galarim das artes e letras, e encheram o mundo com o seu nome. D'esses, ainda ha poucos annos, sobreviviam cinco ou seis que voltavam ao passado a vista do coração—o olhar lagrimoso da saudade—em busca dos alegres convivas, ceifados pela morte, quando as messes da gloria, o ouro e a consideração não bastavam a esquecel-os da ridente pobreza da sua mocidade. Adivinham-se, no romance, os nomes mal disfarçados nos pseudonymos. Os grandes pintores, os criticos intrepidos, os dramaturgos laureados, os arrebatados poetas, os historiadores austeros, todos ahi entreluzem de entre as risonhas ficções, pintadas pelo scintillante estylo de Henry Murger.
Quanto á versão portugueza, é uma das mais aprimoradas que ainda vimos—um verdadeiro trabalho de intelligente e consciencioso esmero. O traductor arcou pertinazmente com as maximas difficuldades do original. Nenhum neologismo lhe afrouxou o alento na transposição acertada com que o aproximou da phrase portugueza. Por maneira que, a espaços, não se estremam bem as indoles das duas linguas, como se, entre nós, corressem analogas subtilezas no dizer, e as mesmas analogias do pensamento. Assim, comprehende-se que as traducções sejam thesouros literariamente portuguezes; e ao esclarecido traductor[99] cabe distincto lugar entre os sabedores das duas linguas. E, quando de par com o estudo se allia o deleite do enredo, o livro, que proporciona dous prazeres tão pouco vulgares, é um livro excellente.
O Terremoto de Lisboa, romance historico, por M. Pinheiro Chagas. Lisboa. Livraria editora de Mattos Moreira & C.ª, 1874.—Haveria razão para não exigir livros primorosos de escriptor tão fecundo e variado em differentes ramos das letras; mas, no author d'este livro, manifesta-se a rara excepção que constitue o engenho distincto. A fertilidade não lesa o detido cuidado no esmeril da linguagem. Os raptos da imaginação não descuram a cadencia da linguagem, o torneio da phrase, o decoro e pompa d'este nosso formoso idioma que só desserve aos que o exercitam com insufficiente estudo. N'este romance do Terremoto de Lisboa, pautou o snr. Pinheiro Chagas com rigoroso lapis os delineamentos das figuras historicas. Diogo de Mendonça e Sebastião José de Carvalho avultam aqui na tela romantica fidelissimos aos originaes da historia. Todavia, se, por vezes, o louvor tece corôas ao valido de D. José I com demasiado colorido de flôres salpicadas do sangue de illustres[100] e innocentes victimas, isso é um modo de ver pela lente da politica, em cuja apreciação eu não entro, nem me arrogo o jus de contestar ao excellente romancista a veridicidade dos seus conceitos. As notaveis bellezas d'este romance assentam na habilidade da contextura, no tino com que as peripecias convergem para o desenlace justificado pelo titulo. Pelo que é da excellencia secundaria em uma novella, o estylo, isso é já de sobra apreciado nos muitos, posto que rapidos, trabalhos de Pinheiro Chagas. A florescencia é sobria, os atavios não estofam a penuria da idéa, os ornatos frisam rigorosamente com a conveniencia dos lances. Denominamos «secundaria» a excellencia do estylo em romances, porque sabemos, de propria experiencia, que os livros d'esta especie, mais lapidados, e, no dizer antigo, mais penteados na phrase, são, por via de regra, os menormente bem-quistos da maioria de leitores que desadoram palavras que lhes não sejam da maior familiaridade. Tem, todavia, o snr. Pinheiro Chagas o raro condão de escrever para todos, e a todos, lidos e não lidos, deve o abalizado escriptor a sua grande popularidade.
FIM DO 10.º NUMERO