Title: A mulher; Os Portuguezes em Tanger
Author: J. J. Rodrigues de Matos
Release date: January 10, 2010 [eBook #30919]
Most recently updated: January 6, 2021
Language: Portuguese
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A MULHER
OS PORTUGUEZES EM TANGER
POR
J. J. Rodrigues de Mattos
COIMBRA
IMPRENSA LITERARIA
1860
A
MEU PAE
EM
TESTIMUNHO DE AMOR FILIAL
O
SEU FILHO
MUITO OBEDIENTE
João José Rodrigues de Mattos
Otez l'amitié de la vie,
Ce qui reste de biens, est peu digne d'envie.
DESMAHIS
{VII}
Auctorisado por aquelle que me deu o ser, e de que posso lisongear-me, venho receioso offerecer-lhe este insignificante trabalho.
Pouco versado nas lides da litteratura, não posso dedicar-lhe uma obra digna do seu bom nome, mas o desejo que tenho de testemunhar a minha gratidão pelos obsequios de que lhe sou devedor, anima-me a proseguir na empresa encetada.
Tenho razões para acreditar que a sua bondade não póde ser satisfeita por uma offerta de tão pouca importancia, mas, tal qual é, acceite-a como a primeira producção d'uma arvore nova, cujas vergonteas ainda fracas pelos poucos annos, que tem de{VIII} vegetação, apezar do extremoso cuidado que o agricola tem empregado na sua cultura, não podem dar ao fructo senão a belleza compativel com as suas forças.
Regozijo-me com a escolha da pessoa a quem offereco a minha producção; porque tenho a certeza de que o seu bom senso e indulgencia, hão-de desculpar as faltas que ella necessariamente ha-de conter.
O AUCTOR.{9}
La femme est l'etre le plus parfait entre les créatures; elle est une création transitoire entre l'homme et l'ange
BALZAC
Ser extraordinario, tu só, rainha absoluta do coração do homem, sabes por elle ser adorada, nunca, porém, aborrecida! Quando as tuas faces estão ainda cobertas com o veu da innocencia, vês a teus pés um cortejo de escravos que só acham ventura em merecer-te um sorriso. O nobre orgulhoso, se julga feliz ao ouvir-te uma palavra, que lhe faça sorrir uma lisongeira esperança; o avarento, julgando-se pobre, vê em ti um thesouro,{10} que o faria feliz; o pobre, que te ama, se rala de ciumes ao ver-te rodeada d'homens que não como elle te saberiam amar. Do nobre não fujas, se não receiares que o amor que no peito lhe ferve, se póde gelar com ambição de brazões.
O avarento evita, porque ao possuir-te, esconderia 'num canto essas galas da natureza herdadas, profanando assim o que o Creador soube formar para admiração do homem. Do pobre não rias porque tem coração.
Mulher, doce fructo do amor da divindade, se vires o homem abraçado ao feio scepticismo, eleva, com sorriso angelico, aos ceus os olhos, e farás renascer 'num coração frio o fogo das crenças.
Se quizeres que umas faces sêccas se cubram de pranto, chora, e verás umas novas lagrimas unidas ás tuas.
Se quizeres que o moribundo conheça todo o fogo da vida, senta-te á cabeceira d'esse leito da morte, e elle julgará, ao ver-te, um anjo de Deus que o vem consolar; e se o não revocares á vida, é maior o teu triumpho; não terá elle necessidade de orar, porque acreditará que tu, o seu anjo da guarda, o vens visitar, para o acompanhar contente á morada dos justos.
Mulher, para que fostes criada? Nem tu o sabes! Quando pura sahiste das mãos do Eterno, foi-te confiada uma missão sublime. Nasceste para consolar{11} o homem das fadigas da vida, para lhe lembrares que ha um Deus, para lhe apontares com um sorriso a estrada da felicidade, quando o espinho cruciante da mágoa lhe houver trespassado o coração. Nasceste, em fim, para dizeres, sorrindo, ao homem—queres ser feliz? Ama.
Oh! mulher, se esse sorriso te cobre de bençãos, para que abusas algumas vezes d'elle?
O sorriso que dá ventura, collou-t'o Deus nos labios; mas o do desdem, que leva ao fundo d'alma todo o fel da desgraça, só t'o podia ensinar um demonio! Quando com aquelle encaras o homem, podes vêl-o louco de amor, podes apontar para um ferro, que elle contente rasgará o peito, e ao aproximar-se da campa pronunciará religiosamente o teu nome! Quando, porém, com este ris sarcasticamente do seu amor, não lhe aborreces ainda; ama-te, mas com esse amor alimentado de ciumes e vivente de desenganos! O homem então crê não merecer-te, forceja por adquirir meios de ser amado, e quando 'nisto pensa, o seu amor é mais intenso; se é criminoso, julga ser o crime o que de ti o aparta, e é então que abraça a virtude; se ainda assim o não chamas com um sorriso, e o seu amor não acha raias a occupar, vêl-o-has morrer, definhado pela dôr e victima de uma paixão louca e não correspondida!
Mulher sabes quando és grande? Quando apertando{12} ao seio um filho, pareces querer suffocal-o com caricias, e lembrar-te só de teu filho e de Deus.
És grande tambem, quando a morte rouba de teus braços esse mesmo filho, e com os olhos no ceu, e banhados de lagrimas, exprimes só—saudade. És grande, em fim, és sublime, não pareces mulher, és um anjo, quando ebria do amor cahes, como de fadiga nos braços de teu esposo, e pareces querer articular, sem forças, essa palavra, inventada pelos anjos—amor!
Oh! Quanto é bom ser feliz!
Como o viver é delicioso quando se encontra no mundo uma mulher a quem idolatramos, a quem adoramos e prestamos homenagens, como se fôra a propria Divindade!...
No alvorecer da vida, o coração do homem tem necessidade d'amar, d'amar com todo o fogo, com toda a loucura d'uma alma verdadeiramente apaixonada!...
E é tão bello amar! é tão delicioso contemplar a belleza e os encantos da mulher que adoramos, e por quem sentimos o coração pulsar docemente a todos os instantes! E que fôra o mundo se n'elle não existisse a mulher?...
Supponde—diz um dos nossos mais profundos e distinctos escriptores—todos os contentamentos, todas as consolações que as imagens celestiaes e a crença divina podem gerar, e achareis que estas não{13} supprem o triste vácuo da soledade do coração. Dai ás paixões todo o ardor que poderdes, aos prazeres mil vezes maior intensidade, aos sentidos a maxima energia, e convertei o mundo em paraiso, mas tirai d'elle a mulher, e o mundo será um ermo melancólico, os deleites apenas o preludio do tedio. Muitas vezes, na verdade, a mulher desce arrastada por nós ao charco immundo da extrema depravação moral; muitissimas mais, porém, ella nos salva de nós mesmos, e pelo affecto e enthusiasmo nos impelle a quanto ha bom e generoso.
Quem ao menos uma vez, não creu na existencia dos anjos, revelada nos profundos vestigios d'essa existencia impressos 'num coração de mulher? Porque não seria ella na escalla da criação, um anel da cadeia dos entes, presa d'um lado á humanidade pela fraqueza e pela morte, e do outro aos espiritos puros pelo amor e pelo mysterio? Porque não seria a mulher o intermedio entre o ceu e a terra?
E quem ha ahi, que não tenha amado, ao menos, uma só vez na vida; que não tenha sentido as doces e suaves emoções de uma verdadeira paixão; que se não tenha curvado submisso, como um escravo, ante essas mulheres, cuja belleza e attractivos magicos e fascinadores, sabem fazer nascer em nossos peitos um affecto ardente e sem limites?!...{14}
Oh! ninguem, de certo; porque no alvorecer da vida, 'nessa risonha quadra da existencia, em que vegetam e brotam todas as nossas esperanças, o homem tem precisão d'amar, sente a necessidade de unir a sua vida á d'uma companheira affectuosa e desvelada, que partilhe assim das suas tribulações e penas, como dos seus prazeres e gozos, e que derrame em sua alma o precioso balsamo de consolação.{15}
Sans sa beauté, sans ses dons precieux la vertu même est moins belle à nos yeux.
J. B. ROUSSEAU
Salve mimosa e fragrante flôr que nos embalsamas a existencia, levando-nos ao amago do coração felicidades!
Que seria a sociedade sem ti? Seria um viver monotono um viver sem delicias!
A mulher é a rosa que sobresahe virente no centro dos folguedos. Seus languidos olhares dão-lhes alma e suas meiguices mimo: suas fallas dictadas pelo instincto forte do sentimento deleitam-nos na escandecencia das frágoas, e o sorriso modesto onde se póde soletrar a sua bondade angelica, arrebata-nos, attrahe-nos ao borbulhar das festas.
Não fallo da mulher prosaica porque é um ente nullo, ama porque ouviu dizer que se amava; ama{16} só com o intuito de ter um escravo dos seus caprichos e um alvo dos seus sarcasmos!
A mulher prosaica é o escarneo da vida. D'essa não fallo eu. Fallo da mulher que sente e comprehende essa paixão e que é o termo dos vôos do nosso pensamento, e a paragem da mente embriagada do poeta, quando vaguêa escandecida por entre milhares de illusões;—que é o elo mais forte que vincula a sociedade.
Fallo da virgem que na manhã da vida, na maior influencia d'um baile, tranzida, por uma saudade amarga, entristece e se lhe pendura na palpebra uma lagrima que de repente se some, abafando um ardente suspiro que lhe fugira do coração.
Da mulher que no madrugar d'um dia formoso pára e scisma, contemplando a natureza, e junta aos hymnos que as aves elevam ao seu criador uma prece cheia de sentimento,—uma oração que os anjos lhe vem colher!
Esta mulher é um beijo do Criador;—é a corda mais afinada da lyra dos anjos.
Assim é! Pergunte-se ao filhinho que desabrochou no regaço de sua mãe; acalentado e acariciado pelos seus mimos, se póde haver no mundo amor que iguale os desvelos e cuidados de mãe!
Pergunte-se ao esposo, que levado por uma affeição sincera e pura, escolheu uma mulher para companheira da sua vida, se não encontra um balsamo{17} consolador para as suas dôres e procellas da vida, nas fallas e conselhos d'essa mulher!
Pergunte-se ao mendigo, coberto de miseria e corrido pelo infortunio, se jamais pediu a uma mulher que lhe mitigasse a sua dôr sem que lhe ella recebera os ais no coração, e lhe minorasse as mágoas e privações que lhe vão gastando a existencia!
A mulher poetica é uma viçosa grinalda, cujas flores foram colhidas por Deus e entrelaçadas pelos anjos!
É o campanario que a fallar-nos de longe, nos inspira um sentimento religioso!
É o raiar d'um dia formoso trazendo-nos no canto das aves, e nos raios do sol que vem trepando os montes, felicidade e poesia ao coração.
Deus na sua poderosa e immensa criação, copiou 'neste ser a bondade que os anjos teem,—engrinaldou-o com as odoriferas flores do Paraiso, pousou-lhe sobre a fronte uma corôa de virtudes, e entornou-lhe no coração todo o amor de que encheu a natureza.
Que poesia nos não inspira uma lagrima a marejar nos olhos d'uma donzella?!
É o nectar do seu coração que se nos vem mostrar languido e puro, sulcando-lhe as faces purpurinas do seu rubicundo rosto.
É uma gotta do lindo orvalho da manhã, pousado no calix d'uma rosa, que a buliçosa brisa,{18} com seu suave balancear, pendurou em suas viçosas e escorregadias folhinhas.
A mulher é o sanctuario do coração do poeta, o asylo dos vôos da sua imaginação, a inspiração das suas trovas, e a delicia da sua vida.
Consulte-se cada homem que tem amado, e ver-se-ha o que diz. Quando a alma se lhe dilata a receber um supremo gozo, ou quando se lhe comprime por algum atroz soffrimento, a primeira idêa que lhe assalta a imaginação, é ter junto a si a mulher que ama, para que ambos partilhem igual sentimento.
Escute-se a lyra d'um bardo, traduzindo-lhe os sentimentos affaveis do seu coração em melodiosos sons, arrancados por sua incerta mão..................
Mimosa c'rôa de encantos
Te cinge a fronte, mulher!
Prendem-nos a alma teus prantos
Que meiga nos deixas vêr,
És uma estrella radiante,
Uma pérola brilhante,
Um celestial descante
Que nos mitiga o soffrer.Qu'importa no mundo a vida
Quando é vivida sem ti?
É qual florinha pendída{19}
Que o tufão matou assi!
É como a triste saudade
Que nos veda a f'licidade.
No verdor da mocidade
Quando a vida nos sorrí!Tu és uma harpa divina
Que os anjos vem desferir,
És quem meiga nos ensina
A crer, amar, e sentir!
Fallam d'amor teus olhares,
Fallam de amor teus pezares,
Teus innocentes folgares,
Teu deslumbrante sorrir!Mimosa c'rôa d'encantos,
Lindo sol do coração,
Prendem-nos a alma teus prantos
Que n'alma cahir-nos vão!
Mulher tu és n'esta vida
A nossa esperança qu'rida,
A florinha enriquecida
Pelo Auctor da criação!
FIM{20}
{21}
{22}
{23}
Que é um prologo? É quasi sempre um antecipado remedio aos achaques dos livros, porque andam sempre de companhia os erros e as desculpas. Eu esforçar-me-hei em desviar-me do caminho trilhado, porém se acharem que dizer não me perdôem.
Escrevi este opusculo com verdade de memorias fieis, sem que a penna, ou o affecto, alterasse o menor accidente. Antes que este pequeno livrinho sahisse dos borrões, algumas pessoas o taxaram de escasso, dizendo, que eu devia de dilatar esta parte da nossa historia com allusões, e passos da Escriptura, que fizessem mais crescido volume;{24} estes compram os livros pelo peso, e não pelo feitio; outras queriam que me valesse do estrepito de vozes novas, a que chamam cultura, deixando a estrada limpa por caminhos fragosos, e trocando com estimação pueril, o que é melhor, pelo que mais se usa.
Mas como não determinei lisongear a gostos estragados, quiz antes com a singelleza da verdade servir ao applauso dos melhores, que á fama popular e errada.{25}
Oh! ditosos aquelles que poderam
Entre as agudas lanças africanas
Morrer, em quanto fortes sustiveram
A santa Fé nas terras Mauritanas:
De quem feitos illustres se souberam,
De quem ficam memorias soberanas,
De quem se ganha a vida por perdel-a
Doce fazendo a morte as honras d'ella.
CAMÕES—C. VI.—E. 83.ª
Foi no dia 6 de março de 1503.
Apenas rompia a madrugada quando appareceu sobre as colinas dos arredores de Tanger o poder mouro em força de 12:000 cavalleiros e muito maior numero de infantes. Era o proprio rei de Fez que commandava as suas tropas, e que julgava tomar de assalto aquella praça pelo segredo e velocidade com que cahia sobre ella.{26}
A Providencia, porém, ja havia denunciado este facto traiçoeiro aos portuguezes com assás antecipação, para que estivessem prevenidos contra o ataque brutal de feras ainda mais brutas.
Os antigos davam o nome de destino ou fado a esta influencia occulta, absoluta, e irresistivel de Deus sobre a humanidade; os modernos povos chamam-lhe Providencia, expressão mais significativa, mais religiosa, e mais de Deus.
E a providencia nunca deixa de favorecer as boas causas.
Assim já na noute anterior a este dia de recordação e saudade, soube D. João de Menezes, governador de Arzilla, por espias que trazia no campo, os intentos e maquinações d'aquelle rei.
Era-lhe portanto impracticavel avisar a D. Rodrigo de Monsanto, que então governava Tanger, porque estas duas praças distavam uns quarenta kylometros uma da outra, e além d'esta distancia accrescia a impossibilidade de fazer a viagem por terra, por estarem occupados os caminhos por troços do exercito inimigo, e por mar nem uma embarcação havia aprestada para esse fim.
No entretanto reluziam nos arraiaes mouriscos as lanças e os escudos, e atroavam os ares os sons guerreiros das trombetas e outros instrumentos barbarescos.
Parecia que os mouros preparavam nos seus{27} arraiaes em canticos e folgares mais uma corôa de gloria para os portuguezes.
Em quanto isto se passava nos arredores de Tanger, sem que os portuguezes o advinhassem, esforçava-se D. João em Arzilla por achar um meio de communicação com aquella praça. Tal era o amor com que queria salvar seus irmãos d'armas.
Saudosos tempos de gloria nacional foram estes, em que o povo portuguez era admirado no mundo civilisado pela audacia e grandeza de commettimentos! Mas esse povo era de si mesmo grande porque tinha fé em Deus, fé em si, e fé no futuro!
Hoje porém, chorâmos esses tempos.... nada mais............
E como não estremecer de mágoa e de orgulho a um tempo ao recordar essas paginas d'ouro em que a nossa historia se espelha, reproduzindo-nos a toda a hora, a todo o momento os feitos maravilhosos dos conquistadores de Ceuta, Tanger, Anafa, Mazagão, Azamor, Alcacer-Seguer, Tetuão e Azafa?
Como não pasmar á vista deslumbrante d'este panorama de nobres recordações e eterna saudade, que nos mostra as acções façanhosas de um punhado de homens, que levados do amor da patria e do brio nacional penetravam as lapas mais escuras,{28} subiam os pincaros mais elevados, rompiam bosques, desciam fragas e alcantís medonhos, e atravessavam os sertões mais intransitaveis, e perigosos, sem recuarem diante da natureza, dos homens ou das feras.
E será raro hoje encontrar homens como D. Fernando, D. João de Menezes, D. Vasco Coutinho, Nuno Fernandes de Athayde, Lopo Barriga, D. Duarte, denominado o Achilles africano, e o Conde D. Pedro?
Não o sabemos.
O que é certo é que todos estes combatiam sem descanço, e nunca as terras da Africa os viram voltar ao costas, a não ser já sem vida.
E não será honroso descender de taes heroes?
De certo.
Estava portanto D. João em grande apêrto quando lhe occorreu um meio verdadeiramente providencial.
Havia ficado em Arzilla uma cadella de um morador de Tanger, e assim, lembrou-se D. João de lhe amarrar ao pescoço uma carta com a noticia do que se passava, e de a espancar de modo que fugisse em busca do dono. Assim aconteceu.
Foi levado o bom do animal para a praia de Arzilla e alli açoutado, até que desappareceu para o lado de Tanger, para onde o instincto o guiava, a dôr o conduzia.{29}
No dia seguinte, ao romper d'alva, chegou o novo mensageiro ás portas de Tanger, lasso do caminhar constante e longo.
Era de vêr como foi festejada e admirada a lembrança feliz de D. João, bem como o instincto fino da cadella.
Começava já então a mover-se o exercito mourisco, que distava dez tiros de canhão.
Foi immediatamente posta em armas toda a guarnição, e em todos ardia o fogo ambicioso da gloria.
Mandou D. Rodrigo formar um esquadrão mais luzido do que numeroso, que sahiu ao campo a esperar os inimigos, que julgavam colhêr os portuguezes descuidados.
Mas não succedeu assim.
Dêmos mais uma lição a estes barbaros,—exclamou D. Rodrigo ao sahir as portas de Tanger—mostrêmos-lhes que sômos os mesmos portuguezes que os temos vencido sempre.
As tropas portuguezas ouviram estas palavras com um excesso d'enthusiasmo, e sahiram a encontrar as hordas barbarescas.
Chegaram finalmente os mouros.
Mal se poderá avaliar o assombro que os acommetteu logo que encontraram, contra a sua expectativa, tropas portuguezas fóra dos muros, á sua espera.
Travou-se o combate, asperissimo combate foi{30} elle, em que os nossos sustentaram por espaço de duas horas e meia o peso enorme de tão grande exercito.
Estavam todos os campos vizinhos juncados de tropas inimigas. E nós eramos um contra cem!! A pequena guarnição de uma praça contra o poder de um exercito commandado pelo proprio rei em pessoa!!!
Foi então que mais uma vez obraram os portuguezes acções que hão-de em todos os tempos deixar muda a eloquencia.
Os mouros combatiam como tigres selvagens que irrompem das suas jaulas de ferro, mas vinham enfiar-se nas espadas e nas lanças dos briosos defensores de Tanger.
Lucta encarniçada foi esta.
Esteve por momentos duvidosa a peleja, mas finalmente foi tal a multidão de Kabylas que acudiram de refresco que os nossos capitães julgaram mais acertado ir cedendo campo aos infieis.
Era demasiadamente grande a desigualdade do numero.
Foram-se portanto recolhendo os portuguezes em boa ordem e sempre com a frente para os mouros, mas houve alguma difficuldade nas portas de Tanger, porque estes fizeram esforço para entrarem de envolta com os nossos.
Custou muito detêl-os, por cambaterem então{31} mais furiosos, mas as adagas portuguesas souberam fazel-os recuar.
Teve então lugar um acto de valor; practicou-o Ruy Martins, soldado de reconhecido merito militar. Foi este o ultimo que entrou, deixando a porta meio aberta, pelo que instaram seus companheiros que a fechasse de todo, ao que respondeu elle com a arrogancia militar, digna de um bravo:—não convém essa medrosa prevenção ao brio portuguez; que eu só defenderei a toda a mourama o que resta por fechar.
Mal soltou estas palavras, já estavam ellas reduzidas a factos.
Os mouros intentaram forçar a entrada, mas repelliu-os elle por tal arte, que acharam mais prudente o retirarem-se.
Eis aqui como ha mais de tres seculos eram temidas as quinas portuguezas nas terras d'Africa.
Hoje porém representam outros povos no grande drama da civilisação.
E lá está a Hespanha a braços com a Mauritana, como para continuar a obra gloriosa de D. João I e D. Affonso V.
Eia, hespanhoes, é tempo de apagar a opinião desfavoravel em que ereis tidos pelas grandes potencias, com o aniquilamento d'esses barbaros que ahi jazem á beira da europa, ennodoando a moderna{32} civilisação com as atrocidades mais inauditas, mais revoltantes, e mais selvagens.
Tanger, Arzilla, assim como, Alcacer-Seguer foram conquistadas aos mouros no reinado de D. Affonso V, em cuja menoridade era então regente seu tio o Infante D. Pedro. Desde então por diante continuaram as grandes descobertas maritimas ao longo da costa Occidental d'Africa até ao golfo de Guiné, onde se encontraram as ilhas de S. Thomé, Principe, Anno Bom, Corisco, Fernando Pó, das quaes as ultimas tres pertencem hoje aos hespanhoes.
No reinado de D. João III perderam os portuguezes Safi, Azamor, Alcacer-Seguer e Arzilla.
Assigna-se e vende-se em Coimbra, na livraria do sr. J. de Mesquita, rua das Covas, e no Gabinete do Instituto, rua Larga.
Para os srs. assignantes... 100 réis.
Avulso... 120 réis.