The Project Gutenberg eBook of O Marquez de Pombal (folheto para poucos)

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Title: O Marquez de Pombal (folheto para poucos)

Author: Manoel Caldas Cordeiro

Release date: July 3, 2010 [eBook #33057]
Most recently updated: January 6, 2021

Language: Portuguese

Credits: Produced by Pedro Saborano

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK O MARQUEZ DE POMBAL (FOLHETO PARA POUCOS) ***



Manoel Caldas Cordeiro


O MARQUEZ DE POMBAL

(FOLHETO PARA POUCOS)

 

 

 

 

PORTO
TYPOGRAPHIA DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA
Rua da Cancella Velha, 70

1890

 

 

 

O MARQUEZ DE POMBAL

 

 

 

 

PUBLICAÇÕES DO AUTOR

A Vigilia, n.º 1, 1886.

A Vigilia, n.º 2, 1886.

Pyrilampos (collaboração de Eduardo Pacheco, n.º 1), 1888.

Pyrilampos (collaboração de Eduardo Pacheco, n.º 2), 1888.

O Marquez de Pombal, 1890.

Rimes Folles (em preparação).

Contos Sinistros (em preparação)

 

Manoel Caldas Cordeiro


O MARQUEZ DE POMBAL

(FOLHETO PARA POUCOS)

 

 

 

 

PORTO
TYPOGRAPHIA DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA
Rua da Cancella Velha, 70

1890

 {5}

 

O MARQUEZ DE POMBAL

Elle tinha duas envergaduras como esses palhaços que apparecem no circo com um fato de duas côres. A envergadura do beato, do amigo de D. José, do providencial expurgador da impiedade; a envergadura do livre-pensador, do philosopho preoccupado com o que d'elle diziam os contemporaneos.

Diziam boas cousas os contemporaneos. O Choiseul—um visinho da sobre-loja, portanto,—chamáva-lhe: «um tacanho aventureiro que tinha sempre um jesuita a cavallo no nariz». O massador Garção e o semsaborão Antonio Diniz da Cruz e Silva chamávam-lhe «genio, muito alto e muito poderoso» e outras baboseiras. Os que viviam{6} junto d'elle elogiávam-n'o uns por medo, outros por interesse. Os de longe, embora corressem parelhas, no talento e no caracter, eram tão amaveis como o ministro de Luiz XV.

Como politico os seus actos de governo derivam das duas attitudes que se quiz dar toda a vida. Attitudes que estão em antithese guerreira e são uma revelação do caracter repugnante e hypocrita d'este doutrinario que não teve nem a aberta franqueza, nem o espirito absolvidor dos homens que imitou sempre.

Chamam-se elles D. Luiz da Cunha, Alexandre de Gusmão, Francisco Xavier d'Oliveira (o cavalleiro d'Oliveira), e o dr. Antonio Ribeiro Sanches.

Eis os homens que tomou para norma das suas idéas occultas de livre pensador. De D. Luiz da Cunha apanhou as idéas de governo e de administração mas não lhe imitou o dandysmo, a resignação espirituosa com que este impio de oitenta annos esperava a morte em Paris, nos braços de uma amante.[1]{7}

Quando queria ser dandy o marquez de Pombal nem sequer o era como um doutrinado ridiculo. O unico traço de supposto dandysmo, que historiadores como Rebello da Silva e o snr. Pinheiro Chagas nos dão, é a maneira porque elle assestava a sua tremenda luneta. Tal e qual um velho de entrudo, de rabicho, bastão, oculos e o corninho pendurado ao pescoço. Elle tinha tudo isto, menos o corno de que possuia talvez o plural.[2]

As paginas que vão lêr-se são um protesto contra a lenda idiota que fez do marquez de Pombal um homem extraordinario, um homem unico, um homem immortal, um homem deslocado no seu meio e no{8} seu seculo. Elle estava até muito bem posto, o marquez—no meio e no seculo!

O marquez de Pombal viveu em Londres d'onde trouxe a crassa ignorancia da lingua ingleza e a ausencia completa,—de resto propria do seu esquerdismo de desastrado—do puritanismo britannico, o grande puritanismo que antecedeu os dandies George IV, Brummell e lord Pellehan. O marquez tinha o caracter e as attitudes de um jacobino digno do ridiculo da época ridiculissima da revolução em que chafurdeiáram um Saint-Just, um Robespierre e um Marat. Monstro de caracter como este ultimo o era de corpo, o ministro applaudido e consagrado pela historia tinha uma tão ingenua maldade que a sua attitude dominante consistia em carregar o sobr'olho para fingir a polvora da colera que lhe explosia na pedreira do coração.

Actos que lhe merecessem a immortalidade, não lhe conheço senão os que lhe dão a immorredoura recordação do homem mais barbaro e mais estupidamente bestial que existiu no regimen absoluto. O marquez de Pombal como estadista tem o mesmo merito que na litteratura teria o escriptor que herdasse os manuscriptos de um{9} fallecido, e, publicando-os em seu nome, fosse declarado um dos maiores talentos do seculo.

N'este escripto analysam-se alguns actos culminantes do reinado de Sebastião e o autor procura cingir-se o mais possivel aos manuscriptos da bibliotheca publica de Lisboa, aproveitando n'elles o que ha de racional.

*

A conspiração de 3 de setembro de 1758 está envolvida em densas trevas. Todas as hypotheses que se têm formado, todas as divagações que se têm feito, só têm concorrido para perder os historiadores n'um labyrintho de conjecturas.

Assim, uns dizem que a conspiração foi inventada pelo marquez de Pombal; outros que os tiros não alvejavam o rei, mas um criado, Pedro Teixeira, que tratára insolentemente o duque d'Aveiro. Tudo póde ser; mas como não ha um documento que favoreça ou desfavoreça semelhantes hypotheses, nada póde considerar-se como certo. O que é incontestavel é que o rei foi ferido no braço: «gravemente» dizem alguns historiadores.{10} É provável que haja engano.

N'aquelle tempo a ferida teria mais importancia, visto o atrazo da cirurgia; no emtanto a gravidade da ferida é contestavel; porque, n'um braço, o cirurgião remediava o perigo da gangrena, cortando-o.

Ferido grave ou ligeiramente, o rei recolheu-se a casa do marquez d'Angeja onde lhe foram dados os primeiros curativos.

Não fazemos a narração minuciosa do attentado, porque ella vem repetida em quasi todas as Historias de Portugal. Na do snr. Pinheiro Chagas vem elle narrado com muita exactidão.

Na mente rancorosa do marquez de Pombal os conspiradores eram os Tavoras, o duque d'Aveiro e alguns criados. A innocencia da familia Tavora é hoje tida como certa. O duque d'Aveiro, posto a tratos, confessou que elles eram culpados; mas depois negou. O marquez de Pombal com a confissão havia de ter um jubilo feroz. Elle detestava os Tavoras, fidalgos honestos, vaidosos dos seus pergaminhos que o tratavam desprezivelmente por Sebastião José. O tribunal aceitou a confissão do duque; mas quando se retractou, não lh'o consentiram. Os desgraçados postos a tratos,{11} segundo confessa Michelet e como logicamente se comprehende, muitas vezes confessavam crimes de que estavam innocentes, só para se livrarem d'aquelle supplicio medonho.

Os criados do duque foram mais honrados do que elle: nem á força de torturas, confessáram a culpabilidade dos Tavoras, confessando porém a sua, dos seus, e do seu amo.

Mas que importava isto ao marquez de Pombal e ao tribunal de Inconfidencia, todo composto de malandros e de estupidos da casta d'elle? Sebastião José jurou perder os Tavoras, porque julgou, talvez com razão, que a tentativa da conspiração visava mais a elle do que ao rei.

Os Tavoras viveram no antigo luxo e socego depois do dia 3 de setembro. Corriam boatos de que elles eram cumplices—e elles ouviam perfeitamente esses boatos. Porque não fugiam?

Porque não tentavam precaverem-se contra essas accusações?

Estavam innocentes.

Resposta que resume tudo; resposta que os absolve da louca serenidade com que aguardavam a colera do rei e do ministro{12} que, no tenebroso espirito ao serviço do seu coração empedrado, preparava as minuciosidades selvagens do cadafalso de Belem.

A historia a unica reprehensão que póde fazer aos desgraçados é esta:

—Vossês deviam conhecer melhor Sebastião José! Julgavam que elle hesitaria em condemnar-vos innocentes?

Os Tavoras não esperavam tanta infamia da parte do seu inimigo. Senão fugiriam como depois fugiu José Polycarpo de Azevedo.

Quanto ao duque d'Aveiro, varia muito a attitude. Só uma estolida soberba e uma inabsolvivel leviandade o podia fazer ficar em Portugal.

Lamentemos estas infelizes victimas do ministro e do rei:—um malandro porquissimo e um gordurento repugnante.

Um escriptor francez, Victor Joly chega a dizer que «o duque d'Aveiro tinha a queixar-se d'um duplo ultrage: a mulher e a filha tinham sido seduzidas pelo rei e entregues a todos os caprichos de um escandaloso deboche».

Cito este escriptor porque não será facil que algum historiador o desminta.{13}

Os Tavoras tinham recebido desconsiderações do rei; mas o mais offendido era o segundo marquez de Tavora cuja mulher era a marafona de D. José I. Não havia porém uma prova cabal contra elles.

Isto não impediu que o tribunal os condemnasse.

*

Nunca em Portugal se viu uma tão intensa crueldade na morte dos infelizes, considerados reus. Havia um proposito firme de os fazer soffrer na alma e no corpo, prolongando-lhes o martyrio, infamando-os, torturando-os, insistindo d'uma maneira infame sobre o destino dos seus restos mortaes.

Aos apologistas do marquez de Pombal offerecemos a narração que passamos a fazer e que tiramos do manuscripto da bibliotheca publica de Lisboa, escripto por testemunha ocular, observando-lhes que todas estas minuciosidades bestiaes foram o additamento que o marquez fez á sentença condemnatoria.{14}

*

A 12 de janeiro de 1759 foi proferida a sentença, e, n'essa noite sinistra, á luz dos archotes, os operarios martellavam o cadafalso. As pancadas dos martellos ouviam-n'as os infelizes condemnados, reunidos todos n'uma casa do palacio de Belem. A marqueza, D. Leonor Tavora, tinha sido conduzida, do convento das Grillas para Belem.

Ahi se juntáram todas as victimas do odio dos dois estupidos.

Pela madrugada já o povo enchia a praça e os logares d'onde se podesse contemplar o horroroso supplicio.

Passava das seis horas e meia, quando se abriu a porta do pateo dos Bichos e sahiu o grande acompanhamento tenebroso: os ministros do crime, o corregedor e a tropa.

Atraz vinha a cadeirinha d'onde se apeiou a marqueza de Tavora amparada por dois padres da congregação de S. Vicente de Paula. Confessou-se no começo da escada. Depois subiu com agitação os degraus do patibulo. Recebeu-a o algoz, e,{15} quando ella julgava que elle ia acabar-lhe a vida, o carrasco descreveu-lhe minuciosamente o instrumento que ia servir ao seu supplicio, mostrou-lhe a corda que havia de estrangular os seus dois filhos, e o genro, o maço que havia de quebrar-lhes as pernas, os braços; contou-lhe como havia de morrer o marido, e em que divergia a morte do pai da dos filhos.

A marqueza, exhausta pela tortura moral, pedia de joelhos que lhe dessem a morte. Amarráram-n'a á cadeira, tiráram-lhe o lenço do pescoço, vendáram-n'a; e, o cutello ferindo-a na nuca, decepou-lhe a cabeça.

Cobriram o cadaver da primeira victima com um panno preto.

Sahiu a cadeirinha outra vez do pateo e apeiou-se quasi desfallecido, pallido como um cadaver, entorpecido na lembrança do martyrio que lhe iam infligir, um rapaz de vinte e um annos, loiro, amado talvez.

Subiu difficultosamente a escada amparado pelos frades. Fallou ao povo, mas a testemunha cujo manuscripto seguimos diz que a voz quasi se lhe sumia na garganta. Devia de dizer que morria innocente.

Os algozes estenderam-n'o n'uma aspa,{16} passáram-lhe uma corda pelo pescoço, e emquanto lhe quebravam as pernas e os braços, procurávam estrangulál-o. A corda partiu, e o infeliz, estalados os ossos, dava gritos tremendos. Como esses gritos deviam penetrar como balas pelos ouvidos dos espectadores! Hoje ainda o coração se nos mirra com as dilacerantes minuciosidades d'estas mortes.

Pela terceira vez trouxe a cadeirinha a terceira victima, o marquez de Tavora, o novo, o que o rei tinha corneado. Este foi um pouco mais feliz do que o irmão:—os algozes estranguláram-n'o e depois quebráram-lhes as pernas e os braços.

O mesmo supplicio foi infligido ao conde d'Atouguia e aos criados. Antonio Alvares Ferreira, Braz José Romeiro e João Miguel.

Houve um pequeno intervallo.

Veio a cadeirinha com o velho marquez de Tavora. Apeiou-se serenamente, subiu os degraus do patibulo, ajoelhou, beijou a aspa em que o haviam de quebrar, e só quando os algozes lhe mostráram os corpos desfigurados da mulher, dos filhos e dos criados é que essa estoica e santa serenidade se acabou por um momento. Estenderam-n'o sobre o cavallete, amarráram-lhe{17} os pés e os pulsos, e quebráram-n'o em vida. Morreu heroicamente[3].

Seguiu-se-lhe o duque d'Aveiro, o medonho arrependido que denunciára a familia Tavora. Tinha as feições contorcidas, e, horrivelmente desfigurado, sujeitou-se á operação de lhe amarrarem os pés e os pulsos. Estendido na aspa o carrasco vibrou-lhe a pancada na barriga, e, emquanto o infeliz uivava uns gritos lancinantes, iam-lhe quebrando os braços e as pernas. Eram tantos os gritos e as contorsões, que o carrasco apiedado—talvez!—deu-lhe com a maça na cabeça.

O ultimo martyr era Manoel Alvares Ferreira, o criado, cujos tiros entraram pelo braço do rei. Morria queimado. Fizeram os preparativos para a fogueira diante do infeliz que, quasi desmaiado, assistia ás minudencias da tortura. Lançaram-lhe finalmente o fogo, ao passo que queimavam os cadaveres das outras victimas. O vento soprava as chammas e avermelhava o corpo em braza{18} do desgraçado que gritava, torcia, blasphemava, apesar das consolações dos dois frades.

Já as chammas o envolviam todo, já as mãos se tinham tornado carvão, e ainda o infeliz erguia os cotos, cruzando-os, como que pedindo misericordia. José Polycarpo d'Azevedo foi queimado em estatua porque se tinha evadido. Sobre este sujeito veja-se a historia curiosissima que vem no Perfil do Marquez de Pombal do snr. Camillo Castello Branco. O cadafalso, os cadaveres, tudo, reduzido a cinzas, foi deitado ao mar.

Os bens dos fidalgos foram todos confiscados e o marquez de Pombal roubou-lhes alguma prata, algumas baixellas e alguns livros. Ainda na ultima compra feita pela bibliotheca á casa Pombal vem uma Genealogia dos Tavoras que Carvalho apanhou quando os bens se confiscáram. A prata foi achada ha annos em vida do marquez, fallecido ha pouco, guardando-se d'isso muito segredo.

*

Reflexões sobre estes supplicios:

O rei, convencido pelo marquez de Pombal{19} da culpabilidade dos infelizes, não os deixaria com vida. O atoucinhado D. José não era animal de coração, embora não tivesse o requinte de selvageria de Pombal. Mandaria fuzilar os fidalgos ou garrotal-os, e enforcar os do povo. E, façamos-lhe esta justiça, elle não faria morrer a velha marqueza. Condemnal-a-ia a prisão perpetua. O marquez, inabalavel na sua porca vingança, induzia o animo amedrontado do covardão a não empregar a minima indulgencia. E depois como elle punha e dispunha de tudo, a vontade do rei, quando se não tornava imperiosa e rude, era para elle cousa secundaria.

Entregues á vingança do ministro ninguem, no emtanto, tinha direito de esperar tanta barbaridade. O Sebastião José inventa para matar os Tavoras os mais medonhos tormentos de que não ha exemplo na historia; confisca-lhes os bens; arraza-lhes as casas; prohibe que qualquer pessoa, sob pena de confiscação de todos os bens, use do appellido de Tavora, e, passados nove annos sobre esta inesquecivel tragedia, casa o seu segundo filho José de Carvalho e Mello com D. Francisca de Tavora e Lorena, sobrinha e prima dos sentenciados de Belem{20} e filha de Nuno Gaspar de Tavora e Lorena!

*

Quando se prenderam os suppostos conspiradores, foram encarcerados no forte da Junqueira os jesuitas João de Mattos, Jacintho da Costa, José d'Oliveira, João Alexandre, José Moreira, Pedro Homem, Timotheo d'Oliveira, Francisco Duarte e Gabriel Malagrida.

Diz o snr. Pinheiro Chagas na sua Historia de Portugal:

«O grande marquez tinha fraquezas, que mancham a sua vida, aliás toda consagrada ao bem do paiz.»

Não estão más fraquezas! Por estas e outras fraquezas pagaram os Tavoras, o Malagrida, o Pelle, os jesuitas, os encarcerados nas medonhas masmorras, os roubados, os despojados, e, finalmente, aquelles que este livre pensador, para acabar com elles mais summariamente, entregava ao Santo Officio!

Assim succedeu ao padre Gabriel Malagrida. Malagrida era um velho septagenario a quem o sublime histerismo christão fazia venerado de todos. Os devotos consideravam-n'o{21} santo e procuravam-n'o com insistencia; os dignos respeitavam-n'o. O marquez de Pombal, como não era nem devoto, nem digno, e como o odiava, prometteu perdel-o.

Todos os que se aproximavam de Malagrida, depois da sua vinda do Brazil, onde o irmão de Sebastião José lhe não tinha querido fazer umas concessões justas para a sua Ordem, notavam-lhe o exaltado mysticismo, aggravado por uma mania prophetica. Era como que o prologo d'uma loucura mansa.

Os jesuitas, que lhe comprehenderam a doença, evitavam que elle fosse ao paço. Preso nas regeladas prisões do forte da Junqueira, a sua mente de visionario começou por ver fórmas celestiaes, visões, apparições. Escreveu na prisão a Vida da gloriosa Sant'Anna, livro em que se revela o apogeu da loucura serena.

Que admira que Malagrida estivesse louco? A prisão, a velhice, os maus tratos, os antecedentes da sua vida agitadissima, cortada de trabalhos, os annos de missionario, tudo concorreu para tornar inevitavel esta loucura. O livro de Malagrida foi um pretexto para o marquez de Pombal o entregar{22} á Inquisição. O processo foi summario e toda a responsabilidade d'elle cabe ao repugnantissimo cynico que a maior parte dos historiadores consideram ainda como um illuminado. Todos proclamavam a innocencia do martyr immolado ao odio do ministro. A sentença é escripta n'aquelle estylo manhoso, vago, solemne, perfido, jesuitico, como se diz hoje, de que o marquez de Pombal foi o mestre e o inspirador.

Accusava-se o padre de heresiarcha como João Huss, como Savonarola, como Calvino; e, depois de um extenso rol de perfidias fortuitas, inventadas pela corja do ministro, condemnavam-n'o a ser garrotado e queimado.

Voltaire, esse pequeno grande homem do seculo XVIII, Voltaire que não tinha nem o espirito de Rivarol e de Chamfort, nem o colossal talento de Diderot, Voltaire, o senhor de La Palisse do livre pensamento, escreveu sobre esta condemnação que «o excesso do horror só era vencido pelo excesso do ridiculo». O conde d'Oeiras, como era bastante tapado, talvez julgasse, quando lhe disseram a phrase do homem que não fez outra cousa na sua vida, que o philosopho d'algodão em rama achava ridiculo{23} o jesuita garrotado. Por isto devia alegrar-se. Só, passados annos, quando lhe fizeram comprehender o sentido das palavras de Voltaire, é que elle se certificaria que os philosophos quando fallavam d'elle, não o considerávam nem mais intelligente, nem mais perspicaz, nem menos cruel que o seu real amo D. José.

No Perfil do Marquez de Pombal escreve Camillo Castello Branco: «A sua mão (a do marquez), onde quer que pousava, punha nodoas de sangue. A Companhia dos vinhos foi inaugurada no Porto com uma fileira de forcas que trabalháram seis horas e por um crebro ulular de gemidos de uns açoitados que se tinham amotinado em seguida á bebedeira de terça-feira de entrudo.» Com effeito os taberneiros excitaram o povo á revolta na manhã de quarta-feira de cinza.[4]

Antes d'isso, convem advertir que a Companhia dos vinhos, que alguns Plutarchos de Sebastião de Carvalho consideráram como um acto providencial que salvou do descredito os vinhos portuguezes e augmentou{24} a exportação (dizem elles), não foi mais do que um monopolio infame, tendente a proteger aquelles que o Sebastião queria, contrario a todas as leis de liberdade do commercio e de economia, absurdo, tolo, e, sobretudo, inutil.

A Companhia tinha o privilegio de vender vinho em tres leguas de redor da cidade em 1760 em quarto; tinha o exclusivismo do fabrico da aguardente no Minho, em Traz-os-Montes, na Beira. Os proprietarios, como eram contrarios á Companhia, só podiam vender uma certa quantidade de vinho, fixada pela Companhia, e eram obrigados, sob penas graves, a declarar a quem o vendiam. Immortal legislador! Era d'esta e d'outras maneiras que este grande liberal impulsionava o commercio e a agricultura.

Ainda ha mais uma série de medidas que são o complemento d'este amontoado de desconchavos, de tolices e de privilegios.

Os amotinados de 23 de fevereiro entráram nos escriptorios da Companhia dos vinhos, quebráram os moveis e queimáram os papeis.

Eu não quero crêr que operasse n'estas{25} creaturas o espirito liberal e revolucionario, mas sim, como o dá a entender o grande escriptor citado, vestigios das bebedeiras de terça-feira de entrudo.

Sebastião José de Carvalho, esse illuminado, viu na revolta dos bebados um attentado contra a pessoa do rei, um crime de lesa-magestade, um protesto contra os irrevogaveis decretos do seu real amo. Que malandro! O real amo de Sebastião de Carvalho era elle mesmo. O cynico considerava-se mais rei do que o proprio rei, e quando via indisciplinas contra os seus decretos, punia-as como crimes de lesa-magestade. Assim bem podia o escrupuloso desembargador João Pacheco Pereira de Vasconcellos escrever-lhe do Porto notificando-lhe o escrupulo de condemnar os infelizes como reus de crime de lesa-magestade; bem podia o fraco e respeitavel homem querer induzir um pouco á piedade o reles selvagem. Tudo foi inutil. O processo durou cinco longos mezes, longos para Sebastião de Carvalho, que de Lisboa não fazia senão mandal-o abreviar summariamente. Elle anciava que se soubesse, que morria gente enforcada por sua causa. O mostrengo bem sabia que viriam historiadores que depois{26} escreveriam: «Sebastião de Carvalho tinha a inquebrantavel severidade dos grandes espiritos.»

Finalmente—rejubilou Sebastião!—a 11 de outubro foi proferida a sentença condemnando á forca 21 homens e 5 mulheres; á pena de açoites e confiscação de metade dos bens 26 homens; á pena de açoites, confiscação de metade dos bens e degredo para Africa 8 homens e 9 mulheres, e uma outra infinidade de penas um pouco menores.

No dia 14 sahiram a morrer na forca treze homens (oito tinham fugido) e quatro mulheres. Uma escapou da forca, por causa da gravidez. A somma total dos condemnados ás diversas penas é de 237.

E os vinhos nem por isso se vendiam mais. Historiadores affectos ao marquez, não occultam a revolta de semelhantes iniquidades, e não deixam de confessar a completa inutilidade que a Companhia trouxe ao commercio e á exportação.

Têm-se publicado listas, mais ou menos exactas, sobre o numero de pipas exportadas antes e depois do monopolio. Ahi vai uma, inteiramente inédita, ao mesmo tempo imparcial, visto que é copiada dos{27} manuscriptos adquiridos, no anno de 1889, á casa Pombal pela bibliotheca publica de Lisboa. O numero d'estas pipas é exportado para os commissarios inglezes. Eis a lista, nos sete annos anteriores ao monopolio:

 

Annos ... Pipas

1750 ... 15:121

1751 ... 17:406

1752 ... 13:238

1753 ... 21:257

1754 ... 14:773

1755 ... 13:124

1756 ... 12:094

Somma ... 107:013

 

Nos sete annos depois do monopolio:

 

Annos ... Pipas

1757 ... 11:317

1758 ... 16:568

1759 ... 16:413

1760 ... 17:130

1761 ... 14:785

1762 ... 21:199

1763 ... 9:683

Somma ... 107:095

 

Para augmentar 82 pipas sómente na exportação ingleza (que nas outras foi grande{28} a diminuição depois do monopolio) mandou Sebastião de Carvalho enforcar, açoitar e degradar a enorme porção de desgraçados, que além de terem fome, pagáram com a vida, com o corpo, com a saude e com o dinheiro a mania reformadora do delirante mostrengo. Ha a fazer um estudo pathologico sobre o coração e o cerebro d'este homem verdadeiramente extraordinario n'uma qualidade unica:—a suprema crueldade. Elle era um bicho estranho, que n'outro qualquer paiz seria considerado como um delirante furioso, mas que em Portugal é ainda tido—graças aos historiadores que fazem historias!—um ministro providencial.

Alguns historiadores, entre elles o snr. Pinheiro Chagas, afiançam com uma ingenuidade indesculpavel que Sebastião de Carvalho, indignado com o procedimento do escrivão da alçada, José de Mascarenhas, filho de João Mascarenhas Pacheco, o bom e fraco homem, e não podendo punil-o n'essa occasião sem comprometter-se, deu-lhe uma commissão no Brazil, como desterro simulado, reservando-se para mais tarde o prender, o que fez com effeito em 1758. Sebastião José de Carvalho indignado{29} com um sujeito por suppôr que elle levava o zelo e a emulação a ponto de querer igualal-o! Se isto não é para fazer rir. Dir-se-ia que o ministro não queria rivaes n'uma qualidade em que elle realmente não os tinha. Mas José de Mascarenhas estava longe de aspirar a semelhante rivalidade. Elle era um pouco menos fraco do que o pai, mas foi sempre durante o processo o fiel e talvez o brando executor das ordens tremendas do ministro.

Os historiadores que imaginam que um sujeito, que servia sob as ordens de Carvalho, podesse metter «crueldade de sua casa», são muito ingenuos e muito ignorantes. As ordens do ministro eram formaes: «que considerasse o crime como de lesa-magestade, que mandasse enforcar os cabeças do motim, açoitar, degredar e roubar os outros».

José de Mascarenhas ainda teve a condescendencia de perdoar a forca á mulher gravida. Os que desejem saber os motivos da prisão de José de Mascarenhas leiam o Perfil do Marquez de Pombal pelo snr. Camillo Castello Branco. Tendo pouco espaço, não me posso occupar de assumptos menos importantes que digam respeito á{30} crueldade de Pombal; por isso, lendo o livro do maior escriptor portuguez d'este seculo, encontrarão desfiada a meada em que se enredáram historiadores de talento.

*

O ministro por essa época já começava a ter jesuitas a cavallo no seu porquissimo nariz—immundo e purguento deposito de rapé e de ranho.

Accusou os jesuitas de terem incitado o povo á revolta fazendo-lhe suppôr «que os vinhos vendidos pela Companhia não eram proprios para a celebração do santo sacrificio da missa».

O porcalhão tinha maravilhosos pretextos, sufficientes talvez para lhe provarem o grau de intelligencia.

Os jesuitas nunca poderiam dizer tal coisa, porque, segundo o costume de todas as ordens religiosas, usavam nas missas vinho preparado por elles.

Appello para o testemunho de todos os padres pertencentes a ordens religiosas. E se os jesuitas dissessem o que o Sebastião lhes attribuiu, não mentiriam. A Egreja ordena, sob pena de inutilidade do sacrificio,{31} que o vinho, que o padre tem de benzer, seja natural, puro, sem mistura alguma. Ou pelo menos o padre deve ter a consciencia de que o é. Os jesuitas e os padres d'aquelle tempo não podiam ter a consciencia d'isso, porque sabiam que o vinho da Companhia era falsificado com misturas reles.

O fallecido escriptor Francisco Luiz Gomes no seu livro Le Marquis de Pombal, explica que a Companhia não melhorou os vinhos nem impediu as misturas, que ella mesma fazia, tomando apenas o monopolio da adulteração. Não era preciso o testemunho. Quem quizer ter mais conhecimento das manhosas trapalhadas do ministro consulte os manuscriptos insuspeitos da bibliotheca de Lisboa.

*

Burguezes que lêm as declamações de historiadores mellifluos, acreditam ingenuamente que foi Pombal e a sua energia quem reedificou a capital, depois do terremoto de 1 de novembro de 1755.

Em Portugal quantos terremotos não houve antes do de 1755? E medonhos e terriveis. E as cidades reedificávam-se, sem{32} que o nome dos ministros de então fosse sequer citado. N'uma miscellanea de manuscriptos que possuo, descreve-se um terremoto na ilha Terceira em 1614, maio, succedido «durante o tempo em que se póde resar um credo». Abriu-se a terra, sumiram-se casas, cresceu o mar, morreram mil e mil almas sepultadas nas ruinas e sumidas pelas voragens, eis o que diz a narração.

Carvalho fez o que qualquer faria. Os architectos dos Arcos das Aguas-Livres e do palacio de Mafra não seriam mais do que competentes para construirem os paredões funebres e alinhados da rua do Ouro, da rua Augusta e rua da Prata?

O que pertence ao marquez—e traz o cunho indelevel d'esta individualidade—são os avisos mandados expedir depois do terremoto. Isto sim, é original d'elle. Mandava que se prendessem todas as pessoas suspeitas, que se enforcassem os ladrões e os que fossem encontrados com quantias superiores, e lhes expuzessem os cadaveres na forca durante tres dias. Ordem providencial e hygienica! Tambem lhe cabem as honras do monopolio da escravatura branca que elle empregava mandando trabalhar{33} nas obras da cidade bandos de operarios com fome, chicoteados e mal remunerados.

Tudo isto é d'elle; e, se os democratas que hoje applaudem o ridiculo despota, soubessem as ignominias, a fome e os rebaixamentos soffridos pelo povo durante o reinado do idolo, talvez esfriassem o enthusiasmo com que ha sete annos lhe celebraram o centenario.

Porque—que isto se saiba!—quando este homem se retirou do poder deixando o erario cheio de milhões, o povo e o exercito soffria fome![5]

*

Quando Sebastião de Carvalho começou o ajuste de contas com os jesuitas, já as côrtes da Europa mostravam descontentamento a esta Ordem, a mais zelosa, a mais pugnadora pelos interesses da Egreja.

Em Hespanha, ministrava Aranda. Em França, Choiseul, um emplasto, um intrigante{34} que troçava espirituosamente das patifarias solemnes de Sebastião de Carvalho. Coroava este cenaculo um philosopho que as gravuras do tempo apresentávam com um sorriso saloio de creado de servir em dia de banquete. O defunto Voltaire, de quem o leitor ha de talvez ter ouvido fallar, como dizia Rivarol, era um homemzinho que monopolisava o espirito nos salões do seculo XVIII, o grande seculo da conversação. Monopolio facil:—monopolio do espirito dos outros:—de Rivarol, de Diderot, de Chamfort. Desastrado artista, mau poeta, mau romancista, mau dramaturgo, mau critico, horroroso estylista, e por todas estas razões declarado genio, homem encyclopedico, apostolo sublime, e alojado no Pantheon, onde hoje repousa com o nojento e impotente Rousseau ao lado de Victor Hugo!

Ironia medonha! O homem que no seculo XIX mais enthusiasmo, mais estylo, mais arte, mais energia moral, dispendeu na factura de um monumento de poesia, cofre á prova de fogo onde estão guardados todos os versos torturados, todas as perolas da poesia, todas as phrases filtradas, junto dos dois que com o seu cynismo{35} mais concorreram para o descredito da grande arte. Homens criminosos porque não esforçáram o talento que tinham e porque consentiam que desperdiçassem a grande faculdade da admiração os que os adjectivávam banalmente. Talentos diffusos, solemnes, precisando d'um campo largo e aplainado para se espojarem, foram o alvo das acclamações d'um seculo, e hoje seriam—talvez!—dois citados escriptores illegiveis da Revista dos Dois Mundos! Juntava-se a elles a Pompadour, a espirituosa mulher que deu aos francezes mobilia, alegria e gozo. Esta sim, tinha razão de queixa dos jesuitas, que lhe compromettiam e refreavam as ambições.

A guerra contra elles foi tão iniqua e tão tola que até os seus inimigos—até Voltaire!—protestáram contra ella.

D'Alembert dizia:

«Foi a philosophia que, pela boca dos magistrados, lavrou a sentença contra os jesuitas. Diremos tambem, porque é preciso ser justo, que nenhuma ordem religiosa se póde glorificar de ter possuido um tão grande numero de homens celebres na sciencia e nas letras.» Etc. etc.

«A todos estes meios de augmentar a{36} sua consideração e credito juntavam um outro não menos seguro, que era a regularidade do seu comportamento e costumes. Embora se tenham publicado calumnias contra elles, devemos confessar que nenhuma Ordem deu menos motivos para isso.» Até aqui D'Alembert. Não citaremos mais por inutilidade. Em 1759 foram expulsos, de Portugal; em 1764 foi a sociedade supprimida em França e os bens confiscados, e em 1773 apparecia o breve Dominus ac Redemptor, que supprimia a Companhia de Jesus, considerando perigosa a sua doutrina.

Firmava-o o pulso fraco,—mas parricida!—de Clemente XIV que em pleno peito apunhalava os seus mais zelosos filhos.

Sejamos logicos: negar que os jesuitas prestávam innumeros serviços á Egreja é parvoice. Se prestavam serviços, porque é que a Egreja os supprimia? Quem não vê aqui o grande erro e o grande crime de Ganganelli, o cardeal que obteve a tiara com a expressa condição de supprimir a Ordem.[6]{37}

*

Eis uma prova da honradez inquebrantavel do velho marquez: D. José quiz casar o principe do Brazil, seu neto, com a infanta D. Maria Francisca. Sebastião oppunha-se teimosamente e manhosamente a este enlace porque, dizia elle, uma alliança com a França seria muito proveitosa a Portugal: e propunha o casamento do principe com a filha de Luiz XVI. Como quasi toda a côrte e o rei eram contrarios á idéa do marquez, mandáram-se vir de Roma os breves da dispensa para se effectuar a primeira alliança projectada. Os papeis chegáram e ficáram em poder de Sebastião José. O rei adoeceu da paralysia mortal e ateimou para que se abreviasse o contrato. Procuráram-se os papeis em casa de Pombal, que os sumiu.

Julgo que este ultimo facto foi o que denunciou abertamente a D. José o empalmador de documentos. Pois que passado tempo, quando o marquez ia a entrar na camara em que jazia o rei enfermo, este apontou-lhe a porta disparando sobre elle um olhar carregado e colerico.{38}

O pobre D. José com o horror religioso que os antigos cortezãos lhe influenciáram, possuiu-se de um justo remorso pelos crimes commettidos de connivencia com o asqueroso mostrengo que fizera seu primeiro ministro. Uma tardia bonacheirice, onde havia um pouco de energia, de odio, de piedade e de gratidão para com o companheiro repulsivo dos seus crimes, evitou que o rei punisse com severidade o aventureiro desprezivel—e já desprezado!

A côrte, sabedora da repulsão do rei pelo grande e ridiculo criminoso, começou a fazer a Sebastião toda a qualidade de desfeitas, sendo um dos maiores desfeiteadores o cardeal Cunha—um antigo amigo do marquez. Bom homem!

D. José—o gordo—morreu no palacio da Ajuda em 24 de fevereiro de 1777. A 4 de março de 1777, dia seguinte ao de um decreto da rainha D. Maria I que exilava o ex-ministro amavelmente para Pombal e lhe fazia mercê da commenda de S. Thiago e da Ordem de Christo, partiu o marquez para a villa do titulo. No largo do Convento de Belem foi apedrejada pelo povo a carruagem em que ia. D. Maria I resolvêra deixar em socego Sebastião de Carvalho.{39} Mas elle, que não comprehendeu isso, publicou a apologia dos seus actos n'um idiotissimo volume provocador em que se póde, como amostra, avaliar a mesquinhez do seu talento de politico e de escriptor.

D. Maria I, instigada com razão pelos escandalisados, mandou a Pombal os desembargadores José Luiz da França e Bruno Manoel Monteiro da Rocha interrogar o marquez. D'estes interrogatorios resultou um decreto em que se dizia que o marquez, arrependido de tudo, pedira perdão; pelo que havia por bem a rainha perdoar-lhe, attenta a avançada idade e grandes enfermidades, os castigos corporaes que elle merecia. O decreto tem data de 16 d'agosto de 1781. O marquez de Pombal, de joelhos, pedindo perdão! O velho tigre, desdentado para morder, lambia, encolhendo as garras—porque já não podia arranhar.

Abandonado n'um exilio nem sequer mitigado pelas considerações e pelos respeitos que não recebia, este velho—velho como a estupida maldade do seculo em que viveu—era o espantalho sinistro do seu passado terrorista. Espantalho que não espantava senão moralmente, pois que era o espectro vivo d'um monstro amortalhado{40} no sudario de infamias, parecia que o remorso amarráva á sua columna de fogo este cadaverico que durante o seu reinado de sangue e de lama não perdoára nunca—e fôra perdoado!

É provavel que algumas das suas victimas se compadecessem d'elle. Os jesuitas, as victimas do seu odio jacobino, quando entráram em Portugal, recolheram-lhe piedosamente os ossos espalhados pelo chão da capella nos despojos da invasão franceza.

Parece impossivel que algum historiador se não tenha lembrado de dizer que o marquez teria estremecido no tumulo. Qual estremeceu! A poeira ficou piedosamente collocada na urna e a que se misturou com o lixo do chão foi varrida para a rua. Não houve estremecimentos.

*

Não intentámos biographar o marquez de Pombal, mas sómente resumir os seus actos de governo e de crueldade. O homem para ahi fica exposto n'este pelourinho de justiça e de indignação. Quando o marquez{41} de Pombal morreu, o medico achou-lhe duas pedras no coração. Devia de ter mais quem mandou cortar a mão direita e arrastar á cauda de quatro cavallos um pobre pyrotechnico genovez sob pretexto que attentára contra os seus dias![7] Devia de ter mais o contradictorio mostrengo que inventou as minuciosidades do cadafalso de Belem, a impiedade de Malagrida, a conspiração dos jesuitas, e o crime de lesa-magestade na revolta do Porto. Escriptores metaphoricos comparam o coração do velho a uma caverna, a um antro. Aquillo era, indulgentemente fallando, uma latrina para onde escorriam as fezes da sua alma sempre abundante.

 

FIM.

 

[1] Vide o magnifico livro de Camillo Castello Branco Perfil do Marquez de Pombal. Porto, 1882.

[2] Uma das primeiras leis providenciaes do «grande reformador» foi a que mandava reprimir severamente «os libertinos que escolhem sempre a noite para assignalar o deboche e que, querendo fazer duvidar da honra das mulheres que se casavam, punham-lhes nas casas dos maridos os emblemas de ignominia (cornos) que tornam suspeita a fidelidade conjugal.» O sublinhado é tirado d'um livro em francez l'Administration de Sebastien de Carvalho e Mello, etc., etc. Amsterdam, 1786, tomo II, pag. 13.

Talvez que os taes libertinos puzessem o emblema na porta do ministro, que, para se não tornar grotesco, abafou a crueldade.

[3] O marquez de Tavora e o duque d'Aveiro, segundo a sentença, deviam ter os braços e as pernas quebrados e serem queimados vivos. O rei modificou-lhes esta tremenda morte.

[4] 23 de fevereiro de 1757.

[5] Soldados, cabos e sargentos pediam esmola publicamente. Os guardas do ministro pediam esmola a quem ia visital-o.

[6] Vide os historiadores Saint-Priest, Schoell, Muller, Schlower, Ranke, Luiz Gomes, Pinheiro Chagas, etc., etc.

[7] Foi tão medonho o supplicio do Pelle que os frades arrabidos desmaiaram no meio da execução, e o carrasco para acabar com a victima teve de estrangulal-a com o lenço.

 

 

 

 


PORTO—TYP. DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA.

Cancella Velha, 70


 

 

 

 

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Notas de pedagogia philosophica. 1 vol. ... 400

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