Title: Nervosos, Lymphaticos e Sanguineos
Author: Alberto Pimentel
Release date: July 23, 2010 [eBook #33238]
Language: Portuguese
Credits: Produced by Pedro Saborano
ALBERTO PIMENTEL
NERVOSOS, LYMPHATICOS
E
SANGUINEOS
PORTO
TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA
62, Rua da Cancella Velha, 62
1872
NERVOSOS, LYMPHATICOS
E
SANGUINEOS
ALBERTO PIMENTEL
NERVOSOS, LYMPHATICOS
E
SANGUINEOS
PORTO
TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA
62, Rua da Cancella Velha, 62
1872
AO EXC.mo SNR.
D. ANTONIO DA COSTA DE SOUSA DE MACEDO
EM TESTEMUNHO DE RESPEITOSA AMIZADE
Offerece
O author.
{6}
{7}
«O genio é uma nevrose» proclamou d'uma vez o doutor Moreau, de Tours, aos quatro ventos do universo. Segundo elle, as esplendidas disposições d'espirito que fazem com que um homem suba acima do nivel commum, procedem das mesmas condições physiologicas que as diversas perturbações moraes cuja expressão é a loucura e o idiotismo.
Seja isto ou seja que a constante intuscepção dos homens intelligentes os concentra de tal modo que parece viverem exclusivamente para si mesmos, absortos apenas no seu mundo psychologico, o certo é que estes homens se nos afiguram a mais das vezes entrados d'uma melancolia excepcional. Ora o doutor Moreau quer que esta melancolia que Aristoteles notou{8} no seu tempo, seja simplesmente alienação mental, e escreve «que, por constituição melancolica, Aristoteles entendia a disposição do organismo mais favoravel ao desenvolvimento da loucura. Melancolia,—continua o nosso doutor,—era o termo generico, sob o qual os medicos e philosophos da antiguidade designavam todas as fórmas de delirio chronico; corresponde á nossa palavra: alienação mental, loucura.»
Aristoteles escreveu «que não havia um grande espirito que não tivesse um grau de loucura.» O doutor Moreau aproveita-se d'este dito e abona espirituosamente a verdade da sua these com o testemunho da antiguidade letrada. A excitação cerebral que precede e acompanha a inspiração, pareceu ao doutor de Tours o estado que mais analogia offerece com a loucura real, por isso que da accumulação insolita de forças vitaes n'um orgão,—palavras d'elle—duas consequencias são igualmente possiveis: mais energia nas funcções d'esse orgão mas tambem mais probabilidades de aberração e desvio d'essas mesmas funcções.
Emilio Deschanel, author d'um interessante livro que temos aberto diante de nós, Physiologia dos escriptores e dos artistas, não deixa sem commentarios as proposições do espirituoso doutor.
«Se se póde, em verdade,—escreve Deschanel—observar alguma cousa d'involuntario nos momentos sagrados da inspiração, esses momentos fugitivos não são tudo: subsiste toda a potencia innata e toda a força adquirida, toda a somma de experiencia humana,{9} de alegrias e dôres, que os precedem: toda a energia de escolha e de vontade que os segue,—se é que não os acompanha—: porque o que ha de involuntario é apenas apparente; e mesmo no enthusiasmo o genio não perde a sua bussola.»
Ainda algumas palavras do doutor Moreau para ouvirmos depois Emilio Deschanel:
«Todas as vezes que as faculdades intellectuaes ultrapassem a bitola ordinaria, especialmente nos casos em que ellas attinjam um grau de energia excepcional, podemos estar certos de que o estado nervopathico, sob uma fórma qualquer, influenciou o orgão do pensamento, quer idiopathicamente, quer por via da hereditariedade. O que é o mesmo que dizer que nos homens excepcionaes se reconhecem as mesmas condições d'origem ou de temperamento que nos alienados ou nos idiotas.»
Modifica Emilio Deschanel:
«O que é verdade, é que um pequeno numero de pessoas, maiores de trinta e cinco annos, goza um estado de saude completa; quasi todas soffrem mais ou menos, quer notoria quer secretamente, com mais razão, os homens de letras e os artistas, cujo estado nervoso hereditario e innato está sobreexcitado incessantemente. A concentração habitual em que vivem, a fermentação quasi contínua do cerebro, inflamma-os, gasta-os, mina-os. Brilham ardendo. São, a certos respeitos, meio doentes; isso é incontestavel. Parece que o pensamento lhes aproveita tudo quanto roubam ao{10} corpo. Ao passo que um se estiola, o outro se robustece; arruinam-se physicamente á medida que se constroem moralmente.—Mas se soubessem conservar o equilibrio entre o espirito e o corpo, iriam peor as cousas, e o seu talento d'elles perderia? Não, de certo! Pelo contrario, só tinha a ganhar.»
Estas ultimas palavras d'Emilio Deschanel parece deixarem brecha aberta á contestação, se acreditarmos que elle se propõe refutar completamente a these do doutor Moreau. Não. Deschanel protesta contra a exageração do doutor de Tours, mas aceita o estado-mixto, quer dizer, um estado que ao mesmo tempo participa da saude e da doença.
Emilio Deschanel compartilha pois da opinião d'outro medico francez, o doutor Bouchut, segundo o qual o nervosismo é a molestia ordinaria dos homens de letras e dos artistas.
A antiguidade chamava-lhe genus imbecille, genus irritabile vatum. A sciencia moderna foi mais longe, muito mais longe:—adoptou uma palavra, e eis tudo,—O nervoso.
Nervosismo, estado-mixto, seja como fôr, tenha a denominação que tiver, o que é certo é que parece ser apanagio das pessoas cujo exercicio intellectual está em flagrante desproporção com a despeza d'actividade physica.
Os homens de letras estão por via de regra costumados á reclusão do estudo e á vida sedentaria do gabinete. N'essas longas horas do continuado labutar,{11} toda a vida se concentra no cerebro, para assim dizer;—d'aqui a excitação nervosa, um excesso d'actividade intellectual que não é equilibrado pelo exercicio muscular, pelo desenvolvimento do corpo.
A falta de saude, a debilidade, o estado-mixto afigura-se-nos uma consequencia inevitavel. Toda a vida organica tem por base a renovação incessante da materia. A natureza quer expulsar de si o que é velho e morbido. A moderada actividade das fibras musculares tende pois a favorecer a transformação da materia, a regeneração da massa do sangue, e a dar um impulso benefico ao acto vital.
Os homens de letras descuram porém as conveniencias do organismo. Para elles a vida intellectual é tudo e,—dissipadores inconscientes!—vão-se atirando para o tumulo com uma pressa que o seu estado de continua excitabilidade lhes não permitte domar.
Abundam n'estas desafinações do systema nervoso os caprichos, as velleidades, os habitos exquisitos e bizarros, as idiosyncrasias.
Michelet, por exemplo, trabalha de manhã, tomando café em larga cópia. Balzac escrevia de noite e, como Michelet, ia esvasiando chavenas sem conto d'um café negro, carregado, nauseabundo. Bossuet escrevia n'um quarto frio com a cabeça coberta; de Schiller conta-se que mettia os pés em gelo para ter uma inspiração feliz.
Mozart, a sensitiva da musica, organisação extremamente nervosa, era victima de profunda melancolia.{12} Procurava vencel-a com o trabalho, com o trabalho louco e desregrado, a ponto de se levantar do piano para cahir no leito, exhausto de forças.
Paulo Janet, refutando n'um capitulo do seu livro Le cerveau et la pensée a theoria do doutor Moreau, procura demonstrar que estas excentricidades não são provenientes da loucura sublime do genio. Quer-nos parecer porém que tanto exorbita Paulo Janet como o celebre medico de Tours. Os extremos são por via de regra viciosos, e, n'esta questão especialmente, afigura-se-nos que o meio termo é sobremodo aceitavel. Por tal razão propendemos para as modificações sensatas de Emilio Deschanel. Não se estabelece uma lei fatal, não nos referimos á totalidade absoluta; falla-se do maior numero, o que é incontestavel, como demonstra a longa experiencia dos factos. Cumpre notar que não fazemos propaganda scientifica, senão que estamos lançando ao papel uns estudos humoristicos para correrem em folhetim.
Prosigamos finalmente, deixando para academias e academicos esta grande questão do genio e da loucura. O nosso proposito é outro;—vejamos.
Emilio Deschanel, não menos espirituoso humorista que o doutor Moreau, procura demonstrar que o estylo revela o temperamento do escriptor.
É verdadeiramente a physiologia applicada á critica.
Através da eloquencia fogosa de Bossuet descobre Emilio Deschanel um temperamento nervoso-sanguineo. Pascal era nervoso-bilioso; é o seu estylo que nol-o diz.{13}
Basta lêr Voltaire para comprehender o doutor Raspail:
«Voltaire é o systema nervoso levado á suprema potencia.»
O marquez d'Argensou costumava definir Voltaire em poucas palavras:
«Todo nervos e todo fogo, era sensivel ás moscas.»
As Maximas de La Rochefoucauld denunciam um nervoso-bilioso; João Jacques Rosseau é bilioso-melancolico.
N'este ultimo escriptor a educação influiu de certo muito sobre o temperamento. Rosseau foi creado com seu pai em cujo coração jámais cicatrisou a ferida dolorosa da viuvez. Escreve Rosseau fallando do pai:
«Quando elle me dizia:—João Jacques, fallemos de tua mãi; eu respondia-lhe:—Ah! meu pai, então vamos chorar? E só estas palavras lhe arrancavam lagrimas.»
Vem a proposito algumas palavras de Lamartine: «Rosseau foi educado pelas arvores, pelas aguas, pelos ventos, pelo céo, pelo sol, pelas estrellas; carecia ao mesmo tempo da educação de uma terna mãi e d'um pai laborioso: tudo isso lhe faltou[1].»
A solidão predispõe para a meditação, para a melancolia, e Rosseau foi creado pela natureza.{14}
Temos visto como Emilio Deschanel desenvolveu galhardamente a these de Buffon,—O estylo é o homem, encarregando-se de demonstrar que o seculo, o clima, o solo, a raça, o sexo, a idade, o temperamento, o caracter, a profissão, a hereditariedade physica e moral, a saude, o regimen e os costumes,—tudo isso se espelha na superficie ora limpida ora revolta do estylo.
É impossivel ir mais longe.
É impossivel saber aproveitar melhor o reflexo interior para fazer resaltar do prisma fornecido por Buffon scintillações de tal modo deslumbrantes e magicas.
A Physiologia dos escriptores e dos artistas é um espirituoso livro, e Emilio Deschanel um espirituoso escriptor que eu tenho conversado nos ultimos serões d'inverno.
Procuremos nós n'esta linguagem facil do folhetim, nortear a penna, a despeito de Paulo Janet, segundo o rumo dos trabalhos de critica natural de Emilio Deschanel.
Não podemos aventurar-nos, como elle, á vasta amplidão das aguas.
Navegaremos terra a terra, modestamente, velejando ao sabor da phantasia. Appliquemos tambem a physiologia á critica, e estudemos em alguns livros portuguezes a organisação d'alguns escriptores nacionaes.
Algumas vezes, é possivel, teremos de abrir excepção{15} para um escriptor que n'um ou n'outro relance, mesmo n'um ou n'outro livro, quiz ou pôde dissimular a sua organisação, o seu temperamento, a sua predisposição. Toda a regra tem excepções; esta ha-de tel-as tambem. O que é certo porém é que o homem, na sua dupla existencia, moral e physica, não póde encobrir-se por tanto tempo, que o physiologista litterario não chegue a encontrar a verdade com o escalpello da critica.
Estão-nos já acudindo á memoria algumas excepções. Aproveitemos uma.
O snr. visconde de Castilho cuja indole amena e suavissima se espraia em recamos scintillantes por todas as paginas dos seus formosos livros, escreveu d'uma vez um poema onde se agita tempestuosamente o sentimento mais violento que póde escandecer o coração do homem,—o ciume.
A sua bibliotheca tem porém só um livro de tempestades e luctas; todos os outros refulgem serenos como os lagos na primavera.
O estado-mixto dos escriptores e dos artistas soffre tambem excepções, e n'ellas deve ter grande parte a hereditariedade.
Agora nos occorrem tres:
Um escriptor robusto, bem humorado, infatigavel—Alexandre Dumas, pai.
Um maestro todo alegria e saude,—Rossini.
Um pintor, cheio d'animação e de vida, em cujos quadros tudo é louro e rosado,—Rubens.{16}
Se estas excepções prejudicam por um lado a regra geral do estado-mixto, por outro tendem a provar que o estylo é a organisação—a doença ou a saude.
O vigoroso estomago de Alexandre Dumas, de cuja propriedade elle tantas vezes se ufanava, está, deixem-me dizel-o, nos seus livros.
A charis phytalmos, de Pindaro, revela-se no Guilherme Tell de Rossini.
De Raphael basta citar as Virgens, que mereceram a Michelet estas palavras: «Virgens enormes, rosadas, refeitas, escandalosamente bellas.»
Ponhamos ponto, para comecarmos a fallar de escriptores portuguezes. Principiemos por um que tem um triste direito a ser o primeiro—porque morreu doudo.{17}
[1] J. J. Rousseau por A. Lamartine.
Ha phrases que envolvem uma prophecia, conceitos despretenciosos que parecem sahir do intimo da alma como um presentimento que de repente assalta o escriptor no remanso do gabinete.
A pag. 324 das Memorias de litteratura contemporanea, de Lopes de Mendonça, encontro eu estas palavras:
«Ha vocações, que reproduzem os prodigios das sibyllas antigas. Prophetisam involuntariamente sobre a tripode, e deixam-se arrastrar pelo enthusiasmo das suas proprias palavras. O joven poeta não cantava, sómente para que as turbas se deixassem commover pela harmonia dos seus cantos: cantava porque lhe ardia no peito um fogo devorador, porque a sua alma{18} ébria e palpitante, lhe accendia a imaginação, e como lhe intimava que traduzisse aos outros a magia dos seus sonhos, o fervor dos seus desejos, o esplendido irradiar da sua esperança.»
É certo que os verdadeiros talentos, as almas privilegiadas para a gloria e para o martyrio, reproduzem os prodigios das sibyllas e prophetisam involuntariamente.
Lopes de Mendonça escrevendo as Memorias d'um doido prophetisava tambem.
Aquelle immenso talento, febril, audaz, infatigavel, sabia que as organisações como a sua resistem corajosamente a lucta social até perderem a vida ou a razão.
Mauricio, o seu heroe, é o que geralmente se chama um doudo sublime,—que pensa, que joga, que ama, que aborrece, que porfia, que se sacrifica, que obedece fatalmente á excitabilidade do seu temperamento.
«Arremessado aos quatorze annos no tumulto da capital,—escreve Lopes de Mendonça—tivera de se sustentar, como Rousseau, do trabalho machinal do copista, e na estreiteza e improbas fadigas de tal profissão, póde entregar-se ao estudo. Lendo avidamente a historia, sobretudo a historia moderna, já a sua intelligencia penetrára em todos os problemas da politica, e a acção dos acontecimentos que se succediam com uma variedade propria das quadras revolucionarias, amadureceu a sua precoce experiencia.»
Tal era Mauricio, tal era Lopes de Mendonça. O{19} verdadeiro artista tanto quer á sua obra, que procura animal-a com a parte psychologica da propria individualidade.
D'aqui o encontrar-se frequentemente o author reproduzido no heroe.
A politica, a idéa fixa e a maxima aspiração de Lopes de Mendonça, que transpirava sempre nos seus livros e nos seus folhetins, não podia ser indifferente a Mauricio.
«Mostrára a sua vocação,—continúa Lopes de Mendonça—escrevendo alguns pamphletos, cheios de energia, e de vivacidade pittoresca. Lançára-se na critica implacavel de medidas que elle suppunha timidas e incompletas, porque reconhecera a distancia que o separava dos mediocres vultos, que dirigiam os negocios publicos.
«Apreciando, pelo que lêra, o que devia ser um homem d'estado, via os que governavam desperdiçando as fôrças d'uma situação excepcional em questões de mesquinha influencia, e nas intrigas, que manchavam todas as obras, grandes ou pequenas, da politica.»
Está claramente photographada n'estes periodos a ancia, a febre, a aspiração, o espirito de justiça e verdade, a coragem, o esforço, a persistencia de Lopes de Mendonça.
Queria elle,—aquelle espirito poderoso—que sahisse da espuma da revolução a verdadeira liberdade politica como tinha sahido—Venus moderna,—a verdadeira liberdade litteraria.{20}
E propunha-se os graves problemas da administração, e planeava as grandes medidas que correspondem ás grandes necessidades d'um paiz, e queria levantar sobre as bases da justiça e da moralidade todo o edificio do regimen liberal, e queria realisar em si o ideal perfeito e quasi impossivel d'um homem d'estado, e queria apartar do centro da acção politica as pequenas individualidades que prejudicam a marcha dos acontecimentos no interesse da patria, e ao mesmo tempo mantinha digna e corajosamente a revolução litteraria que se havia iniciado, e escrevia os seus livros, e sustentava durante onze annos o folhetim da Revolução de Setembro, e cumpria os encargos litterarios da academia real das sciencias de que era socio e bibliothecario, e versava os trabalhos parlamentares na legislatura de 1855, e desempenhava o magisterio, e queria saber, precipitar o tempo para adquirir o que só o futuro lhe podia ensinar, e lidava, pensava, trabalhava, para ter de sobreviver á ruina da propria intelligencia.
Cavou a si mesmo o tumulo, onde o contemplamos alguns annos meio vivo, meio cadaver.
«Lia, annotava,—escreve Julio Machado—commentava todos os livros, lidando desde o romper da manhã, dormindo duas horas apenas, e lastimando essas duas horas perdidas.
«Andava preoccupado, andava triste e inquieto. Haviam-lhe mentido todos os seus oraculos d'outr'ora, e já não acreditava mesmo em si proprio. Tornou-se-lhe{21} tudo escuro em redor. Não tinha uma venda nos olhos, mas principiou a tel-a na alma. Os seus amigos inquietaram-se do estado em que o viram. A extrema actividade de espirito perturbou-lhe a acção cerebral, mas a lealdade do seu caracter generoso nem então se desmentiu; imaginava-se rico, altamente collocado, offerecia-nos dos seus haveres, e instava para que aceitassemos.
«No breve intervallo que mediou da revelação d'esse estado á sua reclusão, comprou livros por toda a parte, muitos livros, todos os livros que encontrou. Mas, a essa hora já estava perdido.
«As faculdades da sua intelligencia haviam-se adulterado e estalaram como as cordas d'um instrumento[2].»
Estava irremediavelmente perdido,—estava louco; tinha morrido para a familia, para a sociedade, para a patria, e todavia vivia ainda em Rilhafolles. O seu estylo cadente, cheio, fogoso, elegante, a par da sua linguagem ás vezes incorrecta, denunciava para logo um temperamento nervoso-sanguineo.
A exaltação dos pensamentos, as scintillações differentes e successivas, a variedade febril dos tons, a riqueza caprichosa do colorido, a escolha variada dos assumptos, e até as mesmas imperfeições revelavam ao physiologista litterario a organisação de A. P. Lopes de Mendonça.{22}
Nas Memorias d'um doudo, tudo é febril, tudo escalda, tudo denuncia o homem.
Lopes de Mendonça era realmente uma organisação de artista que participava da vivacidade cerebral do temperamento nervoso e da animação caracteristica do temperamento sanguineo. Era um escriptor modelado pela definição em que Emilio Deschanel procura daguerreotypar o artista: «Temperamento rico, sensibilidade ardente, imaginação fecunda, ao serviço d'um coração generoso, d'um bom senso delicado e d'uma razão elevada.»
Elle mesmo, o infeliz Lopes de Mendonça, apreciando um escriptor contemporaneo, definia o artista:
«Todo o segredo d'esta excitabilidade intellectual reside, não nos poupamos a repetil-o, em que é artista, completa e essencialmente artista. A sua razão philosophica, é mais d'uma vez desvairada pelos caprichos da sua phantasia. E todavia, o escriptor é logico, é racional e concludente, em cada uma das posições que alternativamente occupa. Hoje, reflectido e maduro, elevado ás austeras e mornas regiões do homem de estado, apresenta os mais sensatos alvitres, expõe os problemas com a mais fina e lucida critica, e corta os obstaculos, resguardando e salvando os interesses, percebendo todas as conveniencias, pesando todos os conflictos da opinião, e apalpando o terreno social como dextro e instruido estrategico.
«Ámanhã, desempedido e solto n'uma questão puramente litteraria, n'um ponto moral ou metaphysico,{23} vê-o-heis enthusiasta d'um brilhante paradoxo, comprazer-se em destruir as idéas recebidas, em ferir as convicções consagradas, e fazendo taboa rasa do criterium publico, pôr os recursos do seu talento ao serviço da sua impressão instantanea[3].»
Eis-aqui Lopes de Mendonça, segundo as suas mesmas palavras; eis aqui o artista. A sua vida foi uma serie de congestões, um incendiar-se lentamente nas labaredas que lhe requeimavam o coração e o cerebro. Tinha sonhado com a gloria, algumas vezes a entrevira, era festejado, era querido, tinha ganhado os primeiros lugares, tinha entrado nas primeiras salas, e elle, que tinha resistido á lucta, á insomnia, ao trabalho, sentiu-se desfallecer quando a lava da ultima congestão seccou, e para sempre, os louros da sua corôa.
Em toda a sua vida houve apenas um momento de tranquillo repouso,—foi o ultimo. Julio Machado, fallando da extrema dedicação da esposa de Lopes de Mendonça, escreve com a mimosa delicadesa que lhe é peculiar: «Um dia, ultimamente, elle sorriu-lhe. Os medicos disseram que ia salvar-se talvez. Ia salvar-se, ia. Ia morrer!»
Não havia já o crepitar das chammas, porque d'aquella volcanica combustão restavam apenas as cinzas d'um cerebro; o sopro da morte espalhou-as.
Acabou-se tudo.{24}
Alli agonisou nos braços da esposa carinhosa, esquecido da sociedade que mais d'uma vez o acclamára festivamente e que mais d'uma vez o apunhalára na couraça onde resvalaram todos os golpes dos detractores impotentes.
Julio Machado escreve ainda no seu ultimo e interessante livro—Da loucura e das manias em Portugal, fallando dos doudos de Rilhafolles:
«Lá esteve um, famoso e illustre, o mestre do folhetim em Portugal, e sua esposa alli foi todos os dias vêl-o e fazer-lhe companhia,—colhendo no céo a palma do combate terrestre e vendo sorrir-se para ella e abraçal-a meigamente aquelle ente querido, que havia representado um dos primeiros talentos d'esta terra, e que parecia, lucidamente, dizer-lhe com a vista que deve um dia ser feliz na eternidade a alma que n'esta vida teve dedicação pelo infortunio!»
Do homem que a fatalidade arrojou para os abysmos da loucura resta apenas um epitaphio;—pouco é, e transitorio. Mas de Lopes de Mendonça, do escriptor todo fogo e todo alma, todo colorido e sentimento, resta alguma cousa mais duradoura que o seu epitaphio,—os seus livros, nos quaes o physiologista poderá estudar largamente a vida impetupsa d'um temperamento nervoso-sanguineo.{25}
Se o leitor entrasse na sala do parlamento portuguez durante as mais animadas sessões da legislatura de 1865 a 1866 e ouvisse trovejar do alto da tribuna uma voz sonora, cheia, precipitando-se em inflexões caprichosas e febris, que para logo denunciavam certa irritabilidade fogosa e violenta, facilmente adivinharia, sem o descortinar, um orador de temperamento nervoso-sanguineo, em plena virilidade, ebrio da gloria, que, de triumpho em triumpho, o impellira até ás regiões do olympo parlamentar.
Na sessão do dia 13 de Janeiro de 1866, por exemplo, em que se discutia o projecto de lei sobre a liberdade de imprensa, apostrophava o orador a que nos referimos:{26}
«É licito perguntar com um notavel estylista da França: «Que temem os governos da imprensa livre?»
«A guerra da discussão? Mas ao contrario lhes deve lisongear o seu amor proprio, e a sua dedicação patriotica, porque lhes rasga vastos plainos ás victorias de suas doutrinas e de seus principios!
«Guerra de injuria? Pois soffram-n'a, que é para isso que são homens publicos. Se pelas eminencias do poder não houvesse senão estradas de flôres, de triumphos e de victorias, aonde estariam as provas da sua abnegação e do seu merito? E tanto lhes havia de doer a injuria que lhes arrancasse um grito contra a liberdade?
«Guerra de epigramma? Mas diz Pelletan, e diz bem, que os homens de estado devem ser fortes de coração e de cabeça, não ter a sensibilidade de nervos d'uma petite-maitresse, e fazer mesmo a epiderme robusta para as affrontas!
«Guerra de calumnia? Mas os governos teem ao seu lado a magistratura judicial e a magistratura popular para afogarem as calumnias nas gargantas dos calumniadores! Fiemo-nos da magistratura e da sua vigilancia. Ella é como a mulher de Cesar; está acima de toda a suspeita. E aproveito a primeira occasião do meu discurso em que posso render a esta classe a minha mais profunda homenagem de respeito e culto. Com a franqueza do meu caracter o digo, senhores; quando desalentadamente atiro com os olhos para tanto rebaixamento moral da minha patria, com orgulho vejo{27} e com orgulho contemplo as togas da nossa magistratura ainda impollutas com os seus sacrarios ao lado!»
Mezes antes, na sessão de 19 de novembro de 1865, o mesmo orador propunha uma mensagem de sentimento ao parlamento inglez pela morte de lord Palmerston, e discursava sobre a proposta:
«Verdadeiros heroes... e perdôe-me a memoria de José Estevão se eu penso que os ha, e perdôe-me ella ainda mais se é exactamente, comparando-os aos rochedos no oceano, que elles me parecem maiores e mais sublimes!
«Penso assim, e quando por muitas vezes hei meditado n'aquella celebrada imagem d'esse grande e inspirado orador, sempre me tem parecido que o mais digno de admiração n'aquelle atrevimento oratorio, é a modestia sublime de José Estevão. É que para mim no confronto dos heroes com os rochedos, não perdem aquelles por nenhuma sombra. Bem sei que se a irregularidade ás vezes monstruosa da sua estructura póde ser um defeito para a arte; é ella tambem, e sempre, o involucro esculptural das almas fadadas para as grandes tempestades, e dos corações baptisados desde o primeiro dia na onda dos grandes martyrios! Os rochedos, os heroes topetam com as nuvens que teem por cima; lambem-lhes os pés as vagas da opinião humilhada e abatida, e além cançada de se espedaçar contra elles; e estendem os seus braços, que não vergam nunca, aos naufragos cuspidos já quasi exanimes d'essas vagas, como se fossem elles os destinados pela{28} impassibilidade da sua força, pelo seu contacto com a luz immensa, e pela sua proximidade da praia, a retemperarem a tibieza dos fracos, a reaccenderem o entendimento dos desesperados, e a apontarem o porto de salvação e das novas esperanças aos que a resaca do primeiro commettimento ia prostrando e sorvendo no pégo!
«Tudo isto era tambem José Estevão, e porque se arreceasse aquella sublime modestia de que uma vez lh'o conhecessem, por isso elle dizia mal dos rochedos!
«E depois os rochedos não cahem nunca! E são tambem assim os heroes; nem cahem quando morrem!
«Os heroes morrem de pé!
«Morrem de pé!
«Foi assim que morreu lord Palmerston. E tanto foi assim que elle morreu, que expirando aos oitenta e um annos de idade, a Inglaterra correu desvairada ao seu jazigo, accusando aquella morte de prematura para o seu partido e para o seu paiz.»
Quando o sceptro da eloquencia tribunicia resvalou das mãos inertes de José Estevão, era opinião geral da gente portugueza que tarde, ou talvez nunca, uma nova palavra, de tal modo ardente e scintillante, despertaria os echos adormecidos da camara electiva.
Mais d'uma penna authorisada manifestou publicamente que a phalange gloriosa dos oradores parlamentares portuguezes tinha morrido na pessoa de José{29} Estevão. Tenho sobre a minha banca um livro de Ricardo Guimarães, Narrativas e episodios da vida politica e parlamentar, que fornece uma prova do que vimos dizendo.
«Quem lhe herdou—escreve o author do livro citado fallando de José Estevão—o primado da palestra familiar, que elle exercia desaffrontado de rivaes?
«Por ora é elle herança jacente como o é, e será—Deus sabe porque tempo!—o sceptro dourado da eloquencia de que não poderam despojal-o em vida os mais possantes emulos, sceptro que ainda hoje pousa sobre o tumulo do orador, insignia indisputada d'aquella realeza do genio.»
Isto escrevia e publicava em 1863 Ricardo Guimarães; em 1865 entrava no parlamento José Cardoso Vieira de Castro.
Não é intento nosso fazer apreciações ou discutir personalidades. Todavia cumpre dizer que a entrada de Vieira de Castro nas lides parlamentares desabrochou no horisonte politico os primeiros alvores d'uma esperança. Vieira de Castro não era ainda o successor de José Estevão; promettia sel-o, depois d'um longo tirocinio parlamentar que lhe proporcionasse um pleno conhecimento dos mais reconditos segredos da eloquencia tribunicia. Vieira de Castro, ebrio dos triumphos que lograra na carreira universitaria, vinha cheio de mocidade e de inexperiencia, e abandonava-se aprazivelmente aos arrebatamentos da sua organisação e da sua idade, julgando de si para si que a melhor lente{30} para estudar os intrincados problemas da administração era o prisma dourado da sua phantasia ardente.
Palavra facil, copiosa, scintillante, ageitando-se ás sinuosidades da replica, sem se desviar do curso natural das idéas, tinha-a elle, como José Estevão.
A vida academica de Vieira de Castro, repleta de episodios pittorescos, aos quaes a opinião publica do paiz, mormente a dos homens de letras[4] não foi indifferente, inoculou nova seiva no espirito já de natural fogoso e opulento do author da Pagina da Universidade. D'aqui, aquelle desabotoar incessante de vigorosos florecimentos na alma do futuro orador parlamentar, aquelle espanejar incessante de flôres variegadas e mimosas que elle espalhou ás rebatinhas nas paginas da Biographia de Camillo Castello-Branco.
N'este livro a imaginação de Vieira de Castro levantou-se em vôos alterosos e successivos. Era o phrenesi da aguia que pela primeira vez bate as azas nos páramos infinitos.
Cada pagina é um jardim; todo o livro é uma primavera. Mas o que é verdade é que a biographia de Camillo Castello-Branco está por fazer, apesar de elle mesmo nos ter dado em muitas das paginas dos seus preciosos livros, como as Memorias do carcere, No Bom Jesus-do Monte, e outros, á similhanca de Garrett,{31} copiosos apontamentos para se escrever a verdadeira noticia de sua vida.
Este defeito, que a maioria da opinião notou na Biographia de Camillo Castello-Branco, era ainda o senão que o mesmo tribunal encontrava nos seus formosos discursos de estreia parlamentar. A opa tribunicia não logrou abafar os impetos da eloquencia asiatica de Vieira de Castro. Os seus discursos todos se emmaranhavam em ramagens phantasiosas, em filagranas de caprichoso labor, ora alongando-se para cima como os leques ondulantes da palmeira, ora escondendo as violetas gentis da eloquencia nos taboleiros relvosos de um jardim oratoriano.
Era preciso desbravar trabalhosamente estes apertados labyrinthos de vegetação esplendida, para se encontrar a idéa que se estava affrontando sob os innumeros recamos d'uma chlamyde roçagante.
Eis-aqui a razão porque Vieira de Castro se não podia medir ainda com a estatua gigantesca de José Estevão.
Os outonos da idade haviam de ir pouco e pouco mondando aquellas exuberancias de vegetação litteraria, e então appareceria o pensamento com toda a sua lucidez no meio d'uma delicada moldura como apparece uma paisagem entre duas arvores em flôr, no alto d'uma estrada.
É esta a meu vêr a grande distancia que temporariamente separava Vieira de Castro de José Estevão. De resto era congenere a eloquencia,—o temperamento o mesmo.{32}
Na sessão do dia 4 de abril de 1865 procurava Vieira de Castro defender-se da censura que um deputado imputára á camara por se comprazer a cada momento em frequentes e estereis luctas de palavra.
O claro entendimento do novo deputado segredou-lhe que era elle mesmo o verdadeiro alvo de similhante accusação, e levantou-se para declamar.
São logo do principio do seu discurso estes periodos. «Demasias da palavra? Demasias da palavra tinha-as tambem o padre Antonio Vieira, no pulpito da igreja de Nossa Senhora da Bahia, quando interrogava a Deus; e as nações pasmadas diante das prodigiosas catadupas da eloquencia do oratoriano, hesitavam em pensar se fallava pelo seu verbo um inspirado do céo, ou um desvairado da terra.
«E já que estou na igreja, abro o livro que encontro sobre o altar. Aqui sim, aqui, na primeira pagina, não ha demasias de palavra, porque este primeiro versiculo soube dizer na mais bella e sublime de todas as phrases escriptas o maior e o mais estupendo de todos os milagres creados: Dixit Deus: fiat lux, et lux facta est.
«Santas demasias da palavra, que são como as demasias do sangue, ou no corpo de Catão, ou na liteira de Cicero, ou no sudario do Salvador!»
E aqui estava o seu espirito a trahil-o e a arremessar para o ambito da camara abadas de flôres que ao mesmo tempo lhe serviam de imputação e de gloria. E aqui estava a primavera a bracejar frondes e a{33} engrinaldar-se de festões quando mais a accusavam de perdularia e formosa.
O orador havia porém de modificar-se como o escriptor se modificou. Nos ultimos opusculos de Vieira de Castro o estylo não se enredava já nos antigos dedalos, mas era formoso, gentil e magistralmente modelado; a linguagem derivava fluente, correcta e portugueza de lei. Todavia o temperamento do escriptor estava patente. Todos os seus livros, todos os seus escriptos, antigos e modernos, dão testemunho da exaltação cerebral das organisações nervosas e da extrema actividade dos vasos sanguineos no colorido vivo, animado e brilhante da sua penna.
Mas infelizmente o orador não teve ensejo de se modificar.
Uma grande catastrophe ainda recente despenhou este homem do alto das suas esperanças e dos seus triumphos. Foi ainda uma dolorosa consequencia do seu temperamento como denunciam estas palavras de Julio Machado, escriptas horas depois da catastrophe:
«Temperamento ardente, caracter inquieto e febril, denunciára muitas vezes, logo ao entrar da vida, a violencia das suas paixões e o enthusiasmo exaltado d'ellas. Magoas de coração, ambições quebradas, feridas do orgulho, esperanças illudidas, fortuna exhausta, crenças mortas, figuravam-se-lhe ser doenças da alma a que não era dado resistir, e não podia tolerar os miseraveis que se sujeitavam a ir vivendo cada um com o seu mal.»{34}
Ou ainda estas:
«Todavia, não sei dizer-lhes como, não sei dizer-lhes porque, elle proprio o não sabe talvez, perdeu tudo e principiou a desmoronar o castello que erguera. Caracter fugaz, e sempre um pouco louco, parecia ter gosto ás vezes em vêr desabar o edificio da sua felicidade e da sua gloria. Não era resultado do acaso nem carencia de habilidade, era falta de paciencia, phrenesi nervoso, estonteamento febril.»
O temperamento de Lopes de Mendonça levara-o á loucura e da loucura á morte; o temperamento de Vieira de Castro arrastára-o ao carcere e do carcere ao desterro.
Ambos sobreviveram á sua ruina, ambos viram escrever-se o epitaphio que a posteridade lhes destinava, ambos sonharam os sonhos côr de rosa das imaginações ardentes, ambos dormiram nos braços da gloria as dôces horas da embriaguez terrena, ambos entraram nos salões luxuosos da vida aristocratica, e ambos cahiram, quando o horisonte se lhes afigurava dilatar-se para os deixar respirar mais livremente.
Ambos viveram finalmente, porque um está no tumulo e outro no exilio.
Eu conheci Vieira de Castro n'uma noite de festa.
Era ainda feliz.
Dous annos depois d'essa noite, despenhou-se. Emquanto o processo estava affecto aos tribunaes, não fallaria d'elle, mas hoje, que já a posteridade começou para o homem d'outr'ora, não duvidei aproveitar{35} o seu nome que pertence á historia do passado, e a historia é indefesa para todos.
Não offendi a sua memoria, não ri da sua desgraça. Inscrevi o seu nome n'este pequeno catalogo de escriptores nacionaes, que estamos estudando physiologicamente.
Dos nervosos-sanguineos temos fallado que farte; occupar-nos-hemos d'outros temperamentos que estão convidando a nossa analyse.{36}
{37}
[4] Vêr—José Cardoso Vieira de Castro, antes e depois do seu julgamento, por seu irmão Antonio Manoel Lopes Vieira de Castro, pag. 19 e seguintes.
«O verdadeiro talento, como o vismara, borboleta das Indias, toma a côr da planta sobre que vive», escreveu Stendhal. Seria difficil resumir tão profunda verdade em mais formoso conceito.
É conhecido até onde a critica moderna tem estudado a influencia do clima sobre o espirito do homem. Montesquieu e Herder levaram ao exagero a theoria climatologica. Proudhon contrapõe reflectidamente á doutrina de Herder: «Todo o systema descança sobre o fatalismo geographico, chimico e organico; sol, clima; planicies e montanhas; rios, lagos e mares; d'onde se deduzem successivamente, por cada latitude e meridiano, a flora e a fauna, depois o homem; finalmente, a sociedade e sua historia. Nada{38} temos a censurar; sómente perguntaremos o para que servem então a liberdade e o progresso, e o para que nos aproveita a intelligencia?»
A objecção é sensata. Emilio Deschanel não vai tão longe como Herder, sem todavia rejeitar a theoria, e tanto não vai tão longe, que escreve estas palavras: «Esta doutrina de Hippocrates, de Platão, de Aristoteles, d'Eratosthenes, de Varrão, de Montesquieu, de Voltaire, de Rousseau, de Herder, tem sido aceite e continuada em nossos dias com muita distincção. Tornou-se a base da critica naturista, que é a critica natural levada ao extremo. A terra, segundo esta doutrina, é a prophecia da historia. Dize-me d'onde vieste, dir-te-hei quem és. E reciprocamente, sabendo quem tu és, dir-te-hei d'onde vieste.»
Caminhando mais terra a terra, ser-nos-ha facil reconhecer que ha no homem, na lingua, na litteratura, na arte, e até na religião um reflexo da natureza que lhes foi berço,—reflexo que a ausencia do torrão natal e a identificação com um novo clima póde attenuar, no homem, consideravelmente. O que é certo, e tem sido muitas rezes notado, é que, por exemplo, as linguas do Norte se distinguem pela rudeza das articulações das linguas do Meio-dia incomparavelmente melodiosas; que as litteraturas septentrionaes teem uma riqueza de pensamento que se póde contrapôr á riqueza de sensibilidade das linguas meridionaes; que a musica do Norte é magestosa, grave, solemne, ao passo que a musica do Meio-dia é caracterisada{39} pela variedade das inflexões, pela harmonia, e pelo sentimentalismo.
Cumpre notar,—aproveitando uma observação de Deschanel,—que umas vezes e pela similhança e outras pelo contraste que o clima se reproduz na litteratura. «Ideal de belleza,—diz elle,—ideal de fealdade, que importa! Na religião dos negros, o diabo, dizem, é branco. E isto, pela mesma razão que na religião dos brancos—dos brancos que acreditam no diabo—o diabo é preto. Porque é que os poetas latinos, quando querem pintar a graça e a belleza das mulheres, lhes dão mais vezes cabellos louros do que cabellos pretos? É porque entre elles, em Italia, quasi todas as mulheres teem cabellos negros.—Reciprocamente, quando os poetas celebram a miudo as bellezas morenas, logo se adivinha que são do Norte, clima das bellezas louras.»
Isto é realmente verdade. Diz o proloquio: «Só se deseja o que só se não tem.»
Já deixamos dito que Emilio Deschanel não leva a influencia do clima até ao fatalismo geographico. A sua Physiologia não é uma theoria absoluta, uma demonstração didactica, como elle mesmo diz, mas simplesmente uma causerie sobre a litteratura e sobre a arte. Nós, que procuramos seguir o caminho de Deschanel, não podemos acreditar que seja a terra a prophecia da historia, mas firmemente cremos que todo o homem tem muito do seu paiz como a flôr tem muito do sitio onde desabrochou. E depois o homem,—como{40} notou Lamartine—é planta até certa idade, e a alma tem as raizes no solo, no ar e no céo que lhe formaram os sentidos. D'aqui a absorpção dos fluidos que andavam espalhados no ambiente da patria.
Não será difficil estudar-se na nossa litteratura o temperamento predominante dos portuguezes. Dous livros nos caracterisam perfeitamente,—Os Lusiadas e a Menina e moça. Fomos sempre o povo das saudades e da vida concentrada do mar, que o mesmo é dizer tambem da saudade.
Longe, por esse azul dos vastos mares,
Na soidão melancolica das aguas
Ouvi gemer a lamentosa Alcyone,
E com ella gemeu minha saudade.
Muita da nossa melhor litteratura são chronicas de viagem e poemas d'amor. Nós, a nação que formamos a monarchia á sombra da cruz, herdamos, no vasto espolio que recebemos de Roma, a lyra melancolica de Virgilio, que foi o poeta mais christão do paganismo e de quem disse Victor Hugo
Il chantait presque á l'heure ou Jèsus vagissait.
Depois a mesma indole da lingua, cujos numeros são d'uma saudosa melancolia, como notou Garrett,{41} as perturbações subitas da atmosphera, o aspecto suavemente triste da natureza, a solidão do navio, do bivaque e do claustro, deram-nos este caracter sombrio que nos distingue, predispozeram-nos para o temperamento nervoso-melancolico que é o predominante.
O nosso clima favorece as molestias intestinaes—d'aqui o mau humor, a hypocondria, o azedume, a satyra, que está perfeitamente representada em Bocage.
Ao contrario, os gregos, cujo céo era todo alegria e esplendores, tinham uma palavra propria para designarem o seu estado normal—Eucolos, o que diz simplesmente,—ter bons intestinos.
A França representa na civilisação moderna o papel de mediadora e interprete; notou-o Edgar Quinet.
Pela sua posição topographica communica com a Italia e com a Allemanha, e creou tambem uma phrase para designar as influencias beneficas que recebe d'esta communicação—en belle humeur; por outro lado está ligada aos paizes de Calderon e Camões, d'onde lhe sopram as auras murmurosas que pozeram em vibrato a lyra plangente de Lamartine.
A meu vêr, um dos maiores escriptores da Europa, que mais salientemente deixa vêr a influencia do seu clima natal,—é Camillo Castello-Branco. Basta lêl-o, nos seus numerosos volumes, para se conhecer o temperamento portuguez.
É que Camillo Castello-Branco é primeiro que tudo um escriptor nacional. Nos seus romances anda o idylio{42} triste, suave, sublime de doçura e pungimento a par da satyra envenenada, da critica mordaz, do epigramma lacerante. Os seus livros, como os quadros de Rembrand, teem a magia do claro-escuro que caracterisa a escóla hollandeza.
É facil encontrar n'elles Moliere a par de Millevoye.
A educação de Camillo Castello-Branco devia influir gravemente no seu temperamento como aconteceu com Rousseau. São do livro No Bom Jesus do Monte estes pequenos quadros retrospectivos da sua primeira vida:
«Tinha eu nove annos e era orphão.
«Dous mezes depois d'este desamparo, com o tenro coração fistulado de saudade, a desbordar de lagrimas, e os ouvidos ainda resoando-me á alma o estertor da agonia de meu pai, é que eu, pela primeira vez, entrei no sanctuario do Bom Jesus.»
Ainda do mesmo livro:
«Devo ajuizar da minha precoce sensibilidade, recordando que, dous mezes antes, entrei, por noite alta, na sala onde meu pai estava amortalhado, sem mais companhia que quatro cirios de chamma azulada. Ajoelhei sem orar. Afastei da fronte do cadaver o capuz do habito, e beijei-lh'a. Puz tambem a bocca nas mãos glaciaes; senti um frio de que ainda o coração me guarda a memoria: o frio do ambiente dos mortos. A meu lado, ninguem. A irmã que eu tinha, alguns annos mais velha, encerrara-se com a sua dôr e{43} com o seu terror de cadaveres. E eu estava alli, destemeroso das sombras que desciam dos angulos do tecto á penumbra do clarão oscillatorio das tochas.»
Camillo Castello-Branco trabalha como trabalhava Mozart,—para vencer as rebeldias do seu temperamento. O trabalho é, para elle, ao mesmo tempo, toxico e remedio.
D'aqui o numero prodigioso das suas obras. N'estes ultimos tempos teem-se aggravado os padecimentos habituaes de Camillo Castello-Branco. Mas ainda assim que prodigiosa fecundidade a sua!
Ha um anno tem publicado quatro livros, e já estão traçados tres novos romances que são Celestina, Scenas da tragedia humana e Infanta capellista.
É condão dos homens de letras o desentranharem-se em flôres do espirito quando o corpo mais se nega por enfermiço. Assim foi tambem Garrett, que já em 20 de setembro de 1838 escrevia para o Porto, a seu irmão:
«Ha muito que devo resposta á tua de 13 de agosto e terás attribuido a demora talvez a outros motivos, sendo unicamente que não tenho saude para nada, e que o escrever sobre tudo me mata. Não tanto em cousas de meu gosto, e em correspondencias com os meus amigos,—mas tendo de roubar aos padecimentos corporaes e amofinações d'espirito os proprios momentos que a natureza exhausta pedia para socego,—fico incapaz até para o que aliás me daria gosto e ainda allivio.»{44}
Era-lhe rebelde a saude, fatigava-o o escrever, e aquelle grande espirito estava sempre moço, sempre acordado, e publicava, depois da data d'esta carta, o Frei Luiz de Sousa em 1844; em 1845 as Flores sem fructo e o Arco de Sant'Anna; em 1846 a Philippa de Vilhena e as Viagens na minha terra; em 1848 a Sobrinha do marquez e, para dizer tudo, foi depois de 1838 que nos deu os mais delicados livros da sua gentil bibliotheca.
Camillo Castello-Branco sente-se tambem doente, e ainda assim vou jurar que renunciaria á vida se o privassem de escrever os seus romances admiraveis de verdade, de analyse, de côr local, o que é, a meu vêr, um dos quilates mais preciosos do seu talento.
Lê-o a gente, e acredita-o, e commove-se por mais que se lembre que está lendo uma novella.
O segredo d'este prodigio ha-de morrer com Camillo Castello-Branco. Só elle sabe temperar a verdade com a ficção de modo que não offenda, por falta de naturalidade, os mais exquisitos paladares. É que a verdade, como sabem, nem sempre é verosimil.
Ouçamol-o a este proposito:
«Um meu amigo, que tinha conhecido muitos amigos infelizes, e tinha lido as minhas novellas, disse-me assim uma vez:
«—Tenho observado que vossê inculca verdadeiras todas as suas historias.
«—E vossê duvída?
«—Duvido porque as acho verosimeis de mais.{45}
«—Isso é um absurdo, com o devido respeito. Pois, se as minhas historias fossem impossiveis, seriam mais possiveis?
«—A pergunta formulada d'esse modo é irrespondivel; mas o que eu queria dizer não é o que vossê entendeu.
«—Faça favor de se explicar.
«—Lá vou. A verdade é ás vezes mais inverosimil que a ficção. O engenho do romancista concatena os successos com tanta logica e coherencia que o espirito não póde negar-lhes a naturalidade. As occorrencias advem tão harmoniosas, os successos filiam-se e reproduzem-se tão espontaneamente, que o leitor póde, sem desaire da sua critica, pensar que o romancista é muitissimo mais correcto que a natureza. Ora agora, o modo como as cousas reaes se passam, os disparates que a gente observa, o desconcerto em que anda a previdencia do homem com o resultado phenomenico e sempre ordinario das realidades, isso, meu amigo, é o que os torna inverosimeis e inacreditaveis, se vossê ou eu as contarmos com a simplicidade e nudez de que ellas se vestiram aos nossos olhos. Sei eu acontecimentos que relatados, como eu os presenciei, seriam incriveis, e compostos com a mentira da arte seriam as delicias do leitor, que julga só verdadeiro o que é possivel ter acontecido. D'onde eu concluo que a arte é muito mais verosimil que a natureza, e que os seus romances são inacreditaveis por isso que são verosimeis.»{46}
É este inquestionavelmente o grande segredo dos romances de Camillo Castello-Branco, o serem muitas vezes, para não dizer quasi sempre, mais verosimeis que a verdade.
O que é certo é que não ha ahi author que seja mais lido, mais gostado, mais popular até. A razão d'isto já fica acima apontada,—é que Camillo Castello-Branco é, pelo seu temperamento, um romancista verdadeiramente nacional.
—Eu já nem temperamento tenho! dizia-me elle outro dia. Creio que sou uma degeneração de todos os temperamentos.
Ah! perdão, meu presado mestre, eu que tenho lido os seus ultimos livros e que os estou agora dissecando sobre a minha mesa de physiologista, acho que elles são extremamente eloquentes, sobejamente verdadeiros.
A prodigiosa imaginação de Camillo Castello-Branco augmenta-lhe tambem a gravidade dos seus padecimentos; é ainda o romancista a fazer-se um romance para si mesmo.
D'isto não tem elle culpa, que é tambem uma consequencia do seu mesmo temperamento. A excitabilidade nervosa de certas organisações leva-as muitas vezes a verem os acontecimentos pelo prisma da sua imaginação pessimista. É assim que o snr. Alexandre Herculano que, a meu vêr, tem o mesmo temperamento, escrevia inspirado pela revolução de 1836 umas formosas paginas, esplendidamente exageradas, que{47} fazem lembrar as Ruinas de Volney e o Livro do povo de Lamenais.
Depois de fallarmos de Camillo Castello-Branco parece-nos ocioso estudar o mesmo temperamento em escriptores differentes, um dos quaes seria, se o houvessemos de fazer, o snr. Latino Coelho, cuja feição peninsular resalta dos seus escriptos politicos, cheios de verve, de mordacidade, de energia nervosa.{48}
{49}
Estamos tratando do estylo e ainda o não definimos siquer. Emende-se a tempo o descuido, e aproveitemos a definição d'um grande estylista portuguez que nos vai preleccionar com maior clareza do que as regrinhas pretenciosamente concisas d'uns compendios de bem fallar que por ahi apparecem.
O estylo é na opinião de Camillo Castello-Branco «a concepção das idéas, manifestada em formulas visiveis e transmissiveis; é a luz exterior reflectida da luz interna. É ainda, em sentido menos lato, a escolha harmoniosa das palavras, congruentes á elevação ou simplicidade do assumpto. Que e mais o estylo? E a physionomia distincta da obra, do author, do assumpto, do paiz e do seculo. É, finalmente, o que ahi ha menos material na arte de escrever.»{50}
Anda visivelmente por isto a doutrina de Emilio Deschanel, e a verdade, que eu anteponho a todas as philosophias nebulosas, não fica tambem muito longe da definição de Camillo e da these do escriptor francez.
Todo isso é o estylo.
O estylo é o homem na sua dupla existencia. Temol-o provado, pelo que respeita á physiologia, e continuaremos a proval-o. Pelo que prende com a pessoa moral basta ler simplesmente um conto de Antonio de la Trueba, intitulado O estylo e o homem.
Fallemos levemente da formosa historieta do contista hespanhol.
Trueba recebe um dia uma carta que o chama urgentemente a Navalcarnero. Dá-se pressa em partir; parte.
Ao chegar a Mósteles, um cabo da guarda civil, commandante do posto, exige-lhe o passaporte.
Não se muníra Trueba de documentos officiaes, e contenta-se com dizer o seu nome.
O cabo, que tem na algibeira os Contos campesinos, duvida da identidade do viajante.
Antonio de la Trueba quer sahir-se d'estes apertos, e appella para um expediente extremo.
No correr do dialogo insinuára o cabo que Antonio de la Trueba devia de ser um homem de bem, porque o estylo é o homem; mas que se via obrigado a vedar-lhe a passagem até obter uma prova da sua identidade.{51}
«Pois se o estylo é o homem—replicou Trueba—deixe-me recolher á casa da guarda onde escreverei um conto. Está costumado a lêr os meus livros; reconhecerá o homem no estylo.»
O alvitre foi aceite.
Trueba escreveu o conto, que era simplesmente a historia interessante da sua inesperada jornada, historia admiravel de sentimento e singeleza.
O verdadeiro conto está n'essa narrativa. O guarda ouviu attento, e, terminada a leitura, disse apenas estas palavras:
—D. Antonio de la Trueba, póde partir.
Na opinião do author dos Contos campesinos tres cousas ha que teem uma physionomia unica,—a letra, o rosto e a alma.
Procurem disfarçal-as; o observador intelligente ha-de sempre conhecel-as. A mascara ha-de cahir perante a observação,—ou véle o espirito ou cubra as faces, tanto importa. O estylo é o homem,—a alma é o temperamento, o que não se palpa é o que se vê, o eu subjectivo e o eu objectivo. Por isso o estylo é mais perfido do que a onda,—atraiçôa.
A alma é a luz; o corpo a lampada. O estylo é o reflexo que parte da chamma e que ao atravessar o candelabro mostra a transparencia do crystal ou o espelho scintillante do ouro.
Que o estylo era o paiz, o clima, mostramol-o no capitulo antecedente, porque o homem, como os rios, reflecte a côr do céo sob que nasceu.{52}
Diremos tambem, e de passagem, até onde o estylo é o seculo.
A França do seculo XVIII está claramente representada nos romances licenciosos de Duclos e de Crebillon, filho, como nos quadros eroticos de Fragonard e Boucher.
Em Portugal os poetas e os historiadores do seculo XVI eloquentemente revelam a época de maior esplendor que jámais atravessou a patria, assim como os annaes da Accademia real de historia bastam para pregoar, em suas declamações fatuas e vans, a decadencia da litteratura portugueza que veio depois a receber alento do grande espirito do marquez da Pombal.
«Chaque siècle a son tour d'esprit», disse Fontenelle, e a historia nos está provando que Fontenelle não mentiu.
Emilio Deschanel ponderou que «se o estylo era o homem, a litteratura era a sociedade.»
Outra verdade profunda, outra illação da historia, que não só se deprehende da litteratura propriamente dita, senão que tambem se está revelando n'essa outra litteratura de pedra chamada architectura.
Para o nosso caso, os monumentos são tão eloquentes como os livros.
Já Victor Hugo notou, no romance Notre Dame, que o Paris de Luiz XV estava em Saint-Sulpice, o Paris de Luiz XVI no Pantheon, e o Paris da republica na Escola de Medicina.
Em Portugal, tambem o snr. Alexandre Herculano{53} observou que a Batalha era um poema de pedra e Mafra uma semsaboria de marmore,—que uma era grave como o vulto homerico de D. João I e que a outra representava uma geração effeminada que se fingia gente.
Todavia promettemos logo ao principio ir apontando as excepções que fossem occorrendo, e ao proverbio de que o escriptor encarna o seculo em que viveu,—não nos esqueceremos de contrapôr que as fabulas de Florian são de 1792 e que em 93 Légouvé dava no Theatro-francez uma tragedia pastoril. Offenbach é um exemplo do nosso tempo; depois da guerra com o estrangeiro, depois dos dias sangrentos da communa, recomeça tranquillamente as suas operetas.
Temo-nos desviado por atalhos que partem do nosso caminho, mas que não seguem a direcção que tomamos.
Continuemos o nosso estudo sobre temperamentos, e fallemos hoje d'um escriptor, justamente laureado, poeta d'amenidades e branduras, cantor da natureza e do amor.
É claro que fazemos referencia a Castilho, cujo temperamento exuberantemente se está espelhando nos seus livros.
Escreve o author da Chave do enigma fallando da sua infancia:
«Fadada vinha pois, segundo cuido, aquella creança só para poeta, e poeta unicamente de branduras.»{54}
Vendo-se ainda nas recordações longiquas do passado, continúa:
«Foi a infancia do innocente, que eu ainda me recordo bem de ter conhecido, rosada, chilreada, alegrissima como quasi todas as auroras. Mas os penates do seu berço haviam sido na cidade, e os passaros cantores não se criam e educam bem senão pelas amenidades tranquillas e scismadoras d'esses campos.»
A infancia bucolica de Castilho preparou-lhe a alma para os eternos florecimentos com que ainda hoje toda se expande em cadencias e perfumes. Nem siquer lhe faltou no paraiso dos primeiros annos uma creança amiga que lhe inundasse o coração com os alvores matinaes do santo amor da puericia. A sua indole, dil-o elle, «foi-se compondo com duas religiões que a final se reduzem a uma só: o culto das gemeas e eternas amantes universaes,—a natureza e a mulher.»
Um dia appareceu n'este céo azulado e crystallino d'uma infancia suavemente idyllica, a primeira nuvem presaga de tempestade. O que aconteceu elle vol-o dirá, que ninguem melhor o pode dizer: «De repente outra doença, mais terrivel que a primeira, e menos esconjuravel do que ella, não paga com martyrisar-me, não contente de balançar-me por um fio largos mezes entre a vida e a morte, me atira vivo para um sepulchro. Eu respirava: mas os bellos olhos, idolatras das flôres e de Amalia, e vangloria de minha{55} mãi, não sabiam se ainda havia no céo o sol de Deus!»
Privado de contemplar as paisagens dos seus primeiros amores, começou a saudade a reproduzir-lh'as na visão interior, a rememoral-as a toda a hora, a contornal-as no horisonte infinitamente suave d'um paraiso perdido.
A fatalidade tinha-o atirado para um sepulchro, é certo, mas o sepulchro d'um poeta tem sempre flôres.
Era recendente a urna espessa em que lhe ficava cerrada a infancia. Mas pelas estrophes perfumadas do passado recompoz Castilho os poemas inebriantes do futuro; pelos aromas da infancia adivinhou a primavera invisivel da mocidade.
Pouco era o que tinha aprendido, mas de muito lhe serviu para o que viria saber. Onde lhe faltava a visão, porque as palpebras tinha-as para sempre fechadas, ahi lhe acudiam os olhos de seus irmãos, que viam por elle, ahi o soccorria a lição dos poetas bucolicos com que foi creado, ahi lhe entrava a flux pela alma e pelos ouvidos o dulcissimo conhecimento da natureza que idolatrava. Assim se fez e educou poeta ao murmurio placido do Mondego e do Tibre, de que não estava menos proximo. O rouxinol, privado de vista, tambem canta, como sinta os perfumes da primavera e a melopêa da corrente suspirosa. De musicas e aromas se formou a sua alma, por isso não ha ahi melhor poeta do amor, da melancolia, das flôres, das aves e das creanças.{56}
O livro Primavera caracterisa-o perfeitamente; estão n'elle todas as branduras lymphaticas do seu teraperamento, todas as doçuras ineffaveis da sua alma. Uma vez só, como já dissemos em outro lugar, cahiram as boninas da sua lyra campestre sacudidas pela rajada violenta das paixões. Os Ciumes do bardo e a Noite do castello representavam um esforço ao qual se devia seguir, como a claridade da manhã após a negrura da tormenta, todos os idyllios suavemente elegiacos que dedilhou depois. Ha d'estas contradicções na vida dos escriptores, e nós, que voluntariamente nos obrigamos a apontar as excepções, não podemos deixar em silencio a seguinte, que é flagrante.
Gomes Goelho, já gravemente doente, escrevia, n'uma hora de dolorosos soffrimentos, uns versos scintillantes de verve peninsular, que desmentem completamente o genero caracteristico do finado escriptor.
A poesia de que venho fallando destina-se á Grinalda e, por obsequio de Nogueira Lima, transcrevo as tres primeiras quadras:
Ai, quem me dera em Sevilha,
Onde a travessa hespanhola
Sob a elegante mantilha
As negras tranças enrola.Na arcada da sé formosa
Vêl-a entrar, tal como a sonho;{57}
Entre coquette e piedosa,
Rosto, entre grave e risonho.Mergulhar na agua benzida
A mão pequena e elegante
E entre a turba, alli reunida,
Distinguir o olhar do amante.
A vida de Castilho tem sido o caminhar empós idéas generosas, principios nobres e santos, quaesquer que sejam, com o peito cheio de serenidade, ou o recebam hymnos ou chufas, ou o acclamem «Poeta» ou lhe gritem «Utopista». Não ha presentemente em Portugal homem que mais tenha sido aggredido e que mais razões tenha para ser respeitado. As vagas que se levantam no esforço de quererem submergir a sua corôa litteraria, batem d'encontro ao throno em que a patria já collocou, e para sempre, o cantor da Primavera, e refervem, e espumam e, finalmente, desfazem-se.
Elle, a cujos ouvidos resoam incessantemente as musicas da alma, não ouve siquer o acachoar das aguas impuras que não chegam a macular-lhe as plantas. Está embevecido na sua poesia, no seu sonhar perpetuo, nas suas dôces affeições.
Um dia, desceu do solio litterario e entrou á escóla, levando comsigo a alegria, a musica, o amor{58} pelo estudo. Cercaram-no umas creanças pallidas e concentradas, que lhe faziam dó, e essas creanças, volvidos dias, amavam-se entre si, estimavam o mestre, já não riscavam os seus livros, e do intimo de suas almas immaculadas abençoavam o poeta cego e velho que lhes enchera de poesia o recesso humido e soturno da escóla. Mas levantaram-se as vagas, e referveram, e espumaram. Castilho recolheu-se ao ninho querido onde o estavam convidando as amenidades de todos os dias. As multidões gritavam «Utopista» e as vozes esmoreciam no ar. Não lhe deixaram fazer da escóla-cemiterio, cheia de escuridade e tristeza, a escóla-floresta gorgeada, alegre e festiva. Conseguiram que elle depozesse o livro da primeira communhão espiritual, mas não lhe poderam arrancar do peito o amor que elle ainda conserva á escóla, ás creanças e á legião dos seus poetas romanos com os quaes se entende muito melhor que com os impertinentes conservadores do velho ensino. Arrancaram-lhe das mãos o cathecismo preceptor, é certo, mas não lhe poderam empolgar a lyra das branduras predilectas. E recomeçou a cantar os seus idyllios, a suspirar as suas dôces elegias, pedindo aos seus amigos que o deixassem morrer com as mãos postas sobre as cabeças de seus filhos e com a lyra encostada ao coração.
Não quer outra indemnisação em quanto fôr do mundo; depois que a morte arrefecer a escuridão dos seus olhos, pouco é, e de poeta, o que elle deseja para si:{59}
«Depois que entre os abraços delirantes
De todos os que amei, findar meus dias,
Sepultai-me n'um valle ignoto e fertil.
Para marcar da sepultura o sitio,
Sobre o cadaver, que vos foi tão caro,
Mangeronas plantai, cuja verdura
Em roda fechem variados lirios.
Na raiz funda de soberba olaia
Pouse a minha cabeça, e o tronco amigo
Sobre mim curve a copa florecente.
Mil piteiras unidas, ostentando
Na hastea vaidosa as flôres amarellas,
Em quadrado não grande me defendam
Das incursões das cabras roedoras.
Em meu tronco se escreva este epitaphio:Foi poeta amador da natureza:
D'entre as sombras ancioso a procurava,
Qual terno amante a bella fugitiva.Sobre isto pendurai sonora flauta,
Que se revolva á discrição do vento.
Não cerque os ossos meus, não mos ensombre
Nem teixo nem cypreste; arvores quatro
Quizera só no meu jardim de morte.
N'um canto a laranjeira graciosa,
Que mescla util e dôce, a flôr e o fructo:
N'outro a figueira sob as amplas folhas
Modesta occulte seus nectareos mimos:{60}
Defronte um pecegueiro em fructos mostre
Que amavel é pudor, quando enche faces
De pennugem subtil inda cobertas:
No ultimo canto... (a escolha me confunde)
Plantai no ultimo canto uma ginjeira,
É a arvore da infancia até na altura;
D'esta por sua mão colhe um menino
A mui ridente baga, e ri de ufano.
Alguns tempos depois que a fria terra
Meus restos encerrar, á minha olaia
Vós, meus amigos, vós dareis meu nome,
Pois de mim se nutriu, e eu serei n'ella.»
Envelhece o homem mas sobrevive o poeta. O seu temperamento tem prevalecido o mesmo e já se tornaram em sazonados pomos de abundante outomno as flôres odorosas da septuagesima primavera. A sua alma conserva-se tranquilla, cheia de luz como o céo da Grecia, sob o qual poetou o seu Anacreonte, perfumada como os pomares tiburtinos do seu Horacio.
O temperamento de Lopes de Mendonça era prophecia da fatalidade a que devia succumbir; o temperamento de Castilho assegura-lhe viver poeta e morrer, como o cysne da tradição fabulosa, ainda poeta.{61}
A photographia é o folhetim da optica, assim, como o folhetim é a photographia da litteratura. Depois que se accendeu a febre dos jornaes, introduziu-se a moda já agora generalisada dos albuns, e a photographia e o folhetim invadiram o mundo, correram de mãos dadas, de polo a polo, porque se o folhetim é a reproducção dos acontecimentos, começada e concluida n'um instante, a photographia é a copia ligeira das pessoas, consummada em cinco minutos, n'um atelier elegante. Quem tem pretenções a fazer-se conhecido e respeitado das immensas ramificações de seus descendentes, retrata-se a oleo e deixa-se exhibir na sala nobre da familia, pendente d'uma lona, de casaca ou de farda, como se estivesse em perpetuo baile.{62}
Quem deseja escrever um livro para a posteridade segue o moroso processo dos retratos a oleo, senta-se pacientemente á banca todos os dias, corrige, emenda, annota, do mesmo modo que o pintor se inclina para a tela, aperfeiçoando um traço, avivando o colorido, corrigindo o contorno, trabalhando para o futuro, n'uma palavra. Mas quem se vai retratar para satisfazer um pedido, para brindar um amigo, para estar presente a uns olhos queridos com a firme tenção de mais tarde substituir o cartão pela propria pessoa, contenta-se com a photographia, que é um retrato incompleto, mas que é todavia um retrato.
Do mesmo modo, quem se senta á mesa de trabalho para traçar um esboço dos acontecimentos, para consignar as impressões do espectaculo d'hontem em quanto se faz horas para o baile d'hoje, e se pensa no passeio d'ámanhã, quem não quer historiar os factos mas unicamente estenographal-os, deixa fluctuar a penna na corrente do folhetim, dando um sorriso á bailarina nova, atirando um punhado de flôres ás alegrias do povo, orvalhando de lagrimas a saudade d'um athleta que cahiu, e sahe depois, de casaca e luva côr de perola, quando chega a carruagem, sem pensar siquer em que, procedendo d'outro modo, poderia ir ao capitolio mais depressa do que á sala esplendida e perfumada que o espera.
A missão do folhetim é pois photographar, apanhar os acontecimentos d'um só jacto e coloril-os com a luz que resalta do foco interior. Camillo Castello-Branco{63} escrevia uma vez a respeito de Julio Cesar Machado: «Bem sabe elle como é rapido o photographar, e bem sabemos nós que não devemos pedir-lhe mais que o esboço das cousas, aperfeiçoado depois pelo sexto sentido do talento.»
Em Portugal, o folhetim começou grosseiramente no «Almocreve das petas» e no «Barco da carreira dos tolos» como notou Rebello da Silva. José Daniel, que comprehendeu o espirito proeminente da época, procurou fazer a critica dos acontecimentos e das pessoas do seu tempo, provocando o riso, com a graça saloia e com a chufa grosseira, que era muita vez um respiraculo intencionalmente aberto ás combustões da inveja e do odio.
Era o embryão do folhetim, preparado á portugueza velha e pautado pelos modêlos da Eufrosina de Sá de Miranda e do Fidalgo aprendiz de Francisco Manoel de Mello. O verdadeiro folhetim, tal como nós hoje o conhecemos, «a critica ligeira, risonha e fugitiva que borboleteia ao de leve por cima das flôres» como disse tambem Rebello da Silva, veio de França junto com os primeiros albuns que de lá recebemos, ao tempo que Julio Janin era moço, e de Hespanha dentro de uma caixa de charutos, expedidos pelo dono do estanco onde Marianno Larra os costumava comprar.
Garrett, que estudou lá fóra as mais notaveis evoluções da litteratura moderna, foi o primeiro que trouxe para Portugal o folhetim francez, amaneirado, elegante, chic. O mesmo não aconteceu ao snr. Alexandre{64} Herculano, que estudou tambem na escóla do estrangeiro durante o tempo da emigração, mas cujo temperamento era adverso ás amenidades da litteratura ligeira. Á hora em que o snr. Herculano trabalhava na mente o plano das suas lucubrações historicas, descia o futuro visconde d'Almeida Garrett do seu cubiculo de Ingouville, onde escrevera o Camões, e flanava distrahidamente pelas margens do Sena.
Era isto—Garrett, o flaneur; Herculano, o philosopho.
Garrett foi na litteratura, como na sociedade, o verdadeiro flaneur. Borboleteou de genero em genero, dramatisou, romanceou, poetou, folhetinisou n'uma palavra, mas folhetinisou soberba, esplendida, admiravelmente. Garrett era porém o folhetinista do livro; faltava em Portugal o folhetinista do periodico. O temperamento de Garrett vedava-lhe o acompanhar quasi diariamente as lucubrações jornalisticas. Gostava de folhetinisar no seu gabinete, entre flôres e crystaes. Estava-se pedindo um homem robusto, febril, enthusiasta, que escrevesse os seus folhetins sobre a banca d'um escriptorio, nú de moveis e ornatos, com infatigavel energia, em quanto esperava o prélo impaciente. Esse homem appareceu,—foi Lopes de Mendonça. Durante muitos annos exerceu elle brilhantemente o folhetim,—o folhetim que se compromette a apparecer todas as semanas, a fallar de tudo embora haja completa escacez de assumptos, a ser alegre, espirituoso e profundo, apesar de se dar ares de leviano. O incendio{65} d'aquella poderosa imaginação crepitou, deslumbrou e finalmente extinguiu-se. Então appareceu em Lisboa um rapazinho da provincia, cheio de mocidade e esperança, que se estreou na litteratura offerecendo-se para traductor do Gymnasio. Os horisontes que elle sonhava eram lucidos como o céo da primavera. Em redor de Julio Cesar Machado tudo eram sombras, difficuldades, obstaculos. Mas elle era feliz porque sonhava com a esperança. Não basta ser feliz para o ser verdadeiramente. É preciso, e n'isto está tudo, amar a felicidade.
Se elle quizesse vencer d'um impeto todos os estorvos, enlouqueceria. Mas o seu temperamento lymphatico permittia-lhe esperar, e saber esperar é inquestionavelmente a primeira condição para vencer. Os seus nervos eram de natural submissos; impaciencia não a teve nunca. Por isso foi feliz. Soube namorar a felicidade. Quando a critica invejosa e proterva lhe sahia ao caminho, lá lhe vinha uma sombra á alma, mas as tristezas d'estes temperamentos são dolorosamente suaves. Passava a nuvem;—sonhava de novo com a esperança.
Eu sou realmente amigo de Julio Machado, e sei que elle me estima deveras. Quando penso na vida d'elle, lembro-me de mim, e perdôem-me este orgulho.
O author dos Contos ao luar entrou no mundo sósinho; seu pai deixou-o muito novo quando desceu ao tumulo. Eu fui um pouco mais feliz, mas o braço de meu pai, cansado de trabalhar toda a vida, só com extrema difficuldade poderia nortear a minha educação pelos mares que a sua alma affectiva me queria aplanar. Os mestres de Julio Machado foram os seus primeiros amigos. Eu tambem me quero lisongear d'essa honra. Foi a amizade de José Estevão que lhe franqueou as columnas da Revolução de Setembro. Eu encontrei tambem no principio da minha carreira um jornalista sobremodo honrado, o snr. Cruz Coutinho, que recebeu os meus primeiros ensaios nas columnas do Jornal do Porto, e me animou a proseguir. Ambos ganhamos pela penna o primeiro pão da vida. Do meu passado, conservo saudosas lembranças; Julio Machado compraz-se tambem em rememorar os seus primeiros annos que lhe sorriem ainda gratos através da penumbra do passado. Ambos nos destinavamos a um curso superior, e ambos ficamos no mundo sem carta de bachareis. Foi realmente uma pena; eu se fosse doutor era com certeza mais gordo,—mais feliz, pelo menos.
Qual seria a barreira litteraria diante da qual empedrou o estudantinho da Durruivos? Não sei; o latim de certo não foi, que esse ensinou-lh'o o padre Paulo, de quem elle falla nos Quadros do campo e da cidade.
A esphynge da latinidade tambem me não amedrontou a mim; conservo ainda saudades do Virgilio e do Horacio, e estimo sinceramente o snr. Dantas que foi meu mestre.
O meu pesadelo foi a mathematica, ah! foi a{67} mathematica sim. O Garrett queixava-se d'um mathematico de Coimbra, o snr. Honorato, que foi causa d'elle se ficar poeta. E o mais é que o snr. Albuquerque, do lyceu, é um homem de intelligencia e d'estado, duas qualidades que eu respeito e admiro em qualquer homem.
Mas eu já tinha no corpo a peçonha da poesia; aborreceu-me o Serret, errei um problema, esmoreci, e fiquei como estava. Aconteceu que não pude ser mathematico, e que me deixei ficar litterato. Um mathematico de menos e um litterato de mais,—eis tudo o que aconteceu.
Em razão d'esta minha inimizade com a mathematica, hei-de recommendar a minha filha, quando ella crescer, que tapete de boninas e esconda entre plantas o quadrado da minha sepultura. Eu, que não vivi bem com a arithmetica, não quero que ella se vingue de mim, quando me seja impossivel sacudir a lousa com os funebres algarismos que para logo denunciam a milicia dos mortos.
N'este horror á mathematica sou ainda discipulo de Camillo Castello-Branco que escrevia a Faustino Xavier de Novaes: «Teremos nós sepultura com lagea!? Conta com um cômorosinho de terra, e umas papoulas na primavera, e uma taboa preta com um numero branco. A arithmetica ha-de perseguir-me além da morte!»
Agora estou eu reparando que me tenho desmandado em confidencias, e que amanhã ha-de gritar a{68} maledicencia que eu fiz, que aconteci, que me quiz nivelar com Julio Machado. Não ha tal; previno o commentario. Basta dizer-lhes que ha sete annos,—era eu uma creança,—li pela primeira vêz, na Foz, as Scenas da minha terra e que me demorei longo tempo diante da dedicatoria d'esse livro que Julio Machado offerece a sua mãi, não sabendo se havia de applaudir mais o escriptor se o filho. Elle era então já um talento feito e eu, desprovido dos seus valiosos dotes, ainda era uma creança. Applaudi-o então, applaudo-o hoje e applaudil-o-hei sempre.
Mas era d'elle que vinhamos fallando,—era do seu temperamento que queriamos fallar.
Ah! feliz temperamento o seu, que se revela na suavidade dos seus folhetins, na doçura dos seus contos, na tranquillidade do seu animo.
O temperamento de Julio Machado está no Pedrinho dos Contos ao luar, na Marcolina das Scenas da minha terra, no Romance d'uma alma, das Historias para gente moça. São tristezas suaves,—deliciosas tristezas!
Elle, que foi o successor de Lopes de Mendonça, deve inquestionavelmente ao seu temperamento o ter arrostado ha longos annos com a improba canceira do folhetim sem desanimar, sem ficar vencido.
Escreve tranquillamente, por isso se não tem gastado. As viagens são uma tendencia do seu espirito. É ainda o folhetim em acção o que elle quer. Mas não vai viajar de afogadilho, não pensem, como se lhe fosse{69} na pista a policia ou o cholera. Nada d'isso. Para ir a Paris e para chegar a Londres gastou dous mezes.
Quando parte, não diz a ninguem onde estão os seus papeis importantes para o caso de não voltar. Nada d'isso. Parte alegremente,—para Italia; cantarolando com o Junca; para Hespanha, em trajo de touriste, em communidade de aventuras com o conde d'Obidos.
Nunca se lembrou que lhe ia acontecer desgraça pelo caminho. Ao contrario, pensa que a natureza o espera com um sorriso e um bouquet. É elle mesmo quem nol-o diz:
«De mais a mais, não sou de uns certos, que tudo pesam e scismam antes de se proporem a sahir da sua terra, e até cuidam que o barco se ha-de perder, simplesmente pelo facto de os levar; eu, ao contrario, cuido que por eu ir n'elle é que o barco se não perderá.»
Accusam-n'o de desleixado na linguagem. É um defeito. Quem o não tem? E muitos dos que lhe atiram a pedra estão tambem no caso de ser apedrejados.
Bem desleixado se deixou ser o Garrett nas Viagens, que é o folhetim mais folhetim que se tem feito entre nós, e todavia o Garrett ha-de viver mais tempo do que os seus criticos. O folhetim não se está a pregar e a repregar como as mulheres de trinta annos. Ah! não, o folhetim tem a graça e a desenvoltura de uma donzellinha. Namora-o a flôr; basta-lhe o perfume. Tudo o que faz é «ao acaso, tudo a brincar, tudo{70} para entreter», segundo uma expressão de Julio Machado.
Quando elle publicou os Contos ao luar, sahiram-lhe ao encontro os grammaticões, os nossos graves grammaticões—que graça!—por haver attentado contra a virtude da syntaxe, começando o seu livro por uma conjuncção copulativa.
Era certo que elle havia escripto—«... E depois, eu não sei bem porque chamei ao meu livro Contos ao luar!» Que elle, o phantasioso contista, tivesse aceitado a sequencia d'um sonho interrompido, d'um devaneio cortado pelo fremito d'uma vaga, que quizesse dar aos seus contos o vago do luar, não comprehendiam os grammaticões. Lá estavam as reticencias que substituiam as palavras, mas não eram reticencias o que elles queriam, eram palavras, palavras, unicamente palavras.
Os grammaticões são como os diccionarios;—o que mais têem são palavras. E os defensores da inviolabilidade da grammatica em vão açularam a critica, e os apostolos da conjuncção morderam-se, e o livro teve tres edições, para dizer tudo d'uma vez.
Já que me referi n'outro lugar ao Romance de uma alma quero acrescentar que basta este conto para caracterisar physiologicamente Julio Cesar Machado,—um conto adoravel, dôce e triste, um devaneio de phantasia delicada que faz lembrar as mais formosas tradições do Rheno primorosamente trasladadas a portuguez pelo snr. José Gomes Monteiro.{71}
Ah! meu caro Julio, eu, que sou ainda novo, amo sinceramente a candida mocidade que se respira nos seus livros, delicio-me com as fragancias d'esses gentis bouquets que o seu talento tem enfeixado, e ao terminar estes breves estudos de physiologia, litteraria permitta-me que saude d'aqui a primavera que ainda lhe sorri exuberante de galas e esperanças.
Algum dia dirá de si a historia da litteratura patria que foi um escriptor sempre moço, que sabia com o seu espirito enganar a idade, quando ella the acenava de longe, e que no dia em que lhe nasceu a primeira branca atirou ainda a umas bailarinas que iam passando com um bonito bouquet, um adoravel folhetim, de sorte que ellas, apesar d'uma ruga e de uma can igualmente traiçoeiras, tiveram inveja á sua mocidade e ao seu temperamento, como eu, que sinceramente o confesso, e se lembraram de Anacreonte, que morreu a sorrir, coroado de flôres.
Termino esta serie de folhetins com o nome festejado d'um distincto folhetinista. Assim devia ser; é sobre o pedestal que se colloca a estatua.
N'estes rapidos estudos humoristicos, que ahi ficam, procurei fazer em Portugal o que fez Emilio Deschanel em França, com uma unica differença—que elle o fez muito melhor e mais detidamente. Elle me serviu de modelo e incentivo. Gostei do seu livro, e o mais que fiz foi applicar aos nossos escriptores a theoria que elle havia enunciado, não na sua generalidade, o que seria longo, mas em uma das suas ramificações,{72} o estado physico, o que me pareceu curioso. Parti, como elle, da influencia do corpo sobre a alma, e procurei estudal-a n'um certo numero de individuos.
Tentei estudar o temperamento no estylo.
Mais que nunca se me figura opportuna a occasião para trazer em minha defeza as palavras de Deschanel: «Paradoxo! dirão uns. Banalidade! clamarão outros. Que se entendam uns com os outros até chegarem a um accordo. Que importa que uma cousa seja velha, se é verdadeira? E não será sufficientemente nova, para o tempo que corre, se fôr precisa e sincera?» E depois, receioso de que supponham que se dá ares academicos, acode Deschanel denunciando a indole dos seus estudos: «Imaginai que folheaes, por matar o tempo, um album de autographos ou de photographias; é pouco mais ou menos o que vos eu apresento.» Isto escreveu Deschanel; isto devo eu repetir com dobrada razão.{73}
Ill.mo amigo.
Na ultima das suas Cartas do Inverno[5], nas quaes o meu amigo tratou, com a sua habitual delicadesa d'estylo, a interessante questão do temperamento d'alguns dos nossos mais populares escriptores, vem lá uns piparotes á mathematica e aos mathematicos que eu não posso deixar passar sem reparos.
Saio pela honra do meu convento. Proponho-me demonstrar-lhe que as chamadas sciencias exactas não são tão destituidas de riquezas poeticas como o meu amigo apregôa e muita gente acredita, e que nas litteraturas de todos os tempos e de todos os paizes—veja que ambições de erudição as minhas!—não ha{74} concepções nem mais grandiosas nem mais sublimes do que nas mathematicas.
Combatendo-lhe a sua antipathia pela sciencia das quantidades, tenho ainda em vista atacar o preconceito, entre nós infelizmente vulgarissimo, de que o estudo das mathematicas esterilisa a imaginação, mata o sentimento artistico e torna o espirito pesado e sorna como a quarta pagina do Times.
Não ha com effeito estudantinho de lyceo que tenha lido, em traducção mascavada, os Tres Mosqueteiros ou a Menina do 4.º andar, que se não julgue victima da mais cruel das tyrannias paternas quando se lhe impôe a obrigação de estudar um poucochinho do Manso Preto ou do Sousa Pinto.
Conheci no meu tempo d'estas victimas imberbes do romantismo fazerem gala de serem reprovados em mathematicas elementares, para se darem ares de Esproncedas em promessas, de Byrons em projectos, de rapazes esperançosos, de moços cujo talento se não podia amoldar, pela grandeza e pela impetuosidade, aos estreitos limites da arithmetica, da algebra ou da geometria.
É verdade que depois estes interessantes mocinhos demonstraram ter na mesma conta da arithmetica tudo o que os obrigasse a duas horas de trabalho sério, e iam a final, cobertos de rapozas e inutilisados physica e moralmente pela devassidão e pela ociosidade, parar aos corredores das secretarias d'estado, ás ante-camaras dos ministros ou ás salas de espera{75} dos influentes eleitoraes mendigando um emprego publico, onde podessem emfim applicar a sua actividade gasta nos prostibulos, nos cafes e nos passeios publicos.
Assim como ha porém intelligencias com aptidão singular e admiravel para a comprehensão das sciencias exactas, ha tambem boas e prestadias intelligencias, e d'esse numero é a do meu amigo, que tomam á conta de repugnancia invencivel pela mathematica o que n'essas intelligencias é apenas amor e enthusiasmo por outra ordem de verdades. O Julio de Castilho dizia-me em Lisboa, com aquelles seus ares candidos e virginaes de pintor biblico da renascença, que não comprehendia como eu, que fazia versos, conseguira encarar nas mathematicas sem ficar logo alli empedrado de horror. Elle, como o meu amigo, quando lhe disseram que havia de estudar arithmetica, parece que escreveu uma apologia apocalyptica do suicidio e que esteve meio resolvido a ir esconder o seu asco aos numeros no fundo do Tejo. Deixe-me fallar-lhe ainda de mim para demonstração d'uma verdade acima enunciada. Eu quando principiei a estudar mathematicas tinha o espirito azedo e derrancado com a leitura d'uns detestaveis romances francezes que por ahi andam na mão de todos os meninos e meninas. Aterrado com o desimaginoso estylo do 1.º tomo do Francoeur disse de mim para mim, para me desculpar da propria mandriice, que o meu talento não nascera para digerir taes bagatelas e alistei-me galhardamente{76} na numerosa ala dos mergulhadores, meus condiscipulos e consocios na guerra ao estylo do filho espurio da grande actriz Lecouvreur, segundo contam as más linguas. O resultado d'este meu incipiente mau gosto litterario foi perder o anno, poupando assim o snr. Pinto d'Aguiar ao trabalho de me premiar a loureirice com tres rapozas, vêr com muita inveja e muito desgosto de mim proprio parte dos meus condiscipulos alcançar com a approvação o premio dos seus esforços, ir para ferias grandes com uma cara tola de homem que se reconhece inutil e mandrião aos proprios olhos, e, por sobre tudo, apresentar-me a meu pai, que tanto me estremecia, com a consciencia de lhe ter roubado perto de trezentos mil reis, que fui tirar ao patrimonio sagrado de minhas irmãs, sem receber d'elle uma reprehensão, o que era o peor de todos os castigos.
Senti-me deveras e profundamente abjecto diante de mim mesmo.
Em outubro voltei ao Porto e comecei a estudar regularmente n'esse anno e nos que se seguiram, até completar a minha educação profissional. Nunca porém me pude vêr livre completamente dos maus habitos adquiridos na convivencia da mocidade imaginosa e revolucionaria, que me fôra companheira das tolices do primeiro anno. Ainda hoje estou combatendo essas influencias de romantismo futil e estouvado que nos tem para cá vindo nos enxurros da litteratura franceza.{77}
O precioso tempo que gastei a fazer versos e folhetins, com que nem eu nem as letras ganhamos pouco nem muito, podia tel-o empregado bem melhor a estudar conscienciosamente o que hoje me vejo obrigado a compulsar de novo, para não exercer a minha profissão do mesmo modo que fiz o papel de poeta e de folhetinista.
Com a propria experiencia pois lhe afianço que o estudo das mathematicas nem esterilisa a imaginação nem atrophia o sentimento artistico. Deixe-me dizer-lhe mais: Das grandes manifestações do espirito humano só a musica me tem causado tão intimas sensações de contentamento, de felicidade interior e de enthusiasmo como as que experimentei com as mathematicas, apesar de as haver estudado superficialmente e de apenas lhes ter entrevisto a sublimidade e a elevação. Lastimo-o se nunca sentiu os jubilos intimos, o puro contentamento que se apodera de nós quando chegamos á posse plena d'uma verdade mathematica. É então que se comprehende bem que o homem não vive sómente de pão mas de verdade. Sente-se a gente orgulhoso d'este orgulho fidalgo de pertencer á nobre familia dos seres que tirou do fundo do seu espirito taes sublimidades.
E depois, meu amigo, que idéa se ha-de fazer da arte, se fôrmos apregoar que as sciencias exactas, que é onde a verdade mais luminosa se apresenta, são inimigas irreconciliaveis da poesia? Em que conceito se ha-de ter a litteratura, se se acreditar que ella odeia{78} o rigor logico dos raciocinios, a actividade energica e regalada do espirito, os exercicios olympicos da intelligencia? Victor Hugo diz no prefacio de não sei qual dos seus livros que a algebra é uma poesia. É um acerto isto. Diz-se tambem que as mulheres da Africa dão a comer aos filhos coração de leão para os tornar robustos e corajosos. O coração do leão para o espirito é o estudo das mathematicas. Não ha nada mais sadio nem mais nutritivo.
É uma atmosphera de verdade onde a alma humana respira a pleno peito o ar da vida. É a agua lustral que nos lava dos preconceitos da educação, e que nos levanta o entendimento áquella altura d'onde se não podem já enxergar umas certas cousas mesquinhas e tolas que ahi andam ataviadas com os ouropeis da phantasia, e que são tão futeis e tão ridiculas, como os interesses que sustentam.
Nas sciencias mathematicas ha sobre todos um ramo, com o qual, no meu entender, não póde competir nem em grandeza nem em sublimidade poetica nenhuma outra ordem de conhecimentos humanos; é a Astronomia. Galileu, Kepler, Newton e Laplace são poetas de mais alto cothurno que Homero e Shakspeare e Goethe e Victor Hugo. Não grite á d'el-rei contra a blasphemia litteraria; olhe que é verdade isto que lhe digo. Se tirar aquelles grandes vultos da sciencia a imaginação, o enthusiasmo, a intuição prophetica da verdade, as allucinações do ideal, este exaltado lyrismo que o amor sofrego da verdade produz{79} nas intelligencias privilegiadas, se lhes tirar todas estas qualidades de espirito que fazem os grandes poetas, reduz-me aquelles homens á craveira vulgar de quatro mathematicos mais ou menos obscuros, mas não m'os eleva nunca á altura de espiritos creadores, de genios, de poetas finalmente.
Que litteratura ha no universo que possa sustentar as pretenções de possuir uma obra litteraria capaz de se medir em grandeza de concepção e em sublimidade de idéas com a theoria da attracção universal de Newton ou com a hypothese sobre a formação dos mundos de Laplace?
Que nome senão o de poeta quer o meu amigo dar a um homem como Leverrier que encontra um planeta desconhecido e nunca visto por olhos humano na ponta da sua penna, fechado no seu gabinete de trabalho? Diga-me: se fosse millionario não pagaria por bem maior preço os calculos originaes de Leverrier do que o autographo mais precioso do Dante?
E não me diga que esta poesia da sciencia só é accessivel aos espiritos iniciados n'ella. Reuna em volta de si duas ou tres mulheres de talento e de gosto litterario, lêa-lhes o melhor trecho do Hamlet, o melhor canto do Inferno, a melhor composição da Lenda dos Seculos, e depois faça-lhes uma exposição singela do systema dos mundos, narre-lhes a historia da descoberta da velocidade da luz ou conte-lhes o prodigioso romance do apparecimento no mundo da sciencia do planeta Neptuno, e verá qual das cousas as deixou{80} mais allucinadas, se a poesia dos versos ou da palavra, se a poesia dos mundos ou da sciencia.
Em si, que é um espirito serio e estudioso, não quero eu vêr no seu horror as mathematicas mais do que um gracejo de folhetinista; mas é que nós padecemos d'uma profunda doença social que se revela muito n'esse desprezo pelos estudos serios, n'esse fastio pela verdade singela, pela logica vigorosa e pelos methodos de raciocinio verdadeiramente scientificos. Nutra-me o espirito publico de conhecimentos exactos, de methodos seguros de raciocinio, e ha-de vel-o não se contentar tão facilmente com os sonhos com que o andam por ahi embalando os especuladores da causa publica, todos estes prudentes da occasião que trazem os principios chumbados ao marmore da rotina, que teem a consciencia adstricta á gleba dos empregos publicos, e toda a alma enfeudada aos preconceitos da opinião do maior numero. Olhe que é seria esta questão. Dê-me á França mais mathematicos e menos romancistas, mais arithmetica e menos versos, e Sedan é impossivel e os incendios de Paris serão irrealisaveis. A victoria é o resultado da superioridade dos vencedores; mas a superioridade dos vencedores suppõe a inferioridade dos vencidos.
O espirito serio e pratico da nova Allemanha havia de mais tarde ou mais cedo derrotar o genio romantico e futil da França contemporanea. Era uma guerra fatal aquella com um resultado previsto ha muito. Pergunte por isto ao snr. Pedro d'Amorim Vianna,{81} que talvez o encontre disporto a dizer-lhe umas cousas sublimes que elle sabe, apesar de saber tambem mathematica como poucos.
E, já que tem a felicidade de ter uma filha, meu amigo, ensine-lhe a admirar Soares de Passos, e em Soares de Passos a poesia O Firmamento, cuja inspiração elle foi beber a um dos ramos d'essa vasta sciencia dos numeros, que muita gente suppõe arida e esterilisadora como um livro de conta corrente. Depois nutra-lhe o espirito com o alimento sadio e robusto das verdades scientificas; leve-a pela mão aos grandes templos da vida moral; ensine-lhe a historia, que é a epopêa da humanidade; ensine-lhe a geologia, que é a historia da terra; ensine-lhe a astronomia, que é o poema heroico do universo. Diga-lhe que por baixo da lousa fria do tumulo, onde lhe mandar esparzir rosas de saudade, ha apenas os restos inertes d'uma cousa grande, que é o homem; a alma d'esse homem, essa, que a não procure n'esses restos, mas no proprio espirito d'ella, na memoria das suas boas acções, na recordação, que ella deve ter sempre viva da sua dedicação á familia, do seu amor ao trabalho, da sua paixão pelo estudo, da sua coragem nos revezes, da sua modestia nas alegrias, do seu respeito á virtude, da sua aspiração ao bem, do seu culto ao bello, das suas qualidades como esposo, como pai e como cidadão, pois que n'essa recordação na alma ingenua d'uma filha vai a melhor immortalidade a que um homem honrado pode aspirar.{82}
Creio que abusei muito da sua paciencia, não abusei? Que quer?... custou-me ouvir-lhe dizer mal das mathematicas.
Não torne, olhe que eu estou de atalaia, e então ai da sua paciencia.
Até lá e sempre creia-me
seu amigo e admirador,
Bragança, 22 de Janeiro de 1871.
Alexandre da Conceição.{83}
[5] As paginas antecedentes sahiram com este titulo em folhetins do Jornal do Porto, de dezembro de 1871 a março de 1872.
Meu bom amigo:
Fez-me a honra de replicar amavelmente ao ultimo d'estes despretenciosos folhetins que tenho publicado no Jornal do Porto sob o titulo de Cartas do Inverno, e eu apresso-me a responder-lhe para inteira conservação das nossas relações amigaveis e litterarias.
Sahiu o meu amigo pela honra do seu convento, levantando umas ligeiras insinuações com que eu não esperava offender a mathematica e muito menos melindrar um só mathematico.
Enganei-me, e em boa hora me enganei, porque a sua carta significa para mim uma honra, posto que immerecida, bem vinda, e porque me apraz digladiar com luctador assim digno como leal.{84}
Foi seu proposito mostrar que a mathematica não póde deixar de ministrar á litteratura o vigor logico do raciocinio, quer dizer, o machinismo scientifico de que se serve o homem para chegar ás convicções profundas. E cita o meu amigo uma pleiade d'homens illustres que foram ao mesmo tempo grandes mathematicos e grandes poetas, uns titães celeberrimos que se levantaram a uma altura a que não poderam chegar os gigantes da fabula.
Falla-me de Galileu, de Kepler e de Laplace. Não me falle d'esses, que foram os poetas da mathematica, que viveram embriagados no lyrismo da sciencia, e que por uma privilegiada intuição souberam deletrear as bellezas infinitas da epopêa dos astros. Não me falle dos grandes genios da astronomia, sciencia quasi divina, porque estuda o céo.
Herschell, cuja vasta intelligencia passou pelo baptismo da musica, antes de se remontar ás eminencias olympicas, tem no firmamento um epitaphio eterno para o qual não ha honras nem grandezas comparaveis. O rei Jorge III, que lhe fez mercê d'uma pensão da trezentos guineus e de uma vivenda no burgo de Slough, quasi concedeu um galardão irrisorio ao homem que devia ter o céo por tumulo e Uranus por epitaphio. Estas são as aguias audazes que roçaram as azas pela tela azul do firmamento, visitando os archipelagos de mundos, que, na phrase do materialista Buchner, infinitamente distantes uns dos outros, povoam o immenso deserto das alturas. D'esses não fallava{85} eu, porque os respeito tanto, quanto me é vedado conhecel-os. Fiquem estes e outros mathematicos para logo; fallemos por agora da mathematica.
Eu não nego nem discuto que a mathematica seja um instrumento da verdade; assumpto é esse estranho á minha competencia e ao meu intento. Se o fizesse, poder-me-hia encostar a talentos sobremodo abalisados;—a Hobbes que escreveu contra a certeza da sciencia que se tinha á conta de mais certa; ao padre Castel que falla n'este diapasão: «Em geral estimam-se muito ás mathematicas. A geometria tem verdades nebulosas, objectos vagos, pontos de vista vaporosos. Por que dissimulal-o? Tem paradoxos; apparencias de contradicção, conclusões de systema e de concessão, opiniões de seitas, conjecturas e paralogismos»; a Buffon, finalmente, que ponderou que as verdades mathematicas se reduziam a entidades d'idéas, e eram baldas de realidade. Se eu lançasse mão d'esta arma, movido de proposito ou convicção, responder-me-hia o meu amigo com numerosas e respeitabilissimas opiniões tendentes a encarecerem a verdade mathematica. Alardeariamos sciencia, mas não passaria a cousa d'uma cegarrega causticante para o leitor e para nós.
Não combati o estudo da mathematica nem combato; cada um estuda o que quer ou o que póde. Peço vista ao meu folhetim que despertou a sua replica. Não aconselhei tambem a leitura da mais edificante novella de preferencia ao mais arido compendio d'arithmetica. O que eu fiz foi penitenciar-me publicamente{86} do meu desamor aos numeros e, como eu sou d'uma sinceridade rude, permitti-me dizer que dormiria mais descansado o somno da morte, se minha filha, em vez de assignalar a minha sepultura com uma lousa numerada, levasse frequentes vezes ao meu cómoro um ramo de flôres. Isto é o que o meu amigo não póde nem deve discutir, apesar da sua vasta intelligencia, que eu aprecio na devida conta. É licito a cada um dizer como quer ser sepultado. O meu testamento, no que respeita a esta disposição, é publico.
Os estudantinhos que o meu amigo conheceu com o espirito derrancado pela leitura de romances de má doutrina e peor linguagem, não são uma creação do seu espirito. Eu tambem os conheci, e ainda conheço muitos, infelizmente. Ora esses nem têem amor á litteratura nem á sciencia. São uns vadios, que andam malbaratando as economias dos paes e pegam no compendio para pretexto de passeio até ao lyceu, e n'um romance para engalharem o somno, espavorido com a excitação da saturnal.
Eu sei que não escureceu o seu animo a idéa de se referir á minha pessoa. Faço-lhe inteira justiça e correspondo á sua amizade. Todavia algum leitor menos benevolo poderia ver n'isso uma allusão encapotada. A esse, não a si, digo eu que, não tendo merecimentos litterarios para reivindicar, não estou disposto a desapossar-me da unica qualidade boa que, como homem, me pertence,—o amor ao trabalho. Os meus amigos conhecem-n'a e respeitam-n'a. Sinto-me{87} então contente, e mais ainda quando, ao romper da manhã, vejo do meu gabinete, ao tempo que nem fumegam as casas visinhas para a refeição matinal, a canceira com que um moinho de vento proximo vai rasgando o nevoeiro com os seus quatro braços alvejantes. A essa hora, quando ainda não martelam as officinas nem estrondea na rua o pregão dos bufarinheiros, os unicos trabalhadores que estão despertos, é o moinho e sou eu. Basta isto.
Uns estudantes ha ahi, e sempre houve, que desestimam as sciencias exactas, mas que são grandes em differentes ramos d'estudo. Esses só sahem incolumes do exame de geometria,—quando sahem—depois de longo soffrimento para domarem temporariamente a inclinação natural do seu espirito d'elles.
Lembra-me citar-lhe um que tenho á conta de grandissimo poeta;—é Gonçalves Crespo, o author das Miniaturas.
Bom é que haja sempre aptidões diversas; só assim poderá florescer um estado.
Os que como o meu amigo começaram por poetar gentilmente e acabam «por combater as influencias do romantismo futil e estouvado» são raros.
Felicito-o sinceramente pela perseverança com que procura expurgar os velhos habitos, os quaes se me não afiguram tão nocivos como o meu amigo suppõe, antes, a meu vêr, eram mais um titulo de respeito para a opinião que geralmente se fórma da sua intelligencia.{88}
Alguma cousa porém lhe ficou dos seus passados amores com as letras, a despeito das mathematicas,—foi o estylo que naturalmente resalta da sua penna com estimavel donaire.
Não perdeu tempo nem trabalho, e muito mais se conseguiu, como acredito, alliar as louçanias da phrase aos conhecimentos d'um mathematico estudioso.
Voltemos porém aos mathematicos.
Em duas classes os divido eu; mathematicos-artistas e mathematicos-operarios.
Os primeiros, aquelles de que o meu amigo me fallou, são os que entenderam em assumptos de telhas acima, os que procuraram a poesia da mathematica nos mundos que pendem sobre as nossas cabeças e que estão narrando a gloria de Deus, no dizer da escriptura.
Um só defeito tiveram alguns d'elles, a meu vêr. Foi o ensoberbecerem-se tanto com a gloria n'aquelle seu adejar nos páramos do céo, que julgaram Deus uma cousa ociosa e superflua. Subiram tão alto, que se lhes afigurou impossivel haver alguem que os sobrepujasse.
Lalande proclamava que tendo estudado o céo não encontrara por lá vestigios de Deus. Laplace dizia a Napoleão que se no seu systema de mechanica celeste não tinha fallado de Deus, era só porque não urgira d'essa hypothese.
São maneiras de vêr.
Á segunda classe dos mathematicos, taes como eu{89} os distingo, pertencem os executantes, os que não sabem da sciencia mais do que o que está n'uns compendios sobremodo aborrecidos; d'uns que não dispensam a esponja para os seus calculos, porque a esponja lhes absorve os erros frequentes; que se apresentam com a vã magestade de regulos em sciencia e fazem do radio uma especie de ferula com que martelam na lousa para intimidar os alumnos que andam perdidos na abstrusidade da explicação do professor; finalmente d'uns que zombam de todos e de tudo o que não fôr a mathematica que elles versam, e que nada acham prestadio tirante a sciencia dos numeros. Estes são os que eu detesto, porque matam muita aptidão nascente com grandes doses de pastelão algebrico, como ia acontecendo ao Garrett, se elle não tivesse o bom senso de lhes fugir com o seu talento.
Estes taes podem ser equiparados na profundidade da sciencia, não pelo que toca a extensão, a uns homens obscuros, mais prestimosos e menos inchados que elles,—os guarda-livros. Uns praticam a mathematica dos lyceus, os outros a das casas bancarias. Praticam-n'a todos os dias; por isso desempenham correntemente as operações arithmeticas que lhes commettem. Mais nada.
«A algebra, disse o adoravel Garrett, é bom contraveneno para os empeçonhados de poesia; mas hade ser dado com geito e tento. Quiz-me fazer engulir doses muito grandes, não me pôde o estomago com ellas.»{90}
Ora eu estava empeçonhado, mas não me pôde o estomago com as doses do contraveneno, e como para chegar á poesia da mathematica era preciso desbravar a semsaboria dos prologomenos, fiquei sem conhecer os mathematicos do quinto andar e desandei pela porta fóra. Esta distincção que eu faço entre mathematicos, parece que tambem a fazia o Chateaubriand. Sempre é bom valer-se a gente de authoridades. Dizia elle no Genio do Christianismo:
«Todavia não será talvez difficil pôr d'accordo os que declamam contra as mathematicas e os que as preferem a tudo o mais. Esta differença d'opiniões vem do erro commum, que confunde um grande com um habil mathematico. Ha uma geometria material que se compete de linhas, de pontos, de A+B; com tempo e perseverança, um vulgarissimo espirito póde entrar por ella dentro com galhardia.
«É então uma especie de machina geometrica que executa de per si operações complicadas, como a machina arithmetica de Pascal. Nas sciencias, o ultimo que chega é o que melhor se instrue; eis-aqui porque qualquer collegial do nosso tempo esta mais adiantado que Newton em mathematicas; esta é a razão, porque tal que hoje é tido á conta de sabio será acoimado de ignorante pela geração futura. Azoinados com os seus calculos, os geometras-machinas teem um desprezo ridiculo pelas artes de imaginação; sorriem de compaixão quando se lhes falla de litteratura, de moral, de religião; conhecem, dizem elles, a natureza. Não{91} será para adorar-se a ignorancia de Platão, que chama á natureza uma poesia mysteriosa?»
Ha uma applicação da mathematica, que, com quanto se me não afigure poetica, não merece que se maldiga, porque é util: a geodesia. Essa professa o meu amigo, e tanto não me parece poetica a convivencia com o jalão e a fita metrica, que foi capaz de emmudecer a lyra das suas Alvoradas. Um tio meu, que passa por engenheiro distincto, Frederico Augusto Pimentel, conserva na sua bibliotheca muitos volumes de boa litteratura, que adquirira em estudante, mas eu quando o visito em Braga ou o encontro a braços com o pantómetro ou annotando o seu livro Manual do apontador.
Com referencia a mathematicos disse o que tinha a dizer.
Reportemo-nos agora a outro ponto da sua carta.
Deus me livrara, ainda que me fosse possivel, de fazer leituras d'astronomia a mulheres.
Estou d'accordo com Rossely de Lorgues, que fixa a origem da impiedade no reinado em que as mulheres, a conselho de Fontenelle, estudavam Euclides e discutiara Newton e Leibnitz, á roda de Maupertuis, no jardim das Tulherias.
Ora estas sabenças d'alto cothurno, que se conversavam nas cêas do barão d'Holbach e nos jantares de madame de Tencin, levaram a mulher franceza ao desvergonhamento, a que só póde ser cauterio a verdadeira{92} religião; não a religião das missões e dos missionarios, mas a religião de Deus.
O proverbio popular desconfia da mulher que sabe latim; eu desconfio da mulher que sabe mais do que latim. Quero instrucção para a mulher, grito por ella; mas ha-de ser uma instrucção rosada, loura, como as mais formosas tranças, casta, pura, limpida.
Para isso era preciso fazer compendios especiaes, delicados e prudentes. Da historia de Portugal, por exemplo, seria conveniente dramatisar as legendas dos heroes que se sacrificaram pela patria. Teem as mulheres imperiosa necessidade de conhecel-os, para soprarem ao animo dos filhos as primeiras sementes do amor nacional. Agora as negruras d'umas rainhas e d'uns principes, que mancharam a nossa historia, bom seria que ellas as não soubessem nunca. De mathematica desejo eu que as mulheres saibam correntemente as quatro operações elementares. É o que minha filha ha-de saber, e afigura-se-me que o marido de minha filha abençoará algum dia a discrição com que eu a hei-de educar.
É debalde que o meu amigo me aconselha n'este ponto. Cada um governa o que é seu, e eu, a despeito do seu claro entendimento, meu caro Conceição, não lhe hei-de ensinar a ella a «historia, que é a epopêa da humanidade», mas unicamente da historia o preciso para ella não aborrecer a humanidade.
Não quero que a pobresinha entre no mundo pela porta do tedio.{93}
Eu não entrei, porque, quando examinei os quadros negros, tinha a alma educada para o sentimento do bem pelos amorosos conselhos de minha mãi. Isto não é dizer que a maxima erudição seja a maxima desmoralidade. Não; eu quero que a instrucção seja para quem a póde professar, e que se estude quando se deve estudar.
É meu proposito que minha filha não ande pelas salas a fazer discursos de varia historia ás meninas da sua idade.
Os livros que eu escrevo, como ella os ha-de lêr um dia, não levam doutrina que a faça corar de pejo, por usar o nome que lhe lega o author d'aquellas novellas.
Não fallemos mais de minha filha, que dorme no berço os sonhos auriluzentes da primeira infancia. Não quero passeal-a na imprensa, depois de a ter roubado ás caricias de sua mãi.
Aqui tem, meu caro Conceição, o que se me offerece dizer-lhe.
Peço-lhe que me releve uma ou outra falta que tenha commettido, e creia-me sempre,
amigo dedicado e sincero discipulo,
Porto, 1 de fevereiro de 1872.
Alberto Pimentel.{94}
{95}
Ill.mo amigo.
Uma declaração antes de mais nada: Agradeço ao seu bom senso e á sua lealdade o ter-me feito a justiça de não vêr uma allusão pessoal e indelicada no esboço que fiz do estudantinho ocioso e devasso, que detesta a geometria, com o falso pretexto de que os talentos originaes e impetuosos se não podem sujeitar ao jugo affrontoso do calculo. Não podia lembrar-me de si quando tentava aquelle esboço, primeiro: porque seria isso uma grosseria incompativel com a minha educação; segundo: porque o aprecio muito como escriptor e como poeta; terceiro: porque o estimo deveras como amigo e como homem, pois que lhe reconheço o talento, a elevação do caracter, o amor ao estudo e a dedicação ao trabalho.{96}
Posto isto como mordaça aos malevolos ou aos futeis, e não como elogio com que eu queira pagar-lhe as finezas que me dirigiu na sua carta e que eu lhe agradeço com a plena consciencia de que as não mereço senão á sua amizade e não á sua critica esclarecida, entro na replica ao seu folhetim, sobre o qual temos muito que conversar.
Com o seu espirito alado e inquieto de folhetinista toca o meu amigo na sua ultima carta n'umas poucas de questões, qual d'ellas mais importante, que eu lhe não posso levantar todas, porque me não sinto com competencia para tanto, porque me não sobra tempo e porque isso tomaria proporções assustadoras para a redacção e para os leitores d'este jornal, que não póde ser condescendente commigo até ao ponto de arriscar a sua boa reputação.
Creio que o meu amigo leu a minha primeira carta um pouco preoccupado, ou que eu, por falta de aptidão e uso, expuz confusa e desastradamente o que tinha na mente dizer-lhe. Opto pela segunda hypothese, por me parecer a mais racional e por estar mais de accordo com os factos e com o conceito em que eu tenho os meus merecimentos litterarios, cuja pequenez no entanto recommendo a commiseração do seu espirito ás vezes tão finamente epigrammatica. Assignar-se meu discipulo!... Eu, seu mestre!... Em que? Não lhe perdôo a graça e obriga-me a praticar alguma inconveniencia, se a repete: envio-lhe o Serret pelo correio, pois que não tenho a consciencia de poder ensinar-lhe{97} regularmente mais cousa alguma; e não me discuta isto, que não soffre discussão seria.
Vou pois vêr se condenso em dous ou tres periodos umas idéas mal expostas no meu primeiro folhetim e que o meu amigo ataca, porque as tomou pelo que ellas não são, mal entrajadas como ellas se lhe apresentaram.
A minha sincera admiração pelas mathematicas nunca me cegou o entendimento até ao ponto de eu não vêr mais nada fora d'ellas, de suppôr que abaixo das mathematicas tudo é futil e inconsistente e acima d'ellas tudo sonhos e illusões. Creio que ha salvação possivel fóra da minha igreja, e que para divisar uma face á verdade não e absolutamente indispensavel saber dirigir um equatorial para a estrella 2151.ª da Popa do Navio ou para a alpha do Centauro. O que digo e sustento, em quanto o meu amigo me não convencer do contrario, é que o estudo das mathematicas e a familiaridade com os seus methodos seguros, ou pelo menos cautelosos, de raciocinio, não póde por fórma alguma ser prejudicial ao desenvolvimento de qualquer das nossas aptidões intellectuaes, e que sendo a litteratura e em geral a arte um dos muitos caminhos que levam o espirito humano ás atlantides do ideal, é licito acreditar que tudo o que tenda a elevar-nos o espirito, a robustecer-nos a alma e a esclarecer-nos o entendimento ha-de tambem desenvolver-nos as faculdades poeticas e o sentimento artistico. Este o argumento à priori, como se diz na logica. O argumento{98} à posteriori está nos exemplos, que lhe citei na minha primeira carta, de grandes mathematicos que foram tambem homens de muita imaginação e de muito enthusiasmo, sendo estas mesmas qualidades as que os tornaram grandes mathematicos. Responde a isto o meu amigo com a sua theoria dos mathematicos-artistas e dos mathematicos-executantes, theoria que, a meu vêr, se póde formular do seguinte modo: Ha mathematicos seccos de espirito, estereis de imaginação e baldos de todo o senso artistico, logo foi a mathematica que os fez mirrhados e massadores. Se ha grandes mathematicos com imaginação e sentimento, esses são espiritos por tal fórma privilegiados que resistiram ás influencias esterilisadoras dos numeros e do calculo.
Afigura-se-me sophistica esta sua argumentação, porque a ser verdadeira teremos de classificar de esterilisadora a influencia de todas as outras sciencias, incluindo a litteratura, e de massadores todos os primeiros litteratos do mundo, todos os nossos escriptores de mais segura e duradoura reputação; por exemplo: Garrett, que para manejar a lingua patria com aquella graça, facilidade e atticismo, que nós todos lhe admiramos, havia de folhear e compulsar muito bacamarte classico e soporifero; Alexandre Herculano, que para escrever aquelle poema do Eurico teve forçosamente de deletrear muita somma de pergaminho safado e roido, muita chronica bolorenta, muito livro indigesto; Antonio Feliciano de Castilho, Camillo Castello-Branco,{99} Theophilo Braga e alguns outros, que para subirem ás alturas, onde nós hoje os contemplamos com admiração, tiveram indispensavelmente de estudar e de meditar muito livro somnolento, e nem por isso lhes ficou lá o espirito, nem o talento, nem a graça, nem a espontaneidade; muito pelo contrario, foi ahi, n'essas monumentaes semsaborias da nossa litteratura classica que elles se robusteceram em graça, em talento e em originalidade.
Um mathematico cabeçudo e massador é tão massador como um jurisconsulto caturra e formalista, como um medico charlatão e pretencioso, como um padre fanatico e obscurante, como um professor ignorante e embirrento.
As caturrices dos jurisconsultos, o charlatanismo dos medicos e a ignorancia dos padres não podem provar nada contra a poesia da jurisprudencia, contra a grandeza da medicina ou contra a sublimidade da religião.
Parece-me, pois, senão demonstrado, pelo menos não destruido pela sua argumentação, que, em principio, o estudo das mathematicas não faz nem póde fazer mal algum ao gosto litterario ou á aptidão poetica.
Deixe-me dizer-lhe ainda: É convicção minha, e creio que de muito boa gente, que o espirito moderno deve á vulgarisação dos estudos mathematicos as mais solidas e as mais brilhantes das suas conquistas.
Não lhe fallo já da civilização material do nosso{100} seculo, para cujas maravilhas a mathematica cooperou com a melhor parte: quero fazer-lhe notar sómente a benefica influencia dos estudos mathematicos no espirito scientifico do nosso tempo. A mathematica não inventou por certo nenhuma theoria physiologica, não ditou nenhum tratado de direito publico, não descobriu um unico corpo simples ou a composição de qualquer corpo composto, não acrescentou um só versete aos Evangelhos; mas tem, pela benefica influencia dos seus methodos, do seu genio rigoroso e justo, do seu espirito verdadeiramente scientifico ajudado a expulsar das outras sciencias muito espantalho com fóros de verdade; muitas tolices com ambições de acertos, muitas hypotheses absurdas e lorpas com reputação de principios incontestaveis. E com isto tem ganhado todas as sciencias, incluindo a moral, que deve ao espirito logico e robusto das sciencias exactas, aquella austeridade de principios, aquelle stoictsmo de conclusões, que são as feições caracteristicas da philosophia contemporanea; com isto tem ganhado a litteratura, que se despe d'aquelles modos scismadores e langorosos, d'aquelles ares meditativos e lunaticos de virgem pallida e incomprehendida para se tornar em esposa forte e affectuosa, que nos consola nas amarguras, que nos alegra nas tristezas e que nos robustece nos desalentos, que nos melhora, que nos eleva, e que nos instrue. É porque a poesia ainda se não compenetrou bem d'estas verdades, que ella está representando na sociedade o papel secundario que representa.{101} Como explica o meu amigo este palpavel desamor da opinião publica pela poesia? Não nota que a sociedade contemporanea não quer que lhe fallem em versos; e que os não lê e que vira a pagina do jornal ou do livro onde os versos lhe appareçam? A culpa d'este desamor deve imputar-se por inteiro á sociedade ou aos versos?... É a sociedade que está acima dos versos, ou a poesia acima da sociedade? Ha depressão no sentimento moral e artistico da sociedade ou ha abaixamento no nivel intelectual da poesia? Eu creio que a culpa, posto que lhe caiba em parte, cabe menos á sociedade do que á poesia. Isto porém é uma questão para largos desenvolvimentos, e eu não quero terminar esta minha carta, que já vai escandalosamente massadora, sem lhe levantar outras duas questões que o meu amigo toca no seu folhetim.
A que chama o meu amigo impiedade?... Ás conquistas do espirito analytico do mundo moderno, á reforma, á revolução de 93? Á philosophia raccionalista, ao livre exame, aos direitos do homem? Á critica historica, á exagese biblica, a toda esta febre de investigações que trabalha a alma do seculo XIX e que lhe faz bater apressado no pulso o sangue riquissimo da vida? Chama a isto impiedade, ou entende por impiedade uns ralhos de sachristia em que andam ahi envolvidos os irmãos das confrarias? Chama impio ao catholico mr. Thiers, que deixa ir pela agua abaixo o poder temporal de sua santidade, e orthodoxo ao actual bispo de Orleans que se arreda de mr. Littré como de{102} um leproso? Diga-me o que seja para si impiedade, que eu tenho visto abusar-se tanto da palavra e da idéa que ella representa, que me não admira vêr appellidar de impio qualquer dia o proprio cardeal Antonelli ou até o snr. marquez d'Avila e Bolama.
O meu amigo parece tambem pensar que o seculo XVIII foi immoral por excesso de sciencia nas mulheres, e impio—volta a terrivel palavra!—por excesso de philosophia nos homens. Mas onde é que está isto demonstrado? Em Chateaubriand, que se esqueceu de metrificar o Genio do Christianismo, unica qualidade que falta ao livro para poder ser recitado ao piano? Mas quando e onde é que a sciencia e a philosophia fez mal a alguem e principalmente a uma sociedade? Quando e onde é que fez bem e elevou e moralisou e instruiu a ignorancia, o absurdo, o preconceito, a rèvèrie? Mas então voltemos aos cilicios, aos jejuns, aos conventos, á inquisição, á idade media. Nego com toda a força das minhas convicções, nego com todos os insignificantes recursos da minha intelligencia que a immoralidade tão apregoada da sociedade franceza do seculo XVIII tenha nascido no palacio de Rambouillet; nego que a impiedade—não me deixa esta maldita palavra!—do tempo dos encyclopedistas, seja o resultado do amor pela philosophia. São absurdas taes supposições perante os principios, são illegitimas perante os factos, são calumniosas perante o meu pouquissimo conhecimento da historia.
Agora a questão magna do seu folhetim, a educação{103} da mulher. Sobre este ponto sinto dizer-lhe que nem comprehendo como o meu amigo, cujo bom senso e intelligencia eu tanto aprecio, não quer para a mulher a maxima instrucção, que dá em regra, a maxima elevação moral; não, para todas as mulheres, a instrucção professional de que precisa o medico, o jurisconsulto, o estadista, o engenheiro, o professor de universidade, mas esta instrucção geral, completa e solida, que dá aos espiritos a maxima amplitude de vistas, ao entendimento a maxima robustez, á alma a maxima grandeza moral, ao coração a maxima bondade, pela comprehensão do direito, pelo sentimento profundo do dever.
Quer o meu amigo para a mulher uma instrucção rosada e transparente como uma meditação suspirosa de Lamartine; não lhe quer ensinar da historia senão o sufficiente para que ella se não faça beata, pelo horror aos seus similhantes, ou Lucrecia Borgia, por imitação ou por amor aos envenenamentos; não lhe quer ensinar astronomia porque receia que ella ande pelos bailes a perguntar aos cavalheiros que a comprimentam ou ás amigas que a abraçam, qual seja n'esse momento a declinação austral do planeta Saturno ou em que phase está o quarto satellite de Jupiter! Eu, francamente, não lhe sei responder a isto. Se o meu amigo tivesse dito, clara e cruamente, que quer a mulher como nossa mãi Eva, ignorante como uma barroza de capucha de pardo, entendia-se; era um systema ou uma convicção, a que eu tributaria todos{104} os respeitos que me merecem as convicções sinceras; mas dizer-me que quer para a mulher uma certa meia instrucção, que não vi que désse nunca mais que petulancia, mau senso e bacharelice ás mulheres que a possuem, porque lhes excita a curiosidade sem lh'a satisfazer, porque as não deixa na completa ignorancia, que as obriga á modestia do silencio, nem lhes dá á instrucção regular que produz a sensatez, dizer isto é estar a fazer versos quando se trata de formular claramente um principio, e responder com a aria final da Traviata ao X de uma equação algebrica. Não posso pois acreditar na solidez das suas convicções sobre este ponto, e peço-lhe que, antes de me replicar, se me quizer dar tal prazer, leia o admiravel livro de Ernesto Legouvé—Histoire morale des femmes. Se elle o não convencer, eu perco as esperanças de o levar a fazer melhor juizo dos beneficios da instrucção e do espirito da mulher.
Creia-me
muito seu amigo,
Braganca, 7 de fevereiro de 1872.
Alexandre da Conceição.{105}
Meu bom amigo:
Estamos em plena sabbatina e, como em todas as sabbatinas escolares, abundam as palavras e escacêa o methodo, a deducção clara, e a argumentação logica. Escreve o meu amigo que eu li a sua primeira carta um pouco preoccupado, e eu com mais justa razão o poderia accusar de igual desleixo, o que é em si muito mais para sentir attenta a sua intimidade com as formulas mathematicas e os processos de calculo. Vejo-me portanto, obrigado a pôr nos seus verdadeiros termos esta conversa amigavel entre dous rapazes que se estimam. Os periodos que demoveram o meu amigo a quebrar o seu obstinado silencio de ha annos, foram estes:{106}
«O meu pesadelo foi a mathematica, ai! foi a mathematica, sim. O Garrett queixava-se d'um mathematico de Coimbra, o snr. Honorato, que foi causa d'elle se ficar poeta. E o mais é que o snr. Albuquerque, do lyceu, é um homem de intelligencia e d'estudo, duas qualidades que eu respeito e admiro em qualquer homem.
«Mas eu já tinha no corpo a peçonha da poesia; aborreceu-me o Serret, errei um problema, esmoreci, e fiquei como estava. Aconteceu que não pude ser mathematico, e que me deixei ficar litterato. Um mathematico de menos e um litterato de mais,—eis tudo o que aconteceu.
«Em razão d'esta minha inimizade com a mathematica, hei-de recommendar a minha filha, quando ella crescer, que tapete de boninas, e esconda entre plantas o quadrado da minha sepultura. Eu, que não vivi bem com a arithmetica, não quero que ella se vingue de mim, quando me seja impossivel sacudir a lousa com os funebres algarismos que para logo denunciam a milicia dos mortos.
«N'este horror á mathematica sou ainda discipulo de Camillo Castello-Branco que escrevia a Faustino Xavier de Novaes: «Teremos nós sepultura com lagea!? Conta com um cômorosinho de terra, e umas papoulas na primavera, e uma taboa preta com um numero branco. A arithmetica ha-de perseguir-me além da morte!»{107}
Na sua replica propoz-se o meu amigo demonstrar-me, para usar das suas mesmas palavras, que as chamadas sciencias exactas não eram tão destituidas de riquezas poeticas como eu apregoava e muita gente acredita, mormente a astronomia, sciencia que tem dado homens como Galileu, Newton e Laplace; que a mathematica «é uma atmosphera de verdade onde a alma humana respira a pleno peito o ar da vida»; e finalmente «que esta poesia da sciencia não era só accessivel aos espiritos iniciados n'ella», senão que tambem se lhe afigurava muito para ser entendida e afagada pelas mulheres.
Esta a summa da sua argumentação.
Respondi-lhe eu que a poesia das mathematicas estava de certo nas suas grandes syntheses, nas suas vastas concepções, e que o meu espirito não tinha chegado a este apogeu aonde só podem subir as intelligencias privilegiadas. Bem sabe o meu amigo que para se apreciar o panorama é preciso ascender ao viso da serra d'onde elle se descortina em todo o seu esplendor;—que Newton, Galileu e Laplace me queriam parecer ao mesmo tempo grandes poetas e grandes mathematicos; chegarem aonde os outros não vão era já prova mais que sufficiente de que para elles não havia bellezas ignoradas nos altos segredos da harmonia que rege o universo; disse-lhe outrosim que não negava nem discutia que a mathematica fosse um instrumento de verdade, o que não obstante tinham feito Hobbes, Castel, Buffon e outros, porque assumpto{108} era esse estranho ao meu proposito e competencia; que, finalmente, quanto a ser accessivel a poesia das sciencias exactas a todos os espiritos, se me afigurava que alguns havia que só a despeito d'uma repugnancia natural logravam metter pé nas mathematicas elementares, porque a isso os obrigavam os regulamentos academicos. Quanlo á competencia das mulheres para entenderem os phenomenos meteorologicos, as theorias cosmogonicas e os problemas intrincados da philosophia, respondi-lhe que não era minha opinião dar tamanha latitude á instrucção feminina. Já vê que não fui eu que puz esta questão accidental; foi o meu amigo que a estabeleceu tambem accidentalmente.
Deixemos porém isto para logo, que por enquanto vinha prejudicar a unidade das materias que me proponho tratar.
Insurreccionei-me, como sempre, contra o charlatanismo scientifico, que expunha as mathematicas elementares na linguagem hirsuta das cadeiras, na opinião de Garrett, que amontoava explicações confusas, citações nebulosas, o que produzia immediato desgosto no animo do estudante.
A clareza é a primeira condição para nos fazermos entender, e os mathematicos charlatães não a podem ter, porque elles mesmos não digeriram ainda os sobejos indigestos, forrageados sob a mesa olympica em que se banquetearam intellectualmente os primeiros homens da sciencia.{109}
Ora o meu amigo, depois de me observar que eu li a sua carta um pouco preoccupado, diz-me que «ha salvação possivel fóra da sua igreja, e que para divisar uma face á verdade não é absolutamente indispensavel saber dirigir um equatorial para a estrella 2151.ª da Popa do Navio.»
Isto e o que eu digo é simplesmente a mesma cousa; o Conceição está portanto commigo.
Se ha salvação possivel fóra da sua igreja, o mesmo é dizer que se póde ser grande litterato, grande estadista e grande politico sem se saber grande mathematica.
A verdade é a côrte das idéas, deixe-me dizer assim, o centro onde ellas se devem grupar ao serviço da intelligencia soberana. A familiaridade com qualquer methodo seguro deve ser indubitavelmente o caminho mais curto para chegar á verdade, e como o meu amigo observa que ha salvação possivel fóra da sua igreja, parece dar a entender que a mathematica não é o unico methodo seguro para conseguir tal fim. Não sei se é ou não, pela simples razão de não saber mathematica.
Por isso é que eu tinha dito: «Não nego nem discuto que a mathematica seja um instrumento de verdade,» e mais abaixo:
«Não combati o estudo da mathematica nem combato; cada um estuda o que quer ou o que póde. Peço vista ao meu folhetim que despertou a sua replica.{110} Não aconselhei tambem a leitura da mais edificante novella de preferencia ao mais arido compendio d'arithmetica. O que eu fiz foi penitenciar-me publicamente do meu desamor aos numeros e, como eu sou d'uma sinceridade rude, permitti-me dizer que dormiria mais descançado o somno da morte, se minha filha, em vez de assignalar a minha sepultura com uma lousa numerada, levasse frequentes vezes ao meu cómoro um ramo de flôres. Isto é o que meu amigo não póde nem deve discutir, apesar da sua vasta intelligencia, que eu aprecio na devida conta. É licito a cada um dizer como quer ser sepultado. O meu testamento, no que respeita a esta disposição, é publico.»
Como eu não posso affirmar a primazia da mathematica, assento de mim para mim que ella, em sua qualidade de sciencia, tende a demonstrar a verdade, quantitativa pelo menos, o que de certo é um exercicio de gymnastica intellectual que deve concorrer para o desenvolvimento do espirito. Mas do que eu não posso duvidar é de que as outras sciencias, como a psychologia, a physiologia e a logica, por exemplo, encerram verdades, e que conseguintemente devem tambem exercitar as faculdades intellectuaes. Ora o meu amigo desobriga-se de provar que a mathematica é a unica estrada que leva á Roma da verdade, dizendo que «ha salvação possivel fóra da sua igreja»; mais arraigado fico eu pois ao pensamento de que um homem póde ser grande sem a muleta da mathematica.{111} Não admira que os grandes mathematicos sejam ao mesmo tempo grandes poetas, porque quando a intelligencia attinge o maximo desenvolvimento possivel, está apta para abranger todos os conhecimentos humanos.
Se porém um limitado peculio mathematico não permitte attingir-se esse grau de desenvolvimento, nem pode ser compensado pelas mealhas respigadas em outros thesouros de sciencia, então é muito para duvidar-se do senso artistico do individuo. Se ha «mathematicos seccos de espirito» é que tão pouco se exercitaram n'esse ramo de conhecimentos, que não chegaram á perfectibilidade intellectual relativa ou porque a sua intelligencia d'elles é pequena, rachitica, tacanha, e assimila pouco, não podendo digerir a variedade de conhecimentos pela sua mesma incapacidade natural. Esses taes trabalham com os elementos creados pelos grandes genios, contentam-se com dar alguns passos nas estradas infinitas que elles exploraram e param de affrontados de cansaço e de inepcia porque a cabeça se lhes nega a ir mais longe.
É facto averiguado pela critica physiologica que a intelligencia varia d'homem para homem segundo as mesmas condições physicas do cerebro.
Ora os espiritos privilegiados, que chegaram a ser grandes mathematicos, nasceram predestinados para as conquistas do pensamento, não ha difficuldade que os sustenha, barreira que os inquiete; são como os Alexandre Magno e os Napoleão que não recuam diante{112} da metralha inimiga e vôam no corcel impaciente até que a morte lhes arrefeça o sangue nas vêas. Da theoria dos mathematicos-artistas e dos mathematicos-executantes deduz o meu amigo o seguinte argumento:
«Ha mathematicos seccos de espirito, estereis de imaginação e baldos de todo o senso artistico, logo foi a mathematica que os fez mirrhados e massadores. Se ha grandes mathematicos com imaginação e sentimento, esses são espiritos por tal fórma privilegiados que resistiram ás influencias esterilisadoras do numero e do caloulo.»
Esta maneira de deduzir é que a mim me quer parecer extremamente sophistica. Então o meu amigo acha que se póde sujeitar a influencias materiaes, puramente externas, a intelligencia humana? Ou quer então medil-a pela mesma bitola em todos os homens? Se apenas houvesse um só grau de desenvolvimento intellectual, não teriam hoje menção especial os Newton, os Galileu e os Laplace.
O conhecidissimo Fetis, o maior sabio da musica moderna, venceu pela sua rara intuição todas as difficuldades e devassou os mais reconditos segredos da arte dando ao mundo o Tractado da harmonia[6] um verdadeiro{113} monumento que não poderia ser escripto por qualquer executante secundario da orchestra de S. João.
E porque não poderia? Segundo as suas conclusões, porque a musica os «fez mirrhados e massadores.» Victor Hugo escreveu uma ode magnifica aos quinze annos; logo, ainda segundo as suas conclusões, foi porque resistiu ás influencias esterilisadoras da poetica. Não sophisme, meu amigo; bem sabe que ha aptidões excepcionaes e especiaes, que os Newton e os Victor Hugo são grandes porque não são vulgares.
Agora ha certa affinidade em determinadas sciencias, que o mesmo é ter aptidão natural para umas e para outras, porque em verdade as podemos considerar irmãs gemeas.
Acontece isto, como sabe, com a mathematica e com a physica, com a geographia e com a historia. Todavia esta affinidade não se dá a meu vêr entre a{114} mathematica e a poesia, porque, com quanto mirem ambas á verdade, visto que ambas teem por fim o bello, uma caminha a elle pela sensibilidade, pela imaginação, e a outra pela intelligencia, pela razão. É preciso ser descommunalmente grande, excepcionalmente organisado, para as abranger a ambas: Diz o meu amigo na sua ultima carta:
«Parece-me, pois, senão demonstrado, pelo menos não destruido pela sua argumentação, que, em principio, o estudo das mathematicas não faz nem póde fazer mal algum ao gosto litterario ou á aptidão poetica.»
E na primeira dizia que dessem á França mais arithmetica e menos versos, e que Sedan seria impossivel. Aqui ha contradicção. Então foram os versos que mataram o calculo,—foram as demasias do coração que allucinaram a cabeça. Portanto uma cousa e outra são incompativeis.
Tambem na sua primeira carta dizia o meu amigo que devêra a sua reprovação em mathematica ás influencias nocivas da poesia, e que só combatendo pertinazmente essas influencias conseguira familiarisar-se com os numeros. Isto corrobora ainda o meu argumento.
A mathematica dilata a razão, como a poesia dilata o coração. Uma vai após a razão, a outra após a sensibilidade, e tanto isto é verdade, que os grandes{115} litteratos são achacados ás irritações nervosas, ao genus irritabile vatum, como diziam os antigos. O melhor poeta será o que sentir melhor; o maior mathematico será o que calcular melhor. Portanto, é indispensavel uma organisação especialissima para ser tamanho n'uma como na outra. Lopes de Mendonça que tentou passar das amenidades da litteratura para o estudo pesado da economia politica, da administração, de tudo o que era adverso á sua inclinação natural, acabou por se perder para tudo, agonisando longo tempo no carcere da loucura.
A nossa conversa fica n'isto: Não nego que a mathematica forneça processos seguros para a percepção da verdade, nem o meu amigo affirma que só pela mathematica se chegue á verdade, o que é o mesmo que dizer que sem se ser forte em mathematica, se póde ser grande em qualquer outra cousa,—em litteratura por exemplo. Faço entre os mathematicos, como entre todas as sciencias e artes, a distincção natural que offerecem as intelligencias. Opino que a heterogeneidade dos meios de que se servem a mathematica e a poesia produz entre ellas um certo antagonismo natural de modalidade, como se dá por exemplo entre as aves e os peixes cujo fim commum é a vida, com quanto umas vivam no ar e outros na agua; e o meu amigo corrobora esta opinião mostrando que a poesia no seu proprio espirito só cedeu campo á mathematica, depois que a expulsou a ella, a poesia, e que a França não attingiu o fim que devia attingir, porque empregou{116} o meio-poesia, em vez de empregar o meio-mathematica.
Vamos agora á que o meu amigo chama magna questão da educação da mulher, e antes de mais nada permitta-me que rebata a sua phrase «responder com a aria da Traviata ao X de uma equação algebrica.» Isto ou é gracioso ou serio. Se é gracioso, é improprio d'uma questão de doutrina, e se é serio, colloca-se o meu amigo na posição de não poder continuar uma discussão com um contendor que larga a cantar á desgarrada quando o meu amigo lhe está expondo argumentos, e corre além d'isso o risco de se contradizer porque não se concebe como o Conceição, acreditando que eu estudo, suppõe que eu possa cantarolar quando o meu amigo raciocina.
Eu chamo impiedade, no nosso caso, ao desprezo pela religião e portanto á incredulidade religiosa. Ora o seculo XVIII instruiu de mais a mulher, roubou-lhe a meu vêr a timidez que lhe é natural, e portanto a candura que a caracterisa. Roselli de Lorgues trata bem esta questão no Jesus Christo perante o seculo. Na minha opinião a mulher deve ter a instrucção da preceptora, não a erudição de uma academia. Já vê que não quero a mulher ignorante mas que tambem a não quero sabia.
O Legouvé, cuja leitura me recommenda, já era meu conhecido,—estava na minha estante.
Acho a Histoire morale des femmes um bonito livro, mas não um livro irrespondivel, irrefutavel.{117}
Vejamos o capitulo Educação que friza ao nosso caso, e permitta-me que lhe riposte o golpe com as suas mesmas armas.
Cita Legouvé o caso d'um rapaz e d'uma rapariga que estavam aprendendo astronomia. Elle immovel, concentrado, meditativo. Ella exaltada, enthusiasmada, em extasi. Isto que prova? Que ella sentia mais, o que não é o mesmo que comprehender melhor.
N'outro relanço diz Legouvé: «Ser esposa e mãi é simplesmente dirigir um jantar, governar os criados, velar pelo bem-estar material e pela saude de todos, que sei eu, é simplesmente amar, orar, consolar? Não! É tudo isso; mas é mais ainda; é guiar e educar, por consequencia é saber.» Ora guiar e educar é saber, mas saber astronomia não é guiar e educar. Dando-se tão lata instrucção á mulher, occasiona-se um desequilibrio na familia, desapparece um dos elementos primordiaes,—o pai. Ha um excesso de intelligencia, mas ha uma diminuição de sensibilidade, porque a mulher usurpou as funcções educativas do esposo.
Tinha muito que lhe dizer, mas nós tratamos tantos pontos ao mesmo tempo, que é impossivel continuarmos assim.
Resta-me dizer-lhe como eu explico o desamor da sociedade pela poesia.
A Europa está n'uma verdadeira época de transição. Tudo é fluctuante, incerto. Não tarda, segundo penso, uma evolução geral, que se presente através{118} dos acontecimentos presentes. A sociedade está em ebullição e por conseguinte falta de instrucção; a litteratura resente-se d'este estado geral, e por isso produz pouco e mal.
Ha seculo e meio que estamos a traduzir, disse-o Garrett. Temos perdido os nossos grandes homens, uns porque morreram, outros porque se retiraram da arena, e nem a sociedade lê, porque não entende, nem a poesia canta, porque não tem voz.
O que se dá entre nós esta-se dando actualmente em França onde o theatro vai na extrema decadencia como em Portugal, e onde os ultimos livros são apenas inspirados pelos ultimos acontecimentos da sociedade franceza. Sedan parece-me que não é um facto sem proximas consequencias europêas. A litteratura e a politica estão n'uma indolencia esterilisadora, e isto assim não póde continuar.
A respeito de Portugal, escrevia Lopes de Mendonça: «A nossa decadencia litteraria retrata-se com a mais severa exactidão nos factos da nossa historia politica.» O mesmo é em todos os outros paizes.
Estas evoluções são fataes em todos os povos. Os grandes e os pequenos corpos não podem subsistir sem a renovação incessante da materia. As nações são corpos collectivos, e estão sujeitas a esta lei de renovação perpetua. A poesia está defecada porque respira no meio d'uma sociedade igualmente defecada;—d'aqui o queixarem-se uma da outra. Isto é o que me parece.{119}
Deixe-me,—e já me ia esquecendo,—levantar uma phrase sua a respeito de Chateaubriand, o qual «se esqueceu de metrificar o Genio do Christianismo, unica qualidade que falta ao livro para poder ser recitado ao piano.»
Eu não esperava isto de si, meu caro Conceição. O Genio do Christianismo afigura-se-me um livro pensado, formoso e concludente.
Guizot escreveu algures palavras de respeito ao author e ao livro; Lopes de Mendonça tambem, e Garrett escreveu simplesmente no Tractado da educação: «Mr. de Chateaubriand diz em sua obra immortal do Genie du Christianisme, etc.»
O meu amigo dir-me-ha agora se Guizot, Garrett e Lopes de Mendonça são uns futeis.
Visto que me não permitte que publicamente confesse que tenho muito a aprender da sua intelligencia, consinta ao menos que me assigne
seu admirador,
Porto, 20 de fevereiro de 1872.
Alberto Pimentel.{120}
[6] Nós vêmos, por exemplo, um musico mediocre produzir um effeito mediocre com um excellente instrumento, e pelo contrario um excellente musico produzir um admiravel effeito com um instrumento mediocre. Aqui o genio não se póde medir pelo instrumento material. Vêmos as lesões do instrumento compensadas pelo genio do executante, tal instrumento doente e maltratado tornar-se uma origem de maravilhosa emoção nas mãos d'um artista arroubado e sublime. Vêmos um Paganini obter sobre a corda unica d'um violino effeitos que um artista vulgar procuraria em vão n'um instrumento completo, ainda que fosse obra do mais habil fabricante; vêmos Duprez sem vos sobrepujar pela alma todos os seus successores. Em todos estes factos, é indubitavel que o genio não se mede, como ha pouco vimos, pelo valor e integridade do instrumento de que se serve.»
PAULO JANET—Le cerveau et la pensée.
O snr. Alexandre Herculano escreveu tambem em nota ao Eurico:
«Se a arte fôra facil para todos os que tentam possuil-a, não nos faltariam artistas!»
{121}
Ill.mo amigo.
Este nosso palestrear leva geitos de não terminar este anno, e estamos apenas em principios de março. Em cada folhetim seu surgem a par da primitiva questão, que me traz aqui representando o papel de cavalleiro da triste figura, outras questões qual d'ellas mais grave e mais complicada. Vamos mais uma vez á primeira questão, a vêr se conseguimos entender-nos no meio do estrondo d'estes exercicios de polvora secca.
É ou não verdade que o Pimentel, no periodo que deu origem a esta amigavel correspondencia e que vem transcripto no seu ultimo folhetim, revela manifestamente a opinião de que o estudo das mathematicas é inimigo inconciliavel da aptidão poetica, pois que{122} muitas das nossas melhores reputações litterarias, como Garrett, Camillo Castello-Branco, etc., mostraram com o seu muito amor ás letras e ás musas horror igual pelos numeros e pela algebra? Creio que é verdade, e esta opinião já o meu amigo concordou que não é segura, pois que me diz na sua ultima carta:
«Não admira que os grandes mathematicos sejam ao mesmo tempo grandes poetas, porque quando a intelligencia attinge o maximo grau de desenvolvimento, está apta para abranger todos os conhecimentos humanos.»
Confessa o meu amigo pois que pelo estudo das mathematicas se póde attingir o maximo grau de desenvolvimento intellectual—o que não implica que esse grau de desenvolvimento se não possa attingir com outra qualquer ordem de estudos—e confessa mais que uma intelligencia chegada a essas luminosas alturas está apta para a comprehensão de todas as verdades scientificas, litterarias e artisticas. Ora é isto exactamente o que eu me tinha proposto demonstrar-lhe desde todo o começo, pois que se o estudo das mathematicas robustece e eleva a intelligencia, e o maximo grau de desenvolvimento intellectual não é incompativel com o desenvolvimento da aptidão poetica, é claro que, em principio—que, como todos os principios, tem as suas excepções—o estudo das mathematicas não faz nem póde fazer mal algum ao gosto{123} litterario ou á inspiração artistica. Permitta-me pois dizer-lhe que não sou eu que estou de accordo comsigo, mas que é o Pimentel que se pôz de accordo commigo, não pela força dos meus argumentos, que são d'uma debilidade lastimosa, mas pelo esplendor proprio da verdade, na qual eu o convidei a attentar.
Depois d'isto será desnecessario dizer-lhe que eu não chamo aptidão poetica ao geito para fazer versos. Tomo a palavra poesia na sua accepção mais ampla e mais elevada, na altura em que o meu amigo a comprehende e a cultiva. Que o estudo das mathematicas seja avesso á poesia pequenina, lymphatica, entanguida e constitucional que por ahi nos ministram quotidianamente, não serei eu que o duvide, que com as mathematicas me lavei da ridicula monomania de fazer versos ao palôr da lua, ás brisas, á alvura dos lirios, á modestia das violetas e a outras especies similhantemente insipidas; mas que o seja a poesia digna de tal nome, a este lyrismo interior, a este santo enthusiasmo que produz nas almas a sublime loucura do genio, não creio, nem o meu amigo o póde crêr tambem, porque a poesia assim comprehendida é a manifestação da intelligencia no seu estado de graça.
Esta questão por conseguinte, em que eu ganhei os seus folhetins para me compensarem do descredito que me devem ter acarretado os meus, levantada a apparente contradicção que o meu amigo notou nas minhas idéas sobre este assumpto, termina aqui, porque{124} isto vai tomando geitos d'uns dize tu direi eu interminaveis.
Vou pois responder á contradicção que me aponta, e passar a conversar comsigo sobre uns outros pontos do seu folhetim.
Diz o meu amigo que sustentando eu que os estudos mathematicos não são contrarios ao desenvolvimento das faculdades poeticas e do gosto litterario, estou em opposição commigo mesmo quando avanço que se dessem á França mais arithmetica e menos versos Sedan seria impossivel.
Crivei este periodo umas poucas de vezes e, á parte o joio dos meus defeitos grammaticaes—com que já me não afflijo porque estou calejado no peccado—não achei cousa que se parecesse com uma contradicção.
Eu accuso os francezes de futeis; accuso-os de tratarem as questões mais serias com a leviandade que lhes é propria, de fazerem romances quando se trata de escrever historia, de recitarem versos quando se trata de discutir sciencia, de sonharem theorias de governação platonica quando se trata de assentar principios de democracia pratica, de orarem ás turbas em estylo academico e repolhudo quando se trata de pegar em armas e defender a patria.
Foi isto o que eu quiz dizer e que o meu amigo não podia deixar de entender assim.
Que contradicção ha entre isto e a minha these de que o estudo das mathematicas não póde ser prejudicial á aptidão poetica?{125}
Póde acaso entender-se que eu quiz apresentar os francezes como eminentemente aptos para a poesia, e ao mesmo tempo e por isso mesmo rebeldes ao senso pratico e á comprehensão das questões positivas?
Creio que não, porque sendo a litteratura, como não podia deixar de ser, o espelho onde se reflecte em toda a sua verdade o genio d'um povo n'uma dada época, um povo futil ha-de ter uma litteratura futil, e é o que se está vendo em França actualmente, e o que se tem visto sempre e em toda a parte em identicas circumstancias: á falta de tino pratico, de seriedade de espirito, de robustez d'alma e de convicções corresponde o abaixamento litterario filho d'essa depressão de espirito e de caracter.
Menos contradictorio com as minhas opiniões actuaes é o facto que me aponta de eu ter trocado a lyra ferrugenta das minhas Alvoradas pelas contemplações astronomicas; já acima lhe disse que foi com as mathematicas que eu me penitenciei do peccado mofino da poesia piegas, e eu nunca dei outra.
Surprendeu-me este periodo do seu ultimo folhetim:
«É facto averiguado pela critica physiologica que a intelligencia varia de homem para homem segundo as mesmas condições physicas do cerebro.»
Se não se offende peço licenca para lhe dizer{126} que eu estou na innocente persuasão de que a physiologia ainda não chegou a averiguar um facto tão importante, a não ser alguma physiologia official ad usum delplini.
Acredito mais que a physiologia em questões de analyse organica, quantitativa e qualitativa, está ainda muito áquem das suas elevadissimas aspirações, e que o ponto que o meu amigo diz averiguado me parece sufficientemente duvidoso para me aconselhar a prudente resolução de ter para com elle uma espectativa benevolente, como se diz em S. Bento.
Isto porém é uma questão incidente, que eu não posso nem sei discutir. Adiante.
Apesar de ter o Legouvé na sua estante, apesar das minhas amigaveis reclamações sobre este ponto, insiste o meu amigo em sustentar que a educação litteraria completa faz mal á mulher e acrescenta:
«Dando-se tão lata instrucção á mulher occasiona-se um desequilibrio na familia, desapparece um dos elementos primordiaes—o pai. Ha um excesso de intelligencia, mas ha uma diminuição de sensibilidade, porque a mulher usurpou as funcções educativas do esposo.»
O meu amigo crê que ha actualmente equilibrio na familia? Mas que qualidade de equilibrio, permanente, estavel ou instavel, e permitta-me, por graça, a caturrice da distincção mathematica? Mas como quer{127} que haja equilibrio se as duas forças que solicitam a familia são desigualissimas e incidentes?... Como ha-de haver equilibrio se o homem, o esposo vive em pleno seculo XIX e a mulher em plena idade media?... Que vê o meu amigo na familia moderna em geral, e não n'esta ou n'aquella familia especial que é honrosa excepção á regra? Marido e mulher são duas creaturas que se não conhecem: o marido trabalha, estuda, pensa, lucta, é funccionario, é politico, é deputado, é escriptor, é poeta, é homem de sciencia; a mulher não sabe em que elle trabalha, não conhece o que elle estuda, não comprehende o que elle pensa, ignora-lhe as ambições, não o coadjuva nas luctas, não o estimula, não o consola, não o anima, por que não póde, por que não sabe, ou melhor, por que nós lhe não damos a força, por que nós lhe não damos educação. O casamento actualmente, em geral, não é a união de dous individuos, de duas forças, de duas almas para a constituição da familia, esta instituição verdadeiramente divina, por que é sublimemente humana, é apenas a juncção de dous corpos, cujas almas ou se desconhecem ou se repellem. D'ahi a desordem ou a indifferença, tomando-se esta muitas vezes por felicidade. D'ahi a crescente desmoralisação dos costumes privados, o celibato commodo e prudente que tem por origem o egoismo; d'ahi o desregramento das ambições politicas e argentarias, como compensação á esterilidade das ambições domesticas legitimas.
Vive-se na rua, por que a casa, o lar só serve{128} para lá ir comer ou dormir, quando se não dorme e come pelas orgias. A mulher não é uma companheira, é um camarada militar, uma creatura que nos escova o fato, que nos arruma o toucador e que nos põe em ordem a mesa do trabalho. D'ahi estes ares ridiculamente protectores que nós nos permittimos com as mulheres; d'ahi estes compadecidos modos cathedraticos com que nós lhes fallamos em letras, em sciencia, em artes, em politica; d'ahi esta nossa insolente superioridade intellectual ganha a custa do isolamento a que as votamos, da ignorancia a que as condemnamos; d'ahi este estado social violento, hypocrita, convencional e esteril em que nos arrastamos sem convicções, sem dignidade, sem enthusiasmo, por que nos vêmos obrigados a estudar a sciencia pelo ganho, a arte pelo lucro, a litteratura por officio, a politica por vaidade; d'ahi esta burguezia de sentimentos, este plebeismo de educação que nos faz tributar uns respeitos hypocritas e convencionaes á mulher, quando a encontramos nos salões de baile, e que nos leva a apedrejal-a quando a encontramos pela rua.
A mulher actualmente ou vive annullada pela ignorancia, ou resignada com o despotismo das leis, ou em guerra aberta com a nossa autocracia conjugal.
Andamos aqui a escrever artigos do fundo sentimentaes e floridos a favor dos escravos do Brazil, e por que não havemos de pedir franca e logicamente a emancipação para a ametade do genero humano? Pois acham utopia ridicula a emancipação da mulher{129} e não acham grotesca a emancipação do escravo? Que maiores direitos tem o negro ignorante e brutalisado pelo chicote á instrucção, á igualdade social, do que a mulher? Utopia! Chamem-lhe utopia embora, mas tenham tambem a franqueza de chamar despotismo e brutalidade ao direito da força. Parece que temos medo do espirito feminino, parece que nos assusta a concorrencia do trabalho intellectual da mulher!...
Dizemo-nos liberaes, e fechamos as portas dos nossos parlamentos á opposição! Parece que nos dóe a consciencia!... Porque não ha-de a mulher collabolar comnosco na obra da civilisação?... Pois a ethnologia nota as profundas differenças de constituição do craneo que caracterisam as diversas raças de homens que povoam o universo, nota ao mesmo tempo a perfeita igualdade d'essa constituição entre o homem e a mulher, e nós, pedindo a brados a igualdade de direitos para todos os homens, sem distincção de raça, pedimos ao mesmo tempo que se neguem esses direitos á mulher porque abusa d'elles? Mas como é que a mulher abusa d'esses direitos, se nunca usou d'elles?... Quem disse que a mulher abusa d'esses direitos?... quem o sabe?... quem o demonstrou? Dil-o a historia?... sabe-o a philosophia?... demonstrou-o a sciencia? Pois démos sempre á mulher a ignorancia pôr dote, e gritamos que lhe faz mal a instrucção? E porque é que a instrucção faz mal á mulher e faz bem ao homem? A muita instrucção embota-lhe a sensibilidade, diz o meu amigo! Perigosa sensibilidade a que{130} prescinde da intelligencia; e é com effeito essa a sensibilidade feminina, sensibilidade desregrada, impetuosa, indomavel muitas vezes, que as martyrisa, que as adoenta, que as exalta, que as perde, porque sentir, na accepção cruamente physiologica do termo, é o unico modo de ser da sua vida interior, vida riquissima de aptidões, mas que nós lhe circumscrevemos aos estreitos limites do trabalho domestico quotidiano, vulgar e quasi mecanico.
A mulher muito instruida é perigosa, diz ainda o Pimentel, por que usurpa as funcções educativas do esposo. Diga-me em que paiz os pais, a não ser os muitos ricos ou os que tenham uma profissão muito especial, educam seus filhos. As funcções educativas do esposo!... Mas então que quer deixar á mulher, se até a esbulha do sublime encargo de primeira preceptora de seus filhos? Nós é que somos e temos sempre sido usurpadores de taes funcções. Eu creio muito pelo contrario que o principal trabalho destinado na familia e na sociedade á mulher é o trabalho da educação, e para educar é preciso saber, e para saber é preciso estudar e pensar, duas cousas que a sociedade prohibe á mulher actualmente.
É convicção minha, e n'isto como em quasi tudo estou com o meu estimavel Legouvé, que a sociedade não chega á solução satisfactoria d'um certo numero de problemas gigantes que assombram o mundo moderno, em quanto a mulher não collaborar com todas as forças de que é capaz na resolução d'essas questões.{131} Por exemplo: as questões de beneficencia, de instituições de caridade, de sociedades cooperativas e de previdencia, com as quaes se prende a magna questão do proletarismo e da miseria, só o concurso do espirito feminino as póde encaminhar para uma solução completa. Depois, e prendendo-se ainda com estas, vem a questão do ensino, em que a mulher póde e deve prestar grandissimos serviços. Depois ainda, ou talvez antes de todas estas, vem a questão religiosa, esta mole gigante que traz ahi a sociedade vergada sob o peso da hypocrisia, da duplicidade, da indifferença da tibieza de caracter, da frouxidão de convicções, do cynismo; esta sphynge esculpida na frente de todas as questões sociaes e para a qual não ha Edipo possivel emquanto a sociedade beber com o leite todos os preconceitos, todos os sonhos, todas as phantasias, todos os absurdos de que se nutre o espirito da mulher contemporanea.
Já vê a importancia que eu dou á educação da mulher; quero essa educação amplissima e tão completa quanto o requeira a aptidão especial que cada mulher revelar. Quero a sua emancipação intellectual, moral, civil e politica... e politica, creia n'isto, por que não sei recuar nem me assustam as consequencias legitimas de principios que considero verdadeiros, embora o mundo, e o meu amigo com o mundo, me taxem de utopista, de exaltado e de revolucionario.
Apresento-me bem a descoberto e francamente n'esta questão, para que o meu amigo ataque tambem{132} francamente os pontos que julgar vulneraveis. Espero-o com o respeito que me impõe a sua superioridade, mas com a coragem que me dão as minhas profundas convicções.
Vou terminar por hoje.
O Garrett, o Lopes de Mendonça e outra gente de cothurno disseram cousas muito boas é muito bonitas ácerca do Genio do Christianismo de Chateaubriand. Sei isso e pouco mais saberei do que isso; mas ou por ignorancia, ou por falta de gosto, ou por caturrice é certo que, apesar de todas essas authoridades, eu considero o Genio do Christianismo um bom livro apenas como producção meramente litteraria, e n'este caso tenho só a observar que o titulo me parece um pouco ambicioso. Como livro de historia porém, e elle tem pretenções a isso, permitta-me dizer-lhe que o julgo deploravel, e como livro de philosophia por que se quer fazer passar, acho-o simplesmente piegas e lamuriante, e olhe que não faço ao livro grande injustiça, creio eu. O meu amigo pensa porém d'outro modo, e eu não lhe quero mal por isso, comtanto que me creia sempre
seu amigo e admirador,
Bragança, 3 de março de 1872.
Alexandre da Conceição.{133}
Meu bom amigo:
Conservo-me impenitente.
Não me confesso convencido, nem siquer vencido, apesar do Conceição ter já começado a cantar-me piedosamente o De profundis.
Quero ainda enviar-lhe um grito de vida e rebellião da margem do imaginario sepulchro para o fundo da qual o meu amigo julgou arrojar-me com a sua argumentação um pouco sophistica, é certo, mas sempre habil e benevola. Não acabou esta amigavel pendencia pela morte d'um dos contendores, como vê; ella é que de per si mesma, como o meu amigo deu a entender com a sua phrase do dize tu, direi eu, se está contorcendo nos derradeiros paroxismos, porque realmente não tem vida para mais.
Deixe-me dizer-lhe pela ultima vez a minha opinião,{134} que se me afigura sempre a mesma. Supponho eu que me tenho conservado no terreno onde comecei a pugnar.
A mathematica é uma sciencia positiva, em que a razão caminha de demonstração em demonstração até chegar á verdade final,—a conclusão. Por conseguinte póde-se ter á conta de gymnastica intellectual, que, á força de evoluções trabalhosas, chega a descortinar ao espirito por ella cultivado as eminencias olympicas, defesas á vulgaridade chata.
A litteratura é caprichosa como a borboleta, adeja, volteia, sobe, desce, doudeja, vive da imaginação, por ella e só para ella, porque muitas vezes, poderia dizer quasi sempre, o ideal a que aspira é uma ficção, uma utopia, um ponto vago, emfim. É por isso que os grandes poetas, e os grandes artistas tambem, são uns doudos sublimes, que pensam umas chimeras côr de rosa que a multidão não entende; e é por isso que antes querem morrer abraçados ao seu ideal do que transigir com a realidade das cousas e dos homens. Ora o mathematico não phantasia, não devaneia, não sonha,—raciocina. Segue um methodo, um processo, um calculo. O poeta é livre, póde escolher voluntariamente o seu norte, póde amarar a gondola da sua imaginação por aparcellados pégos, como Byron, ou deixal-a deslisar mansamente pelos lagos serenos da Italia, como Lamartine.
Agora pegue d'uma alma poeta de vinte annos, essencialmente livre e essencialmente sonhadora, e em{135} vez de a educar em Homero, em Virgilio, em Dante, em Camões, em Garrett, metta-a no carcere do positivismo mathematico, a rações de Serrett ou quejandos, entre um compendio arido e uma lousa funebre. Não quer sujeitar-se, resiste, lucta, e o mais das vezes o que lhe acontece é renunciar á gloria d'um pergaminho academico para ficar em plena posse da sua liberdade intellectual. É como se transportassem subitamente um viajante, que vai atravessando uma campina florida, a uma charneca solitaria, coberta por um céo plumbeo. E resiste, e lucta este poeta de vinte annos porque nasceu fadado para outros destinos, e aborrece a mathematica, e detesta-a, porque uma voz intima lhe diz que a sua missão é cantar como os rouxinoes dos salgueiraes, viver devaneiando como elles, e morrer de cansaço modulando á porfia com o echo melodioso do seu ideal...
Note que eu fallo, e sempre fallei, dos que nascem predestinados para a gloria, dos grandes poetas e dos grandes mathematicos, porque um poeta mediocre e um mathematico igualmente mediocre fazem-se, conseguem fazer-se com o auxilio d'uma paciencia evangelica.
Disse eu e repito-o:
«Não admira que os grandes mathematicos sejam ao mesmo tempo grandes poetas, porque quando a intelligencia attinge o maximo grau de desenvolvimento, está apta para abranger todos os conhecimentos humanos.»{136}
Então um homem que tem uma intelligencia acima do vulgar, que atravessou uma longa educação scientifica, que sujeitou a razão a uma trabalhosa gymnastica intellectual, não estará mais habilitado para comprehender toda a casta de bellezas artisticas, do que um sugeito que não sabe analysar grammaticalmente uma oração? De certo que sim; isto é intuitivo a meu vêr. Ora o grande mathematico póde comprehender Homero, tel-o á cabeceira como Alexandre, mas o que não póde conseguir de certo, salva uma ou outra rarissima excepção, é escrever a Illiada, e ser Homero. Um grande poeta, Lamartine ou Byron, pouco importa, não comprehenderá melhor que outro qualquer homem a alma sublime de Herschell ou Newton, apesar de reconhecer comsigo mesmo que não nasceu para se nivelar com Newton ou Herschell? Tambem creio que sim; tambem creio que isto é intuitivo.
O meu amigo accusa os francezes de devaneiadores e por isso mesmo de pouco analyticos, de pouco mathematicos. Quer dizer, accusa-os de viverem para o amor e para a alegria, de amarem as flôres, os versos e as mulheres, e de não preverem as funestas consequencias, já realisadas, da ultima crise sociologica.
É tambem certo que quando a França dava ao mundo um grande mathematico, primeiro havia gerado uma duzia de grandes poetas. Porque é então? Porque isto mata aquillo, porque a mathematica, que é a razão, mata aquillo, a poesia, que é a verdadeira liberdade da phantasia e do coração.{137}
O meu amigo, que era mavioso poeta,—sinceramente lh'o digo,—teve de suffocar em si a chamma vivaz da inspiração com os gelados orvalhos das sciencias exactas. D'outro modo, teve de esmigalhar a sua alma, por amor aos cabellos brancos de seu pai, que lhe queria dar uma posição social, para poder regressar ao lar paterno com uma carta de bacharel em mathematica. A inspiração de que brotaram as Alvoradas era dôce, gentil e donairosa. Todavia o Conceição quiz abafal-a, apagar a chamma, desfolhar no altar da sua mocidade as flôres candidas e perfumadas da poesia. Teve de andar nos campos a medir terrenos, a rasgar estradas, a levantar plantas.
Tranquillisou a velhice de seu pai, e como elle já não podia receiar pelo destino do filho estremecido, e o meu amigo tivesse em horas de melancolia umas secretas saudades dos seus tempos de poeta, porque para isso nascera, esboçou no seu gabinete um quadro, cuja idéa é formosa, mas que não tem, a meu vêr, o colorido mimoso e delicado dos seus primeiros versos. Refiro-me ao seu poemeto—Abençoada esmola—e desculpe-me esta franqueza, que a nossa amizade authorisa de certo, e que eu tenho comsigo, porque sei que é franco, leal e cavalheiro.
Conhecia-se que o poeta se havia secularisado. Infelizmente era assim.
Do Alexandre da Congeição, o academico sempre apercebido para celebrar as grandes iniciativas e as grandes glorias, restava o poeta esmagado pela pressão{138} da mathematica. Creio que a sua propria consciencia lhe ha-de dizer isto mesmo.
Ah! meu amigo, como eu quizera vêr o seu espirito a espannejar-se ainda, livre, alado, inquieto, deixando vêr aqui e acolá a dôce melancolia das suas estrophes! Perdemol-o, confessa o meu amigo que se secularisou, e eu sinceramente sinto que tenha de sahir pela honra do seu convento mathematico para digladiar com o mais obscuro soldado das suas antigas fileiras.
Ponho aqui ponto para que isto não enfade mais o bom publico que nos escuta, e que por fim de contas não nos quer mal. Não é meu proposito, entenda-se, mostrar que o meu amigo vai succumbir a este golpe final. Eu conheço a qualidade das minhas armas, e os recursos da sua vasta intelligencia. Confesso-me não convencido nem siquer vencido, e sou eu mesmo que declaro ao publico que o meu amigo dispõe de meios que lhe permittem resistir á minha lastimavel dialectica.
Tratarei de passagem os demais pontos da sua terceira carta.
Quanto ás relaçõs physiologicas da intelligencia com o cerebro, julgo-me obrigado a transcrever, para me fazer comprehender melhor, estas palavras de Paulo Janet:[7]
«A experiencia nos ensina, é certo, que o cerebro entra por uma certa parte, por uma grandissima{139} parte no exercicio do pensamento; mas qual seja a causa unica e rigorosa medida, é o que não está demonstrado.» É a massa cerebral, a composição chimica, a electricidade, o phosphoro? Não está averiguado, tem razão, e a isso não era eu estranho.
Todavia era meu proposito referir-me ao que a experiencia nos mostra, e Paulo Janet corrobora, que o cerebro entra por muito no exercicio do pensamento.
Creio que a maxima parte da gente assim o havia de entender.
Adiante.
Com relação á educação da mulher sou a dizer-lhe que tenho certas convicções adquiridas no tranquillo silencio do meu gabinete, uma das quaes, e das não menos profundas, diz respeito ao assumpto que vou tratar. Posso estar em erro, mas por ora ainda não tenho razões para me demover. Quando tiver, confessarei a minha abjuração solemnemente. Se estou em erro, redunda apenas em detrimento meu, por isso que os homens que teem restricta obrigação de estudar pausadamente esta questão são os philosophos e os legisladores.
Ora eu nem quero ser uma nem outra cousa.
Na questão da educação da mulher aceito inteiramente as idéas do snr. D. Antonio da Costa no seu livro—A instrucção nacional. Permitta-me, pois, que me soccorra da respeitosa amizade que me liga a tão sympathico escriptor, e que me defenda com elle.
É preciso, é indispensavel, é urgente promover a{140} instrucção da mulher, que está em Portugal na proporção d'uma escóla para 6:000 habitantes, sendo que dos 146:000$000 réis votados para as escólas primarias, apenas 18 revertem em favor das creanças do sexo feminino.
Isto está d'accordo com o que eu expuz previamente, porque me lembro de dizer que se não queria a mulher sabia tambem não a queria ignorante.
Urge pois educar a mulher, porque nasceu para mãi, e da mãi é que brota a humanidade, da mãi é que deriva a felicidade social. Mas note-se, entenda-se bem, quero a mulher educada para as funcções pedagogicas que possa exercer na escóla ou no collegio, para as attribuições industriaes que precise desempenhar, para as occupações artisticas que lhe possam caber, e especialmente, e primeiro que tudo, para mãi, para directora, não só destinada a versar negocios de economia domestica, mas tambem para ser espelho na sociedade, divindade na familia,—para ser mãi e esposa.
Deverá defender-se e favorecer-se a absoluta emancipação da mulher?
Digo que não,—convictamente digo que não.
Eu quero que a familia se condense, se unifique, se levante, não desejo portanto roubar-lhe o unico meio de rehabilitação que ella tem,—a mulher. Não quero que a mulher se masculinise para a sociedade, porque não desejo desmembrar a familia.
«Dizeis—escreve o snr. D. Antonio da Costa,—que{141} a somma da intelligencia e das qualidades da mulher se acha actualmente perdida para ella e para a sociedade uma vez que lhe fecham as carreiras politicas e scientificas? Vêde que esta razão fundada na capacidade igual dos sexos, exigiria, para haver logica na vossa doutrina, que as funcções hoje especiaes da mulher, educação infantil, governo da casa, costurar e bordar, formação dos costumes publicos pela influencia domestica, devessem tambem pertencer ao homem, aliás seriamos nós as victimas da desigualdade cujo principio combateis.»
Que igualdade querem para a mulher? A igualdade politica e scientifica? Sou contra ella, resolutamente contra ella, pelas razões já expostas. Igualdade civil? Convenho, e conspiro contra a tutella oppressora que soffre a mulher quer seja casada ou viuva. Igualdade moral? Quem lhe disputa essa? que «é verdadeira, como diz Paulo Janet na Familia—é evidente, e condição essencial em uma familia completa e feliz.»
Isto é o que eu penso, a convicção que eu tenho adquirido n'uns estudos placidos a que me dou, porque eu estimo os livros serenos e crystallinos, e não se desvirtue a minha opinião, e não se diga que eu quero a mulher analphabeta e só apta para fiar ou coser.
Isto penso eu.
Mas para que discutil-o, Conceição?
Que o discutam philosophos e legisladores, que{142} façam luz no espirito publico, que demonstrem, que provem, que eu então irei após a verdade.
Para questão de tal magnitude não me julgo habilitado.
Poz o meu amigo em duvida as funcções educativas do esposo! Pois o pai não educa, não dirige a educação do filho! Sabe que eu não quero a mulher ignorante, mas por não a querer ignorante, não deixo de reconhecer que os pais são, como diz o Garrett no tractado Da Educação, «os mentores e educadores naturaes de seus filhos.» Plenamente concordo com Janet, quando expõe que «o pai esboça com firmeza a estatua do homem futuro, e a mãi retoca, aperfeiçoa e alinda-a.» Para isto cumpre não ser ignorante, mas não é indispensavel que seja sabia.
Aqui tem com franqueza as minhas opiniões. Estou firme n'ellas, e estarei sempre, até que os factos sociaes se encarreguem de mostrar-me o erro.
Agora deixe-me dizer-lhe que não tardam nada as andorinhas e que podemos intimidal-as com estes exercicios de polvora secca. Vão cantar os rouxinoes e eu, que mercê de Deus não tenho de resolver nenhuma operação arithmetica, folgava de poder ouvil-os por estas tardes de primavera em que o céo é azul e sereno. Combato mal, porque quando me tiram dos meus dilectos remansos vou saudoso de tão socegada obscuridade. No meu lar espera-se a primavera como uma festa, e o que é certo é que tenho descurado as flôres da minha janella por causa d'estes malditos{143} algarismos, que eu suppunha ter afugentado de vez, não obstante a honra que me deu o Conceição em descer até pelejar lealmente commigo.
Aperto-lhe cordealmente a mão.
Creia-me sempre
seu amigo e admirador,
Porto, 14 de março de 1872.
Alberto Pimentel.{144}
[7] La cerveau et la pensée.
{145}
A biographia é uma nova fórma dada á historia por Plutarcho.
Seguindo o methodo seguro da inducção, caminhamos da biographia para a synthese, do caracter individual para o caracter collectivo, do homem para a época. Não concordamos portanto com mr. Paul Albert[8] que vê n'esta evolução historica mais uma decadencia que um progresso.
A biographia é a historia do homem, quer dizer, tem de o estudar na dupla manifestação da sua actividade, e é por isso que ultimamente a critica e a historia não prescindem da alliança da physiologia com a psychologia. Por tal razão foi que o doutor Moreau, de Tours, estudou a Psychologia morbida nas suas relações com a historia; que Emilio Deschanel escreveu a Physiologia dos escriptores e dos artistas, e que recentemente{146} o doutor Laborde se entregou ás lucubrações medico-psychologicas que originaram o seu livro sobre Os homens e os actos da insurreição de Paris perante a psychologia morbida.
Esboçando na tela do folhetim alguns perfis historicos, tivemos sempre em vista a noção de temperamento, ou antes, e melhor, o dualismo de Platão, que definiu o homem na expressão «d'uma alma que se serve d'um corpo», e porque, segundo uma expressão feliz de Emilio Deschanel, para conhecer o fructo é preciso conhecer a arvore.
Posto isto como exordio já demasiadamente longo, fallemos d'um grande genio que enche de esplendor a historia da musica, d'um compositor nervoso, hypocondriaco, melancolico,—Beethoven.
Antes de escrevermos do artista, saudemos a arte, esta linguagem sublime, que parece revelar-nos o infinito, d'origem divina, porque se nos remontarmos ao pantheismo oriental teremos de vêr a musica considerada como imperfeita imitação da harmonia que produzem os movimentos dos corpos celestes.
Na tradição asiatica, devemos procurar a origem da musica na organisação do universo. As sete nymphas Swaras são a personificação das sete notas. Saraswati, filha, mulher e irmã de Brahma, representa a primeira nota da escala dos sons[9].{147}
Pythagoras acreditava na harmonia como alma do mundo, e era d'esta grande alma collectiva que dimanava a substancia harmonica das almas particulares.
Seja o que fôr a musica, venha ella do céo ou da terra, dos astros ou dos homens, bemdita seja, que nos leva após si a umas paragens ethereas de um paraiso desconhecido. Abençoados sejaes, sacerdotes do bello, que lançaes para dentro da nossa alma a esmola valiosa da harmonia.
Entre os maximos sacerdotes da arte divina, avulta o perfil venerando de Beethoven.
Este nome é per si só uma epopêa.
Tem a grandeza do mar, e a irradiação do sol.
Em torno do berço d'este homem sublime quer a nossa imaginação que volitassem as particulas sonoras, exhaladas da grande alma harmonica da terra, na philosophia devaneadora de Pythagoras, e que perpassando em revoltos enxames no espirito do futuro maestro o afinassem pelas mais dôces harmonias da musica universal e pelas mais dôces gravitações dos astros melodiosos.
Todavia a historia é que não admitte hypotheses romanescas e devaneios poeticos; e á historia pertence o testemunho de Baden, companheiro da infancia de Beethoven, pelo qual sabemos que os primeiros rudimentos de musica os aprendera elle com violencia, e que só abancava ao piano quando a voz paterna trovejava ameaçadora.{148}
O grande genio de Beethoven faz lembrar o oceano velado pela neblina.
É um abysmo que se não póde abranger com a vista através do vaporoso involucro. Mas ao primeiro raio de sol vôa desfeito o véo, e arqueiam-se as vagas, e doudejam as espumas, e scintillam as escamas crystallinas, e tudo são fremitos, movimentos, prodigios,—e apparece finalmente o mar, pregoando Deus e assombrando os homens.
O véo que resguardava o genio colossal de Beethoven voou todavia em fragmentos, volvidos os primeiros annos da vida, como a neblina se rarefaz ao primeiro raio da aurora.
Muito moço ainda, improvisou em Colonia, diante do compositor Junker, e em Vienna, na presença de Mozart. Beethoven executou brilhantemente, o que todavia não impediu Mozart de suppôr que elle reproduzia de memoria. Então Beethoven pediu um thema, e devaneiou ao piano longo tempo. Este prodigio arrancou a Mozart uma prophecia: «Escutai-o com attenção; dentro em pouco ouvireis fallar d'elle.»
Luctar é o condão do genio; o mar creou-o Deus para a ebullição eterna.
Por mais d'uma vez se bateu Beethoven ao piano, em duello artistico, com o compositor Woelff.
Essas noites de calorosa porfia foram ruidosas e agitadas, porque o partido de Beethoven era capitaneado pelo principe de Lichnosky, e o de Woelff presidido pelo barão Raymundo de Wezslar. Uma deliciosa{149} villa do barão, em Grunberg, era o theatro d'estas luctas homericas, onde o genio fecundo de Beethoven revelava uma prodigiosa faculdade de concepção, e uma imaginação estupenda, que tinha alguma cousa das noites sombrias e mysteriosas das florestas.
Não obstante, o demonio da melancolia havia empolgado o espirito de Beethoven desde os primeiros annos.
Era uma consequencia do seu temperamento, aggravado pelos primeiros signaes de surdez, em plena mocidade.
Aos vinte e nove annos escrevia Beethoven a um amigo da adolescencia, lamentando-se amargamente da perda imminente do ouvido, e pedindo-lhe que não transmittisse a confidencia a ninguem, nem mesmo a Leonor de Breuning, outra companheira da adolescencia, que fôra de certo a mulher amada de toda a vida. A unica opera que Beethoven escreveu, movido por instancias de amigos, tomou o nome de Leonora, sendo que depois de reprovada pelo publico de Vienna reappareceu em scena com a denominação de Fidelio.
Gustave Bertrand, no seu livro Les nationalités musicales, diz que a opera fôra cantada n'uma época politicamente calamitosa, que o libreto era deploravel, e que o desempenho orçára pelo libreto, com quanto os mesmos partidarios de Beethoven, reunidos em congresso, lamentassem ter de accusar o maestro de certa culpabilidade no desastre. Quatro annos depois voltou{150} á scena a opera, mudado o nome, e foi igualmente rejeitada.
Então começou a cerrar-se uma noite profundissima na alma de Beethoven. Minguado de recursos, ameaçado de completa surdez, agitado pelas nevroses continuas do seu temperamento, escondendo talvez no peito uma dôr mais que todas dilacerante, porque Leonor de Breuning havia desposado Wegeler, o amigo do maestro, a quem primeiro fizera a confidencia das suas apprehensões, viu-se Beethoven compellido a aceitar o lugar de mestre de capella do rei de Westphalia, Jeronymo Napoleão. Quasi ao mesmo tempo, o archiduque Rodolpho, o principe Lobkowitz e o conde de Kinsky resolveram obrigal-o por um contracto, mediante a renda annual de quatro mil florins, a não sahir do territorio austriaco. Beethoven, grato a esta consideração já então muito para estranhar, e hoje impossivel, fixou residencia em Vienna.
Era em Baden, a cinco leguas da capital, que elle vivia a maior parte do anno.
Cortadas as suas relações com o mundo exterior, doente, melancolico, quasi surdo, concentrava-se todo nos seus arroubos artisticos. Passeava pelos campos, horas seguidas, e era, passeando, que elle compunha, a despeito da opinião geral de que a posição perpendicular é a que menos favorece os actos do espirito, e a mais adversa á inspiração.
Vem de geito arrancar, n'este ponto, uma pagina{151} dos Grotesques de la musique, de Hector Berlioz, porque frisa ao nosso caso:
«A posição horisontal é evidentemente a mais favoravel ao trabalho da intelligencia, á expansão do espirito, e isso concebe-se. O nosso cerebro é a caldeira onde se formam os vapores conhecidos pelo nome de idéas, que fazem marchar e muitas vezes desencarrilhar a trem das cousas humanas; o sangue e a agua ebulliente que ahi se transforma em vapor; todos os physiologistas vol-o dirão. Quanto mais este liquido affluir facilmente á caldeira, tanto mais, e necessariamente, deve produzir idéas ou vapores.
«Voltaire doente, e por conseguinte, deitado quando escreveu a Candida, gozava de vigorosa saude quando poz mão na Henrieida. Bernardin de Saint-Pierre trouxe das Indias, segundo dizem, uma rede onde gostava de se deitar para compôr; foi onde elle pensou as suas deliciosas obras primas, Paul et Virginie e a Chauniére de la Nature. Quando em seguida compoz as Harmonies de la Nature e quiz explicar o phenomeno das mares pela liquidação dos gelos polares, já a rede estava velha, e não pôde servir-se d'ella.».
Quando o povo de Baden ou de Vienna via passar Beethoven, rapido como a sombra, mas triste, melancolico, concentrado, sentia-se tornado de subito respeito, e crianças, velhos e mulheres não o deixavam de saudar com estas palavras: «Alli vai Beethoven!» saudação que o maestro não podia ouvir, mas que era um preito espontaneo de admiração.{152}
Como n'essas longas horas de excursão campestre ou urbana redemoinhariam na alma de Beethoven as recordações dolorosas de melhores tempos! A imagem de Leonor, da querida confidente dos primeiros annos, devia de apparecer-lhe desenhada no horisonte longiquo do passado, colorida com aquellas meias tintas que a saudade sabe dar. Ter-se-iam amado? A menor observação dos factos parece demonstral-o. D'uma carta escripta a Leonor de Breuning em novembro de 1793 claramente se deprehende que foram dissenções de familia que separaram para o resto da vida os dous amigos de outr'ora. Todavia a distancia não pôde endurecer o coração, porque, na mesma carta, dizia Beethoven em tom de meio segredo:
«Para terminar, arrisco-me a fazer um pedido: julgar-me-ia feliz, se possuisse um collete de pêllo de coelho, costurado pelas vossas mãos, minha cara amiga. Perdoai ao vosso amigo este pedido indiscreto. Culpa é do muito valor que eu ligo a tudo o que vos sahe das mãos, e depois tambem posso dizer que ha no fundo de tudo isso uma pequena vaidade: é poder dizer que possuo alguma cousa da melhor e da mais estimavel filha de Bonn.
Conservo ainda o primeiro collete que tivestes a bondade de me dar, em Bonn; mas a moda proscreveu-o e agora só me resta conserval-o n'um guarda-roupa, como um objecto que me é muito caro porque vem de vós...»
Ah! o coração namorado palpita ainda sob estas{153} formulas respeitosas da epistolographia. É manifesto. O collete, costurado pelas mãos de Leonor, queria-o Beethoven para que o peito lhe estivesse hora a hora segredando umas recordações sempre vivas.
Foi satisfeito o pedido? Foi e não foi. Em vez d'um collete, recebeu Beethoven uma gravata, o que não é menos significativo, porque uma gravata, dada por uma mulher, é o mesmo que dizer-nos ella: «Com este delicado esparto estrangula tu todas as palavras que não sejam para mim.»
Beethoven agradeceu epistolarmente: «A bella gravata, obra de vossas mãos, causou-me a mais viva surpreza. Despertou em mim um sentimento bem doloroso, apesar do mimo do presente: fez-me renascer a recordação do tempo passado, e a vergonha, que me cabe, ao vêr como sois generosa para commigo...»
Em 1806 o nome de Leonor é substituido pelo de Julieta, em tres cartas, das quaes se deprehende que o destino havia cavado um abysmo profundo entre as duas almas. As conveniencias, mais talvez que as conveniencias, as circumstancias, obrigaram Beethoven a lançar este véo transparente sobre a imagem de Leonor. O segredo desvenda-se, e a historia não póde duvidar.
Os ultimos annos da vida de Beethoven foram o declinar d'um nervoso, que sente accumularem-se as sombras da melancolia sobre a lampada interior, já bruxoleante.
De longe a longe descia um raio de sol aos carceres{154} d'aquella alma. Os nervos, fatigados de continuas descargas electricas, descançavam por momentos. N'essas raras intermittencias de paz, lia Homero, o seu poeta favorito, e as novellas de Walter Scott, o seu romancista dilecto.
Á surdez sobreveio a hydropesia, e Beethoven acamou durante quatro mezes, findos os quaes foi transportado ao sepulchro.
O catre onde agonisou cento e vinte dias realisou as angustias do leito de Procusto. A alma, mortalmente entenebrecida, gemia dentro do ergastulo dos nervos, cada vez mais excitados.
Uma atmosphera de melancolia enchia a camara, e as poucas palavras do maestro ressumbravam o fel do sarcasmo ou a lava do desespero. Nem o governo, nas suas espheras mais elevadas, escapava ás verberações de Beethoven. «Escrevei uma collecção de psalmos de penitencia,—dizia elle a Hummel—e dedicai-os á imperatriz.» Era ainda a Hummel que elle confidenciava entre afflicto e pensativo: «Sois feliz, porque não vos falta uma mulher que vele por vós. Mas eu, ai de mim, povero que sou!»
N'uma das poucas horas de tranquillidade, esboçou no papel a casa onde nascera Haydn; pendurou o desenho á beira do catre, e por mais de uma vez revelou que lhe era consolação estar contemplando as paredes dentro das quaes viera á luz do mundo um grande homem.
Dous dias antes de morrer, sentado no leito, apostrophava{155} a duas pessoas que acabavam de entrar no seu quarto: Plaudite, amici, comoedia finita est. Nas horas que lhe restaram de vida parece que não mais referveu nos seus labios a espuma da ironia. Assim partiu da terra, angustiada por um soffrimento inexplicavel, a grande aima do Goethe da musica, como lhe chama Deschanel. E é certo que os livros de Goethe e as partituras de Beethoven resumem o que ha de mais profundo no pensamento humano. São como os grandes lagos, que ora se anilam sob um céo transparente, ora se revolvem e entenebrecem agitados por mysteriosas correntes.
Perto de Schoenbrunn ha ainda dous carvalhos vetustos, entre os quaes Beethoven costumava sentar-se para descançar dos seus longos passeios, mas as frondes annosas, que deixam cahir uma sombra espessa sobre o pouso devoluto, não contam ás gerações os monologos do maestro, nem quantas vezes lhe ouviram ciciar nos labios o nome de Leonor...{156}
[8] La Prose, leçons faites a la Sorbonne.
[9] Traité complet de la theorie et de la pratique de l'harmonie, par Fetis.
{157}
Era um talento enorme.
O pai, artista mediocre mas de juizo claro, ensinou-lhe a dar os primeiros traços, a lançar as primeiras tintas na tela.
Mas é ninho d'Urbino, escondido n'uma das mais graciosas paragens dos Apeninos, era pequeno para tamanha aguia.
O céo d'Italia desdobrava-se n'um azul suavissimo e espelhava-se sobre as aguas tranquillas desde os canaes de Veneza até á bahia de Napoles.
Adivinhava-se que em qualquer parte da Italia sorria a natureza, com todo o esplendor das suas galas, e o amor com a sua infinita doçura.
Elle era moço e artista. O pai adivinhou a gloria d'aquelle destino, e disse-lhe:—Parte.{158}
E partiu, alegre, descuidoso, pensando um pouco na gloria, alguma cousa no amor, e namorando-se mais que do amor e da gloria d'aquella Italia formosissima em que nascera e em que primeiro devia amar.
Dias depois entrava no atelier de Perugino, em Perugia. Um artista hospedava outro.
A recepção foi cordial. Todavia Raphael, porque era elle, queria ser mais alguma cousa do que um simples hospede,—ambicionava ser discipulo.
Esboçou os primeiros quadros, coloriu os primeiros contornos, e o mestre inclinado sobre o hombro do moço pintor já o não queria só como hospede nem o quereria já como rival.
Tinha dezesete annos.
Sorria-lhe a vida e a gloria. Começára pelos retratos, adestrára-se a mão, e Perugino ficára vencido.
Um dia o discipulo quiz voar mais longe, e começou um quadro de largas dimensões, o celebre Sposalizio, cujo assumpto delicado e formoso é o Casamento da Virgem.
O artista queria emancipar-se da tutela de Perugino, mas o discipulo, respeitoso e grato, afogava a sua individualidade na maneira do mestre.
Aos vinte annos, todo o talento, que tem balbuciado até ahi, procura quebrar as gramalheiras da imitação.
É a época da liberdade.
Raphael foi encarregado de coadjuvar o seu condiscipulo Pinturricchio na reforma artistica por que ia{159} passar a cathedral de Sienna. Mas Raphael foi mais de que um obscuro collaborador n'aquelle maravilhoso poema da pintura.
Do seu pincel desabrocharam os graciosos frescos, cheios de vida e mocidade, que ainda hoje se conservam em todo o esplendor da belleza.
Um talento assim é tambem athleta; quer luctar. Florença era então a arena dos grandes artistas. Miguel Angelo e Leonardo de Vinci estavam em campo. Perugia era já pequena para Raphael. Partiu para Florença onde podia justar com os dous maiores pintores da Italia. A esperança era o seu anjo da guarda;—a gloria o sonho de todas as horas.
Ah! Florença! Como elle se sentia bem alli, pensando, executando, e dividindo o tempo com a arte e com o amor!
Fóra do atelier, esperavam-n'o os sorrisos da ramilheteira, a fioraia; quando estava trabalhando, tinha perto de si as flôres d'ella. E tanto a amava, e tanto a tinha presente quando não a via, que o seu pincel a reproduziu espontaneamente na Bella Jardineira, a primeira Virgem de Raphael, quadro admiravel conservado ainda hoje na galeria do Louvre.
Era o cartel atirado a Miguel Angelo e a Leonardo de Vinci. Estava travada a lucta entre os poderosos athletas.
Occupava n'esse tempo o throno pontificio o papa Julio II. Roma ia envolver-se n'um manto de roçagante magestade.{160}
Levantavam-se templos, erigiam-se palacios, encommendavam-se quadros. O torneio das artes mudava-se de Florença para Roma. Alli era a capital do mundo, alli pulsava o coração da Italia; grandeza, esplendor, deslumbramentos olympicos, tudo havia alli.
O architecto encarregado de velar por todas essas maravilhas da arte era Bramante, tio de Raphael.
O amor foi vencido pela gloria. Veio de Roma um convite. Raphael despediu-se da fioraia e aceitou, entre triste e distrahido, umas flôres que ella lhe dera orvalhadas de lagrimas. A florista de Florença ficava com a immortalidade que lhe dera o seu amante; Raphael partia lendo na vastidão do horisonte a epopêa do seu destino...
Roma foi em todos os tempos a fascinação dos artistas. Tudo lá tem voz para cantar as grandezas do passado, e os monumentos arruinados rumorejam ainda hoje as legendas dos maiores artistas do mundo.
Apresentado ao papa Julio II, sentiu-se maior que nunca; o seu pincel era a vara de condão que devia desencantar as maravilhas do Vaticano. Começou pela sala de la Segnatura. O grande pintor mostrou a valentia do seu pulso em quatro quadros differentes que decoram a sala:—a Theologia, a Philosophia, a Poesia e a Justiça.
O papa entrou um dia á sala onde Raphael trabalhava. Extasiou-se diante do prodigio; chamou quatro operarios e mandou desfazer a martello os frescos que os predecessores de Raphael haviam pintado. Já era{161} muito e ainda não era tudo;—começava a realisação do sonho.
E todavia nos jubilos de Raphael perpassava, de momento a momento, uma sombra; era o pincel de Miguel Angelo. Ambos tinham sido chamados a Roma, collaboravam ambos n'aquella immensa epopêa da renascença artistica da Italia, e todavia não fraternisavam em amiga communhão, nem siquer se tinham permittido a mutua contemplação dos seus quadros. Trabalhava um na capella Sixtina; o outro nas salas do Vaticano. Sempre que vinha a geito o confidenciar com seu tio, ahi lhe segredava Raphael o immenso desejo de conhecer as obras primas de Miguel Angelo. O velho artista ouvia-lhe as confidencias e sorria-se. Mas um dia, Bramante, aproveitando a ausencia de Miguel Angelo, que trazia entre mãos o Juizo Final, abusou da sua qualidade de architecto e entrou com o sobrinho á capella. O mesmo foi pascer Raphael os olhos nas telas de Miguel Angelo e deletrear os segredos artisticos que deviam operar a rapida transformação porque passou o seu talento audaz e gigantesco. A historia consigna muitos d'estes factos, em que um artista que começa parece aquecer-se para uma vida nova nas labaredas que illuminam a alma de outro artista já feito. Corregio, ao relancear os olhos á Santa Cecilia de Raphael, exclama arrebatado: «Anch' io son pittor!»—La Fontaine, ouvindo uma ode de Malherbe, sente incendiar-se-lhe a alma no fogo da inspiração.
Passados dias, Miguel Angelo entra ás salas do Vaticano{162} e não póde conter um grito de admiração. «Ah! disse elle, Raphael imita-me; Raphael estudou-me; Raphael viu o que eu tenho feito!»
E n'esta apostrophe em que espontaneamente rebenta o sincero orgulho d'um grande artista, Miguel Angelo prophetisa, sem o desejar talvez, a gloria que esperava Raphael, como Mozart prophetisa por uma intuição artistica o destino esplendido de Beethoven, e Haydn os triumphos ruidosos de Mozart.
Eram tres homens, Miguel Angelo, Raphael e Leonardo de Vinci que deviam coroar o assombroso monumento do espirito humano começado por Dante e Giotto.
Dante, como diz Charles Clement, resuscita a poesia, Giotto a pintura; Brunelleschi levanta o zimborio de Santa-Maria-del-Fiore; Colombo descobre um mundo; Copernico as leis do universo; Guttemberg espanca as trevas profundas da ignorancia; Savonarola e Luthero despertam a consciencia individual;—Miguel Angelo, Raphael e Leonardo de Vinci rematam a corôa da renascença artistica. Começa o dia da gloria depois d'uma longa noite de dez seculos. Do attrito da antiguidade com a idade media resalta a centelha que devia animar a litteratura, a historia e a arte.
Os iniciadores d'este movimento revolucionario sahiram da raça latina, e portanto eram pagãos. Assim se explica como o paganismo resuscita no catholicismo, como Jupiter se transforma em Christo, e Venus em Magdalena e na Virgem. Da religião catholica{163} nasce a poesia moderna. É um papa, Julio II, que reune em Roma os maiores pintores e os maiores architectos.
As madonas de Raphael teem uma belleza pagã.
A renascença conspira contra o ascetismo primitivo, e assim se inaugura a pintura da historia, porque, como reflectidamente pondera Louis Pfau, a renascença não viu na religião mais que a historia sagrada, e na historia sagrada mais que a historia da humanidade.
Ao tempo que o talento de Raphael começava a assombrar a Italia inteira, um opulento negociante de Sienna, Agostino Chigi, confiou do seu pincel a decoração d'um palacio que mandára construir nas margens do Tibre. Raphael quiz ainda dizer o derradeiro adeus á antiguidade, e, antes de voltar ao Vaticano, pinta para o palacio de Agostino dous quadros notabilissimos—Galathea e Psyché.
Era então um rapaz que se atirava ao turbilhão da mocidade, ebrio d'esperança e gloria. Sobre o seu temperamento divergem todavia as opiniões; o doutor Macedo Pinto[10] cita-o como sanguineo, e Emilio Deschanel attribue-lhe uma organisação essencialmente nervosa, como a de Bellini e Beethoven.
Todavia o maior numero d'historiadores revela-nos que era de melindrosa compleição, e nós, estudando vagarosamente a sua biographia, cuidamos vêr{164} n'elle um nervoso-sanguineo, dotado d'um espirito brilhante, d'estes que parece viverem em incessante combustão, como a salamandra dos antigos vivia nas labaredas fabulosas, e naturalmente propenso aos prazeres desregrados e ás expansões vehementes.
Era gentil, tinha uns bellos olhos, rasgados, dôces e meigos, e os seus cabellos pretos, que elle tantas vezes reproduzia em seus quadros, davam-lhe ás faces morenas uma expressão de encantadora doçura.
Foi em Roma, que elle amou uma rapariga do povo, fornarina, a filha do padeiro.
Muitas vezes, emquanto pintava a Galathea, abandonava a paleta para ir vêr fornarina, cujo retrato se reproduz em quasi todas as obras da segunda metade da vida de Raphael.
Por uma d'aquellas manhãs formosas da Italia, em que todo o céo se esbate n'um azul delicioso, fornarina, que estava cuidando d'umas flôres dispostas na janella, levantára de golpe a cabeça, ao sentir passos conhecidos. Se visseis afoguearem-se-lhe as faces no suave carmim das rosas que desabrocham, e brilhar-lhe nos olhos a luz delicada das estrellas que palpitam, dirieis que chegava Raphael.
—Raffaelo! exclamára a fornarina.
—Querida! suspirára Raphael. Não ames tanto as tuas flôres, que eu tenho ciumes d'ellas.
—Que remedio! Se é preciso amar as flôres para merecer o teu amor! Já te não lembras de Florença?...
—Ah! sempre cruel e formosa!{165}
—Quero vêr se, á força de cuidar nas flôres, chego a adquirir os encantos da fioraia.
—Por Deus, querida, que me despedaças o coração! Por Deus te juro, que o meu amor é só teu. Não falles da fioraia, que é apenas uma recordação. Todas as flôres de Florença não valem essa poeira branca que te cobre as tranças e faz lembrar a neve da manhã que polvilha a rosa. Querida, se tu soubesses com que vertiginoso enthusiasmo eu vou copiando nas faces da Galathea o colorido da fornarina! Quero deixar o teu retrato no palacio de Agostino; preciso que todos saibam que te amei. Se visses a Galathea, conhecias-te. És tu mesma, é a tua formosura animada pelo meu amor.
—Raffaelo, e as flôres que trouxeste de Florença?
—Seccaram. É o destino das rosas que vivem um só dia.
—Ah! E o amor da fornarina ha-de extinguir-se um dia como as flôres da fioraia. De mim, só ficará no teu coração o orgulho de haveres pintado a Galathea. O quadro, porque é d'um grande artista, ha-de subsistir; mas a lembrança do modêlo ha-de apagar-se primeiro que a tua vida. Que resta da fioraia? A Bella-Jardineira. Que ha-de ficar da fornarina? A Galathea. Ella era mulher do povo; eu tambem sou. Cabe-nos a mesma sorte;—o esquecimento. O teu amor é um capricho de artista; é mais um devaneio da tua phantasia, que uma necessidade do teu coração. O artista copia, mas o homem não ama.{166}
—Ah! que me offendes. Cala-te, por Deus. Eu não quero que me fira o espinho do resentimento quando encostar a cabeça ao teu regaço no lance extremo. Estou doente, se estou! Tenho vivido só, de sonho em sonho, de esperança em esperança. Sinto que a febre me incendeia o cerebro. É o cansaço. Eu só tenho espirito, e o espirito ama, delira, ensoberbece-se. O espirito dos artistas é lava;—queima, escalda, por isso o corpo succumbe. Restas-me tu, querida. Quero morrer encostado ao teu seio; que os teus labios recolham o ultimo suspiro da minha vida...
—Raffaelo, como estás triste, como és apprehensivel! Oh! se te amo perdidamente, loucamente! O ciume é irmão gemeo do amor; não andam um sem o outro. Perdôa-me os desvarios do coração. Culpa é de te amar tanto... Está formoso o dia, o sol é italiano como tu e como eu. Não falles em tristezas, em soffrimentos. Tu, que tens vivido a luctar, não succumbas a ti mesmo. Levantei-me alegre, quando a luz da manhã entrou pela casa dentro. Vim cuidar das minhas flôres, que são tuas. Olha que bonita rosa esta! Sabia que para ti nascia, desabrochou para fazer inveja ao teu pincel. Não ha mais dôce carmim! Olha... Como é formosa!
Raphael levou a rosa subitamente aos labios e depois deixou-a cahir no seio.
D'outra vez tinha elle acabado um quadro primoroso destinado ao convento do Monte-Oliveto, em Palermo. Correu voz em Roma de ter sossobrado o navio{167} que transportava o quadro. Raphael, como se o seu talento precisasse de novos titulos de gloria, sentiu-se profundamente triste ao saber que perdera uma das suas primeiras obras. Foi nos braços de Fornarina que elle despeitorou as suas tristezas d'artista.
—Ah! dizia-lhe elle, era uma formosa cabeça de Christo, em que eu pozera extremo cuidado. E tinha sido feliz na expressão de soffrimento, na pallidez dolorida das faces, na suave tristeza que desabrochava em sorrisos...
—Tenho ciumes, Raffaelo. De quem é o teu amor? Meu ou da tua gloria? Fallas d'um quadro que perdeste! E a Disputa do Santo Sacramento? E a Escola de Athenas? E Psyché? E Galathea?—a Galathea que sou eu, que deve ser o teu quadro dilecto, por que te ama, por que corresponde ao teu amor d'artista! E o Vaticano, Raffaelo? O Vaticano onde o teu nome fica para sempre escripto, para sempre coroado pela maior das realezas do mundo—a gloria!
Volvidos dias, chegava noticia a Roma de ter abordado ás praias de Genova a caixa que encerrava o quadro destinado ao mosteiro de Palermo. Perdera-se o navio, a tripolação e as mercadorias, mas o mar respeitára o quadro de Raphael e restituira-o, depondo-o cautelosamente n'uma praia italiana... A magestade do mar tinha respeitado a magestade do genio.
A Transfiguração, quadro encommendado pelo cardeal Julio de Médicis, foi o ultimo, se bem que se possa dizer o primeiro de Raphael. «Ha n'esta composição—escreve{168} Valentin no seu livro Les peintres celébres—figuras tão bellas, cabeças de um estylo e d'um caracter tão novos e tão variados, que tem sido olhada, e com razão, por todos os artistas, como a obra mais admiravel que produziu o pincel de Raphael.»
Havia pouco tempo que estava concluido o quadro da Transfiguração, quando, habitando em Farneto, recebeu ordem para vir a Roma. Deu-se pressa em obedecer, e chegou coberto de suor ao Vaticano onde se demorára n'uma das vastas salas fallando largamente da fabrica de S. Pedro. Resfriou e, poucas horas depois, entrava em casa subitamente atacado d'uma febre perniciosa, que o arrastou ao tumulo.
Quando Fornarina se abeirou do leito, turbaram-se de lagrimas os olhos de Raphael.
—Parte, disse-lhe elle. Esperava morrer nos teus braços, mas não posso. Falta-me a coragem. Sempre ha-de haver quem me feche os olhos. Deixa esse triste encargo a Julio Romano que é mais que discipulo do amigo,—é amigo do mestre. Deixa-me vêr bem os teus olhos; quero recordar-me da Glycera. Como me estou lembrando das minhas horas de arroubado trabalho no palacio de Agostino! É o ultimo clarão da memoria que se extingue. Ah! parte, querida, parte. Quero poupar-te ao doloroso espectaculo d'um cadaver alumiado por quatro cirios...
N'este momento entrava Julio Romano.
Instantes depois, Raphael cahia prostrado no leito, e o discipulo amado colhia nos braços Fornarina para a{169} tirar da camara onde ella sentia os pés chumbados ao pavimento.
Quatro pessoas dividiram o espolio do grande artista: Fornarina, Julio Romano, um padre, tio de Raphael, e o cardeal Bibiena, a quem legou uma propriedade que possuia perto do Vaticano.
Na sexta-feira santa do anno de 1520, dia em que tinha nascido, rendeu ao Creador a grande alma.
O seu cadaver foi collocado n'uma das salas do Vaticano, onde de preferencia costumava trabalhar. Á cabeceira, erguia-se o quadro da Transfiguração.
Os olhos dos muitos admiradores que por um momento pousavam no feretro, alteavam-se depois á tela onde o pincel do artista havia traçado a epopêa da sua gloria...{170}
[10] Medicina administrativa e legislativa, primeira parte.
{171}
Quasi á mesma hora em que o sopro devastador do inverno de 1871 começava a desfolhar a verdura das arvores, as balas de Satory arrancaram do tronco venerando da terceira republica franceza as ultimas folhas denegridas pela polvorada da communa.
Havia seis mezes que tres condemnados vacillaram entre a vida e a morte, na mais cruel e dolorosa incerteza com que se póde opprimir um homem dentro das quatro paredes do carcere. O conselho de guerra, presidido pelo coronel Merlin, havia sentenciado á pena ultima os communistas Rossel, Ferré e Bourgeois. Os processos foram enviados á commissão de indultos e desde então começou a ancia, a duvida, o maximo supplicio. E a commissão não se lembrava talvez de que{172} per si mesma impunha uma nova pena, cruciante e horrivel, a tres presos cuja sorte ella podia melhorar, confirmando a sentença, sem tão deshumanas delongas! Grandes criminosos deviam de ser estes homens, que anteprovaram as agonias da morte durante cento e oitenta dias de carcere!
Um d'elles, Luiz Rossel, despertára profundas e geraes sympathias.
Durante esses seis mezes de suprema tribulação, era-lhe consolo extremo a dôce companhia de um padre. Os seus olhos marejavam-se de lagrimas quando a saudade da familia acudia intensa a despedaçar-lhe o coração. Com que dolorido enthusiasmo não fallava elle de seu pai, de sua mãi, das suas pequenas irmãs, Bella e Sara!
O sacerdote protestante que lhe assistia pôde sondar-lhe vagarosamente as serenas profundezas da sua alma, e o resultado d'esta longa e piedosa observação foi o demover-se voluntariamente a pedir misericordia á commissão d'indultos e ao presidente da republica franceza.
«De todos os pontos da França—escrevia o padre Passa—vos dirigem esta supplica. Soffrei que vos seja tambem enviada do quarto onde, ha seis mezes, o sentenciado e o padre se encontram, debaixo das vistas de Deus, para se preparar para a morte.»
«De todos os pontos da França!» escrevia o assistente espiritual de Rossel. Que crime tinha então commettido elle que inspirava tamanha compaixão? Rossel{173} desertára das tropas de Versailles para as tropas da communa.
Fôra julgado desertor e condemnado á morte. Henrique Rochefort, que desertára tambem da republica para a communa, fôra simplesmente condemnado a deportação para uma fortaleza. Quer dizer, a Rochefort, espirito ambicioso e fluctuante, ficava com a vida a esperança da amnistia. Rossel, que, por um impeto de louca mocidade, tomára parte na revolução de 18 de março, era condemnado sem appellação nem aggravo.
Porque desertára Rossel? Expliquemos. Rossel não era d'estes lymphaticos que transigem com os peores homens e com as peores cousas, esperançados em que tudo será pelo melhor,—embora o melhor venha longe. Era um nervoso, d'estes que sacrificam a vida aos acontecimentos, no intuito de susterem audazmente a machina incansavel das fatalidades terrenas e humanas.
Em dezembro de 1870 escrevia elle a Gambetta, então ministro da guerra na republica:
«Eu esperava que as noticias favoraveis que recebestes ácerca do meu comportamento em Metz, e a boa vontade, de que eu tenho dado provas, para a defeza do meu paiz, forneceriam occasião de vos elucidar sobre a guerra actual, de vos notar as faltas de organisação e de estrategia que se commettiam diariamente, e que vos conduziam a uma derrota.»
E mais abaixo, desconfortado pela inhabilidade dos generaes republicanos, acrescentava:{174}
«Em nome da nossa fé commum na patria e na liberdade, concedei-me um cargo importante, dai-me o meio de vos provar que eu sei a guerra, de vos expôr as razões das vossas derrotas passadas e dos desastres que vós vos preparaes.»
Afigura-se-vos isto a febre do orgulho? Não. Isto é a expansibilidade da nevrose, a consciencia de se valer alguma cousa, embora os meticulosos ateimem que as flôres da mocidade não chegam a ser fructo porque as desfolham sempre os vendavaes da paixão. Não. Rossel não estava obcecado pela amaurose da exaltação partidaria, e tanto não estava que começava a desacoroçoar da republica e dos republicanos, e escrevia ainda a Gambetta estas palavras:
Não comprehendi nunca o que vós fazieis no vosso gabinete. Quando me lembro que Napoleão resumia em algumas horas por semana esse trabalho de contencioso a que vos reduziram, tomo o partido do despota contra vós. Elle fazia a guerra, e vós, vós, deixastes fazel-a. O vosso governo não foi um governo de combate; pareceu-se muito com o que o precedeu: muitas secretarías,—e muito pouca policia.»
O desalento lavrou fundo no coração de Rossel. Em 19 de março de 1871 escrevia do campo de Nevers ao general ministro da guerra em Versailles:
«Meu general:
Tenho a honra de vos informar de que me dirijo a Pariz para me pôr á disposição das fôrças governamentaes{175} que se possam constituir. Instruido por um despacho de Versailles tornado publico hoje, de que ha dous partidos em lucta no paiz, colloco-me sem hesitação do lado d'aquelle que não assignou a paz e que não conta nas suas fileiras generaes culpados das capitulações.
Tomando uma tão grave e tão dolorosa resolução, sinto deixar em suspensão o serviço de engenharia do campo de Nevers, que me tinha confiado o governo de 4 de setembro.
Entrego este serviço, que apenas consiste em assentos d'artigos de despezas e escripta de contabilidade, a M. F., tenente de engenharia auxiliar, homem recto e experimentado, que ficou ás minhas ordens por determinação de mr. o general Vergne, em virtude do vosso despacho datado de 5 do mez corrente.
Eu vos informo summariamente, por carta dirigida á repartição do material, do estado em que deixo o serviço.
Tenho a honra de ser,
Meu general,
Vosso muito obediente e dedicado servo
L. Rossel.»
Data da expedição d'esta carta a deserção de Rossel. Chegado a Pariz, não sentiu revigorar-lhe o coração enfermo de desalento uma esperança vivificadora. Ao lêr nos editaes affixados nas ruas os nomes de Lullier{176} e Assi, sentiu recrudescer o desgosto que lhe enervava a alma. Ainda assim quiz justificar o seu procedimento perante a sua mesma consciencia, e aceitou o cargo que o Hotel de Ville lhe conferiu. Então foi o succederem-se as intermittencias de esperança e desconforto, e por mais d'uma vez o assaltou a idéa de abandonar Pariz. As tropas estavam indisciplinadas, os generaes eram ineptos, e elle, pobre louco! já não acreditava na communa para confiar unicamente na propria coragem e na propria dedicação. N'esta conjunctura organisou-se a cour martiale, cujo presidente era. «O aceitar as funcções de presidente d'este tribunal,—escreveu elle—é o maior sacrificio que eu tenho feito e que eu podia fazer á causa da Revolução. Inimigo das revoluções, as circumstancias me lançaram n'uma revolução; aborrecendo a guerra civil, estava mettido na guerra civil. Tratava-se agora de presidir a um tribunal revolucionario, um tribunal que só pronunciaria sentenças de morte.
Se eu tivesse a defender-me da accusação d'ambição, o aceitar dolorosamente este cargo seria talvez o argumento mais forte que eu poderia produzir. Que interesse tem um ambicioso em manchar as mãos? Seria um ambicioso bem louco, ou bem desprovido de estudo para ir ensanguentar o meu nome em funcções subalternas. Ha apenas uma explicação razoavel para o meu procedimento,—é que eu me sacrifiquei á Revolução. Não tinha escolhido nenhuma das funcções de que fui successivamente encarregado, mas não recusei{177} nenhuma. N'estes momentos de similhantes crises é preciso ter a dedicação d'um sectario.» Mal entrou no ministerio, no dia 30 d'abril, occupou-se Rossel de tomar as medidas mais urgentes, que vinham a ser o soldo, a disciplina e a organisação de forças activas. Então começaram a empecer a sua boa vontade as intrigas e complicações que elle não podia desviar com o pé por serem numerosas e constantes.
«A recordação de todos estes revolucionarios presumpçosos,—diz elle—mas desprovidos d'estudos e d'energia, capazes de ordenar um assalto talvez, mas não d'uma vontade e d'um proposito firme, esta recordação, digo eu, é para mim um pesadelo.»
Não obstante estes dissabores que soffria silencioso, empenhava-se na organisação de tropas activas, medida que era sempre contrariada por obstaculos cada vez maiores.
A designação de—regimentos,—que elle adoptára, em vez de—brigadas—, para não augmentar o numero de generaes «fez sombra aos chefes de legião, que receiavam vêr-se desapossados da sua authoridade por esta combinação», escrevia Rossel de proprio punho.
A defeza do forte de Issy era o alvo dos seus mais ardentes cuidados, sendo que o general La Cecilia havia retirado as tropas que defendiam a aldêa e o forte d'aquelle nome. Em vão tentou Rossel reunil-as de novo, e procurou organisar forças para fazer rosto ao violento bombardeamento do inimigo.{178} Este era o seu empenho maximo. N'esta conjunctura reuniram-se os chefes de legião para protestar contra a formação dos regimentos, e muitos procuraram Rossel para lhe fazer sentir que a sua authoridade d'elles era sufficiente para mobilisar as tropas immediatamente. O certo é que na noite d'esse mesmo dia o avisaram de que não podiam pôr em movimento as tropas que tinham promettido.
Rossel, inteiramente desacoroçoado, demittiu-se, e poucas horas depois fluctuava a bandeira tricolor no forte d'Issy, abandonado na vespera pela guarnição, sem que lhe fosse possivel fazel-o reoccupar. Não obstante as instancias com que foi solicitado para retirar a demissão, accusaram-n'o de haver contribuido para a perda do forte, de haver aspirado a tyrannia, e de ter recebido quinhentos mil francos para realisar a traição.
Não é pois sem fidelidade historica que Pinheiro Chagas escrevia, ha pouco tempo, no Diario de Noticias:
«E não foi uma desgraça para a França a morte de Rossel? Foi, era uma cabeça energica, cheia de vida, de talento e de patriotismo, e, o que é mais ainda, cheia de profundissimo desprezo por aquella gente da communa, com a qual a sua ambição e o acaso das circumstancias o tinham obrigado a pactuar. E elles sabiam-n'o, tanto que Rossel esteve umas poucas de vezes para ser fuzilado por elles. A assembléa entendeu que devia cumprir as ultimas vontades da communa,{179} e fuzilou Rossel. Confundiu a causa d'este nobre revolucionario com a dos homens, que lhe causavam a elle repugnancia, quiz dar emfim um martyr á communa! Santa gente!»
A nobre alma de Rossel nada perdeu da sua grandeza epica dentro das quatro paredes do carcere.
A mocidade e o temperamento, duas correntes fataes para o homem, desvairaram-n'o.
«Quando me juntei á insurreição—escrevia Rossel do caderno das suas notas intimas—não contava com o successo, não esperava chegar a uma das primeiras posições. Obedeci a um dever politico; quando rebenta a guerra civil, cada cidadão deve sustentar o seu partido. Republicano, meu lugar era em Paris.»
Que não era ambicioso, especulador e ignobil claramente o evidenceiam estas palavras, escriptas entre ferros, com os olhos postos no tumulo.
Podemos afoutamente acredital-as, porque, como escrevia o padre Passa á commissão d'indultos—sempre se é sincero em presença da morte.» Rossel, antes da deserção, era geralmente estimado pelos seus merecimentos. Até no momento em que mais refervia a onda vermelha da communa, o consideraram os insurgentes dando-lhe um dos primeiros lugares. Mataram-n'o, perderam-n'o. Embriagou-se com o successo que não esperava. Collocaram-n'o na primeira plana da revolução. Era chefe; não quiz recuar. Simples soldado, teria talvez reflectido, teria talvez retrocedido{180} á voz de seu pai para offerecer mais um braço á causa da ordem, que era a causa da patria.
Os estudantes de Pariz foram a Versailles pedir o perdão de Rossel. A manifestação foi ruidosa, compacta, mas prudente. Era a derradeira esperança. Todavia o tronco venerando da republica queria sacudir de si as ultimas folhas denegridas pela polvorada da communa. Sibilaram as balas,—as folhas cahiram. A republica deixava passeiar impunemente em França os mais respeitados amigos da communa, a republica deixava resfolegar a Internacional, mas mandava fuzilar Rossel.
Ferré e Bourgeois não mereciam a camaradagem de Rossel, ainda quando os comecemos a estudar no carcere. Todos os que visinharam de Rossel se sentiram commovidos: Cassel, carcereiro; Alberto Joly, seu advogado; o padre Passa, seu director especial.
Momentos depois de commungar, escrevia Rossel esta carta a uma das mais queridas pessoas da sua familia,—sua avó:
«A mistress Isabella Campbell:
Adeus, madrinha, amo-te.
28 de novembro de 1871.
Acabamos de commungar, mr. Passa e eu, e Deus abençoou a nossa communhão.
Posso dizer que é a primeira vez que commungo, e estou extremamente agradecido a Jesus Christo, que nos deixou este symbolo.»
Sentindo nas veias o frio do tumulo, momentos{181} depois de ter recebido a particula sagrada, um dos mais commoventes e sublimes actos da religião christã, perante o qual se sentem impressionados os mais duros corações, ao qual ninguem póde assistir sem chorar,—Rossel não mentia.
Depois da patria, como elle amava a familia!
«Não posso supportar—escrevia no carcere—que se faça soffrer meus paes. Pelo que me respeita, tenho a epiderme dura, e estou tão pouco preoccupado com a eventualidade d'uma morte imminente, que a mim mesmo pergunto muitas vezes se não será uma insensibilidade doentia da minha parte. Mas o que não concebo, é que differindo sempre uma resolução, dissimulando a decisão que já esta tomada, façam soffrer uma longa agonia a meus paes, que não commetteram outro crime que não fosse o de me ensinarem a amar o meu paiz.»
São docemente dolorosas estas palavras:
«A vista de meus paes magoa-me. Hontem contava-me minha mãi os passos que deu na vespera; de repente interrompe-se: «Não posso mais! já nem me lembro! estou douda, vês tu!» Minha irmã, que estava mais serena, continuou a narração, que eu não pude ouvir. Eu via-os, eu ouvia-os; eis tudo; pouco me importava o resto. Hoje era minha mãi que estava serena e minha irmã que parecia louca. Todavia nós estavamos tranquillos hontem á noite. Mr. Passa havia-nos socegado!
«Mas eu tenho confiança—diz minha mãi—eu{182} tenho confiança; elles não te farão nada.» Pai, falla d'outra cousa: do forte de Santa Margarida, do ultimo desenho que eu fiz, d'aquelle que vou fazer; minha mãi fez-me prometter-lhe dous, e justamente, acabei-lhe o segundo esta noite, feliz por fazer alguma cousa para ella.
A pequenita não chora, mas tem o coração cheio de lagrimas.
«Tambem a ti—lhe digo-eu—tambem te fazem soffrer!» N'este meio tempo, ella rompe em soluços, por que lhe faltou a coragem.»
Os seus ultimos momentos foram para a sua alma e para a sua familia.
Está revestido d'uma resignação providencial. Vai morrer, porque deve morrer. Não treme. Mas, ao fallar de seus paes, de suas irmãs, dos seus, salta-lhe dos olhos uma lagrima. Era a ultima. O valente não tornou a chorar. Quer porém mandar-lhes a ultima palavra de saudade. Escreve-lhes, levanta-se tranquillamente da mesa, e abre com firmeza a porta do quarto. Chega o momento de partir. Entram os soldados e choram de o vêr. O gendarme que o tem de algemar estremece e perturba-se. Rossel agradece meigamente as lagrimas que lhe dão, abraça Alberto Joly, abraça o carcereiro Cassel, e desce ao pateo, escoltado pelos soldados e acompanhado pelo padre Passa.
Ferré é grosseiro e materialista. Despede estultamente o capellão Folley e escreve a suas irmãs,—crentes{183} e nobres corações de mulher, de certo—que vai morrer como viveu: sem crenças religiosas!
Bourgeois, igualmente sordido, mas menos perigoso talvez, come e bebe no seu quarto, embriagando-se para a morte.
Pois bem. O mesmo pelotão fuzilou Rossel, Ferré e Bourgeois. O governo de Versailles foi injusto. Não devia emparceirar estes tres homens.
Rossel chega ao lugar da execução acompanhado pelo seu confessor, como se quizesse que elle o conduzisse até ao limiar da eternidade. O coronel Merlin, seu juiz, está presente.
Rossel quer que lhe façam sciente de que não morre odiando-o, e pede ao seu derradeiro amigo, ao bom Passa, para que lhe ponha a venda.
Bourgeois, atordoado pela embriaguez, deixa-se vendar com indifferença.
Ferré não consente que lhe velem os olhos, e, materialista, não se dispensa o ultimo regalo;—morre de cigarro na mão, como quem sahe d'uma taberna.
Momentos depois entrava o velho pai de Rossel no quarto d'onde sahira o filho. Ao assomar á porta, descobre-se respeitosamente. Alvejam-lhe na cabeça as cans da velhice; tremem-lhe nos olhos as lagrimas da saudade; agita-se-lhe o peito n'uma ancia offegante.
Está ainda distincta a pequena cavidade onde descançára a cabeça de Rossel. O velho pai, antes de se ajoelhar, curva-se para o catre, e pousa os labios descorados no travesseiro.{184}
O carcereiro, testemunha unica d'esta scena, chora copiosamente, e, instantes depois, quando aperta nos braços o tremulo corpo do velho, orvalha-lhe os cabellos brancos com as lagrimas que não póde reprimir.
Quasi ao mesmo tempo, o padre Passa amparava contra o peito as cabeças latejantes de duas creancinhas vestidas de preto,—Bella e Sara, e dizia-lhes commovido:
—Não choreis, meus anjos, que vosso irmão está no céo. Acompanhei-o até que Deus m'o recebesse. Não choreis por elle, que é de certo feliz.
A imprensa ingleza, como se ouvisse chorar estas duas creanças, levantou-se em massa para protestar contra a morte de Rossel.
A republica, que é o regimen da equidade, na bocca dos fanaticos, fez justiça e contentou-se com entregar o cadaver do condemnado á familia que o reclamára. Famosa ironia da republica!
O cesarismo dava a toda a França festas ruidosas que deslumbravam o mundo. A republica, menos generosa que o cesarismo, apesar de não menos opulenta, cede galhardamente a cada familia o cadaver d'um homem que lhe pertencia.
A França escusava de derramar tanto sangue para ficar como estava.
Mr. Thiers dá e recebe condecorações como Luiz Napoleão. Os jantares e os bailes do palacio da presidencia arremedam os jantares e os bailes das Tulherias.{185} Madame Thiers organisa obras de beneficencia como madame Napoleão. D'antes a côrte era em Pariz; agora está em Versailles.
D'antes deportavam-se homens para Cayenna e Lambessa; agora fuzilam-se em Satory e Marselha.
D'antes applaudia-se Luiz Napoleão; agora applaude-se Adolpho Thiers.
Hontem apedrejou-se o imperador dos francezes; ámanhã apedrejar-se-ha o presidente da republica.
Ora aqui está porque eu não sou monarchico nem republicano,—porque não quero ser cousa nenhuma.
O meu posto é do lado da justiça; onde ella estiver, estou eu. É ainda por esta razão que eu protesto contra as palavras que a France atirou para cima do tumulo de Rossel. A France declara que se absteve de fallar em quanto o processo esteve affecto a um tribunal competente. A France fez o que devia; não ha motivo para encarecer-se.
Depois, quando o tribunal pronunciou o seu veredictum, quando a sentença foi executada, a France enumera as circumstancias aggravantes que o tribunal inventariou, e, constituindo-se em segundo tribunal, sentenceia um cadaver.
Recorda a France que Rossel encarregado de julgar o commandante de batalhão, Giraud, no dia 19 de abril, fôra implacavel para com o réo, accusado de desobedecer a uma ordem superior e interrompera dez vezes os debates, apostrophando:
—Mas finalmente desobedeceu!{186}
Foi ainda Rossel que lera a sentença de morte a Giraud e que escrevera estas palavras ao cidadão Laperche:
«É prohibido interromper o fogo durante o combate, ainda que o inimigo levante a coronha para o ar ou arvóre a bandeira parlamentar.
«É prohibido, sob pena de morte, continuar o fogo depois de se ter dado ordem para o suspender, etc.»
«Estas lembranças—pondera a France—bastam para dizer o que elle foi durante o seu commando, para dar uma idéa do que teria sido na victoria.»
E do que devia de ser no carcere e na morte, esqueceu-se de ponderar a France. Uma vez chefe, Rossel não podia dar exemplo de cobardia, assim como, uma vez vencido, não o deu tambem. Não trepidou diante da morte, e se Giraud, que fôra julgado traidor aos seus, não teve a coragem de agradecer a justiça que lhe fizeram, Luiz Rossel enviou ao seu juiz Merlin, por intermedio do padre Passa, estas palavras:
—Dizei aos meus juizes que cumpriram o seu dever, condemnando-me.
Não satisfeito com isto, encarregou o seu confessor de fazer calmar os odios que por ventura a sua morte levantasse entre os sectarios da idéa que o sacrificára a elle.
Eu não defendo Rossel nem fulmino a republica pelo ter mandado fuzilar na esplanada de Satory. Eu condemno a republica que manda matar Rossel e prender Rochefort.{187}
Entre Rochefort e Rossel a desproporção é immensa. Rochefort é um aventureiro, que mercadeja com a sua penna e com o seu espirito; Rossel era um homem cheio de coragem e intrepidez, sempre util á causa da idéa que defendesse.
Rochefort nogociava; Rossel combatia. Ambos desertaram da republica para a communa, eram igualmente criminosos e todavia Rochefort vive e Rossel está morto.
Mas a republica é o regimen da equidade, que exclue o compadrio e a protecção, dizem!
Rochefort está preso, ámanhã será amnistiado, fulminará o governo que lhe perdoou, por que Rochefort é d'estes homens que estão sempre do lado da opposição, e recomeçará a negociar litterariamente com a Lanterne ou o Mot d'ordre.
Passeiam a sua liberdade em Londres, Bruxellas e na Suissa milhares de communistas francezes. Como é que estes homens poderam enganar a vigilancia das tropas francezas e prussianas que guardavam as fronteiras?
Fugiram, salvaram-se, estão contentes e felizes; d'aqui a pouco tempo viverão tranquillamente em França.
Rossel, menos venturoso que elles, morreu traspassado de balas.
Estrondearam as espingardas;—a folha cahiu.
10 de dezembro de 1871.{188}
{189}
Minha mãi era nervosa, hypocondriaca, apprehensivel.
Eu nasci portanto sob a influencia fatal da predisposição hereditaria; recebi ao nascer um patrimonio do que se chama em medicina affecções dynamicas.
Era eu uma creança de sete annos e vivia sob a vigilancia d'uma criada fanatica, que me fallava todos os dias, ao anoitecer, da resurreição dos mortos, do inferno e do diabo.
Minha mãi, que não assistia a estas praticas quotidianas, não abdicava porém todos os seus direitos educativos.
Quem me educava o espirito era a criada; quem velava pela minha saude era minha mãi. Resguardava-me{190} o peito com flanellas, prohibia-me que comesse fructas, e não me deixava expôr ao ar, no quintal.
Meu pai, cuja vida agitada o trazia sempre por fóra de casa, oppunha-se, nas poucas horas que demorava no lar, a este regimen anti-hygienico. Todavia, como eu estava sempre ao pé de minha mãi, cada vez se me arraigavam mais no espirito os seus habitos.
N'esse tempo a gymnastica era um exclusivo dos acrobatas. Uma creança que subisse ao trapezio nivelar-se-hia com os filhos dos saltimbancos.
Meu pai, que tinha lido por curiosidade um pouco de hygiene, propoz tomar-me um mestre d'esgrima e de gymnastica. O preconceito d'aquelles tempos oppoz-se. Meu pai, que não tinha tempo para estas luctas familiares, desistiu.
Estudava eu instrucção primaria.
O professor dizia a minha mãi que eu tinha certa vivacidade intellectual, e que me devia destinar para um curso superior. De dia estudava as minhas lições; á noite lia a Biblia á mesa do chá.
Iamos poucas vezes ao theatro.
As noites de nossa casa eram tristes.
Meu pai jogava com alguns amigos; minha mãi seroava; eu lia, e a criada rezava ao som da minha leitura.
Não sei porque, mas eu odiava o theatro.
Talvez pela criada velha me ter dito um dia que se não salvava quem morresse n'um espectaculo...{191}
Fiz exame de instrucção primaria e comecei a estudar o latim com um padre decrepito, que morava perto de nossa casa. O padre vivia de jejuns e orações. O seu contacto dava á alma uma tristeza gelida.
Eu estudava longas horas, velado pela criada que ia rezando sempre. A concentração do estudo e a convivencia com o padre tornaram-me melancolico. Atravessavam-me o espirito uns horrores vagos do inferno e do dia de juizo. A idéa da morte punha-me medo. De noite tinha sonhos agitados; acordava banhado em suor, a chamar por minha mãi. A criada velha, que dormia perto, dizia-me que rezasse e fizesse por adormecer.
Comecei a adoecer frequentemente.{192}
Como eu entristecesse cada vez mais, compraram-me uma capella de pau, que eu armava de festa todos os sabbados, e desarmava todas as segundas feiras, antes de ir para a aula.
Esta predilecção pelo culto religioso provinha de certo da minha educação biblica e caseira.
Fiz exame de latim, ao cabo de dezoito mezes d'estudo.
O padre achou isto prodigioso, e disse que as creanças como eu não se vingavam.
Eu suppunha o padre muito em relação com as cousas futuras, e tremi da prophecia.{193}
Quiz meu pai que eu frequentasse o lyceu.
Estudei francez, e logica nas aulas publicas.
Os rapazes que me cercavam eram alegres, inquietos, robustos.
Esta circumstancia prejudicou-me ainda; eu comparava-me com os meus condiscipulos e achava-me rachitico.
Vencidas estas disciplinas, estudei inglez e geographia.
Comecei a gostar muito dos poetas inglezes, e a interessar-me pela poesia.
Um dia, um rapaz meu condiscipulo emprestou-me a Menina e moça de Bernadim Ribeiro. Esse livro produziu-me uma impressão suavissima; pedi mais livros, e li-os todos.{194}
Quando meu pai fez annos, escrevi-lhe umas quadras que conservo ainda; eram simplesmente desastradas.
Todavia continuei a ler, e, quando acabei os preparatorios, estava doudamente namorado pela litteratura.
Os negocios de meu pai corriam mal, e tive de renunciar a idéa d'um curso superior. Meu pai propoz-me o commercio, e eu aceitei o alvitre. A esse tempo tinha esboçado um poemeto no genero archaico. Quando entrei para um escriptorio commercial, estava ainda o poemeto incompleto. O meu patrão era boçal. A sua presença exercia no meu animo uma influencia tyrannica.
Quando elle voltava costas, ia eu escrevendo no poemeto. Um dia surprehendeu-me nas minhas lucubrações poeticas, quiz ver o meu autographo, desatou a rir alarvemente, e despediu-me. Entrei em casa triste, concentrado, apprehensivel.
Tinha então dezoito annos.
A criada velha havia-me perguntado muitas vezes se eu já tinha sido convidado para a maçonaria.
Certo dia li n'uma folha um artigo que desvendava a cegueira popular sobre a maçonaria.
Eu não conhecia bem o espirito d'esta associação, mas sympathisei com a maneira porque o jornal desfasia os preconceitos do povo, que eram tambem os meus. Comecei então a pensar na grandeza do problema social que a imprensa se propunha resolver. O{195} jornalismo afigurou-se-me a mais poderosa alavanca dos povos modernos, porque tinha o seu ponto de apoio no pensamento humano.
Informei-me sobre a dignidade dos periodicos de aquelle tempo, e soube que o mais digno era portanto aquelle com que mais eu sympathisava.
Procurei o redactor, e pedi-lhe um lugar na sua folha. O jornalista procurado, que me pareceu um cavalheiro, sorriu do meu denodo, das minhas illusões talvez, e aceitou-me. Comecei por ser traductor e revisor, e tirava d'essa tarefa salario de que repartia com meu pai.{196}
{197}
Eu amava.
A minha amada era rosada e loura.
Tinha nas tranças o que o céo tem de mais formoso—o sol; e nas faces o que a primavera possue de mais puro—as rosas.
Eu era naturalmente triste, e pasmava da metamorphose que se havia operado em mim.
Sentia-me assombrado.
Tinha vagas aspirações, desejos indefinidos.
Queria ser grande.
Comecei a estudar. Versei livros de botanica, de zoologia e d'economia politica.
O jornalismo afigurava-se-me a escada de Jacob, pela qual eu devia subir ao olympo das grandezas sociaes.{198}
Comecei a escrever artigos politicos, e já uma vez por outra se fallava no meu nome.
Por esse tempo uma facção militante offereceu-me um circulo.
Eu endoudecia de felicidade; começava a vêr realisarem-se os meus desejos.
Sahi eleito.
Entrei nas camaras, e desgostou-me conhecer de perto o que era aquillo.
O meu temperamento desvairava-me.
Queria esmagar todos os futeis e todas as futilidades que encravavam a cada momento a marcha da governação publica.
Comecei a fallar calorosamente, frequentemente, a querer desmascarar os hypocritas, a apontar os traidores, a desarmar os imbecis.
Ao mesmo tempo escrevia para os jornaes do meu partido, e tirava d'ahi os recursos com que vivia modestamente.
Um dia um sectario do governo convidou-me a desertar para a facção ministerial, sob promessa d'um despacho.
Renunciei dignamente, e lancei mão do facto na camara para fulminar o ministro do reino.
Dentro em poucas semanas o chefe do meu partido fusionava com o governo, na esperança de ser nomeado conselheiro d'estado.
A maioria ficou por tanto sendo governamental.
Ergui-me para fallar.{199}
Fui impetuoso, violento, audaz.
O presidente notou-me que eu estava fóra da ordem, e retirou-me a palavra.
Pedi que se consultasse a camara, e a camara resolveu approvando a resolução da presidencia.
Sahi do parlamento, estonteado, febril, delirante.
Cheguei a casa, e encontrei uma carta de minha mãi.
Soube por ella, que a mulher que eu amava estava perigosamente doente.
Dei-me pressa em partir.
Todavia a fatalidade andou mais ligeira; quando cheguei, a minha amada tinha morrido.{200}
Vi-a no caixão.
Era loura ainda. Tremiam-lhe nas tranças os reflexos da eternidade.
As rosas da face tinham desmaiado.
Em volta da sala havia crepes.
Senti um horror instinctivo d'aquelle luto.
Ao longe dobrava um sino.
Lembrei-me de Goethe que detestava todo este apparato funebre.
Se a alma é immortal, para que chorar a minha amada, que renascia para outra vida?
Se não é, para que sanctifical-a ainda com estas honras religiosas?
Notou alguem que eu estava excessivamente pallido.{202}
Tiraram-me da sala, quando eu já não dava accôrdo de mim.
Ao outro dia despertei, fatigado e triste, como de um pesadelo horrivel.
Estive muito tempo sentado no leito até que me fosse possivel atinar com a realidade.
Não sahi n'esse dia, não sahi tambem nos immediatos.
Comecei a lêr, a pensar, a propor-me todos os problemas que dementam a cabeça humana.
Queria devassar os mysterios d'além-tumulo.
Tinha visões, dôres dilacerantes.
Chamei um medico, que me disse que as visões eram gastricas e as dôres nevralgicas.
Aconselhou-me distracções, passeios, agitação.
Desobedeci, e continuei a viver recluso.
Passava as noites a passeiar no meu quarto d'um lado para outro; Percebi que a minha pertinacia começava a aborrecer aos meus amigos.
A proximidade da pobreza tornava-me quasi louco.
Um medico confirmou as minhas suspeitas, e aconselhou-me a sahir immediatamente para o campo.
Por acaso, vi n'um jornal um annuncio em que se offerecia um lugar de administrador d'uma casa no Minho.
Resolvi-me a trabalhar, apesar de me sentir doente.
Offereci os meus serviços, que foram aceites.{203}
O rio Lima passa perto da casa que eu administro.
O sitio é formoso e saudavel.
Comecei a levantar-me de madrugada, a acompanhar os trabalhadores, a dirigir as maltas.
Ao domingo ou caço ou pesco.
Dispensei-me de pensar, e a minha unica leitura é a do jornal que eu assigno.
Detesto profundamente a litteratura, especialmente os versos.
Estou d'uma carnação razoavel, sem todavia estar gordo.
Umas vezes por outras, pego na enxada ou na fouce, e trabalho tambem.
Posso rir-me de vós, ó nervosos esgrouviados, que tendes visões, idiosyncrasias, que viveis n'um inferno.
O clarão do vosso espirito vai-vos calcinando o corpo.
Dentro em pouco sereis cinzas.
O adelgaçamento da raça toma um incremento prodigioso.
Os vossos filhos são amarellos e intanguidos; já me não parecem creanças, mas futuras congestões visceraes, dyspepsias, catarrhos vesicaes, nevralgias e affecções calculosas.
Pobres d'elles, por vossa causa!
Um unico meio póde ainda conservar-vos, a vós, e remil-os a elles d'uma catastrophe imminente.{204}
Um grande medico que vos póde salvar,—a Hygiene!
Vêde bem que a questão do temperamento é uma questão nacional, porque os nervos da patria começam a ter contracções dolorosas.
Na estatistica dos temperamentos, o nervoso é o predominante.
Pois bem. Resta um unico meio de salvação, o regimen hygienico.{205}
Costumai-os desde pequenos á gymnastica, não á gymnastica violenta do trapezio, mas á suave gymnastica de quarto.
Mandai comprar-lhes a Gymnastique de chambre, escripta em allemão por Schreber e traduzida em francez por Delondre.
Chegando a primavera, atirai-os para o campo.
Deixai-os correr, saltar, e cahir,—e cahir tambem.
Vêde bem que é preciso desenvolver-lhes o systema muscular.
Urge reformar esta raça enfesada que se está eximindo a cada passo de servir o exercito nacional por não chegar ao estalão.{206}
Não deixemos mumificar estes pobres rapazes de vinte annos que se narcotisam com o charuto, que se requeimam com o grog, e se desvairam com o romance.
E as raparigas! ah! e as raparigas!
Como ellas querem ser pallidas e languidas!
Aos dezoito annos começam a ter enxaquecas, e aos vinte soffrem nevroses,—classicas e romanticas—, como as classificou Balzac na Physiologia do casamento.
Havieis de vêr estas moçoilas do Minho, bellas e rosadas, que volteiam tardes inteiras na valsa, em dias de romagem!
Vós, rapazes e raparigas, sois feitos de nevoeiro.
Tendes uma transparencia etherea.
Um dia, passando um cyclone na Europa, haveis de desapparecer da superficie da terra e subir ao ar em vapor.
Depois haverá uma epidemia europêa, porque vós, particulas deleterias, corrompereis a atmosphera, e os animaes que vos respirarem hão-de cahir fulminados.
Das alturas de Barroso descerá então uma mocetona que, solidamente organisada, o tufão não logrou empolgar.
E da serra da Estrella baixará um beirão que zombou das correntes atmosphericas erguido sobre um penhasco, que serviu muitas vezes de canapé a Viriato.{207}
E d'esta mulher e d'este homem nascerá a raça futura.
E a proposito de vós, ó gentes de 1872, contar-se-ha o caso de certas mumias que foram desfeitas por um sôpro...
FIM