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Rita
Farinha (Outubro 2011)
BIBLIOTHECA UNIVERSAL
ANTIGA E MODERNA
CORTE NA ALDEIA
E
NOITES DE INVERNO
POR
FRANCISCO RODRIGUES LOBO
VOLUME I
16.ª SERIE—NUMERO 62
LISBOA
COMPANHIA NACIONAL EDITORA
Successora de DAVID CORAZZI e JUSTINO GUEDES
40—Rua da Atalaya—52
FILIAES: Praça de D. Pedro, 127, 1.º andar, PORTO
38, rua da Quitanda. Rio de Janeiro
1890
LISBOA
typographia da companhia nacional editora
309, Rua da Rosa, 309
1890
Em quanto está o avaro em seu thesouro
Cevando os olhos, dando ao pensamento
Materia a vã cobiça de mais ouro.
Primavera, Floresta, 5.
ADVERTENCIA
A
Noticia biographica de Francisco Rodrigues
Lobo encontram-a os leitores á frente
do volume 23.º da
Bibliotheca Universal Antiga
e Moderna.
CÔRTE NA ALDEIA
E
NOITES DE INVERNO
DIALOGO I
ARGUMENTO DE TODA A OBRA
Perto da cidade principal da Luzitania está uma graciosa
aldeia, que com egual distancia fica situada á
vista do mar oceano, fresca no verão, com muitos favores
da natureza, e rica no estio e inverno com os
fructos e commodidades, que ajudam a passar a vida
saborosamente; porque com a vizinhança dos portos
do mar por uma parte, e da outra com a communicação
de uma ribeira, que enche os seus valles e outeiros
de arvoredos e verdura, tem em todos os tempos
do anno o que em differentes logares costuma buscar
a necessidade dos homens: e por este respeito foi sempre
o sitio escolhido para desvio da côrte, e voluntario
desterro do trafego d'ella: dos cortezãos, que alli tinham
quintas, amigos ou heranças, que costumam ser
valhacouto dos excessivos gastos da cidade.
Um inverno em que a aldeia estava feita côrte com
homens de tanto preço, que a podiam fazer em qualquer
parte, se juntava a maior d'elles em casa d'um antigo
morador d'aquelle logar, que tambem o fôra em outra
edade da casa dos reis, d'onde com a mudança e experiencia
dos annos, fez eleição dos montes para passar
[8]
n'elles os que lhe ficavam da vida, grande acerto de
quem colhe este fructo maduro entre desenganos. Alli
ora em conversação aprazivel, ora em moderado e quieto
jogo se passava o tempo, se gosavam as noites, se
sentiam menos as importunas chuvas e ventos de novembro,
e se amparavam contra os frios rigorosos de
janeiro.
Entre outros homens, que n'aquella companhia se
achavam, eram n'ella mais costumados, em anoitecendo,
um letrado que alli tinha um casal, e que já
tivera honrados cargos do governo da justiça na cidade,
homem prudente, concertado na vida, douto na sua
profissão, e lido nas historias da humanidade: um fidalgo
mancebo, inclinado ao exercicio da caça, e muito
affeiçoado ás cousas da patria, em cujas historias estava
bem visto: um estudante de bom engenho, que
entre os seus estudos se empregava algumas vezes nos
da poesia: um velho não muito rico, que tinha servido
a um dos grandes da côrte, com cujo galardão se reparara
n'aquelle logar, homem de boa creação, e, além
de bem entendido, notavelmente engraçado no que dizia,
e muito natural de uma murmuração que ficasse
entre o couro e a carne, sem dar ferida penetrante. Ao
senhor da casa chamavam Leonardo, e ao doutor Livio,
ao fidalgo D. Julio, ao estudante Pindaro, ao velho
Solino. Fóra estes havia outros de quem em seus logares
se fará menção, que assim como os mais, não eram
para engeitar em uma conversação de poucas porfias.
Uma noite do novembro, em a qual já o frio não dava
logar a que a frescura do tempo convidasse ao sereno,
estando ainda Leonardo á mesa, porém no fim das
iguarias, bateram á porta Pindaro e Solino, aos quaes
o velho mandou abrir com grande alvoroço e festa;
porque a de o buscarem era a que mais estimava por
sua. Subiram, agasalhou-os com contentamento e cortezia.
Sentaram-se perto da mesa, e disse o senhor da
casa:—Peza-me que não viesseis mais cedo, que me poderieis
acompanhar n'este trabalho tão necessario da
velhice. Mas se ainda virdes na mesa alguma cousa de
vosso gosto, lançae mão d'ella, que de mistura achareis
a minha boa vontade.—Eu sei (disse Pindaro) a
que tendes de me fazer mercê; mas venho ceiado e tambem
Solino, a quem tive por hospede, e já a conversação
[9]
me dobrou o gosto das iguarias.—Eram ellas tão
boas (respondeu Solino) que a mim me davam graça.
Porém o serdes vós tào miudo nas cortezias, me deu
muita pena: e já que sois tão discreto, e tanto meu
amigo, d'aqui adeante emendae-vos nas ceremonias da
mesa; e adverti ao vosso moço que não acompanhe
com os olhos os bôccados dos hospedes, até o estomago:
porque apostarei que me contou todos os da ceia,
e anda tão destro no apartar das brigas, que ainda
bem não desvio um prato do outro, quando me dá xaque
em ambos, e me deixa em casa branca. E não vos
pareça que é isto dizer que venho faminto; que, se assim
fôra, póde ser que o cumprimento do sr. Leonardo
não ficára solto e livre; antes é fazer-vos lembrança
que, pois daes tambem de comer, não tenhaes um moço
Harpya, que descomponha o sabor dos manjares.—Bem
sei (respondeu Pindaro) que ainda farto não haveis
de deixar de roer. O meu moço é de uma d'estas aldeias
vizinhas, ha pouco que me serve; por isso, e por ser
creado de estudante, lhe devieis perdoar o erro, e a
mim o remoque; porém a vossa condição não se sujeita
a respeito nem a desculpas.—É tão saborosa a murmuração
de Solino (disse Leonardo) que tambem na mesa
se póde estimar como boa iguaria: e se a eu tivera
muitas vezes, déra vida ao appetite que para as outras
me falta.—Se o ella fôra (tornou Solino) em mais
occasiões me valêra das em que a vós podeis desejar.
Mas, não tratando de vol-a offerecer, nem de a desculpar
com meu amigo; como ceiastes hoje tão tarde, e não
vieram mais cedo o doutor e D. Julio?—Antes (disse o
velho) me mandaram já recado, e não devem tardar.
Eu o fiz com a ceia, porque os homens de serviço me
não deram logar senão a esta hora: mas ouço que batem
á porta e devem ser elles.
A este tempo mandou juntamente alçar a mesa, e
levar a luz á escada. Subiram o doutor e D. Julio;
saudaram-se com muita alegria; e sentados perto do
fogo, disse o velho: Muito deveis ambos a Solino;
porque vindo a esta casa com Pindaro, de quem foi
convidado na ceia, e tendo a minha em estado de que
se podia aproveitar de alguma cousa d'ella, vos
achou menos, e perguntou a causa da tardança; signal
é este de amor e da pouca razão com que o temos
[10]
por desobrigado de toda a affeição dos amigos.—Não
é Solino tão descuidado do que lhe eu mereço
(tornou D. Julio) que se esqueça de mim, e de
quanto sentirei perder horas suas: e pelo interesse
das da conversação do doutor o tivera em menos conta
se as não desejára: e além d'isto posso affirmar que
está pago da lembrança que teve, com a diligencia que
fizemos pol-o trazer comnosco, que voltamos pela sua
porta, e eu tirei uma pedra á janella, d'onde me disseram
que ceiava com Pindaro; e cada um dos dois me
fez inveja.—Ah! sr. D. Julio (respondeu elle) tão grande
trovoada de cumprimentos seccos não podia deixar de
lançar pedra. Eu tenho feita a conta, e sei que não
posso pagar o que vos devo além d'essa honra e mercê,
senão com a humildade com que a todas reconheço
por vossas. Dae-vos por satisfeito de meus desejos, e
de pôr aqui ponto nos cumprimentos; porque não tenho
polvora mais que para a primeira salva.—Já eu me
quizera metter em meio (disse o doutor) porque se vós
a terdes em cortezias, não haverá quem as pague, se
não fôr Pindaro, que tem uma corrente tão arrebatada,
que não dá vau a nenhuma rethorica do mundo.—Agora
(arguiu Leonardo) levastes tres de um tiro; não
me dou por seguro n'este logar, inda que é de minha
casa: porém não tendes razão contra Pindaro, que,
cada vez que o ouço, me parece um livro de cavallarias.
Se elle tivera encantamentos escuros, castellos
roqueiros, cavalleiros namoradores, gigantes suberbos,
escudeiros discretos, e donzellas vagabundas, como
tem palavras sonoras, razões concertadas, trocados
galantes, e periodos que levam todo o fôlego, pudéra
pôr a um canto o Amadis, Palmeirim, Clarimundo, e
ainda o mais pintado de todos os que n'esta materia
escrevêram: e já estive em o persuadir que se mettesse
em uma empreza semelhante: porém receio que se me
ensoberbeça com a altiveza de seu estylo, e despreze
aos amigos.—Não merecia eu, sr. Leonardo, a vós, nem
ao doutor (disse Pindaro) que tomasseis meus defeitos
por materia de vossa galantaria: falo como sei, e cada
um se extende conforme a roupa com que se cobre.
Não sou tão philosopho como o doutor, tão cortezão
como vós, nem tão engraçado como Solino, nem tenho
maiores penas que a gaiola; porém se abrisse as azas
[11]
para compôr livros, não houveram de ser de patranhas.
Por isso fiae mais de meus pensamentos.—Nunca o
tive de vos offender (respondeu o velho) nem me parece
com razão a vossa desconfiança; nem podeis fazer
tão pouca conta dos livros de cavallarias, e dos
famosos auctores que os escreveram, e que mostraram
n'elles a sua boa linguagem com toda a perfeição: a
graça de tecer e historiar as aventuras, o decoro de
tratar as pessoas, a agudeza, a galantaria das tenções,
o pintar as armas, o betar as côres, o encaminhar e
desencontrar os successos, o encarecer a pureza de
uns amores, a pena de uns ciumes, a firmeza em uma
ausencia, e outras muitas cousas que recreiam o animo,
affeiçoam e apuram o entendimento. Se vós tendes
por despreso compôr livros de cavallarias, eu vos desengano
que pertencem mais cousas ao bom auctor
d'elles, que a um dos lettrados philosophos ou juristas,
com que desejaes do vos parecer; porque lhe importa
saber a geographia dos reinos e provincias do mundo,
para encaminhar por ellas a sua historia; ter noticia
dos nomes e cousas que usam n'aquellas partes, d'onde
faz naturaes os cavalleiros, saber estylo de côrte para as
mesuras, gasalhados e cortezias, conforme as pessoas
introduzidas, conhecer da justiça, do torneio e do sarau.
a ordem, as leis e as gentilezas, entender da bastarda e
da gineta, o que convém para pintar o encontro, a quéda,
o acerto, o dezar, o brio ou descuido de um cavalleiro,
debuxar o cavallo nas côres, concertal-o nas redeas,
no pizar, no arremesso, na furia, na destreza,
nas carreiras, chaças e rodeios, e sobre o conhecimento
de todas as sciencias e disciplinas, tambem ha de ter
alguma noticia dos nigromantes antigos para os encantamentos
que servem de bordão e valhacouto aos historiadores.—Tenho
por mal empregado (disse então o
doutor) tanto cabedal em cousa de tão pouco interesse,
e não sou de voto qee o auctor, que tiver
as partes
que vós dizeis que são necessarias para essa composição
se occupe n'ella. De que servem livros de cavallarias
fingidas? E se ha ociosos que os leiam, porque
ha de haver algum que os escreva? Ou que espere algum
fructo de trabalho tão vão?—Mas que certeza tão
grande (tornou Leonardo) que cada um approva o que
segue, sendo assim que ninguem se contenta do que
[12]
tem. Desejaveis agora que todos os livros, e todos os
homens tratassem sómente da vossa profissão e fossem
juristas e philosophos. Pois ainda que eu sou bacharel
em linguagem, me atrevo a contradizer essa
opinião adquirida em latim: porque para recreação,
politica e bom estylo se não deve menor logar a estes,
que aos vossos de trapaças e opiniões, e outros a que
chamaes conselhos, que o dão ás vezes bem ruim a quem
se fia de sua leitura.
—Eu era de parecer (disse D. Julio) que poupassemos
esta materia para gastar a noite, pondo-a em maneira
de disputa. E se a todos parece assim, cada um diga
sua opinião nos livros que mais lhe contentam, e das
razões que tem para os approvar; e d'este modo, ou
affeiçoados, ou convencidos, saberemos os que são de
maior gosto, e utilidade.—A isto (respondeu Solino) até
agora estive calado contra minha natureza; porque
me houve por incapaz de fazer terço ao doutor e Leonardo:
mas pois o voto é que se jogue com toda a baralha,
digo que é esta a melhor materia que se podia
escolher para passar o tempo. E já pode ser que algum
dos que aqui estão, que deseja deixar no mundo
memoria de seu engenho, saiba n'esta occasião o em
que o pode empregar melhor.—Pelo que a mim toca
(disse o doutor) comecemos logo; e a vós, sr. D. Julio,
é bem que demos a mão a troco do alvitre: e não tratando
dos livros divinos, nem dos necessarios, dos de
recreação nos podeis dizer quaes, e por que razões vos
contentam.—A minha inclinação em materia de livros
(disse elle), de todos os que estão presentes é bem conhecida:
sómente poderei dar agora de novo a razão
d'ella. Sou particularmente affeiçoado a livros de historia
verdadeira, e mais, que ás outras, ás do Reino
em que vivo, e da terra onde nasci: dos reis, e principes
que teve, das mudanças que n'elle fez o tempo e
a fortuna, das guerras, batalhas, e occasiões, que n'elle
houve, dos homens insignes, que pelo discurso dos annos
florecerão: das nobrezas e brazões que por armas,
lettras, ou privança se adquiriram. O que me inclinou
á escolha d'esta lição, foi que tive alguma de um homem
muito douto, em o que o deve desejar de ser, e
parecer o que é bem nascido; ao qual elle dizia, que o
que mais convinha que soubesse era, o appellido, que
[13]
tinha, d'onde lhe veio; quem fôram seus passados, que
armas lhe deixaram, a significação, e fundamento da
figura d'ellas, como se adquiriram, ou accrescentaram.
Logo os reis que reinaram na sua patria, as chronicas
d'elles, os principios, as conquistas, as emprezas, e o
esforço de seus naturaes; porque falando d'elles nas
terras extranhas, ou na sua com extrangeiros, saiba
dar verdadeira informação de suas cousas. E alcançadas
estas, lhe estará bem tudo o que mais puder saber
das alheias. E na verdade, nenhuma lição pode haver
que mais recreie, e aproveite, que a que sei que é verdadeira,
e por natural ao desejo dos homens deleitosa.—Não
é essa a minha opinião (disse Solino) porque contra
o gosto me assombram muito cousas passadas, e
andar abrindo sepulturas de gente morta. E no que
toca á verdade, certo que á conta dos enterrados se
escrevem algumas vezes tão grandes mentiras, que lhes
não levam vantagem os fingimentos de historias imaginadas.
E havendo um homem de ler o que não é, ou
o que sabe, é tão caldeado, e tão batido da forja dos
auctores, que mudado traz o metal, a côr, e a natureza:
estou melhor com os livros de cavallarias, e historias
fingidas, que, se não são verdadeiros, não os
vendem por esses: e são tão bem inventados, que levam
após si os olhos, e os desejos dos que os lêem. E
não estima um auctor matar mais dois mil homens
com a penna, para fazer valente o seu cavalleiro, com
a espada, sem estar receando os ditos das testemunhas
que ficaram da batalha; que por eguaes respeitos pende
cada uma para seu cabo. Pois se é caso, em que um
historiador queira passar adeante como Ariosto, não
matou mais gente a peste grande em Lisboa, que Rodamonte
nos muros de Paris.—Essa é uma das razões,
porque eu os reprovo (tornou o doutor) porque a fabula
é uma cousa falsa, que podia comtudo ser verdadeira,
e acontecer assim como se fingio. Porém a isto
não dão logar os livros de cavallarias, com esses excessos,
e outros encantamentos, fazendo casas, e torres
de crystal, edificios, lagos, e columnas impossiveis,
pyramides de alabastro, e casas de pedraria, cuja riqueza
podia empobrecer a fortuna. E em nossos tempos,
na India Oriental, sabemos que o rei Mogor andou
muitos annos fabricando uma casa de esmeraldas, por
[14]
cujo respeito se passavam d'este Reino á nossa India
as da Occidental. E emfim morreu sem a acabar; e não
ha livro de cavallarias em que qualquer cavalleiro de
um castello não acabe cousas maiores. E deixando isto,
é graça, e galantaria, comparar historias verdadeiras
com patranhas desproporcionadas, que gastam o tempo
mal a quem n'ellas se occupa, quando as outras servem
de exemplo para imitar, de lembrança para engrandecer,
e de recreação para divertir. A quem não anima
ler as historias de seus passados? A quem não move
o desejo de egualar a fama que lê de suas obras? O governo
da paz? A ordem da guerra? O trato dos homens?
O commercio das provincias? D'onde se conserva,
alcança, e sabe senão pelas historias verdadeiras?
Porque n'ellas sabe cada um felizmente pelos
successos alheios o que deve seguir. D'onde Marco Tullio
chamou á historia mestra da vida.—Vós, sr. doutor
(disse Solino) achareis isso nos vossos cartapacios:
mas eu ainda estou contumaz. Primeiramente, nas historias,
a que chamam verdadeiras, cada um mente segundo
lhe convém, ou a quem o informou, ou favoreceu
para mentir; porque se não fôrem estas tintas, é
tudo tão misturado, que não ha panno sem nodoa, nem
légua sem máu caminho. No livro fingido contam-se as
cousas como era bem que fôssem, e não como succederam,
e assim são mais aperfeiçoadas. Descreve o cavalleiro
como era bem que os houvesse, as damas quão
castas, os reis quão justos, os amores quão verdadeiros,
os extremos quão grandes, as leis, as cortezias, o
trato tão conforme com a razão. E assim não lereis livro,
em o qual se não destruam soberbos, favoreçam
humildes, amparem fracos, sirvam donzellas, se cumpram
palavras, guardem juramentos, e satisfaçam boas
obras. Vereis que as damas andam pelas estradas, sem
haver quem as offenda, seguras na sua virtude propria,
e há cortezia dos cavalleiros andantes. E quanto ao retrato
e exemplo da vida, melhor se colhe no que um
bom entendimento traçou, e seguiu com muito tempo
de estudo, que no successo, que ás vezes se alcançou
por mão da ventura, sem a diligencia e engenho metterem
nenhum cabedal. Não digo que os livros tenham
excessos desatinados, que não sejam semelhantes á
verdade, nem os encantamentos tão escuros e desconformes,
[15]
que não tenham alguma maneira de enganar o
juizo; porém os livros bem fingidos, como verdadeiros
obrigam. Um curioso em Italia (segundo um auctor de
credito conta) estando com sua mulher ao fogo lendo
o Ariosto, prantearam a morte de Zerbino com tanto
sentimento, que lhe accudiu a visinhança a saber o
que era. E no que toca ao exemplo; um capitão valoroso
houve em Portugal, que o não teve melhor o Imperio
Romano, que com a imitação do um cavalleiro
fingido, foi o maior de seus tempos, imitando as virtudes
que d'elle se escreveram. Muitas donzellas guardaram
extremos de firmeza, e fidelidade, costumadas
a lêr outros semelhantes nos livros de cavallarias. Na
malicia da India tendo um capitão nosso cercado uma
cidade de inimigos, certos soldados camaradas, que
albergavam juntos, traziam entre as armas um livro
de cavallarias, com que passavam o tempo. Um d'elles,
que sabia menos que os mais d'aquella leitura, tinha
tudo o que ouvia lêr por verdadeiro (e assim ha alguns
innocentes, que cuidam que se não pode mentir em
lettra redonda) os outros ajudando a sua simpleza lhe
diziam que assim era. Veio occasião de um assalto, em
que o bom soldado invejoso, e animado do que ouvia
lêr, lhe pareceu ensaio de mostrar seu valor, e fazer
uma cavallaria, de que ficasse memoria; e assim se
metteu entre os contrarios com tanta furia, e os começou
a ferir tão rijamente com a espada, que em
pouco espaço se empenhou de sorte, que com muito
trabalho, e perigo dos companheiros, e de outros muitos
soldados, lhe ampararam a vida recolhendo-o com
muita honra, e não poucas feridas. E reprehendendo-o
os amigos d'aquella temeridade, respondeu: Ah! deixae-me,
que não fiz a metade do que cada noite lêdes
de qualquer cavalleiro do nosso livro. E elle d'alli
adeante o foi muito valoroso.—Muito festejaram todos
o conto, e logo proseguiu o doutor: Tão bem fingidas
podem ser as historias, que mereçam mais louvor, que
as verdadeiras; mas ha poucas que o sejam; que a fabula
bem escripta (como diz Santo Ambrozio) ainda
que não tenha força de verdade, tem uma ordem de
razão, em que se podem manifestar as cousas verdadeiras.
Xenofonte querendo pintar uma republica perfeita,
e regimento politico, por modo de historia, fingiu
[16]
o governo de Cyro, rei dos Persas. D. Antonio de
Guevara, em nome de um imperador romano escreveu
o que elle queria dizer em Hespanha; e outros que
ainda em modo mais extranho ensinaram aos homens,
como Esopo nas suas fabulas, e Lucio Apuleio no seu
Asno d'ouro; e todos os livros que em seu genero são
bons, se podem chamar perfeitos. Resta agora que
o que escreve historia seja verdadeiro; e não terá
Solino de que o reprehender n'ella. O que compõe
fabulas seja verosimil, e não terei eu razão de o reprovar.
O que trata de sciencia, alegue razões. O que fala
de artes, experiencia. E o que quer ensinar principios,
mostre auctoridade. E posto que eu tenha muitas que
allegar em favor da vossa opinião, sr. D. Julio, vós estaes
no caso, e todos os mais, que a historia verdadeira
apascenta os doutos, adelgaça os grosseiros, encaminha
os moços, ensina os mancebos, recreia os velhos,
anima aos baixos, sustenta aos bons, castiga aos maus,
resuscita aos mortos, e a todos dá fructo a sua lição.
E porque esta não seja mais comprida, diga Pindaro
agora a sua opinião.
—Apostarei eu (disse Solino) que, se a Pindaro lhe armarem
com poesia levantada sobre os bons conceitos,
e versos, que com serem amorosos, sejam arrogantes,
que o tomaram como passaro em visco.—Para isso (disse
o doutor) arredar-lhe as occasiões, e vá com declaração,
que não tratamos de poesia.—Essa condição (accudiu
Pindaro) logo ao principio ficou declarada; que como
exceptuastes livros divinos, n'esse numero devem estar
os dos poetas, que mereceram este nome; e o que
elles antigamente tiveram, e ainda agora lhe dão os
Latinos, assim o deixa entender. E Platão quando d'elles
escreve, lhes chama divinos interpretes dos deuzes,
possuidos de espiritos celestes: d'onde Marco Tullio
tirou os louvores, com que os trata. Origenes affirma
que a poesia é uma virtude espiritual, que inspira
em os poetas, e lhes enche o animo e o entendimento
de uma divina força. Santo Agostinho lhes chama theologos
para cantarem os louvores divinos. Diziam os
philosophos antigos que, se os deuses falassem, seria
em verso: trazendo exemplo do oraculo de Apollo, e
das Sibyllas. Cassiodoro diz que a poesia tomou principio
da divina escriptura. De maneira que por auctoridade
[17]
de tão grandes varões, nunca os livros de poesia
podem vir em competencia com os de que até agora
tratastes; que d'outro modo já estivera concluida a differença.—O
que eu vejo (tornou D. Julio) que, ainda que
o doutor vos cerrara a porta, que mettido de ilharga
dissestes tudo o que cumpria a vosso intento por junto,
o quanto para mim estaes declarado; o com o desejo
de ouvir a opinião do doutor, não digo o mais que me,
parece.—Ora (respondeu elle) não quero que a essa conta
fique o meu voto ás escuras; e digo, não falando em
poesia, que não escolho lição de historiadores verdadeiros,
nem tenho por melhor a dos fingidos; porque
uns servem de conservar a memoria, os outros de enganar
o entendimento: e serão melhores os livros que
deleitem a memoria, e a vontade, e apurem, e levantem
o entendimento, como os de recreação, que com
alguma enganosa novidade tratam de materias politicas,
e engraçadas: de côrte, de aldeia, e de qualquer
sujeito aprazivel: e ha d'estes muito bem recebidos,
approvados, e proveitosos na republica, cuja variedade,
e doutrina é para mim lição muito saborosa.—Não estou
mal com essa opinião (disse o doutor) o quasi que vós,
e eu estamos em um mesmo pensamento; senão que
deixastes de declarar o que agora me fica para dizer;
porque até aqui falámos do modo de compor, e escrever
livros; e não das materias, que escriptas serão
agradaveis. E deixando em duvida o vosso parecer para
se conferir com a tenção; o meu é, que o melhor modo
de escrever são os dialogos escriptos em prosa, com
figuras introduzidas, que disputem, e tratem materias
proveitosas, politicas, engraçadas, e cheias de galanteria:
sendo a primeira figura da obra o autor d'ella; e
isso que vá guiando, e introduzindo as mais, que sejam
apropriadas áquellas materias, de que hão de tratar
entre si. E além de ser este estilo mais claro, mais
vulgar, mais excellente, inclue em si a lição de todos
os outros modos de escrever, como o são os da historia
verdadeira, e fingida, das artes liberaes, e mecanicas;
das sciencias, e disciplinas necessarias; das profissões
particulares; da razão do governo; da vida politica
ou privada. E quando este modo de escrever não
tivera por si mais que a auctoridade dos que n'elle escreveram,
como foi Platão, Xenofonte, Tullio, e outros
[18]
infinitos: essa bastara para acreditar os dialogos. Além
d'isto, eu tenho para mim que aquella é melhor escriptura,
que com mais perfeição, e viveza imita a pratica,
e conversação dos homens; porque assim como a
melhor pintura é a que mais se parece com a obra da
natureza, a que quer contrafazer; assim a melhor escriptura
é a que retrata com mais semelhança o falar,
e conversação d'entre os amigos. Nos poemas tinham
os poetas antigos que o mais levantado era a tragedia
pela imitação natural da pratica, com introducção de
figuras, junto com a gravidade, peso, e tristeza dos
successos tragicos. E porque tambem a variedade é a
que mais costuma enterter, e deleitar o animo dos homens,
e esta é mais certa, e mais propria nos dialogos,
me parece que no gosto d'elles serão melhor recebidos.
—Pois assim é (disse D. Julio) que a principal razão
porque approvaes os dialogos, é porque mais familiarmente
se parecem com a pratica. Desejo saber qual é
mais nobre cousa, se a pratica, se a escriptura: porque
a mim me parece que á escriptura se deve o melhor
logar, e que antes merecia a pratica por se parecer
com ella; o que agora encontra a vossa opinião.—Nenhuma
duvida ha (respondeu o doutor) que a pratica
seja mais nobre, mais antiga o mais excellente; porque,
além de o falar ser operação natural dos homens,
e acto em que elles fazem vantagem, e differença a todos
os animaes, a escriptura não é mais que uma escrava
e servente das palavras, e o escrever não é outra
cousa mais que supprir com um instrumento por meio
da arte, e das mãos o que com a voz se não póde exprimir
e alcançar com os ouvidos, ou por distancia de logar,
como quem escreve aos ausentes, ou por discurso
de tempo, como quem escreve para os vindouros. E
porque nunca a escrava é tão nobre como a senhora
a quem serve, em quanto escrava, nem o que substitue
em logar d'outrem se lhe póde preferir no mesmo
logar; assim nunca a escriptura póde egualar a nobreza
e perfeição da pratica.—O contrario me parece a
mim (replicou o fidalgo) porque nem por a pratica ser
mais antiga, e primeira que a escriptura é mais perfeita;
antes ella foi a perfeição da pratica: e posto que
seja própria operação do homem o falar, não é n'elle
menos nobre accidente o de escrever; antes me parece
[19]
mais digno o que elle alcançou por arte, que o que adquiriu
por uso: e quasi que ousaria a dizer que é operação
sua o falar, dada a respeito de haver de escrever,
pois esse é o meio de se perpetuar, sustentando
no entendimento dos presentes, e na lembrança dos
futuros a memoria das cousas passadas. Assim que nem
por a primeira razão merece a pratica melhor logar,
nem a escriptura, por servente e ministra sua, é menos
nobre. Porque o sol serve de mostrar as cousas creadas,
que lhe são muito inferiores, e de dar luz e nutrimento
a outras de menor qualidade, e nem por isso
ellas se lhe podem antepôr. E quanto a substituir a
escriptura em logar da voz, ella o faz por tão excellente
maneira, que lhe tem muita vantagem; pois o
que a voz não póde exprimir juntamente em differentes
logares, e a diversas pessoas em um mesmo tempo,
o faz a escriptura com grande perfeição, podendo muitas
pessoas, em differentes logares, lêr em um mesmo
tempo a propria cousa: pelo que me parece que, ainda
que a vossa escolha fosse boa, não fundastes bem a
razão d'ella.—Certo (disse Leonardo) que de ambas as
partes déstes tão boas razões, que fica duvidosa a melhoria.
Porém concedendo á pratica a excellencia, a
acção, o modo e a graça de falar, que é uma viveza a
que se não eguala outra nenhuma lembrança; a escriptura
tem tantas grandezas que parece egualmente necessaria
para a vida, pois ficava o mundo ás escuras
sem a luz da dilação escripta; e só na tradicção dos
homens se salvaria a memoria das cousas; e nas principaes
dominaria a ignorancia com mero imperio. Porém,
deixando isto por averiguar, pois com tanta galantaria
e agudeza está tocado o que baste, quero que
passemos adeante, e, por me fazerdes mercê, que me
ensineis se na pratica, em voz, e na escriptura considerada
tem bom logar a nossa lingua portugueza; porque
ouço de má vontade a alguns naturaes que tratam
mal d'ella e a condemnam por grosseira e limitada.
—Uma cousa vos confessarei eu, sr. Leonardo (disse a
isto D. Julio) que os portuguezes são homens de ruim
lingua, e que tambem o mostram em dizerem mal da
sua, que assim na suavidade da pronunciação, como
na gravidade e composição das palavras é lingua excellente.
Mas ha alguns nescios, que não basta que a
[20]
falem mal, senão que se querem mostrar discretos, dizendo
mal d'ella: e o que me vinga de sua ignorancia,
é que elles acreditam a sua opinião; e os que falam
bem desacreditam a ella e elles.—Bravamente é apaixonado
o sr. D. Julio (acudiu o doutor) pelas cousas da
nossa patria: e tem razão, que é divida que os nobres
devem pagar com maior pontualidade á terra que os
creou. E verdadeiramente que não tenho a nossa lingua
por grosseira, nem por bons os argumentos com
que alguns querem provar que é essa; antes é branda
para deleitar, grave para engrandecer, efficaz para mover,
dôce para pronunciar, breve para resolver, e accommodada
ás materias mais importantes da pratica
e escriptura. Para falar é engraçada com um modo senhoril:
para cantar é suave com um certo sentimento
que favorece a musica: para prégar é substanciosa,
com uma gravidade que auctorisa as razões, e as sentenças:
para escrever cartas nem tem infinita copia
que damne, nem brevidade esteril que a limite: para
historias nem é tão florida que se derrame, nem tão
secca que busque o favor das alheias. A pronunciação
não obriga a ferir o céo da bôcca com aspereza, nem
arrancar as palavras com vehemencia do gargalo. Escreve-se
da maneira que se lê, e assim se fala. Tem de
todas as linguas o melhor: a pronunciação da latina;
a origem da grega; a familiaridade da castelhana; a
brandura da franceza; a elegancia da italiana. Tem
mais adagios e sentenças que todas as vulgares, em fé
de sua antiguidade. E se á lingua hebrea pela honestidade
das palavras chamaram santa, certo que não
sei eu outra que tanto fuja de palavras claras em materia
descomposta quanto a nossa. E para que diga
tudo, só um mal tem, e é que pelo pouco que lhe querem
seus naturaes, a trazem mais remendada, que capa
de pedinte.—Folguei extranhamente de vos ouvir
(disse Solino) por não ficar tão covarde, como até agora
estava, em ouvindo murmurar da lingua portugueza;
e não ousava, ou não sabia dizer a minha opinião, a
qual cuidava que me nascia do amor que lhe tenho, e
que cada um tem ás suas cousas como o corvo aos filhos,
e Pindaro ás suas trovas. Porém quando um
homem tão bem fundado na razão como o doutor, e tão
auctorisado em seu parecer sustenta esta parte, nenhuma
[21]
haverá já tão rija, que me tire o atrevimento.—Nem
a lingua (disse Pindaro) pois não ha amizade que vos
faça perder o costume.—Perdoae-me (tornou elle) que
vos feri por não perder o golpe. E tornando ao que aqui
se tratou para recordar o que começamos, averiguou
o doutor que a melhor maneira de escrever eram os
dialogos (ficando meu direito reservado nos livros de
cavallarias), tocaram-se louvores da pratica e escriptura
com muito engenho; declarou-se como a lingua
portugueza não desmerece logar entre as melhores,
para n'ella se escreverem materias levantadas, apraziveis,
proveitosas e necessarias. Que falta entre vós
para que d'estas noites bem gastadas, d'estas duvidas
bem movidas, e d'estas razões melhor praticadas se
faça um ou muitos dialogos, que sem vergonha do mundo
possam apparecer nas praças d'elle á vista dos curiosos,
e ainda dos murmuradores?—Tem Solino muita
razão (disse D. Julio) e se assim forem os dialogos como
se podem formar com a pratica de alguns que estão
presentes, bem se auctorisará a opinião do doutor,
posto que a minha fique de vencida com a vantagem
que aqui tem a pratica das escripturas alheias. E pois
se aproveitam tão bem as noites n'este logar, razão é
que por meio d'elles se communiquem a quem se aproveite
da doutrina e interesse d'ellas.—Se eu não dormira
tão poucas horas da passada (disse o doutor)
ainda houvera de proseguir adeante e responder a
isso; mas com vossa licença me vou recolher e amanhã
accudirei mais cedo.—Acompanhemos o doutor
(disse o fidalgo), e levantando-se elle, se despediram
todos com muita cortezia, deixando ao senhor da casa
magoado de se acabar tão depressa a conversação;
que quem sabe estimar a que é tão boa, tem sentimento
das horas que d'ella perde.
[22]
DIALOGO II
DA POLICIA E ESTYLO DAS CARTAS MISSIVAS
Ficaram os amigos tão affeiçoados á conversação
d'aquella noite, que, por fazerem a do outro dia mais
comprida, acudiram a ajuntar-se logo depois de se pôr
o sol; porém cada um com pejo de ser o primeiro, passeavam
em dois postos, o doutor com D. Julio, e Pindaro
com Solino á vista da casa de Leonardo, até que
elle chegou á janella; e mostrando o mesmo desejo que
os quatro traziam, facilitou o receio e approvou as horas.
Subiram todos, e disse o doutor:—Pareceu-me este
dia tão comprido, na esperança da noite, como aos trabalhadores
que devem o jornal.—E a mim (tornou Leonardo)
a noite, depois que me deixastes, tão importuna
como quem espera a manhã para cousa de seu gosto:
e assim não é muito que vós viesseis tão cedo, e que
a mim me pareça que já era tarde.—Todas as cousas
que se desejam muito (tornou D. Julio) por pouco que
se dilatem, tardam mais.—E as que se temem (proseguiu
Solino) por muito que tardem, parece que se anticipam.
D'onde um disse maravilhosamente que o que
queria que a quaresma lhe parecesse breve, devesse
pagamentos para a Paschoa. Emfim chegou mais cedo
este prazo que todos desejamos: e se o senhor da casa
dormiu pouco, eu apostarei que ha algum na companhia
que se desvelou mais.—Não era occasião para descuidos,
(disse o doutor) e nos mancebos era demasiada
desconfiança entrar n'esta batalha desapercebidos.—Os
apercebimentos (tornou o fidalgo) podem fundir muito
pouco: porque como até agora é incerta a materia de
que se deve tratar, serão sem fructo as diligencias.—É
engano (replicou Solino) que nunca falta uma carta em
que prender; como um homem tem as suas apuradas
e ha cousas que se levam a rasto como corpo morto, e
quando sejam bem cuidadas, nunca são mal ouvidas. E
se não, digam-n'a as olheiras com que esta manhã vi a
meu amigo Pindaro.—Já sei (disse Pindaro) que vêdes
mal: mas contra mim ainda é peior a vossa tenção que
a vista; não me pagaes bem o que vos mereço, mas é
[23]
na moeda que tendes.—E na que corre (tornou elle) que
o rifão de agora diz que fazer e dizer mal, nunca se
perde. Não vos escandaliseis; que tudo ha nos homens
e nas cartas. Essa (disse então D. Julio) hei eu de partir:
porque desejava muito alçar por ellas; e pois o
doutor falou hontem em cartas missivas, e approvou
para ellas a lingua portugueza, nos ha de declarar o
que ha de ter uma carta para ser cortezã e bem escripta.—Esse
cargo (tornou o doutor) convem mais ao
senhor da casa: porque ainda que a carta consta de
lettras, não é profissão de lettrado fazel-as cortezãs:
e quem sabe tanto do estylo da côrte como Leonardo,
póde dar lei para ellas.—Vós (respondeu elle) sois doutor
em tudo, e meu superior em todas as materias, e
como tal me podeis dar o grau de cortezão. Eu o quizera
parecer na confiança, e em obedecer ao gosto d'estes
amigos. Mas para eu proseguir com auctoridade é
bem que vós comeceis a principiar a materia: dizendo,
que nome é
carta, e o seu principio, pois me daes
o cargo antes de estar apercebido para elle.—Bem sei
(lhe respondeu o doutor) que por me honrardes a mim
tomaes tudo á vossa conta; folgarei de a dar boa do
que me encommendaes.
Este nome
carta é generico, e teve origem de uma
cidade
do mesmo nome, d'onde foi natural a rainha Dido,
que, por o amor que tinha á sua patria, pôz á que edificou
por nome
Cartago. E porque em carta se inventou
primeiramente a maneira em que se escrevia (ou
fosse papel, ou outra cousa semelhante a elle) tomou
d'ella o nome como de
Pergamo o
pergaminho. É para saber
que nos primeiros tempos, quando se inventaram
as lettras, escreviam os homens nas folhas das arvores:
como ainda hoje nas da palmeira escrevem os gentios
de algumas partes do oriente: as Sybillas n'ellas
escreveram suas prophecias; e assim se chamaram a
seus escriptos
folhas sybillinas; e ainda na
linguagem
portugueza se conserva alguma cousa d'esta antiguidade,
pois dizemos
folhas de papel sem o papel ter folhas,
mas é em lembrança das primeiras que se usaram
na escriptura. Depois se escreveu em uma casca
tenra de arvores, que é o entreforro da cortiça. E porque
a esta chamavam
livro, conservam ainda agora elles
o nome, e a divisão que agora fazem os escriptores
[24]
de
livro primeiro,
segundo, e
d'ahi adeante é o numero,
porque então deviam contar aquellas cascas. Tambem
se escreveu em o miolo de uma maneira de juncos, a
que chamaram
papiros: d'onde aos latinos ficou o
nome
para o papel. Depois se escreveu em taboas nas quaes
sobre cêra, com um instrumento de ferro ou de latão,
a que chamavam
estylo, se assignavam as lettras; e
do
ferro com que se escreveram, se veiu a derivar o que
agora dizemos
bom ou
máu,
humilde ou
altivo estylo de
escrever, passando-se por translação a perfeição do
instrumento ao concerto e policia das palavras. D'este
proprio modo se usa no nome de carta, que alcança
em genero a todo genero de papel escripto e ainda
pintado. Os portuguezes fazemos este nome particular
tomando
carta missiva por a principal de todas; e
assim
basta dizermos
carta, sem mais declaração, para
se entender que é esta; porém nas especiaes d'ellas usam
o nome com seus attributos. E nos instrumentos
judiciaes, que testemunham antiguidade, se diz
carta
precatoria, dimissoria, citatoria, de liberdade e de venda, e
outras muitas: e ainda as de jogar, sem terem lettras,
se chamam commummente cartas. E a gente aldeã,
conservando alguma cousa da antiguidade, a qualquer
estampa ou pintura em papel chamam
carta. Os latinos
puzeram nome ás cartas missivas
Epistola, do
verbo grego, que quer dizer
mandar: e
letras, porque a
carta consta d'ellas. Os italianos deram singular e
plural a este nome segundo. E na nossa lingua a que
chamam limitada, não faltou nenhuma d'estas differenças,
antes houve maior perfeição: porque a umas
chamaram
cartas mandadeiras; ás que tinham menos
de papel,
escriptos; e ás cartas de Italia
lettras, que
são as de Roma, e as de cambio; porque deviam ter
o mesmo principio; porque logo nos de Portugal mandavam
os reis d'elle por lettras copiosas doações á
sé apostolica, do que conquistavam. De maneira que
o nome de carta, quanto á sua origem, é geral e commum;
e entre nós particular das cartas missivas; e
pois lhe descobri o nome, é necessario, sr. Leonardo,
que lhe deis agora o ser.
—Parece-me (respondeu elle) que estou já no meio da
minha obrigação (conforme ao dito do poeta) que quem
começou, tambem tem feita a maior parte. E passando
[25]
do nome da carta aos exteriores d'ella, digo que ha de
ter: Cortezia commum, regras direitas, lettras juntas,
razões apartadas, papel limpo, dobras eguaes, chancella
sutil, e sêllo claro; e com estas condições será
carta de homem da côrte. E falando da cortezia (disse
Solino) que entendeis n'ella?—A cortezia (lhe respondeu
elle) não falando na leitura da carta, é o sobrescripto,
o apartado da cruz, até á primeira regra; e do
principio do papel até o começo de todas: e o final, o
nome de quem escreve, abaixo da data da carta. E
porque n'isto ha differentes costumes, e erros, me parece
bem fazer de tudo lembrança.—Nos sobrescriptos
temos pouco que tratar (tornou Solino) que depois que
com a pragmatica os cercearam, não ha já
prezados,
magnificos,
honrados, e
illustrissimos, nem
os
senhores. Ainda
(tornou Solino) ficaram alguns de rodeio que são muito
para vêr, e assim o dizem elles: a cujo proposito vos
hei de contar uma historia. Eu (como todos sabeis) vejo
com oculos, e (conforme a opinião de alguns) com elles
muito menos. Os dias atraz, sendo eu ainda innocente
d'este costume, me deram uma carta de um amigo,
que dizia:
Para vêr o senhor Solino: aberta ella, a
lettra tal, tão miuda, e embaraçada, que desmentia o
sobrescripto, e por nenhuma via pude vêr o que dizia.
Mas respondi n'outra lettra muito peior, e puz no sobrescripto:
Para cegar o senhor Fuão; ao que elle depois
me respondeu, que estava pelo costume dos presentes.—Nem
todos se hão de seguir (disse o doutor) que, como
escreve o philosopho Favorino, cada um deve usar de
palavras presentes, e costumes antigos; e mais quando
é uso é abuzão, que no primeiro, por ser tal, offenderam
as leis; e no segundo o reprehendem os mesmos
que o usam. Comtudo Leonardo dirá o que lhe parece.—A
mim respondeu elle que a lei é boa, e a cautella
escusada. Porém o sobrescripto tem mais partes de
cortezia, que essa que dissestes, ainda que á primeira
vista pareça cousa tão limitada. E para que comecemos
em ordem;
sobrescripto é uma noticia vulgar da
pessoa a quem se escreve, e do logar aonde lhe mandam
a carta, exprimindo-se n'elle o nome, e a dignidade,
por onde é mais conhecida, e o do logar onde
n'aquelle tempo assiste. N'esta regra geral ha uma limitação,
e é: Que ás pessoas do grande titulo, e cargo
[26]
se pode calar, ou usar de outro modo differente esta
segunda noticia; porque, além dos cargos declararem
muitas vezes a assistencia das pessoas, parece cortezia
que as que são mui conhecidas por seu titulo, e dignidade,
basta essa, e o nome para serem buscadas. O
primeiro modo é, como se escrevessemos a N. Vice-Rei
da India, A. N. General de Portugal. O segundo como
a N. Embaixador d'el-rei de Hespanha em a Côrte de
Roma. E posto que estes assistam a tal tempo em villas,
ou cidades particulares, não é necessaria outra
leitura no sobrescripto. Não trato aqui das cartas enviadas
aos reis, de seus vassalos, porque não entram
n'esta regra as que vem dirigidas a seus conselhos
particulares.—Bem podereis (disse o doutor) metter
n'esse logar a historia de um letrado da minha profissão,
que mandando uma informação á Meza do Paço,
poz no sobrescripto:
A El-Rei nosso Senhor nos seus Paços da
Ribeira, junto de Luiz Cesar.—D'outro soldado ouvi
eu contar (disse Solino) que escreveu á India:
A. N.
Vice-Rei da India, nos Paços de Goa, defronte de um Lanceiro
torto.—Para gente tão nescia (disse Leonardo) não
servem preceitos: mas em outra vejo muitas vezes sobrescriptos
tão miudos, e sobejos, que pessoas muito
particulares se podiam dar por afrontadas d'elles, como
é: A fuão, em tal terra, em tal rua, detraz de tal parte,
defronte de tal casa, e junto a N. E ás vezes é a pessoa
tal, que deve ser mais conhecida por si, que pelas
confrontações.—Dos sobejos (atalhou Solino) não posso
eu calar um, que vi ha poucos dias, de um frade que
escreveu ao seu provincial, que tinha cinco padres
nossos, como conta benta, e dizia:
Ao muito Reverendo
Padre nosso, o nosso Padre N. nosso Padre Provincial, no
Convento de nosso Padre S. N. Padre nosso.—Por isso digo
(proseguiu Leonardo) que a noticia deve ser vulgar
que nem afronte, nem lisongeie, nem sobeje, nem falte.—Mais
provavel é (disse D. Julio) que se peque nos sobrescriptos
por demazia, que por falta; porque todos
dizem o nome da pessoa, e a terra para que escrevem.—Não
já um (respondeu Pindaro) que escreveu:
A meu
filho o Licenciado em Salamanca, que Deus guarde,
parecendo-lhe
que bastava o grau em logar do nome. Mas que
logar dareis vós aos titulos dos sobrescriptos? Que ha
alguns mais compridos que as cartas que resam o nome,
[27]
o titulo, o senhorio, o cargo, a commenda, e ainda as
pretenções da pessoa a quem se escreve.—A mim me
parece (tornou Leonardo) que os titulos é cousa conveniente,
e necessaria; usados porém com moderação
conforme ao que tenho dito: que noticia vulgar é ser
um homem conhecido por o senhorio, e cargo que tem;
e assim se ha de escrever de cada um o cargo que tem.
e por onde é mais conhecido. Do senhorio como:
A. N.
senhor de tal Villa. E estando em ella:
A. N. na sua
Villa N. O que tambem se usa nos logares, e quintas, em
que cada um assiste. Do cargo:
A fuão, do Conselho d'el-Rei,
e seu Presidente da Fazenda, da Consciencia, etc.
A
fuão Desembargador d'el-Rei nosso senhor, e seu Ouvidor dos Aggravos,
etc. Tudo isto com a brevidade necessaria: por
que o sobrescripto, como disse, serve de noticia, e não
já de adulação. E na carta, não se permitte no sobrescripto
o que se não consente no interior; como se algum
escrevesse a este Fidalgo, e lhe quizesse pôr os
títulos, que elle merece, no sobrescripto; convém a saber:
A D. Julio, Columna da nobreza de seus passados, e gloria
das esperanças de sua patria. Ou:
Ao Doutor Livio,
honra e luz do Direito Civil, exemplo da philosophia, e thesouro
da humildade: cousas eram estas, que d'elles se podiam
dizer: porém não são no logar do sobrescripto. E passando
d'elles adeante.
A segunda cortezia é no papel, da cruz até á primeira
regra; que ha alguns, que lhe põem os olhos
muito junto com as sobrancelhas: outros, que lhe deixam
pelo meio uma estrada de coches; e pela desconformidade,
que ha entre uns, e outros, veio a ser a regra
entre os eguaes, que fique em branco a quarta
parte do papel, que vem a ser no alto a primeira dobra;
e na ilharga um espaço razoado, que dá logar á
mão para ter a carta sem cobrir as lettras, e para se
cortar, ou passar chancella sem as offender.—E de que
nasce (perguntou Pindaro) que muitos deixam mais
de meio papel em branco da ilharga, e vão a cerzir a
lettra com a cortadura da tesoura?—Esse erro, e outros
muitos (respondeu elle) nascem de mudarem alguns
os serviços ás cousas: porque a invenção não estava
mal no seu logar, se a não fizeram servir nos
alheios. Em cartas de negocio, feitas a pessoas occupadas,
que se fazem por capitulos, e apartadas, ou perguntas
[28]
sobre materias dos mesmos negocios, se deixa
egual parte do papel para responder á margem em ordem
a cada uma das cousas; e assim fica servindo para
duas, uma mesma carta; mas estas não guardam a regra,
nem a cortezia das missivas. O mesmo erro ha no
que Solino primeiro apontou dos sobrescriptos:
Para
vêr o senhor Fuão, que nasceu de alguns papeis emmaçados,
que se passavam de ministro a ministro com
sómente aquelle sobrescripto sem outra carta, e sem
terem mais de carta, que o irem cerrados, e sellados,
deram occasião aos que usam o mesmo termo nos sobrescriptos
d'ellas.
—Muitos erros ha (disse D. Julio), nascidos da mesma
occasião. E posto que seja sahir um pouco fora do proposito,
é tão grande bugia da virtude e da honra a vaidade,
que, sómente por a seguir em as apparencias,
tropeça a cada passo em desatinos. Este escreveu,
Para vêr; porque N. Ministro, ou privado escreveu
assim; e veste de tal panno, porque N. de maior qualidade
o trazia; e o que este fez (pode ser por remediar
o seu frio) faz outro á imitação, e se abraza de quentura.
A Hespanha se passou o uso de vestir dos soldados
de Flandres, por bizarria; e razão tinham de imitar
em outras cousas aos praticos que militam em uma
praça tão ennobrecida das nações da Europa; mas o
que elles faziam obrigados do clima, e o sitio da terra,
usavam os cortezãos por gala, levados do engano da
verdade, os chapéos de aba grande contra a neve, os
ferragoulos abotoados, e com descanços para o frio, as
meias de escarlata debaixo de botas altas contra a humidade,
as solas levantadas por detraz, para não resvalarem
nos caramelos, as roupetas abertas sobre as
armas; tudo isto, e outras muitas cousas, sendo inventadas
pela necessidade, se passaram á galanteria. Deixo
as côres de Rei, e da Infante, e a historia do Mercador
com el-rei D. João o III, que lhe pediu que se quizesse
vestir de um panno que tinha muito rico, o qual lhe
daria de graça; que com este ardil, em el-rei o vestindo,
vendeu elle a mór valia uma quantidade de peças
d'aquella côr que lhe haviam entrado n'uma partida.—Não
é isso sómente nas cartas, e nos arrojos, disse o
doutor; que ainda passa adeante o engano. Em a côrte
do imperador Carlos V, andando elle indisposto, lhe
[29]
mandaram os medicos comer borragens, por ser herva
medicinal para a sua enfermidade; e porque os fidalgos
e titulares a viam de ordinario na meza imperial
sem advertirem a occasião porque se fazia, veio a valer
entre elles muito, e a fazerem mil iguarias d'aquella
herva, de sorte que se semeavam tantas nas terras
onde a côrte assistia, que não havia agros d'outro fructo.
Vão-se emfim as cousas mal, e ás vezes são nascidas
de bom costume.—Assim é (disse Solino) que até oculos,
que se inventaram para remediar defeitos da natureza,
vi eu já trazer a alguns por galantaria.—D'essa maneira
seguiu D. Julio se devia mudar para as cartas o estillo
dos papeis, que o não estão por imitarem aos validos.
E tornando á cortezia, que cousas tem mais de
que tratar?
—A terceira, tornou elle, é o nome, e signal do que escreveu
a carta, que nem ha de estar tão junto das lettras,
que pareça soffrego d'ellas, nem no meio do papel
como quem escolheu melhor logar, nem tão apertado,
que fique ausente das regras, nem tanto na ponta
do fim, que pareça que se amuou áquelle canto; mas
com um meio ordinario, como é assignar-se um pouco
abaixo das regras, mais inclinado á parte direita que
á esquerda, que é uma certa modestia, e humildade de
quem escreve.—E que dizeis, (perguntou o doutor) do
acompanhamento do signal? Porque ha uns que se nomeiam
servidor de vossa mercê N., outros
vassallo; outros
captivo, outros
seu N. e ha
n'isto muita variedade, e
ignorancia.—Primeiramente (continuou Leonardo)
servidor
já se passou das cartas para os retretes:
servo
para os matos, e
captivo para os comprimentos
refinados
em a pratica;
creado, era termo bem creado, e
seu
é descortezia: e por fugir d'esta, e de alguns extremos,
o mais seguro é escrever cada um o seu nome sem
mais leitura.—Não sejaes tão estreito nas licenças(disse
Solino) que deitaes a perder cartas que só pelos comprimentos
do signal merecem fama. Um homem escrevendo
a sua propria mulher, se assignou
vosso servo N.,
e ella o fazia tal na mesma ausencia. O outro, de que
contam vulgarmente, porque corria nos signaes o
menor
creado de vossa mercê N., escrevendo a sua mulher se
assignou
o menor marido vosso N., e a senhora devia
de
ter mais varões que a Samaritana. De uma gentil dama
[30]
sei eu (disse Pindaro) que escrevendo a um seu galante
se assignou
sua N., e elle lendo a carta, voltou
para um amigo com que estava, e disse
sempre temi esta
nova; e perguntando-lhe o outro que era? Respondeu
sua N., e é principio de verão: Outro em Coimbra,
querendo-se
humilhar muito aos pés de um amigo, a que
escrevia, se assignou
Antipoda de vossa mercê
N.—Quanto
mais galantes são essas historias (tornou Leonardo)
tanto mais de estimar é a moderação, e bom termo de
não se sahir d'aquelle limite da cortezia commum; e
passando d'ella ha de ter a carta regras direitas, que
ha alguns que escrevem em escadas como figuras de
solfa: lettras juntas, e razões apartadas, com a distincção
dos pontos, virgulas, e accentos necessarios, para
fazerem perfeito sentido das razões; porque ha cortezãos,
que por aformosearem a lettra, e facilitarem melhor
os rasgos da penna, vão encadeando as lettras
pelas cabeças, como sardinhas de Galliza; e de maneira
confundem a escriptura, que não ha tirar d'ella o sentido
verdadeiro de seu dono; e ha cartas bem notadas,
que por mal escriptas perdem reputação; o papel seja
limpo para n'elle empregar sem fastio a vista o que
ha de lêr, e porque pareçam melhor as lettras bem ordenadas;
a chancella sutil, porque ao abrir da carta a
não offenda, que alguns a fazem parecer carta rota
antes de lida: dobras eguaes, porque o concerto auctorisa
as cousas, e as faz parecer melhor: o sêllo claro,
assim para lustro da carta, como para guarda d'ella,
pois é o cadeado que a defende dos curiosos de saber
segredos alheios.—Não corrais com tanta pressa (disse
D. Julio) por essas particularidades, e miudezas, que
em algumas d'ellas tinha perguntas que fazer; mas
contentar-me-hei com as que se me offerecerem de novo
sobre a materia das armas, e tenções com que se costumam
sellar as cartas; e assim estimarei que nos digaes
d'isto alguma cousa.
—As armas (respondeu elle) é a insignia que cada um
tem de sua nobreza, conforme ao appellido com que
se nomeia, e com o sinete d'ellas sella as cartas de importancia,
ou com elmo, e folhagens sobre o paquife do
escudo, ou com elle em tarja, como tenção; que estas
como são pensamento, e desenho particular, se abrem
ás vezes em redondo, ovado, ou quadrangulo, e outras
[31]
figuras, sem respeitar a do escudo. Em Portugal é cousa
muito antiga aos principes trazerem tenções, e emprezas
com lettras, e ainda as usavam misturadas nas Armas
Reaes, que posto que n'aquelle tempo não estavam
tão apuradas como agora, nem eram sujeitas á
arte, que d'ellas e para ellas fizeram os modernos, não
lhes faltava entendimento, e galanteria. El-rei D. João
o I trazia na orla das Armas uma lettra, que dizia:
Por bem. E a rainha D. Filippa de Alancastre sua
mulher,
outra que respondia a esta em Inglez que dizia:
Me contenta. O infante D. Fernando seu filho, o
Santo,
trazia uma capella de hera com seus cachinhos, e no
meio d'ella a Cruz de Aviz, de cuja cavallaria era Mestre.
O infante D. Pedro uma capella do carvalho com
suas bolotas, e no meio umas balanças, e nas Armas
Reaes, no banco de pinchar, em cada pé d'alto abaixo
mãos, e por cima umas lettras escriptas muitas vezes,
que diziam:
Dizer, e entre cada palavra d'estas um
ramo de carvalho com bolotas. O infante D. João, que
foi mestre de S. Thiago, casado com a neta do condestavel
D. Nuno Alvares Pereira, trazia uma capella de
ramos de silva com cachos de amoras, com as bolsas
de S. Thiago no meio, e tres conchellas em cada uma
com uma lettra em Inglez, que dizia:
Com muita
razão.
O infante D. Henrique, Mestre na Ordem de Christo,
trazia as armas do Mestrado, e de antigas de Portugal,
e ao redor um cinto largo de correia, que abroxava
no cabo de baixo, e uma fivella que fazia volta com a
correia, e em Inglez a lettra dos cavalleiros de Garrotea,
que elle tambem era, e dizia:
Contra si faz quem
mal cuida. E uma capella de carrasco, e no banco de
pinchar tres flôres de lirio em cada pé. El-rei D. Affonso
o V trazia pintado um mundo com esta lettra:
Conheço
que não te conheci. El-rei D. João II seu filho, trazia um
rodizio, com esta lettra:
Setere: e na outra trazia
um
Pelicano ferindo o peito, e dizia a lettra:
Pela lei e pela
grei. A rainha D. Leonor sua mulher, trazia uma rede
de pescar, a que chamam rastro. El-rei D. Manoel, uma
esphera com uma Cruz. A excellente senhora, uns alforges,
e nas cevadeiras pintadas as Armas de Castella
com esta lettra:
Memoria de mi derecho. O marquez de
Valença, neto do conde D. Nuno Alvares, trazia dois
guindastes, que levantavam um titulo de pedra, com
[32]
quatro lettras, cada uma por parte. E além d'estas ha
memoria d'outras muitas, que dão testemunho do uso
que d'ellas havia n'este reino.—Por certo, disse D. Julio,
que estou assás contente do fructo que colhi da minha
pergunta, por saber curiosidade tão notavel dos nossos
principes antigos, que para a minha natural inclinação
é a cousa de maior gosto, e interesse: e não fôra menor;
pois falamos de Armas, e Tenções, e vós sois visto
n'ella fazer que saibamos mais alguma cousa atraz
d'esta materia, principalmente d'onde nasceu, e teve
principio o uso dos Escudos de Armas, e das Tenções.
—Quanto á minha opinião (respondeu Leonardo) é que
armas, e emprezas, ou tenções não tiveram no seu principio
a differença, que agora lhes assignam os que d'ellas
escrevem de lettras, e corpos sem lettras, com limitações,
e regras mui apertadas. Antes me parece,
que as armas eram as insignias que os reis, e imperadores
davam aos seus para ser conhecida sua nobreza,
conformando-se na figura d'ellas com a qualidade dos
successos por onde as mereceram, ou com a antiguidade
do sangue d'onde descendiam a quem as davam,
e as que os mesmos reis tomavam para si em memoria
de semelhantes feitos, ou derivadas por seus antecessores.
Emprezas, ou tenções são as que os mesmos
reis, principes, ou particulares tomam, conformando
as figuras, e lettras com o desenho, e pensamento que
cada um tem, para emprehender cousas altas. E d'aqui
adeante entram as regras, que depois lhe aconteceram;
que, por ser um discurso mui comprido, não tem logar
em noite tão breve. Além d'estas ha, outras armas dos
reinos, provincias, republicas, e cidades, que se devem
chamar
diviza, que tiveram principio ou das cousas
de que são mais abundantes, ou da maneira em que fôram
povoadas, ou adquiridas. E no que toca ao principio
das armas, Hercules foi o primeiro que trouxe por armas
a pelle do leão que matou na relva Nemea, depois
da victoria que d'elle teve, e antes d'esta victoria trazia
a mesma ínsignia do porco de Erimanto, que matou
em Arcadia. Jazon trouxe por armas o Velocino de
ouro, que conquistou. Thezeu o Minotauro. Ulysses, o Paladion,
e Eneas o escudo que ganhou de Ulysses na guerra
de Troia: estas eram verdadeiras armas, em memoria
de valorosos feitos. E quanto ao principio das emprezas,
[33]
escreve Pauzanias, que Agamemnon trazia no escudo
a cabeça de um leão de ouro, com uma lettra que
dizia:
Este é terror dos homens, e o que o traz é
Agamemnon.
Antioco trazia por armas outro leão. Heitor, dois
leões de ouro em campo vermelho. Seleuco um touro.
Alexandre, um rei de ouro em seu throno em campo
azul. Alcibiades um Cupido. Lucio Papirio o Pégazo.
Cezar uma aguia preta. Pompeio um leão com uma espada
empunhada. Judas Macabeu um dragão vermelho
em campo de prata. Attila um açor coroado. E cada
um d'estes, posto que poderam tomar a figura das armas
em significação de feitos celebrados, e victorias
adquiridas, só quizeram dar-lhe as figuras conforme ao
seu pensamento; e Cesar, ao agouro que da aguia teve.
E descendo ás armas particulares dos reis, que sabemos:
As do imperador é uma aguia preta de duas cabeças
em campo de ouro, em memoria da de Julio Cesar,
e da união do Imperio Oriental, e Occidental. Armas
d'el-rei de França são tres flôres de lirio de ouro
em campo azul, que fôram milagrosamente dadas a el-rei
Clodoveu. Armas d'el-rei de Portugal, os cinco escudos
de azul em cruz, em signal do vencimento que o
primeiro rei D. Affonso teve dos cinco reis mouros no
campo de Ourique, e n'elles, e com elles, os trinta dinheiros
de prata, por que nosso Senhor foi vendido, em
memoria da sua Paixão, e do apparecimento que o
mesmo rei vio antes da batalha: por orla das armas
sete castellos de ouro em campo vermelho, e por timbre,
um Drago coroado. Armas d'el-rei de Inglaterra,
tres Leopardos de ouro em campo vermelho: posto que
d'antes tinha el-rei Arthur por armas tres corôas de
ouro em campo azul. Armas d'el-rei de Hespanha, os
castellos, e leões, tão conhecidos no mundo. Armas d'el-rei
de Frizia, um escudo de prata, riscado de linhas
vermelhas, e atravessado com uma banda azul. Armas
d'el-rei de Jerusalem, uma cruz de ouro nos extremos,
com cruzetas do mesmo metal, e outras pelos vãos dos
angulos. Armas d'el-rei de Polonia, duas aguias de prata
e um homem em cima de um cavallo, do mesmo metal.
Armas d'el-rei de Irlanda, uma harpa, e uma mão
que a está tocando. Armas do Preste João da India, um
crucifixo negro, com dois azorragues, em campo de ouro.
Deixo outros muitos, como os bastões de Aragão, as
[34]
cadeias de Navarra, a romã de Granada, as bandas de
ouro, e vermelho de Malhorca, e outras que querer contar
fôra infinito. Tem do mesmo modo as provincias
suas armas. Primeiramente, as quatro partes, em que
o mundo se divide: Azia, tres serpentes: Africa, um
elephante: Europa, um cavallo: A America, um crocodilo:
Italia tinha por armas antigamente o cavallo:
Thracia, um Marte: Persia, um arco: Scythia, um raio:
Armenia, um bode: Fenicia, um Hercules: Sicilia, uma
cabeça armada: Albania, um cágado: Frizia, uma porca:
Hespanha, um castello: Luzitania, uma cidade. As Republicas
tem tambem suas armas particulares: A de
Veneza, um leão com um livro nas unhas: A de Sena,
uma loba: A de Genova, um S. Jorge: A de Florença,
um leão com um livro de ouro. As Cidades, da mesma
maneira: Athenas, a Coruja: Roma, a aguia: Lisboa,
uma nau com os corvos, em memoria do corpo do glorioso
Martyr S. Vicente, seu padroeiro: Coimbra, o
drago, e a donzella coroada: Evora, as cabeças das vigias:
O Porto, a imagem de Nossa Senhora entre duas
torres: Leiria, uma torre entre dois pinheiros, e n'elles
dois corvos. E assim todas as outras. Porém isto é já
muito tarde, e gastámos n'esta materia mais tempo do
que convinha á das cartas, em que começamos; e porque
nas armas, e tenções nos não fique por saber algumas
significações, e figuras de armas dos particulares
senhores, e fidalgos de Portugal, que todas fôram
merecidas com louvores de gloriosos feitos: deixando
os animaes, significadores de fôrça, braveza, e velocidade:
e os planetas de poder, antiguidade, e clareza,
e outras figuras semelhantes: Banda significa postura
de taboa: Escada, o engenho por onde se cometteu
alguma obra de valor, ou difficultosa entrada, com risco
da vida: faxa, ou barra, representa victoria da batalha
singular de cavalleiro a cavalleiro, e quantas fôrem,
tantos diremos que são os vencimentos com que se
ganharam as armas. Parte de muro, torre, ou castello,
significa ser ganhado, entrado, ou soccorrido, com esforço,
e perigo da vida. Escadas, asteas, ou pedaços de
lanças, denotam subida trabalhosa, ou defensão arriscada
na mesma subida. Assim que a variedade dos corpos,
ou forma que vêdes nas armas, todas nasceram de
illustres façanhas, e valorosos feitos. E todas as das
[35]
empresas, e tenções, dão signal claro do animo, e pensamento
de seus donos: e com umas, e outras se devem
sellar as cartas, de maneira que se divizem as figuras,
e lettras d'ellas, como tenho dito.—Vejo (disse Solino)
que temos a carta cerrada, sellada, e com sobrescripto,
sem ainda sabermos nada do principal d'ella. Não vos
enfadeis (respondeu elle) que na noite de ámanhã a
abriremos, e leremos muito de vagar a estes senhores,
se não ficarem de agora cansados do sobrescripto.—Antes
(disseram elles) que só o dia seguinte lhes parecia
comprido, e vagaroso. E dando fim á conversação
d'aquella noite, deram o que d'ella ficava ao repouso,
que com a moderada recreação de horas bem gastadas
é mais aprazivel.
DIALOGO III
DA MANEIRA DE ESCREVER, E DA DIFFERENÇA
DAS CARTAS MISSIVAS
Mui satisfeito ficou D. Julio de ouvir a Leonardo
aquella noite na materia das armas; e quasi a escolhera
antes, que a das cartas. Por alguns particulares,
que desejava saber, quiz com mão alheia, por não parecer
importuno, perguntar algumas cousas a Solino, que
achou junto á sua porta; e depois de o saudar, lhe disse:
Como estaes depois da noite de hontem.?—Como o dado
(respondeu elle) que está de qualquer ilharga.—Deveis
de ficar do azar (tornou D. Julio) pois tendes tão poucos
pontos, que faltaes aos da cortezia:—Fiquei (tornou
elle) tão cansado das da carta de Leonardo, que lhe tomei
aborrecimento, e nem estou para vos servir, nem
para o dizer, e perdoae-me.—Logo (disse o fidalgo) não
quereis continuar na conversação d'esta noite.—Se a
carta (lhe tornou Solino) ha de ser tão comprida como
o sobrescripto, assim o imagino.—Pois a minha tenção
(proseguiu elle) era pedir-vos que na materia das armas,
que elle tocou, fizesseis hoje algumas perguntas
á minha conta sobre alguns particulares das familias
d'este reino.—Vós deveis buscar armas para me matar
(disse Solino) porque das de hontem sahi eu tão escalavrado,
que determinava fugir d'ella; e sei que tem
[36]
Leonardo tantos livros de armas, e gerações, que, se o
tirar a terreiro, havemos mister todo o inverno para o
ouvir.—Eu me contento (respondeu D. Julio) com saber
que elle tem os livros, e assim o escuso do trabalho:
porque n'elles lerei alguns feitos particulares dos Portuguezes
merecedores dos brazões que seus successores
possuem.—Bom seria (disse Solino) acabar as cartas
antes de entrar por esses feitos, e para isso vos irei
acompanhando até a casa de Leonardo, posto que tinha
outra determinação.—Porque vós não falteis (respondeu
D. Julio) quero ir mais cedo. E com esta pratica, e
outras que occorriam, foram passeando, e entertendo o
que ficava do dia, até que a sombra da noite, e uma
chuva miuda os fez recolher a casa de Leonardo, onde
os amigos esperavam já que elles chegassem; e com
Pindaro outro estudante seu companheiro, por nome
Feliciano, que, vindo-o a visitar, se aproveitou da occasião
em sua companhia. Festejaram todos a Solino;
e elle vendo o hospede, de novo se lhe inclinou com
mais auctoridade, e disse para os outros: Tenho inveja
á dita do senhor licenciado que veio ao abrir da carta,
que cerrámos sem elle, e com não pequeno trabalho.—Não
tivera eu por tal (respondeu o estudante) antes
por grande ventura, se do passado me coubera alguma
parte; e esta, que alcanço agora com o consentimento
d'estes senhores por meio de meu companheiro, tenho
por muito grande favor, e mercê de todos.—Essa humildade
(disse Solino) está acreditando mil esperanças de
vosso entendimento; e bem sei eu que o de Pindaro
sabe fazer esta eleição dos amigos tambem, como em
tudo o mais é discreto, e acertado: e para que entendaes
o logar em que vos fico, sabei que eu sou o mais
certo creado que elle tem entre os senhores presentes.
A esta cortezia respondeu Pindaro, e o estudante com
as suas, até que o doutor os despartiu, e disse a Leonardo:—Bem
gastado era o tempo em comprimentos
tão cortezãos, e tão devidos, se o desejo, que temos de
continuar a materia da noite passada, o não quizera
poupar todo para ella: e assim vos peço que me façaes
mercê, e a todos, de ir por deante.—Tendes razão (tornou
elle) de me aliviardes mais depressa do cuidado, em
que me mettestes. E tornando a traz, por me aproveitar
dos vossos principios, dissestes que cousa era carta
[37]
na origem do seu nome, os primeiros modos de escrever,
e o como entre nós se conservou; tratei do sobrescripto,
da cortezia, das lettras, do signal, das dobras,
e sello da carta, o que bastou para todos ficardes mais
enfadados, que saudosos.
Agora, começando a entrar na leitura das regras, saibamos
que cousa é carta missiva, ou mandadeira, e o
para que foi inventada; que pela definição de Marco
Tullio, a quem todos seguem, é uma messageira fiel,
que interpreta o nosso animo aos ausentes, em que
lhes manifesta o que queremos que elles saibam de
nossas cousas, ou das que a elles lhes relevam. Tres
generos de
cartas missivas assigna o mesmo Tullio,
aos
quaes alguns costumam reduzir muitas especies d'ellas.
O primeiro é das
cartas de negocio e de cousas que tocam
á vida, fazenda e estado de cada um, que é o para que
as cartas primeiro foram inventadas; que, por tratarem
de cousas familiares, se chamaram assim. O segundo,
de cartas d'entre amigos uns aos outros, de novas
e comprimentos de galantarias, que servem de recreação
para o entendimento, e de allivio e consolação
para a vida. O terceiro, de materias mais graves, e de
peso, como são de governo da republica e de matérias
divinas, de advertencias a principes e senhores e outras
semelhantes. O primeiro genero se divide em cartas
domesticas, civis e mercantís. O segundo em cartas
de novas, de recommendação, de agradecimento,
de queixumes, de desculpa e de graça. O terceiro, que é
mais grave e levantado, contém cartas reaes em materias
de estado, cartas publicas, invectivas, consolatorias,
laudativas, persuasorias e outras, que se pagam
a cada uma das que nomeei em todos os tres generos.—E
onde deixaes (disse D. Julio) as cartas amatorias
ou namoradas? que se na vossa edade não teem logar,
parece que o mereciam n'este díscurso.—Bem sei eu
(tornou Solino) quem as tomára no primeiro; mas o
sr. Leonardo já não joga com essas cartas.—Não me
esquecia de todo d'ellas (tornou elle), mas deixo-as para
que no fim das mais sejam melhor recebidas, e para
proseguir a materia quem agora as puder apurar.
—As do primeiro genero (disse o doutor) me parecem
cartas muito seccas, que é materia esteril para que
empregueis n'ella sem fructo o vosso entendimento.—Antes
[38]
(disse Leonardo) como essas foram as primeiras,
e d'ellas nasceram as leis e as regras para outras, será
razão que debaixo d'este genero tratemos das mais,
repartindo o pouco que eu soube dizer, por os logares
de cada um. E assim me parece, que como a carta que
escrevemos ao amigo sobre seu negocio; ao creado sobre
as cousas da casa; e o mercador ao outro sobre
seus tratos e mercancia; um aviso e uma relação que
lhe não podemos fazer em presença, fazendo-o por
meio de uma carta, devemos usar n'ella o que na pratica
costumamos que é brevidade sem enfeite, clareza
sem rodeios, e propriedade sem metaphoras, nem translações.—E
quando (disse o doutor) faremos breves em
uma carta?—Quando (respondeu elle de tal maneira, e
com tal artificio a escrevermos, que se entendam
d'ella mais cousas do que tem de palavras.—E como
póde ser? (tornou elle).—Por meio dos relativos e subsequentes
(disse Leonardo) que, sem nomear as palavras,
as repetem; e por ordem das sentenças e adagios
que sem entender as cousas as declaram; e n'isto se
adeantam muito as cartas da pratica familiar, que, se
escrevem de cuidado, e tem mais tempo de se furtarem
palavras para se subentenderem razões.—E que
cousa é enfeite ou affectação? (perguntou Solino).—É,
disse elle, o cuidado sobejo de enfeitar as palavras com
elegancia ou por via de epithetos, ou de escolha de
logar para as syllabas fazerem melhor som aos ouvidos.
E em favor d'esta opinião, dizia um homem insigne
d'este reino, e que teve n'elle os melhores logares
da republica ecclesiastica e secular, que a carta e a
mulher muito enfeitada, em certo modo eram deshonestas:
e eu antes seguira este voto, que o de alguns
rhetoricos, que deram á carta missiva cinco partes de
oração, convém a saber:
saudação, exordio, narração, petição
e conclusão: e se houvessemos de seguir o seu estylo,
mudariamos de todo o das cartas.—Nunca rhetoricos
(disse o estudante) souberam escrever cartas, se
as sugeitaram ás leis da oração. Mas parece que o sr.
Leonardo dá a entender que na carta se não devem usar
epithetos ou adjectivos por evitar o enfeite, e sobeja
elegancia d'ella: e eu tenho que sem elles se não póde
escrever.
—Os epithetos (proseguiu Leonardo) ou servem para
[39]
discripção e declaração das cousas ou para propriedade,
ou para ornamento e enfeite d'ellas. Os primeiros são
necessarios nas cartas como em tudo; os segundos menos,
os terceiros escusados. Para dizer ou escrever,
um
homem douto,
uma mulher formosa,
um cavallo ligeiro,
uma arvore
alta,
um caminho comprido,
um
peito forte, sào attributos
necessarios para declarar o que queremos dizer;
porque ha homem que não é douto, mulher que é feia, e
os mais. Os de propriedade como
ferro frio,
relva verde,
sol claro,
calma ardente,
areia sêcca,
pedra dura, estes são
pouco necessarios nas cartas: e sómente por comparação
ou em adagios se devem usar n'ellas, como dizendo,
é duro como pedra, ou
é dar em pedra dura, ou
é
malhar em ferro frio. Os de elegancia e ornamento, tenho
eu que se hão de degradar das cartas missivas
para fóra do termo d'ellas, como agora
firme soffrimento,
incansavel diligencia,
solicito desejo,
cuidadoso receio,
importuna lembrança,
desusada brandura, e outros que tem juiz
de seu fôro. Assim que não digo que faltem nas cartas
epithetos necessarios, mas que se escusem os sobejos;
nem se andem grangeando as palavras para fazerem
assento em o cabo da sentença, que será ir contra a
brevidade sem enfeite ou affectação.
—Parecia-me a mim (disse Solino) que a carta breve
seria a de menos regras; e que não estava a cousa nos
epithetos serem proprios ou necessarios. Uma carta
(proseguiu elle) póde ser breve, e levar escriptas muitas
paginas de papel; porque póde tratar de tantos
negocios ou cousas que as occupem, mas estarão relatadas
de modo que seja a leitura comprida, e a carta
breve.
—O segundo ponto (perguntou Pindaro) que é clareza
sem rodeio, me parece a mim que fica declarado n'essa
primeira parte; pois sendo breve a carta, e não tendo
enfeite nas palavras, será clara e sem rodeios.—Não
estaes no caso (tornou elle), que posto que a clareza é
parte da brevidade, a clareza é das razões, e a brevidade
das palavras: e assim póde a carta ser breve, mas
confusa; e clara sendo comprida: que muitos para dizerem
cousas querem estrada coimbrã, e caminho direito;
buscam rodeios e atalhos em que se perdem,
confundindo o que querem dizer. Em uma minha doença
escreveu um amigo, e dizia:
Disseram-me que a saude
[40]
de vossa mercê corria perigo na inconveniencia de medicos
discrepantes no remedio dos males d'essa doença. E fez estas
trocas onde podia dizer:
Soube que os medicos não se
conformavam na cura dos vossos males, que na duvida d'elles
corria risco a vossa saude. Outro me escreveu ha muitos
dias:
Se vossa mercê não está ausente das lembranças que
suas promessas me asseguraram de haver de ter muitas d'este
seu captivo. Havendo de dizer:
Se vos não esquece que me
promettestes de ter lembranças de mim. E porque ainda temos
logar de tornar aos particulares das disposições
das razões:
Passando ao terceiro ponto, que é
propriedade sem metaforas,
ou
translações.—A propriedade (disse o doutor)
era materia da noite passada, quando falastes das letras
e razões em seu logar, sem barbaria, nem impropriedade
no escrever: e como isto é parte do exterior
da carta, já hoje não tem dia.—A propriedade que vós
dizeis (accudio Leonardo) é exterior, mas muito differente
a de que eu trato, e não pouco importante ao
falar, e escrever, que é a propriedade das palavras na
sua propria significação, sem serem emprestadas por
via de translações para outros logares, que é termo
que argue nobreza de linguagem; e porque fique mais
declarado, sabei que dizemos em portuguez, falando
propriamente dos nomes:
Bando de aves,
cardume de peixes,
rebanho de ovelhas,
fato de
cabras,
vara de porcos,
alcatéa
de lobos,
tropel de cavallos,
cafila de camellos,
récua de
cavalgaduras,
manga de arcabuzeiros,
mó, ou
roda de homens;
e se, trocando isto, disséramos:
Um cardume de
aves, ou
uma alcatéa de ovelhas, ou
um fato de porcos, seria
impropriedade, e desconcerto. Dizemos tambem
nos verbos:
Chiar de aves,
balar
de gado,
grunhir de porcos,
ladrar de cães,
rinchar de
cavallos,
bramir de leões,
empolar de mares,
encapelar de
ondas,
assoprar de ventos,
etc. E se dissessemos
chiar de porcos,
rinchar de leões,
e
grunhir de cavallos, seria o mesmo erro. E porque
ha metaforas e translações tão uzadas e proprias, que
parecem nascidas com a mesma lingua, que como adagios
andam pegadas a ella, se devem trazer (quando
forem taes) nas cartas missivas, do mesmo modo que na
pratica se costumam. Dizemos dos nomes:
folha de espada,
lume de espelho,
veia de agua,
braços de mar,
lingua de fogo,
lanço de muro,
faxa de ferro, e
outras semelhantes: e
[41]
nos verbos:
lançar o cavallo,
fazer á
capa,
quebrar a palavra,
cuspir o pelouro,
arripiar a
carreira, e outras muitas:
e além d'estas tão usadas, e naturaes, que servem de
propriedade á lingua portugueza, ha outras nascidas
de proverbios, ou adagios, que tem o mesmo logar, e
antiguidade, como são
furtar o corpo,
ir
vento em pôpa,
nadar contra a agua,
ficar em
secco,
repicar em salvo,
tirar
barro á parede,
etc. E quanto a carta
tiver mais d'estas,
será mais breve, e cortezã; pois, como primeiro disse,
por este modo se entendem da carta mais coisas, do
que tem escripto de palavras.
Pelo contrario, usando, em logar d'estas, outras humildes,
populares, ou innovadas, será vicio na propriedade
da carta; como se nos nomes dissessemos:
um
feixe de cuidados,
um mar de encommendas,
um moio de
queixumes,
um golpe de razões; e nos
verbos, como:
enfeitar
o desejo,
tropeçar em cuidados,
navegar em desconfiança,
e outras muitas. Esta é a propriedade, de que trato, e
a que me parece que se deve usar no escrever das cartas
missivas; porque não soffre o estilo d'ellas o que
em a pratica, ou em outro genero de escriptura não
sómente se permitte, mas muitas vezes se deseja.
—Espero (disse D. Julio) que deis alguma limitação,
ou declareis a linguagem, que se deve usar n'este estilo
das cartas; porque encontro muitas muito mal escriptas,
cujos erros, a meu ver, nascem dos homens se
cançarem muito em quererem parecer singulares.—Posto
que isso pertence primeiro ao fallar, que ao escrever
(respondeu Leonardo) pois, como já disse, devemos
escrever como praticamos; as palavras da carta hão
de ser vulgares, e não já populares, nem exquisitas:
vulgares de modo que todos as entendam; e ao menos,
que a quem se escrevem, não sejam peregrinas: e
não já populares, que sejam termos humildes, palavras
baixas, que a cortezia não recebe: e que tão pouco,
em logar dos adagios, e sentenças, tenham anexins.
Tambem se deve fugir ao termo exquisito de palavras
alatinadas, ou carreteadas de outras linguas estranhas,
que sempre tem o sabor da sua origem.—Assim na linguagem,
como em tudo (accudio Feliciano) ficavamos
satisfeitos, se de aquelles tres generos, em que o senhor
Leonardo dividio as cartas, déra alguns exemplos
que nos allumiaram; porque nem as regras sem elles
[42]
ensinam de todo, nem se póde perder a lição de tão
bom estilo. O que eu não pedira, se foram dos vinte generos
de cartas, em que um rhetorico as dividio; que,
por querer dar leis, e partes a cada uma, as confundio
todas.—Em tudo (tornou elle) vos quizera satisfazer:
porém cartas mais se hão de escrever em occasião, do
que trazerem-se por exemplo; que é o porque eu
lhe nào déra regra certa, nem das muitas, que ha bem
escritas, se póde tirar; que esse auctor, que vós dizeis
que lhe assignou vinte generos, achará fóra d'elles infinitas
cartas, bem melhor escriptas, que as com que
os elle quer auctorisar. Porém, com o presupposto de
não dar preceitos:
As cartas do primeiro genero, familiares, domesticas,
civis, e mercantis, respeitam tanto a brevidade,
que não podem os rhetoricos dividil-as em partes, se
não forem nas da oração; e bastava para exemplo
aquella de Cicero a Cornelio, que dizia sómente:
carta de cicero a cornelio
"Alegrai-vos de eu não estar mal; pois terei o mesmo
contentamento de saber que estais bem."
E muito é mais para notar uma carta de Octavio
Imperador para Caio Druzo seu sobrinho, que contém
bem mais coisas, e avizos que palavras, e dizia:
carta de octavio a druzo
"Pois estais no Illyrico, lembrai-vos que sois dos Cezares;
que vos mandou o Senado; que sois moço; meu
sobrinho; e cidadão Romano."
E estas, e outras semelhantes, nem tem regra, nem
deixam de ser cartas. Mas porque não só nos ajudemos
das antigas, mas tambem com as nossas façamos pestoleta;
esta é breve, e domestica, que um cortezão escreveu
a seu amigo, a quem em uma ausencia deixára
sua casa; e dizia:
[43]
carta moderna a um amigo
"Estou tão confiado no que vos mereço, e tão seguro
no que de vosso animo tenho conhecido, que me não
dá cuidado a familia que deixei á vossa conta; senào
o trabalho, que vos dará o sustentalla: não procuro
saber d'ella mais, que novas de vossa saude; que em
quanto a tiverdes, estará sem sobresalto a minha
vida."
Á qual o amigo respondeu com brevidade; e dizia
d'esta maneira:
resposta
"N'esta casa só vós fazeis falta; mas como sois o tudo
d'ella, ainda que sobeja a minha diligencia, lhe falta
tudo. No que é servir-vos, a todos satisfaço, senão
o meu desejo, que é igual ás obrigações que vos tenho.
Vivei seguro; e gozai saude; que, em quanto a tiver,
porei por vossas coisas a vida."
—Não estão as cartas para desprezar (disse Solino) e
para me assegurar se a vossa memoria é archivo d'ellas,
ou se as ides fingindo de repente (ainda que isto é
menos curiosidade, que tenção) hei de pedir por parte
d'estes senhores que de alguma nos deis semelhantes
exemplos.—Não quero (disse elle) que acrediteis tanto
o meu entendimento com mostrardes desconfiança da
memoria; mas a troco do louvor vos hei de obedecer
nas que me lembrarem: e proseguindo nas da segunda
especie d'este genero, me parece carta civil, e breve
esta, que um amigo escreveu a outro, que mudava sua
casa para a terra, onde elle vivia; e dizia:
carta de um amigo
"Espero com grande alvoroço que venhais para esta
cidade, para que com vossa companhia viva n'ella contente,
e vós desenganado de quam pouco em si tem
que me possa alegrar, senão depois que vos possuir."
A quem o amigo brevemente respondeu em outra
que dizia:
[44]
resposta
"Assim como o desterro em o melhor lugar é penoso,
nenhum pode haver tão esteril, que, tendo a tal amigo,
não seja desejado. Vós sois a quem busco, é força que
me contente a parte onde vos achar; que as pedras
não fazem a cidade, senão os homens: nem as commodidades
da vida a sustentam, senão os amigos."
As mercantis posto que são segundo os tratos, e negocios,
e acodem mais a elles, que ao bom termo dos
comprimentos; não deixa de haver muitas tão bem
escriptas, que podem ter logar entre as melhores; e
ainda que não é d'ellas uma, que eu vi há poucos dias,
a darei por ser tão breve, e era esta:
carta mercantil
"Ha nova de Cossarios no mar; e por esse respeito
grande risco nas fazendas d'essa terra: porém a valia
d'ellas será muito avantajada, se chegarem a este porto
a salvamento; se a cubiça do interesse vence o perigo
das encommendas, ponde-as em ventura; que eu
a terei para mim por muito boa o vosso bom successo."
E assim não me desagradou outra, que dizia d'esta
maneira:
carta mercantil
"Com os tempos contrarios á navegação foram as
occasiões ao nosso trato: que, como as mercadorias
não foram requestadas de extrangeiros, estão ao presente
abatidas: enviae-me menos d'ellas para que, faltando,
mais as procurem os mercadores da terra; e
n'essa vos não descuideis de fazer emprego, mandando-me
o de muito boas novas vossas."
—Não me pareceu (disse o doutor) que tirasseis tão
boa doutrina de materia tão limitada; porque esse primeiro
genero de cartas tinha eu que não sahia de uns
termos e principios, que andam escriptos no panno da
serpe, como são:
Á feitura d'esta.
Esta não
é para mais.
[45]
Uma de v. m. me deram.
Pela de v. m. de
tantos do passado:
Depois de me encommendar em v. m. E d'aqui correndo
por
seus capitulos
de quanto a isto, e
quanto a
est'outro até
topar no
a quem Deus guarde.—Esses principios
(disse
Solino) estão já muito bolorentos; mas ainda para cartas
de mais ponto tenho outros grangeados de algumas
secretarias velhas, como impressão de Torres, de
que me valho nas pressas de uma boa nota, que não
são tão corriqueiros.—Não me atreverei eu sem esses
(disse Leonardo) a ir por deante pelo que vos hei por
notificado.—Pois assim é (disse Solino) quero obedecer,
ainda que perco grande valhacouto em os descobrir;
porque sabei que é comer feito para os ronceiros d'esta
mecanica; e o mór trabalho d'ella é desencalhar a penna
com a primeira palavra: e são quatro:
Como quer
que,
Tanto que,
Depois que, e
Antes que. E sabei
que não
ha proposito, que saia das unhas d'estes bilhafres; e
nos capitulos de
quanto isto etc., se mette em logar
do
quanto,
no que toca a tal, e
no que toca a qual; que, a meu
vêr, era melhor o
item, que tinhamos tomado aos
latinos.
Mas os notadores de espada solta esgrimem já
agora sem estes bordões maravilhosamente.—Bons estão
os principios (disse D. Julio) porém haveis de metter
a lettra em todos elles, para que nos não passem
por alto.—Antes por muito rasteiros (respondeu elle)
vos ficarão entre os pés. Porém tende tento, e vereis
que são principios de parafuso e que se encaixam, e
viram para todas as partes como grimpa.
"Como quer que os meus serviços montem ante vós
tão pouco, e a vontade por minha seja de menos preço,
etc.
"Como quer que o animo, com que sou vosso, me não
deixa perder occasiões, em que vos sirva, etc.
"Tanto que soube que era cousa de vosso gosto deixar
esta empreza, etc.
"Tanto que me vi desfavorecido de vossas lembranças,
lancei mão do meu atrevimento, etc.
"Depois que me apartei de vós, não soube mais de
mim, que para sentir saudades vossas, etc.
"Depois que meus males me deram logar para tomar
esta penna na mão, a empreguei em procurar novas
vossas, etc.
[46]
"Antes que me desculpe de meus descuídos, etc.
"Antes que vos dê larga conta dos meus successos,
etc."
De modo, que são como materia prima, em que moldareis
tudo o que quizerdes: porém não quero ir adeante,
e tomar o tempo ao sr. Leonardo; que o vejo entrar
já por outras cartas missivas.—Antes (lhe disse
elle) tomei folego em quanto vos ouvia falar n'essas.
E tratando das do segundo genero, que são cartas de
novas, a que chamam narrativas de cumprimentos, que
se dividem em cartas de agradecimento, recommendação,
desculpa, queixume e outras muitas, cartas de galantaria
ou jocosas, como chamam os latinos: Para as
narrativas nos podia servir de exemplo aquella em que
o imperador Tiberio Cesar dava novas de Italia a seu
irmão Germanico, que dizia:
carta de tiberio cezar a germanico
"Os templos se guardam; os deuses se servem; o
senado está pacifico: a republica prospera; Roma sã;
a Fortuna mansa; o anno fertil; e isto, que ha aqui em
Italia, desejo que da mesma maneira gozeis em Asia."
Deixo a que Cesar escreveu a Roma, das novas de
Persia, que continha só tres palavras:
Cheguei: vi:
venci.
E a de Gneu Sylvio, escrevendo as novas da Farsalia,
que dizia:
carta de gneu sylvio
"Cesar venceu: Pompeio morreu: Rufo fugiu: Catão
se matou: acabou a dictadura; e perdeu-se a liberdade."
E chegando a alguma, que com menos aperto faça
sua relação, me não pareceu engeitar a que Marcello
escreveu ao senado romano, dando-lhe novas da rota
de Fulvio, que dizia:
carta de marcello ao senado
"Bem sei que a nova, que vos mando, é de sentimento.
Fulvio Proconsul com treze mil homens foi
[47]
desbaratado e ferido. Porém não vos cause temor este
successo; que eu sou o mesmo, que, depois da batalha
de Canas, mortifiquei a soberba de Hannibal, vencedor
d'ella: contra elle caminho brevemente com o meu exercito
para lhe fazer mais breve a alegria d'este triumpho;
e em vós desejo muito o mesmo animo que levo."
—Uma carta (acudiu o doutor) me escreveu os dias
atraz um amigo, de novas de Lisboa, que certo, pela
brevidade, me pareceu digna d'esta lembrança, e dizia:
carta moderna
"Esta cidade está abastada, mas descontente: o mar
cheio de corsarios: os portos de receios: o paço de requerentes;
e elles de queixumes: para os validos tudo
é pouco: aos desamparados não cabe nada: do remedio
de tantos males não ha boas novas; e as minhas
são que entre todos elles me falta a vossa companhia."
—Essa (disse Leonardo) se póde ajuntar por exemplo
ás antigas que relatei: e por não me empregar em outras,
que seria demasiado trabalho a todos ouvil-as, e
a mim recital-as, peço-as de recommendação de alguma
pessoa ou de algum negocio, nas quaes tem mais logar
a disposição e offerecimento dos rhetoricos, encarecendo
os merecimentos da pessoa ou a importancia
da causa que encommendaes, facilitando-a na condição
e vontade a quem a pedia; concluindo com a petição e
offerecimento de vossa parte: e todas estas, e ainda
um exordio de sentença, que hei por escusado, se vêem
em uma carta que ha pouco que li, que um rei de Portugal
antigo, escreveu ao de França, encommendando-lhe
um fidalgo que ia estudar a Pariz; e dizia tirada
de latim, em que estava em um livro extrangeiro:
carta de el-rei de portugal ao de frança
"Entre as virtudes e excellencias dos principes, me
pareceu muito digna de louvor a de terem particular
cuidado e lembrança dos vassallos benemeritos em seu
serviço, para com favores e mercês os ajudarem: e por
esta razão me pareceu que devia encommendar a vossa
magestade D. Pedro de Almeida, que por occasião de
[48]
seus estudos vae a essa côrte de Paris, posto que claramente
conheço que, sem recommendação minha, vae
assás encommendado pela liberalidade e brandura com
que vossa magestade honra e recebe os homens tão
illustres como elle é. Além do que, tem elle tantas
partes e entendimento, que não achará melhor terceiro,
que a si mesmo. Deixo seu pae D. João de Almeida
conde de Abrantes, que com suas singulares virtudes
e claros feitos, adquiriu e conservou até á morte muito
estreita privança e amizade com meus antecessores e
commigo; de sorte que ponho em duvida se importe
mais a seu filho a minha carta, se a fama e lembrança
de seu pae. De qualquer modo o encommendo muito a
vossa magestade. E de minhas cousas não offereço de
novo nada; pois pela irmandade de meus antepassados
e minha, em toda a occasião deve vossa magestade
usar d'ellas, como se foram communs a ambos."
Outra achei no mesmo logar, de el-rei D. Manuel,
mais breve que a passada, que era de seu antecessor,
a qual elle escreveu ao mestre de Rhodes, encommendando-lhe
um noviço portuguez, que ia servir a religião
que será para exemplo das menos enfeitadas. O
grão, mestre era o cardeal Pedro de Buzon, e dizia:
carta de el-rei d. manuel ao grã mestre de rhodes
"Ayres Gonçalves, filho de Henrique de Figueiredo,
vae a tomar o habito d'essa religião: não pareceu fóra
de proposito nem de humanidade, encommendal-o a
V. P. assim por sua nobreza, e ser creado de minha
casa, como pelos serviços e merecimentos de seus passados
com os reis meus antecessores; e finalmente por
seu bom esforço e virtude. Rogo a V. P. que com sua
costumada brandura o favoreça de sorte que n'elle se
accrescente o valor e a devoção que leva: e não porei
esta obrigação no menor logar das muitas que tenho
a V. P."
As cartas de agradecimento tem o campo mais largo
para n'ellas se espalhar a penna, e o entendimento;
pois quem mais se obriga e encarece o que recebe,
escreverá com melhor termo, não sahindo dos da carta
missiva: e já os antigos não desconheciam esta galanteria;
[49]
pois Lybanio respondendo a Demetrio, que o
obrigava a que lhe pedisse, escreveu assim:
carta de lybanio a demetrio
"Não daes logar a que eu vos peça, porque me mandaes
tudo. Ainda bem as arvores não dão seu fructo,
quando vossos creados m'o trazem: e do que até nos
agros se sente a falta, eu a não tenho. Como me haverei
n'isto? que o lavrador, quando o tempo lhe nega
a agua, então a pede: porém, se chove, contenta-se
de vêr que favoreceu o céo suas esperanças."
O queixume por carta se deve fazer com toda a moderação
que a urbanidade requere: e póde n'estas servir
para exemplo e lembrança a que Olympias, mãe de
Alexandre, respondeu a seu filho, a uma em que elle
se assignava por filho de Jupiter, que dizia:
carta de olympias a alexandre
"Muito me alegro com a victoria que alcançastes da
cidade de Tyro; e com todas vossas venturas e façanhas:
porém tive por grande affronta minha vêr que
vos nomeaes por filho de Jupiter na carta que d'esta
nova me escrevestes. Estimarei muito, meu filho, que
aquieteis n'isso o pensamento, e me não leveis a juizo
ante a deusa Juno; que algum grande mal me ha de
ordenar, sabendo que por lettra vossa me chamaes
manceba de seu marido."
E se me não parecêra um pouco enfeitada uma carta
que Angelo Policiano escreveu ao grande Lourenço de
Medicis, a podéra pôr em exemplo da moderação de
queixume, porque dizia:
carta de angelo policiano ao duque de florença
"O poeta é semelhante ao cysne na brancura e suavidade,
em ser affeiçoado a correntes de agua e amado
de Apollo. Comtudo, dizem que o cysne não canta senão
quando o vento zephiro respira. Não é logo muito
[50]
que eu seja mudo tantos dias, sendo poeta vosso, se
vós, que sois meu zephiro, n'elles me faltaes."
As cartas jocosas, ou de galantaria, tem mais campo,
e liberdade para se poderem usar n'ellas alguns termos
fóra das limitações das nossas regras; porque assim
em se entenderem mais, como em se sujeitarem menos,
ficam desobrigados das primeiras leis. que são
brevidade
sem enfeite:
clareza sem rodeios:
propriedade sem metaphoras;
pois o termo da graça e galantaria, n'isso se
differença do sizudo e pontual; não negando que ha
algumas que não perdem a graça nem o sizo, como é
uma que Lybanio escreveu a Aristoneto, que dizia:
carta de lybanio a aristoneto
"Onde vos achaes, sei que dizeis sempre mal de mim;
eu pelo contrario não perco occasião de dizer louvores
vossos; porém quem a ambos nos conhecer, a nenhum
de nós ha de dar credito."
Das mais ha tantos e tão differentes exemplos, que
seria aggravo a cada uma das outras trazer aqui algumas
bem escriptas. Só direi que uma especie d'ellas
é narrativa, motejando do mesmo, que contam, ou
das novas que dão; que não são por esse respeito pouco
engraçadas. Ha outra das de disbarates, que, parecendo
que se desviam nas palavras do proposito que tomam,
dão a entender, como em enygma, o pensamento de
quem as escreve; e são estas graciosas com subtileza.
Outra ha das de murmuração em materias leves, como
satyras menores: e umas e outras tem a galanteria no
pintar e descrever as pessoas e as cousas, com apodos
graciosos, encarecimentos desuzados, palavras facetas,
phrase humilde, accommodada sempre ao sujeito. É
certo que n'isto tiveram mão particular os portuguezes,
que escreveram ao gracioso, que nem os italianos
na phrase burlesca, nem os hespanhoes no estylo picaresco
os egualaram.
—Não vos houvera eu de consentir esse salto (disse
Solino) deixando tantos exemplos em aberto, se não
tivera pensamento de cobrar a demasia n'outra occasião;
e assim por isso, como por ser já passada tanta
[51]
parte da noite, vos peço que façaes a vontade ao sr.
D. Julio com essas cartas Reaes, de Estado e Governo,
que as está desejando com a vida; pois a sua é nadar
na altura de cousas semelhantes.—Eu vos mereço (respondeu
o fidalgo) a boa opinião em que me tendes:
porém egualmente me contentam todas as cousas em
que fala o sr. Leonardo: e porque sempre as ultimas
me ficam parecendo melhor que as primeiras, posso
desejar esse terceiro genero de cartas; e se d'elle tornar
ao primeiro, farão o mesmo effeito na minha satisfação.—Para
responder a esse favor (tornou Leonardo)
havia mister o tempo que hei de gastar nas cartas
que me ficam: e assim ou uma ou outra cousa me
havei por perdoada.
Não deixou o doutor ir os cumprimentos por deante,
dizendo que eram em prejuizo de terceiro; e proseguindo
Leonardo, disse:
—As cartas do terceiro genero, que, pelas materias
importantes, e differença das pessoas, são mais graves
e humildes; posto que se incluem algumas d'ellas
á oratoria, aproveitando-se da elegancia e razões para
persuadir, consolar, dar louvores ou reprehender; e
posto que d'estas estão cheias as chronicas e annaes
de todos os reinos, recitarei algumas que pareçam
menos vulgares e mais breves para exemplo, como é
uma que os consulares C. Fabricio e C. Emilio escreveram
a el-rei Pyrrho sobre uma consideração em materia
de Estado, que dizia:
carta de fabricio emilio a el-rei prrho
"Pelos aggravos que de vós temos recebido, o maior
cuidado nosso é fazer-vos guerra com animo inimigo e
braço esforçado: porém, para exemplo commum de
fidelidade, nos pareceu conservar-vos a vida, porque
com a perda d'ella nos não faltasse um contrario valoroso
a quem vencer. Nicias, vosso particular, veiu ter
comnosco, pedindo-nos preço certo por vos dar morte
occulta; em que nós não consentimos, fazendo-lhe perder
a esperança de tirar fructo da sua maldade. Juntamente
assentámos dar-vos este aviso; porque, se alguma
cousa acontecer, se não presuma que sahiu do
nosso conselho; e não sendo o intento d'elle pelejar
[52]
por preço, premio ou engano, vós, á falta de cautella,
percaes a vida."
Tambem me não parece indigna de lembrança uma,
com que Rhodoge, mãe d'el-rei Dario, o reprehendia, e
aconselhava na segunda expedição contra Alexandre;
que foi a que se segue:
carta de rhodoge para elrei dario, seu filho
"Deram-me novas que ajuntaveis poderosos exercitos
de todas vossas gentes e das alheias, para de novo
offerecerdes batalha a Alexandre. Não sei a que effeito;
pois o poder de toda a redondeza não basta para pelejar
com os deuses immortaes que a elle o favorecem.
Deixae esses pensamentos altivos; apartae-vos da vangloria
d'elles, concedendo á grandeza de Alexandre alguma
cousa; que melhor é deixar o que não podeis
ter, para gosar livremente o que possuis; que, querendo
dominar tudo, ficar sem nada."
Cada um dos presentes gabou estas cartas com tanto
extremo, que não deixaram que com ellas acabasse
Leonardo sua obrigação; porque (disse D. Julio) já pelo
voto de Solino, estas são as cartas, que entram na jurisdicção
de minha curiosidade, não consinto que nos
exemplos seja este genero mais limitado; mórmente
que d'este se tira outra doutrina mais que a das cartas,
que é a variedade das historias e occasiões d'ellas.—Eu
(respondeu Leonardo) ainda tinha cabedal para ir
adeante, se as horas tornaram atrás; mas partirei
(como dizem) a contenda pelo meio, recitando uma
carta, que o grã senhor dos turcos escreveu aos amazonios;
e a valorosa resposta que elles lhe mandaram:
e dizia a primeira:
carta do turco aos amazonios
"Se por defensão de vossa liberdade sustentáreis
guerra contra meu poder, não vos tivera tanto por
inimigos, como por valorosos cidadãos, que pela patria,
filhos, parentes e amigos punheis as vidas. Porém
com nenhuma razão me persuado que os que deixaram
[53]
tantos annos governar o reino a mulheres (como
tenho ouvido) recusem agora o imperio, e governo de
homens valorosos."
E a esta carta responderam elles outra, que dizia:
resposta dos amazonios
"Este reino das amazonas, que, como por affronta
nossa nomeaes, com o seu mesmo exemplo nos aconselha
não obedecer a outrem: porque temos por infamia
e torpeza que o exforço varonil seja vencido do
espirito e braço feminino. Pelo que deveis julgar por
invenciveis em armas, e dignos do governo e principado
do mundo homens, entre os quaes até as mulheres
apprenderam a reinar."
E porque com exemplos gentilicos e barbaros não
dê fim á conversação d'esta noite, direi por remate
uma carta que o veneravel sacerdote Beda escreveu a
Carlos Martelo, rei de França, e aos mais potentados
d'aquelle reino sobre a entrada dos mouros em Hespanha,
que dizia:
carta do veneravel beda a carlos martelo
rei de frança
"Em quanto se move perigosa e cruel guerra na
christandade, se apparelha notavel ruina de toda a
Europa: porque os sarracenos, occupada a Africa e
Libya, começando de Ceita, tem conquistada toda a
terra de Hespanha, tirando a das Asturias e Cantabria.
Africa, que o capitão Belizario cobrou aos romanos, e
que cento e setenta annos obedeceu a seu imperio,
juntamente com a Hespanha Betica, tem tomado os
mouros, fazendo-a obedecer a seus falsos ritos, com
grande ignominia e affronta do nome christão. Que
cousa póde haver mais excellente, valorosa e pia, que
contra estes inimigos de Deua tomar armas? Que fizeram
os suevos, os allemães e os mais varões do nome
christão, que com tão grandes destruições tendes perseguidos?
Perto estào, e sobre vossas cabeças os sarracenos,
que com soberbo jugo ameaçam a toda a redondeza
[54]
da terra. N'elles tendes formosissimos reinos,
grossas cidades, ricos despojos; e vos esperam grandes
triumphos da victoria: e principalmente incomparavel
premio de gloria com Christo nosso Salvador, que
para tão santa empreza com continuos brados vos está
chamando."
Certo, disse o doutor, que, se pudéra dilatar a noite
pelo interesse de tão proveitosa doutrina; mas porque
n'esta se não ha de dar fim ao nosso exercicio, fiquem
algumas perguntas, que agora escuso, para outra occasião,
pois agora a não tiveram as cartas amorosas nem
as de desafios.—As primeiras (replicou Leonardo) deixei
por ser improprio da minha edade tratar d'ellas;
as segundas, por me não embaraçar com o duello que
está reprovado. Porém fica o campo livre para os mancebos.
Com isto se despediram dando-se boas noites:
e o estudante foi encarecendo ao companheiro o muito
que o espantára vêr tanta côrte em uma aldeia; que
as cousas achadas onde não se esperam, são de maior
admiração, e de mais estima.
DIALOGO IV
DOS RECADOS, EMBAIXADAS E VISITAS
Amanheceu o sol tão claro e gracioso, que alguns
dos amigos por se lograrem d'elle com a occasião da
caça se espalharam pelos montes; mas depois de
horas de vespera visitou o estudante em companhia
de Pindaro ao doutor Livio, com quem passaram a
tarde n'um seu jardim em boa conversação, esperando
a da noite, a que elles foram os primeiros que acudiram,
e se acharam em casa de Leonardo; que
commummente nos lettrados se accende melhor o desejo
de saber, e não n'aquelles aos quaes lhes custou menos.
Sentaram-se á vista do fogo, que á conta dos hospedes
estava melhor ordenado; e depois de gastarem
algumas palavras de cumprimento, chegaram D. Julio
e Solino a quem todos fizeram muita festa; e, reprehendidos
da pequena tardança, disse Solino:—Grande
[55]
espaço ha que eu pudera gosar esta companhia, se me
não detivera em esperar resposta de um recado, que
mandei ao sr. D. Julio.—E eu (respondeu elle) se vos não
encontrára, ainda não tinha entendido o vosso moço;
porque de maneira embaraçou o que me mandaveis dizer,
que nem por discrição pude tirar o recado: nem
vos desfaçaes d'elle para os que forem de importancia,
que val a peso de ouro.
A isto se começaram todos a rir, e tornou Solino:—O
meu moço, sr. D. Julio, tem desculpa em ser
nescio, porque é meu moço; que, se soubera mais,
eu o servira a elle; mas os creados dos grandes, como
vós, esses hão de ser discretos, pois são tão bons
como eu: e comtudo eu vos sei dizer que ha aqui
moço que no dar um recado o pudera fazer como ao
que lá mandei, que não é dos peiores da sua ralé, e
já entermette de lêr carta mandadeira: mas nos recados
ainda agora lê por nomes, e não acerta a nenhuma
cousa.—Pouca paciencia tenho (disse o doutor) a um
creado que esperdiça o entendimento de seu amo: mandaes
um recado concertado, discreto e cortezão: e o
madraço, que o leva, muda-lhe os trastos e desentôa
com uma parvoice que vos desacredita, como com os
meus me tem acontecido mil vezes.—Nos vossos não
é muito (disse Solino) que daes os recados guarnecidos
de rhetorica com seus vivos de latim, que são mais
perigosos na bôcca d'estes, que vidro em mão de menino:
mas os meus, que não passam de quatro palavras
em linguagem corrente, e que assim os virem do
carnás e me mettam em vergonha, não é desgraça?
Ora prometto que os de importancia eu mesmo os leve
como aconteceu ao cortezão ausente, que levou elle
proprio a carta a sua mulher: e os que houver de dar
o meu moço, que sejam seus, por não andar remendando
o burel da sua natureza com o trabalho da minha
disciplina. D'aqui por deante bôcca faz jogo: digo,
que o que o meu moço disser, elle o diz, e que me não ha
de chamar por auctor das suas impertinencias.—Certo
(disse Leonardo) deixando de tratar dos meus, e vossos
recados, que importam menos, e de outros em que
vae tão pouco, que é uma das cousas de maior consideração
aos reis, principes, republicas, e aos grandes
mandarem suas embaixadas, visitas e recados por homens
[56]
de auctoridade, discretos e bem disciplinados,
em cujas razões e procedimentos consiste muitas vezes
o bom successo do que pretendem. E assim os reis,
principes e republicas nas materias de estado; as cidades
e povos nas occasiões das côrtes; os senhores
particulares nas visitas; devem sempre escolher homens,
que no entendimento se avantajem dos outros,
porque não sómente conseguem o fim da pretenção de
quem os manda; mas o acreditam: e porque ás vezes
por respeitos, privança e valia se antepõem os menos
sufficientes para estes cargos, se deitam a perder negocios
de uma republica, em que consiste a quietação
e honra d'ella.—Pouco e pouco (disse Pindaro) se foi o
sr. Leonardo á materia dos recados, que não ficam fóra
de seu logar, depois de o terem as cartas missivas; e
bem se póde fazer a noite bem assombrada com tão
bom sujeito.—Desculpado estou (respondeu elle) com o
trabalho, que na de hontem cahiu á minha conta, em
fugir d'elle; mas não de approvar a vossa advertencia.
A todos os mais pareceu que seria acertado tratarem
a materia de mais longe; e pediram ao doutor que, tomando-a
á sua conta começasse.—Bem pudera usar (disse
elle) do privilegio do sr. Leonardo, e de outros para
minha escusa; porém ainda que os tinha, e qualquer
dos presentes mais sufficiencia para este encargo por
lhe não pôr a elles ruim fôro, me dou por obrigado.
Digo que
recado é nome que entre nós tem a
etymologia.
A significação é muito duvidosa, pelo modo em
que usamos d'elle: porque, se houveramos de derivar
este nome do verbo italiano
recare, que é
trazer; ou do
verbo
recapacitare que é
recapacitar (d'onde elles chamam
recapacitar ao
recado) nunca
disseramos d'elle tanto,
como na nossa lingua portugueza significamos; mas
se lhe buscarmos a origem do latim, virá mais ao nosso
modo pela differença do messageiro ao que leva recado:
que o primeiro
missa gerit, faz as cousas que lhe
mandam; e o segundo
recautus, este é homem
acautelado,
que sabe o que ha de fazer no que está á sua
conta; que assim convém mais com o nosso modo de
falar, quando dizemos
homem de recado, que quer
dizer
de importancia, posto a bom recado, que é seguro, e
com cautella:
tardar e arrecadar, que é levar ao fim o que começou:
porém seja uma cousa ou outra, ou ambas, o principal
[57]
recado de todos é o do embaixador; e estes são
de duas maneiras, ou o que o principe manda a outro
por occasião successiva; ou o que de ordinario assiste
em sua côrte, para conservação da benevolencia e amisade
que entre elles ha: estes segundos tinham os romanos
nas provincias junto á pessoa do consul, que as
governava com titulo de legados, e com elles despachava
os negocios de importancia. Mas aos primeiros
chamavam elles oradores, por serem mui semelhantes
no officio de persuadir, mover e obrigar; e ainda em
nossos tempos se aproveitaram muitos d'essa arte,
sendo escolhidos para o cargo de embaixadores.—Eu
(disse Leonardo) tenho um cartapacio não pequeno de
falas e orações de embaixadores portuguezes feitas a
grandes principes, e não pouco doutas e elegantes,
como foi uma que fez o bispo D. Garcia do Menezes ao
papa Xisto, indo por embaixador por mandado de el-rei
D. Affonso V, e por capitão de uma armada que
elle mandava contra os turcos em favor da egreja no
anno de mil e quatrocentos e oitenta e um: e outra,
que fez o doutor Diogo Pacheco ao papa Julio, indo
com o arcebispo de Braga por embaixador a lhe dar
obediencia por el-rei D. Manuel no anno de mil e quinhentos
e cinco: e outra, que fez o mesmo doutor ao
papa Leão, indo com Tristão da Cunha embaixador a
lhe dar obediencia com aquelle famoso ornamento, que
ainda agora é dignamente celebrado na egreja romana
assim pela grande devoção d'aquelle pio e catholico
rei, no anno de mil e quinhentos e quatorze, á qual o
papa respondeu em publico com uma doutissima oração
de louvores do mesmo rei. E não é este costume
só dos nossos embaixadores, mas de todos os extrangeiros,
assim quando eram enviados a este reino, como
a outros. Vindo a este por embaixador de el-rei Francisco
de França a el rei D. Manuel, que estava em Almeirim,
no anno de mil e quinhentos e seis, Monsieur
de Lanjaca, governador de Avinhão, lhe fez uma douta
oração em sua chegada: fóra outras muitas com que
pudera allegar.—D'esses exemplos ha muitos (disse o
doutor), e continuando com o que convém mais ao fim
do nosso intento, devem ser escolhidos para este cargo
de embaixador os homens das familias mais illustres
do reino, dos illustres os mais discretos e cortezãos,
[58]
d'estes os mais animosos e liberaes, dos animosos os
mais apessoados, e de todos os mais bem acostumados;
e são todas estas partes tão necessarias ao embaixador,
que com a falta de qualquer d'ellas ou arriscará o
credito do principe, que o manda, ou o negocio de que
vae a tratar por sua parte. Primeiramente ha de ser
illustre por auctoridade de seu rei e de seu reino, e
dos illustres d'elle, e por honra tambem do principe a
que é mandado, pois ha de fazer as partes de um, e
assistir á ilharga do outro. E assim n'este reino, e nos
vizinhos a elle vimos cada dia entrarem embaixadores
muito chegados em sangue ás casas dos reis que
os enviaram, e sahirem outros da mesma qualidade;
o que não só tem exemplo dos reis da Europa, mas da
Persia, Japão e outras remotas partes do oriente. Depois
de illustre ha de ser discreto e cortezão, porque
parece que mais que todas as outras partes, lhe está
requerendo o mesmo cargo aviso, entendimento, discrição
e cortezia para tratar as cousas convenientes
á sua embaixada, encobrindo, desculpando e persuadindo
o que a seu rei convém; que esta é a differença
do recadista ao embaixador: que o primeiro relata o
que lhe mandam que diga: o outro dispõe, ordena e
conclue o que lhe encommendam que faça: um leva o
recado na lingua, outro no peito, como disse um embaixador
dos romanos aos carthaginezes na guerra de
Sagunto, que levava a paz, e a guerra dentro no peito;
e assim não vindo elles no que os romanos pediam, declarou
a guerra. Além d'isto como o embaixador é um
terceiro, e conciliador da amizade de dois principes,
nenhuma cousa lhe é mais importante, que o entendimento,
e tambem o ser cortezão lhe importa muito,
pois a sua principal assistencia é no paço, e junto á
pessoa do principe, com communicação dos principaes
senhores do reino; e ás vezes por esta parte sendo
engraçado, e acceito áquelle a quem é mandado, acaba
mais facilmente os negocios e pretenções de quem o
manda. Ha de ser animoso e liberal; o primeiro, porque
nas materias que tocarem á guerra, tregua e liga,
ou confederação com seu principe, se não mostre por
sua parte acanhado, timido nem pusillanime: antes obrigue
com seu exemplo a que o respeitem e temam; e
tambem porque na occasião em que se offerecer ao
[59]
senhor a quem assiste, acredite com o conselho e com
as obras as armas de seus ascendentes e naturaes. E
o segundo, porque com a magnificencia se conquistam
mais vontades e animos extrangeiros, que com qualquer
outra valia, por grande que seja; e posto que
esta parte a todas as pessoas illustres é necessaria, e
em todos os cargos de guerra e officios da paz é tão
estimada, no de embaixador é muito mais proveitosa
para saber o aviso, o secreto, o intento e a cautella
que convém ao de sua embaixada, e para mover os
ministros e validos, em cuja mão ou conselho está seu
negocio. Convém além d'isto que seja o embaixador
homem apessoado, que pela vista obrigue a respeito e
veneração; que em outro modo o corpo pequeno em
pessoas de grande logar lhes tira muita parte do que
se lhes deve. E um doutor nosso de muito grande nome,
e pequena estatura, mandou pôr ao pé de um retrato
seu uma lettra que dizia:
A presença diminue a
fama.
E outro do mesmo grau, e não de maior corpo, indo
d'este reino com uma embaixada a um rei assás poderoso,
vendo-o elle tão pequeno, lhe perguntou motejando
d'elle: "Se el-rei seu irmão tinha em seu reino
outros homens mais apessoados que enviasse com semelhante
cargo?" Ao que elle respondeu valendo-se do
entendimento, e animo que tinha: "Que na corte d'el-rei
seu senhor havia muitos homens do grande pessoa,
e partes, a que encommendar aquelle cargo; mas que
para sua magestade lhe pareceu que elle bastava, e
por isso o mandára." Finalmente é de muita importancia
ser bem acostumado, para com sua temperança,
continencia, e bom termo conservar, e acreditar o bom
nome, e fama de seu rei, a honra de sua patria, e da
propria pessoa. E porque com alguma demazia de seus
costumes não faça com que se diminua, e perca o respeito,
liberdades, e exempções que tem os embaixadores,
como aconteceu aos da Persia, que vieram a el-rei
Amyntas de Macedonia, que foram mortos por traça
de Alexandre, filho do mesmo rei, o qual, não podendo
soffrer sua estranha dissolução, mandou alguns
moços de bellissima figura, que em habito de damas
os servissem á meza, levando escondidos punhaes com
que se vingassem de qualquer deshonesto acometimento
[60]
dos embaixadores; que usando de sua demasiada
luxuria foram mortos a punhaladas. O rei da Persia
offendido de se não guardarem com os seus as leis dos
embaixadores, mandou um poderoso exercito contra
el-rei Amyntas; porém o general d'elle sabendo como
o caso passára, se retirou sem querer dar batalha aos
Macedonios. Tambem importa muito que os embaixadores
sejam escolhidos de sujeito acommodado aos negocios,
de que hão de tratar; que tal occasião se offerece,
em que convém serem humildes; e outra, em que
é melhor mostrarem-se arrogantes; tal, em que hajam
de ser animosos, e arriscados; e outras brandos, e dissimulados.
Francisco Dandalo, embaixador dos Venezianos
ao Papa Clemente V para levantar o interdicto
ao Senado, contra quem estava iroso por razão das
coisas de Ferrara, esteve lançado de bruços grande espaço
á meza do Summo Pontifice, com uma cadeia de
ferro ao pescoço; e com tantas lagrimas, e palavras o
obrigou, que alcançou d'elle o que pedia. Este por sua
grande humildade foi chamado
cão, e por seu valor
succedeu
no Ducado de Veneza. Pelo contrario Orfato Justiniano,
homem de letras, e animo generoso, embaixador
do mesmo Senado a el-rei Fernando de Napoles,
que pelo mau animo, que contra os Venezianos tinha,
não fazia d'elle a conta, e estima que seu valor merecia.
Orfato lhe mostrava tão pouca inclinação, e humildade,
que o rei indignado mandou fazer tão baixa a porta,
por onde entrava a lhe falar, que á força lhe fizesse
dobrar o pescoço: porém elle entendendo a tenção de
Fernando, entrou com as costas para diante, e voltando-se
direito na casa fez a mesma cortezia, que costumava.
Outro dia achando-se em um banquete, que o
rei mandou fazer, dando-lhe de proposito os convidados
tão estreito lugar que achava sua auctoridade,
deixando o que tinha se sentou sobre uma rica toga,
que trazia vestida; e acabado o banquete, a deixou ficar
como os outros assentos.—A mim me parece (disse
Leonardo) que os attributos mais importantes ao embaixador,
e que sempre n'elle devem andar annexos, são
esforço, e entendimento, que são como dois eixos, em
que se revolve o maior peso, e substancia, das coisas
do Estado; o que se colhe dos exemplos que dissestes,
e de outros muitos; porque o esforçado e entendido
[61]
em nada falece, nem áquillo a que seu rei o manda,
nem ao que a si mesmo deve, nem á occasião de que
se póde aproveitar, como aconteceu a Pompilio, embaixador
a el-rei Seleuco, sobre conservar amisade com os
Romanos, ou romper com elles guerra: que respondendo
o Rei que se aconselharia devagar no que lhe estava
melhor; e entendendo o Romano que aquella dilação
se fundava em fraqueza, e cautela, com o bordão
que trazia fez um circulo na terra, em que Seleuco ficou
mettido, dizendo-lhe que antes que d'elle sahisse
se havia de determinar na resposta de sua embaixada;
e com isto obrigou ao rei a acceitar a paz que lhe requeria.
E em caso differente Lucio Posthumio, embaixador
aos Tarentinos, lançando-lhe por desprezo sobre
as roupas muitas immundicias com grande rizada, e
escarneo, o Romano lhe respondeu animosamente: Vingai-vos
agora do riso á vontade, porque tendes muito
que chorar quando com vosso sangue se lavarem as
nodoas d'este meu vestido.—Esses casos (accudiu D. Julio)
são da mera jurisdicção do esforço, e cavallaria;
ainda que sejam acompanhados do entendimento, porque
o valor do animo a tudo acode, e em nada perde
ponto. E se não, vede a estimação que fizeram os reis
catholicos do nosso prior do Crato D. Diogo Fernandes
de Almeida, quando estando elles sobre Granada, e o
prior sendo embaixador d'el-rei de Portugal, o ajudou
a combater valorosamente tirando com muitos louvores
d'aquella batalha feridas; e querendo-o el-rei desviar
antes, porque não convinha ao cargo que trazia,
lhe respondeu que, se o officio lh'o defendia, o sangue,
e o animo o obrigava. E em que conta teria el-rei Filippe
I a Frederico Badoaro, que os Venezianos lhe mandaram
por embaixador a Genova, sendo elle principe
de Hespanha, que estando com elles aos officios divinos
no segundo logar, succedeu chamar o principe a
si ao duque de Saboia; e acenando ao veneziano que
lhe désse o lugar, o que elle não quiz fazer, o principe
com acenos, e palavras asperas o mandou muitas vezes
tirar; mas respondeu que antes havia de deixar a
vida, que aquelle lugar, porque com a morte de um
particular se não fazia affronta ao Senado; mas que se
lhe faria muito grande, se désse o lugar, que lhe era
devido, a pessoa inferior em merecimentos. E quanto
[62]
á dissimulação, e soffrimento só nos esforços costuma
a achar confiança para metterem em cortezania o que
puderam estranhar com arrogancia: como aconteceu a
Giuberto Dandalo, embaixador dos Venezianos ao Papa
Nicolau III, que já mais foi ouvido, nem pôde alcançar
entrada do Summo Pontifice, por o enojo que tinha
contra o Senado, sobre a possessão de Ancona; até
que, vendo elle o pouco que importavam suas muitas
diligencias, fingio um dia, sahindo com alegre semblante,
haver-lhe fallado, e alcançado o fim do negocio a
que vinha: e sem esperar outra coisa se partiu para
Veneza; onde perguntando-lhe o Senado o que passara,
respondeu: "Não achei o Papa em Roma, nem quem
me soubesse dizer onde o acharia."
—Mui principaes (disse o doutor) são as partes de esforço,
e entendimento no embaixador; porém tem igual
necessidade de todas as outras para representar com
a nobreza a pessoa do seu rei: para com a magnificencia
adquirir as vontades dos ministros, e criados: para
com a gravidade, e brandura ser amavel, e auctorisado:
para com o conhecimento das coisas do Estado, e
experiencia d'ellas acertar nas que se lhe offerecessem:
e para com a gravidade, e gentileza da pessoa dar
uma approvação na vista, de tudo o que se conhecer
de suas obras. Mas porque não pareça que vou fora do
em que comecei: A que os embaixadores não levam
recados, é certo, (que ainda que os seus sejam de maior
confiança) que levam por escripto muito do que hão
de dizer, e do que hão de pedir, ou conceder; porém a
eleição do tempo, occasiões, e palavras fica subordinada
ao seu entendimento; e para isso dão os reis, e seus
conselhos supremos largas instrucções, regimentos, e
ordens de como se hão de haver nas coisas os embaixadores;
que são mais largas, quanto são mais remotas
as provincias, a que são enviados.—O officio (disse
Leonardo) é de tanta importancia, que nenhum outro
demanda maior cabedal de partes da natureza, e das
adquiridas por experiencia: e sei-vos eu dizer que
houve n'este reino famosos homens d'esta profissão,
e taes, que, querendo nomear alguns, faria manifesto
aggravo a outros muitos. Mas se o gran-duque de Florença,
vencido da eloquencia, e partes de Hermolau
Barbaro (que estava em sua corte por embaixador dos
[63]
Venezianos) com tantas mercês, e favores o persuadia
a que ficasse em seu serviço; não faltaram outros, que
sahidos d'este reino com o mesmo cargo, fizeram maior
inveja a principes, a monarcas mais poderosos. E algum
teve lugar nos tribunaes supremos da corte de
Hespanha, que para negocios particulares de um principe
d'este reino foi mandado a ella, que pela grande
satisfação, que n'elles deu de sua pessoa, foi escolhido
para os de uma monarquia tão dilatada. Mas não é de
espantar que de um embaixador e messageiro particular
se fizesse um conselheiro de estado, sendo criado
da casa de um senhor, do serviço do qual, como de outro
cavallo Troiano, sahiram heroes famosos, e varões
insignes em todas as profissões: d'onde sahiram vice-reis,
e capitães maiores para o Oriente, e soldados para
capitães, e mestres de campo, que defenderam, e
honraram o Norte; cavalleiros, e bailios, que sustentaram
Malta; fronteiros valorosos, que se assignalaram
em Africa, todos criados da mesma casa, onde se
acharam sempre em grande copia espiritos, que honrem
a Marte, e engrandeçam a Minerva, fazendo inveja
aos mais avantajados nos exercitos, e presidios
hespanhoes, e aos mais insignes nas escolas, e academias
mais nomeadas da Europa.
—Tendes levantado este discurso de maneira (disse
Solino) e está a materia d'elle tão altiva, que me parece
que eu e Pindaro ficamos esta noite camarço, sem
nenhum de nós fazer postoleta: ainda este mau jogo
me fez o meu moço, que não cuidei que d'elle saltasseis
a coisas tão differentes: folgara de saber se haveis
de ficar n'esse tom, porque vos deixarei em termo
com o dono da casa, e o senhor D. Julio; e irei buscar
minha vida.—Ainda não tendes razão de vos queixar
(respondeu elle) que antes por me chegar pouco, e
pouco aos criados, deixei muito dos embaixadores,
após os quaes se seguem logo os agentes, e procuradores,
que as cidades, villas, e lugares mandam a cortes,
e outras vezes a visitas, e occasiões dos principes,
que não menos devem ser escolhidos para estes cargos,
buscando n'elles as partes mais necessarias que
são discrição, experiencia, e pessoa, quando não possam
concorrer todas as mais; porque a cidade, ou villa,
que manda ao principe seu procurador, ou agente,
[64]
n'esse mesmo faz representação de sua sufficiencia.—De
um cidadão se conta (disse D. Julio) que, sendo enviado
por procurador a cortes, lhe esqueceu no caminho
o que a cidade lhe encommendára, e tornou a dormir
a casa a perguntar a sua mulher o negocio a que
ía: e fôra melhor eleição, se a mandaram a ella, pois
lhe não esqueceu.—De outro ouvi eu (respondeu Solino)
que jurou por vida da sua a el-rei Filippe I que se havia
de cobrir sua magestade para lhe fallar em nome
de uma cidade d'este reino: fóra outras impertinencias
que na pratica disse, mais dignas de riso, que de credito.
E um conheci eu, a que cahiram as luvas, e o
chapéo da mão, começando a dar o recado de uma cidade
a um principe; e levantando-as, perdeu o que
queria dizer, de maneira que nunca atinou palavra.—Estes
maus successos (proseguiu o doutor) testemunham
o muito cuidado, com que se hão de eleger os
homens para taes cargos; o que não importa menos
aos titulares e fidalgos, que mandam vizitar a outros
em occasiões de pazes, ou parabens, por pessoas, que
saibam accommodar-se á tristeza, ou alegria que o caso
requer, para credito, e boa opinão de quem os
manda.—Certo (accudiu Leonardo) que não julgará bem
quanto isso releva, senão o que já se envergonhou de
ouvir visitas desencaminhadas, como se fez uma a um
fidalgo que eu tratei particularmente, ao qual, estando
enojado por morte de um seu filho, visitou da parte
de um personagem um capellão bem apessoado, e disse
que o senhor N. estimára muito aquella occasião
para mandar visitar a sua M. e se offerecer a seu serviço.
A este conto fizeram todos muita festa. E Solino,
que vio lugar aos seus, accudio logo: "Não sei se virá
muito a proposito; porém tambem eu hei de dizer a
minha historia, em rasão da advertencia, e cuidado
que deve ter quem visita em nome alheio; pois se vê
que mais desattentos, que ignorancias, os erros d'estas
materias. Uma senhora enojada por a morte de um
seu irmão tomava as visitas em uma camilha, como
as mais costumam. A esta mandou visitar outra parenta
sua por uma pessoa de auctoridade; que entrando
na primeira casa achou tão escura que, pegando-se
ás paredes, esperou uma dona que lhe servisse de moço
de cego; a qual o levou por a mão até uma porta
[65]
estreita, onde havia um degrau alto; e alli o soltou
para passar deante; a qual não alcançou tão bem o
degrau, que não désse primeiro com as queixadas na
humbreira do portal; e sahido do perigo o tornou a
guiar a dona da mesma maneira até junto da camilha,
onde o tornou a soltar: esta pessoa, cuidando que tinha
alli outra porta, por não errar o degrau por baixo,
levantou o pé de maneira, que o poz nos peitos á enojada,
que dando um grande grito a fez cahir de focinhos.
Muitos, que estavam na casa, e tinham furtada
a luz aos que de novo vinham a ella, levantaram tão
grande riso, e borburinha, que desauctorisaram de todo
o sentimento do nojo, e cahia cada um para sua
parte sem se poder valer." Como Solino tinha graça natural
no que dizia, deu muita a este conto, que foi celebrado
com riso de todos.—Se assim é (disse Solino)
que nesses ha tantos desatinos, e inadvertencias, não
ha que espantar de criados menores, que uns são por
natureza tão rusticos, que em nada acertam; outros
por malicia tão depravados, que não querem saber senão
o que é em favor de sua maldade.—Uma questão
se offerecia agora (acudiu Pindaro) que, ainda que rasteira,
é em materia proveitosa. Convem a saber se é
melhor servir-se um homem de um moço simples, e
nescio; ou de um malicioso ainda que seja esperto.—Eu
estou melhor (tornou D. Julio) com o que me engana,
que com o que me enfada; porque a confiança, que fizer
do meu moço, será segundo a opinião que d'elle tenho
para me poder enganar em pouco: e do nescio
nem posso confiar em um recado as minhas razões,
nem as minhas obras dentro em casa; que o que ignora
o que ha de dizer, menos sabe o que lhe convém
calar: além de que é grande desgosto andar um homem
de continuo ensinando um rustico, sem proveito,
que não tomará em sua vida tinta de discrição, por
mais que o cozam n'ella.—A mim me parece outra coisa
(disse Solino) em razão d'aquelle proverbio:
Antes asno
que me leve, que cavallo que me derrube.—Pelo rifão
(respondeu
Leonardo) entendo que quereis defender o vosso
moço.—Se o não fizer bem, ficarei no seu lugar (replicou
elle). Porém o moço nescio não pode desacreditar
com sua parvoice o entendimento de seu amo, que não
está obrigado ao tirar das escolas de Athenas. E o malicioso,
[66]
e esperto, nem por o ser deixa de errar peior
que os outros; porque não aprende o que convém a seu
amo, senão ao intento de sua maldade; e dá ás vezes
por recado o que lhe parece, em lugar do que lhe mandam;
e quando não, troca as palavras ou o sentido
d'ellas; muda o tempo, e a acezão do recado; vai quando
quer, e não ao tempo que vos releva; tira-vos o
credito nas obras, se o conserva nas palavras, porque
dizem que
qual o amo tal o moço; mais vos
desacredita
com a murmuração, do que vos acredita com o recado;
e quando vos lisonjeia, é quando vos rouba. O simples,
se não diz o que lhe dizeis, faz o que quereis, contenta-se
com o que d'elle fiais, e não trata de penetrar o
que pretendeis; e muitas vezes seus erros cahem em
graça como as subtilezas dos outros em damno.—Boas
são essas razões (disse Feliciano) porém é dura coisa
que pelo moço nescio julguem por tal a seu amo; pois
é regra de direito que
faz por si o que manda fazer por
outrem: e se a victoria dos soldados se attribue ao capitão,
os ensinos, e palavras dos moços porque se não
hão de julgar por de quem os governa, e manda? e
menor damno é qualquer dos outros, que o de um homem
parecer nescio á conta do seu moço. E sobre tudo
não se ha de pintar tão perverso o malicioso, que
faça mal, diga mal, e presuma mal, e seja intelligente;
que os mais d'elles cantam de quem roubam; que d'esse
outro modo não é pintar criado, mas inimigo.—E não sabeis
vós (accudiu o doutor) que todos os criados, ou a
maior partes d'elles o são de quem os sustenta? e assim
diz a sentença de Euripides, que não ha maior,
nem peior inimigo que o criado: e Democrito diz que
o criado é coisa tão necessaria, como amargosa: Luciano
diz que os criados sempre tem malicia, e traições
armadas contra seus amos.—A muitos tenho eu
por inimigos (disse Feliciano) porém peior o será o nescio,
que o que o não for; e não sómente sustentará inimigo
em casa, mas senhor, que, como diz S. Jeronymo,
não ha maior servidão que mandar a um nescio.—Eu
tenho procuração em causa propria (disse Solino)
para acudir pelos criados, como testemunha de muitos
fieis, e verdadeiros a seus senhores: e Euripides,
e os mais devem de entender, o que disseram, dos escravos,
que, como lhe temos tomada a coisa mais principal,
[67]
e mais sua, que é a liberdade, sempre nos tem
odio, e nos desejam, e procuram mal; porque a vilesa
do seu animo não soffre mostrarem valor na sujeição.—Não
me parece a mim essa boa razão (accudiu o doutor)
porque por dito de Seneca
nenhum escravo ha mais vil,
que o livre, que serve por sua vontade. (Não entendo n'este
conto os nobres, e honrados, que servem aos grandes
por respeitos razoaveis). E dos escravos, a que fez
taes ou a ventura de guerra, ou outra desgraça, temos
os livros cheios de exemplos de valor, e fidelidade, em
que deixaram muito atraz
os proprios filhos. E se não,
vêde se fez algum o que o escravo de Publio Catieno.
que, deixando-o o senhor por universal herdeiro de
seus bens, pela fidelidade com que o servira; elle, por
se mostrar agradecido na morte, se deitou vivo na fogueira
em que queimavam o corpo de seu senhor,
e morreu com elle, mostrando que estimava mais tal
servidão, que a vida, e as riquezas que lhe deixava.
Erotes, escravo de Marco Antonio, se matou de pesar de
ver a seu senhor vencido de Augusto. Euporo, escravo
de Lucio Graco, que se matou sobre o seu corpo. E um
escravo de Papinião, que, vendo que os inimigos entravam
uma quinta, em que o senhor estava, para o
matarem, trocou com elle o vestido, e metteu no dedo
um seu annel de preço: e deitando-o fóra por uma porta,
sahiu pela outra a receber a morte, que haviam
de dar a seu senhor. E Frederico de Eveshim, escravo
de Conrado Imperador, que, sabendo que vinham
para o matar, o fez sahir do paço, e se deitou na
sua cama, onde, cuidando os inimos que era Conrado,
o mataram: o outros muitos escravos sem nome,
que mereciam que o seu ficasse eterno por memoria
de sua fidelidade. Nem se póde esquecer aquelle grande
animo de Lazaro Cherdo, escravo, de nação Serviano,
que vendo seu senhor cativo de turcos, e depois morto,
desejando vingar-lhe a morte por preço de sua vida,
fingindo que vinha fugido dos hungaros, entrou no
campo Turquesco, e dizendo que queria fallar a Amurates,
primeiro imperador d'aquelle imperio, o matou
a punhaladas; d'onde não pôde fugir, mas perdeu a
vida valorosamente.—D'esses escravos (replicou Solino)
não trato eu, que mereciam ser senhores de seus senhores;
como tambem houve criados que mereciam ser
[68]
servidos de a quem serviram: que tambem Diogenes
foi escravo; e perguntando-lhe Xeniades, que o comprava,
em que sabia servir, respondeu: que
em mandar
homens livres; por o que Xeniades o libertou dizendo:
aqui te entrego meus filhos para que os mandes. E
Epicteto,
que se chamava escravo de si mesmo: e a Phedão, escravo
de Cebes, ouvi dizer, que Platão dedicara um livro
da immortalidade. Porém a nós não nos cahiram
em sorte estes escravos, senão a gente mais barbara
do mundo como é a de toda a Ethiopia: e alguma escravaria
da Asia, que é da gente mais vil das provincias
d'ella; que uns, e outros tratam os portuguezes
com rigoroso cativeiro n'aquellas partes, vendendo-os
para serviço das minas das Indias de Hespanha como
condemnados á morte: e assim se podem estes chamar
com razão inimigos mortaes de seus senhores.—Tambem
(disse o doutor) houve já n'este reino escravos
illustres de muito valor, entendimento, e sangue,
conhecidos por taes, e tratados como se estiveram em
liberdade, que cativaram nas nossas fronteiras de Africa,
em cujas historias me eu não quero deter por me
não alongar mais do intento do nosso discurso dos recadistas,
que uns e outros representam a pessoa de
quem os manda, no que toca ao recado que dão: o que
a mim me parece que está bem provado com o costume,
que os antigos tinham em mandar os seus, que
não fallavam por terceira pessoa, como é o nosso uso,
que dizemos
diz fuão que vos beija as mãos;
que vos pede
isto;
vos encommenda este outro;
vos lembra tal coisa: antes
costumavam:
N. vos diz,
beijo-vos as
mãos,
rogo-vos isto,
encommendo-vos este outro,
lembro-vos tal
coisa, representando
nas palavras a mesma pessoa que as mandava
dizer; e d'esta maneira ficava arriscado nosso amigo
Solino, representando pelo seu moço: pelo que a mim
me parece que o melhor do recado é ser tão breve,
que o possa dar sem erro quem o leva; e tão claro,
que o entenda sem trabalho a quem se manda. E com
isto, e com vossa licença me hei por desobrigado do
que n'esta materia podia dizer.—Não pela minha parte
(disse D. Julio) porque deixais de fóra um officio de
mais habilidade que todos os de que falastes, em cuja
profissão entra a de embaixador, agente, procurador e
recadista; e ainda outros muitos, que é o do terceiro,
[69]
ou alcoviteiro. A isto deram todos grande risada, e disse
Leonardo: O doutor calava esse officio, por ser mais
vil, e reprovado, que os de mais, e se empregar em materia
tão odiosa á Republica: porém sem entrar no fundo
d'elle, nos poderá dizer alguma coisa da superficie.—Bem
sei (respondeu o doutor) que para me metter
em desconfiança levantais essa lebre; e não vos
enganeis, que tanto se deve tratar de officios viciosos
para fugirem d'elles, como dos de virtude para os seguirem,
e desejarem; e posto que esse é tão vil, já os
romanos deram leis á sua profissão, segundo escreve
Pedro Crinito; as quaes estavam escriptas no templo
de Venus; e Licurgo, aquelle grande legislador dos Lacedemonios,
tambem lhes deu regras, e liberdades, posto
que lhe está melhor o castigo com que os nossos direitos
os agasalham; mas se ha officio de muito cabedal,
e pouca honra, é o do alcoviteiro, porque ha alguns
que os não vence Tullio no fallar, Catão no dissimular,
Sallustio no persuadir, Terencio no representar,
Ovidio no fingir, Lucano no encarecer, Diogenes no desprezar,
Ulysses no tecer, Momo no desdenhar; e todas
as artes, e sciencias do mundo tem e empregam em
afeiçoarem com engano vontades innocentes. E para
lhe assignarmos as partes necessarias, fôra acertado
pintar o avesso do embaixador, com que só convém
em ser discreto, e experimentado; porém ha de ser
baixo, vil, desprezivel, avarento, chucarreiro, mentiroso,
ingrato e soffredor de todos os escarneos e zombarias,
porque não só é de sua profissão enganar, mas
tambem obedecer a toda a ignominia, e infamia que
seu exercicio merece.—Muito cruel estais contra elles
(tornou D. Julio) e não tendes razão; quando vitupereis
o seu officio, não vos esqueçais da grandeza das
partes d'elle, pois o alcoviteiro descreve, enfeita, e
encarece melhor que um escriptor: persuade, aconselha,
e convence como um rhetorico: finge, disfarça, e
representa com figuras, espantos, meneios, e hypocrisias
nos gestos, e palavras como um commediante:
pinta, veste, touca, accommoda, guarnece, doura, argenteia
toucados, e vestidos, e trata os rostos, e feições
melhor que um pintor; sabe mais da natureza
das pessoas com que trata, que um philosopho; vende o
falso por verdadeiro, como logico; conhece as enfermidades,
[70]
e achaques dos que lisongeia, como medico;
obriga, e engana no interesse, como legista; adivinha
os tempos, occasiões, e vontades melhor que um astrologo.
Não ha finalmente arte liberal, nem mecanica,
de que se não valha, e em que não vença a seus professores.—Ainda
me parece (disse Solino) que haveis de
chegar á Celestina; que posto que o officio é do genero
commum de dois, accommoda-se melhor ao feminino.
E pois de embaixadores descemos a criados, não é
de espantar que tropecemos em tão ruim gente.—Parece-me
(disse o doutor) que de aposta quereis profanar
a minha auctoridade; não vos quero dar esse gosto á
minha custa: e não passemos d'aqui n'esta materia:
e tambem porque é mais tarde do que parece, demos
lugar a que o senhor Leonardo se recolha.
Com isto se levantaram todos, e se despediram, festejando
e agradecendo cada um ao outro o que dissera;
que tanto se contenta o discreto da boa razão
alheia, como o nescio da sua ignorancia propria.
DIALOGO V
DOS ENCARECIMENTOS
Não perdiam tempo os da conversação em se chegarem
aos interesses d'ella: e era em todos tão egual
o desejo, que nem a occupação de cada um os desencontrava;
porque o gosto, em que se enleva o entendimento,
faz menores todos os respeitos ordinarios da
fazenda, e familia. Entraram á noite juntos em casa
do hospede com grande alvoroço, dando cada um no
caminho seu voto sobre a materia, em que se haviam
de gastar aquellas horas. Porém assentados, sem o estarem
ainda no que seria, disse D. Julio: Por certo,
senhores, que estou tão enleado com uma coisa que
vos quero dizer, que temo das razões e da edade faltar
ao decoro que convém ao sujeito d'ellas; porque
nos mancebos as palavras de mero louvor de uma mulher,
ainda sendo mui compostas, parecem lascivas; e
mais facil é de presumir um engano de affeição nos
meus olhos, que de persuadir um espanto a entendimentos
[71]
tão levantados como os vossos. Porém seja o
que fôr, e corra o meu credito o risco que ordenardes;
que com todos, os que houver, me aventuro.—Que novidade
é esta, senhor D. Julio (disse Solino), que sermão
quereis fazer, que tomaes a graça, e nos tendes pendurados
a todos no desejo de vos ouvir?—Esta manhã,
(proseguiu elle) porque me pareceu de caça, e por gastar
n'ella o dia, com menos cuidado do desejo da noite,
me fui pôr detraz da nossa serra alongando-me para a
parte do mar um grande espaço de caminho; e voltando
sobre uma fonte, que nasce ao pé de uma corôa de
penedos, coberta da sombra de uns altos hervados, e
atoeiras, cheios de verde rama como no melhor tempo
da primavera, embaraçados com umas vides silvestres
que os atavam, e que ainda de todo não estavam despidas
de sua folha, vi junto a ella, e coberto com elles
o mais formoso rosto, que eu imagino que pode haver
no mundo para satisfação de uns olhos afeiçoados: era
de uma mulher em habito de peregrina, que fiada na
solidão d'aquelle deserto, e por gosar dos raios do sol,
que n'aquelle logar se espalhavam, com os toucados
lançados sobre os ramos á vista da fonte concertava
os cabellos; e eram elles taes, que não sómente faziam
perder ao sol a formosura, mas cobrindo outro mais
formoso, que era o seu rosto, contentavam de maneira
o desejo, que não fazia muito por passar d'elles adiante.
Eu sem atinar no silencio, com que era razão que
me escondesse por lhe não ser pesado, fiquei tão esquecido,
que, afrouxando as redeas ao cavallo, o deixei
tropeçar entre os ramos, e fui sentido da formosa
peregrina; que levantando os olhos, a cuja obediencia
os cabellos se apartaram, qual sôa ferir o relampago
d'entre as nuvens, me saltearam a vista com uma luz
estranha, descobrindo juntamente aquelle thesouro de
ricas pedras, que o ouro dos cabellos escondia. Os olhos
eram duas estrellas de diamantes, em cujo fundo um
verde escuro de esmeraldas apparecia, que communicando
áquella formosa côr a claridade dos raios, que
despediam, roubariam as almas de quem os olhasse;
e descendo d'elles abaixo, era tudo tão cheio de perfeições,
que o menor logar, em que se empregava a
vista, tinha desusados extremos de formosura. A bocca
[72]
era um laço de todos os pensamentos amorosos; e
nunca vi coisa tão pequena, em que coubessem tantas
grandezas; pareceu-me um rubi partido pelo meio, que
com um perfilo aleonado se dividia, e por detraz luziam
como por vidraça as perolas, que até então me
não descobrira o pejo, com que ficou de haver visto.
A columna, que sustentava este edificio, era um pescoço
de crystal jaspeado de umas veias roxas, e azues
muito delgadas, que me representaram n'aquella hora
a côr do céo sereno, que pela rotura de duas nuvens
brancas apparece, a que fazia parecer mais formoso o
circulo da sombra, com que se engastava no aspero
burel da esclavina que a romeira vestia: apeei-me eu;
e n'este mesmo tempo lançou ella o toucado sobre os
cabellos, pondo os olhos na fonte como em espelho;
mas como as suas madeixas eram mais compridas,
que a toalha branca, com que as quiz encobrir, se mexericavam
pelos extremos das pontas, que vinham a
guarnecer de fino ouro aquelle grosseiro trajo: falei-lhe
com a cortezia, a que a modestia, e gravidade do
seu rosto me obrigava; e ella sem mostrar outro alvoroço
de minha presença mais, que vestir de escarlata
a branca neve de que parecia formado, me respondeu,
perguntando se estava perto o lugar, e se era aquelle
o caminho. Eu, que não perdia com os olhos um só
movimento dos que os seus faziam, me pareceu tudo
o que tinha visto, sombra da graça e brandura com
que falou com uma voz tão fina, que penetrava o interior
do coração, e tão suave, que o desfazia, e com
uma modestia tão grave, que não dava logar a se pôrem
n'ella os olhos direitamente, senão com um respeito
armado de receios. Perguntei-lhe d'onde era, para
onde ía, encarecendo-lhe o perigo em que punha sua
belleza de ser offendida, fiando-a de desvios tão solitarios.
Mas ella despresando todos os temores, e fazendo
mais difficultosa sua jornada, pelo que d'ella lhe
pendia, que pelos trances que á sua conta se me representavam,
deu a entender muitas cousas, com que
eu perdi o accôrdo, e ousadia de lhe perguntar outras,
e lhe offerecer algumas das que costumam haver mistér
os que fóra da sua patria vem experimentar os
males das alheias. E além de eu estar atalhado com
[73]
sua vista, o estava ella tanto com minha presença,
que perdi o interesse de a vêr, por o respeito de a não
molestar: despedi-me magoado: estou arrependido; e
cubiçoso de a tornar a vêr, de maneira que não aparto
o pensamento do logar onde os meus olhos a deixaram.
E porque ainda me parece que deve ser mais estranho
o successo, que a traz n'aquelles vestidos, que
a novidade de sua gentileza, a que se deve todo o cortezão
tributo de vontades bem nascidas; peço ao senhor
Leonardo que por a melhor via, que lhe parecer,
saiba d'esta estrangeira, que por esta noite deve de
estar na aldeia; ouvirá d'ella mesma a sua historia, e
eu acreditarei com a vista o que tenho dito de sua formosura.—Bem
andastes, senhor D. Julio (disse o doutor)
em tomar primeiro carta de seguro para o que havieis
de dizer; porque os encarecimentos d'essa peregrina
são mais pinturas vossas, que gentilesas suas;
porque não ha mulher nas obras da natureza tão perfeita
cá na terra como a soube fingir o vosso entendimento,
ou affeição: e á conta d'ella me parecia bem
que assentassemos o retrato de belleza tão sobrenatural,
que em materias de amor tudo o que reluz é ouro,
e tudo o que assombra é sol; e só com esta desculpa
salvareis louvores tão desacostumados.—A affeição do
que vi não posso eu negar (tornou elle) mas á vista da
peregrina dizei o que quizerdes contra minhas razões,
que nas suas partes hei de achar armas com que defenda
o que disse. Leonardo se offereceu então a mandar
fazer a diligencia com muito cuidado: e voltando
para Solino, que tinha os olhos no chão, lhe disse: Vós,
callaes, quereis allegar serviços ao senhor D. Julio,
porque a vossa natureza não é deixar passar esta mercadoria
sem registo.—Estava agora (respondeu elle)
cuidando nos livros de cavallarias, que ha poucas noites
que defendi; e desejava dar um cavalleiro andante
áquella peregrina; que se uma cousa d'estas apparecêra
a meu amigo Pindaro, que encantamentos não
rompera, e que poesias, e obras heroicas appareceram
de novo no mundo, que alabastros, marfins, marmores,
crystaes, topazios, jacintos, esmeraldas rodaram por
esses ares! Que posto que o senhor D. Julio sahiu d'este
encontro mais elegante do que se esperava; Pindaro,
com sua licença, tem n'esta materia mais direito adquirido;
[74]
e não se houvera de contentar de descer do
céo as estrellas, e o sol em similhantes louvores: mas
os archanjos, cherubins, dominações e potestades haviam
de ter logar n'elles.
—Não será fora de proposito (disse o doutor) divertirmo-nos
agora com esta materia em desconto, e recompensa
das passadas; e gastar esta noite em saber a
causa, e o estilo dos encarecimentos namorados, que é
pensamento que já me desvelou em outra edade.—Obrigo-me
eu (disse Leonardo) que a nenhum dos presentes
descontente a vossa escolha; e eu particularmente
estimarei seguil-a, tomando o primeiro voto do Licenciado,
que por hospede, estudioso e cortezão se lhe
deve o logar.—O meu voto (tornou Feliciano) é de pouca
importancia, e o logar devido a outrem; mas com toda
a humildade acceitarei o que me derem: e se com a minha
razão ficar corrido, barato é o saber que se compra
com primeiro errar: e assim digo que os encarecimentos
nascidos de amor não devem parecer estranhos
(por deseguaes que sejam) a nenhum juizo affeiçoado;
porque o amante para pintar a formosura de uma dama,
que satisfaz a seus olhos e pensamentos, difficultosamente
achará nas cousas creadas a que a compare,
que lhe fique parecendo que a encarece; porque, ainda
que sejam formosas as estrellas, lhe não agradam tanto
como os seus olhos; e sendo o Sol tão bello, se alegra
menos com a claridade de sua luz, que com vêr o rosto
de quem ama; e são de menos valia para seu gosto e
desejo o ouro, as perolas, rubins, esmeraldas, e saphiras,
que o riso da sua bôcca e a graça da sua vista; e
de não imaginar na terra um amante cousa que se
eguale ao objecto da sua affeição, dá em o desvario de
a comparar aos espiritos que não alcança com o entendimento,
subindo com elle pelas gerarchias mais levantadas:
a causa é, porque o amor faz as cousas tão formosas
a seus olhos, que leva muita vantagem á natureza
que creou umas, e outras; e a cubiça e opinião, que
engrandeceu a muitas d'ellas: que até do gosto, como
diz Plauto, nem o que tem sabor sem amor é saboroso;
nem ha fel tão amargoso, que com elle não pareça suave:
que não sómente com seus poderes dá perfeição ás
cousas, mas tambem as converte em outra substancia.—Não
estou contra a vossa razão (acudiu Leonardo) mas
[75]
parecem-me de forma os encarecimentos de que falaes,
que todos, pouco mais ou menos, não sahem de certos
limites; porque, em descendo da pedraria, os que são
menos lapidarios empeçam em coral, marfim, porfido,
alabastro, rosas, neve, ouro: e, quanto por meu voto,
a paixão de amor não havia de guardar regra certa nas
palavras, e louvores, antes encarecer sua dama com as
cousas que a seu gosto e opinião sejam mais formosas;
e como as affeições são tão differentes, assim o seriam
os gabos, e encarecimentos.—Para louvar (replicou
Feliciano) não ha tantos caminhos como para ter
affeição; porque logo daes com uma estrada Coimbrã,
que é
tão bella como o Sol,
tão clara como
a Lua,
tão alva
como a neve,
tão loura como o ouro; e
d'aqui adeante.—A
mim me parece bem (disse Solmo) a razão do Licenciado,
que o doutor tinha geito de metter os louvores
de uma dama em exemplos caseiros, chamando-lhe
fresca como o seu pomar, linda como o seu jardim,
clara como a sua fonte, e alta como as suas faias: e
como os amantes para encarecer se não contentam com
pouco, todos chegam ao que pode ser: todo o branco é
crystal e diamantes; o corado rosas e rubins; o verde
esmeraldas; o azul saphiras; e o amarello ouro e jacintos;
e até as mães dos meninos, a que naturalmente
tem excessivo amor, não lhes sabem chamar pouco:
quando os tomam nos braços, logo os intitulam de
meu
duque,
meu marquez,
meu
conde; nas pedras
meu diamante,
e nas flôres
meu cravo, e
minha
rosa: quanto mais louvando
mulheres, a quem todo o encarecimento fica
curto, e envergonhado pela fôrça, com que tem captivos
os sentidos, e as potencias dos que hão de falar n'ellas.
E para conclusão de tudo, diga Pindaro o que sente
n'este particular.—Os encarecimentos, de que usam
os amantes (disse Pindaro) menos são seus, que adquiridos
dos famosos poetas, que lh'os ensinaram deixando-os
escriptos em suas obras: porque, como retratadores
das obras excellentes da natureza, buscaram tão
altivos materiaes para darem vivas côres á formosura.
E não é muito que, pintando um rosto formoso da terra,
lhe accommodassem côres, e attributos celestes, quando
para pintarem cousas do mesmo céo usam tantas
vezes de semelhanças, e encarecimentos da riqueza da
terra, como o fez Ovidio na casa de Febo, com tectos
[76]
de lavrado marfim, e ladrilhos de ouro, com paredes de
topazios, jacintos, e esmeraldas; e o mesmo fez pintando
os pavões, que no céo levavam o carro da Deusa
Juno, que depois accrescentou em obra e feitio Martiano
Capella. E como a phrase poetica é a mais excellente,
e levantada, e por tal escolhida das Sibyllas, e
Oraculos para usarem d'ella, tambem fizeram os amantes
a mesma eleição; entre os quaes qualquer miuda
consideração de um voltar de olhos é arco, aljava, e
settas de Cupido, com todas as mais allegorias, e transformações
que os poetas usaram.—A verdade é (disse o
doutor) que a perfeição da formosura animada se não
pode devidamente encarecer com alguma semelhança,
que o não seja, porque todas lhe ficam muito inferiores:
o que declarou bem uma dama Florentina, que
perguntando-se-lhe o que lhe parecia de uma figura de
mulher de alabastro, feita por um famoso esculptor
d'aquelle tempo; ella, sem responder com palavras, fez
que uma creada sua formosa e bem proporcionada, despisse
em si as partes, que a figura mostrava núas; e
logo á vista da natural belleza perdeu a pintura, a fama,
e valor que d'antes tinha. E eu vi tambem um jeroglifico
da formosura, que declara engenhosamente este
pensamento: a figura do qual era uma mulher com a
cabeça mettida entre as nuvens, o corpo despido, mas
rodeado de um resplendor, que o não deixava vêr distinctamente;
na mão direita um lirio, e na outra um
compasso; significando com a cabeça mettida no céo,
e no resplendor, que só com as cousas d'elle se podia
encarecer, fazendo impedimento á vista humana como
raios derivados da belleza Divina; o lirio denotando a
graça das partes naturaes, porque em côr, e pureza
foi sempre symbolo da formosura; o compasso a medida,
proporção, e correspondencia dos membros, em
que consiste toda a perfeição d'ella. Mas Pindaro tudo
quer attribuir á sua profissão: e n'esta parte não tem
pouca justiça: porque sómente na licença poetica podem
entrar os desvarios dos namorados, por serem
muito eguaes o furor poetico, e o amoroso. Porém, já
que os encarecimentos estão approvados com tão boas
razões, estimara eu ouvir alguma em desculpa dos que
vivem, morrem, e ressuscitam a cada passo, e que andam
sem almas como cantaros, e sem coração como
[77]
furões, que, a meu vêr, é gente que por privilegio de
amor vive exceptuada das leis da natureza.—A razão
(respondeu Feliciano) é a mesma; porque quem encarece
a causa egualmente exagera os effeitos: a pena
de um desfavor, o termo de uma crueldade, ou esquivança
é o maior tormento da morte ao que ama; e um
favor e brandura, que recebe em sua affeição, é na sua
estima o maior bem da vida; e quanto ao estilo de viver
sem alma, e sem coração, o declarou maravilhosamente
um poeta moderno, dizendo em um soneto á sua
dama, da qual estava ausente, que uma parte da alma,
com que vivia, lhe ficara; mas a com que imaginava,
entendia, e amava, tinha sempre com ella. Nem é outra
cousa os desvarios, e desattentos dos que amam,
senão viver em certo modo fora de si, como pareceu a
Propercio, dizendo que o que se entrega ao amor perde
o juizo; e o que eu vejo que poucos em presença da
cousa amada ficam com elle.—Tambem S. Jeronymo (accrescentou
o doutor) escreve que o amor da formosura
é um esquecimento da razão; e assim chamam os poetas
ao amor, inimigo d'ella. E que maior exemplo se
pode imaginar d'esta verdade e mudança dos que
amam, que o de Hercules, a quem os embaixadores de
Lidia acharam lançado no regaço de sua amada, mudando-lhe
os anneis dos dedos, ella com a corôa real
na cabeça, e o famoso Thebano com um sapato seu
d'ella em logar de corôa? que menos esperado que o
de Dionisio Syracuzano, que por mão, e parecer de
Mirta sua amiga despachava os negocios importantes
do seu reino? que mais extranho, que o de Themistocles
Atheniense, famoso capitão de Grecia, que namorado
de uma dama, que captivou na guerra de Epyro,
usava em uma doença, que sua amada teve, dos mesmos
remedios que lhe a ella faziam, tomando as purgas,
e sangrias como a mesma dama, e lavando o rosto
por regalo, e gentileza com o seu sangue d'ella? que
menos crivel, que o de Lucio Vitelio Imperador, que
namorado de uma filha de um escravo seu, a quem libertara,
de tal maneira perdia o juizo, que, tendo uma
esquinencia, não usava outro remedio mais que um
unguento que fazia de mel com o cuspo de sua dama,
imaginando que a virtude do ser seu lhe podia dar
saúde untando com elle a garganta?—De maneira (disse
[78]
Leonardo) que amor tira os sentidos, e o juizo a quem
se emprega todo em seus cuidados: e eu tinha para
mim, e ouvi sempre dizer que não podia o nescio ser
bom namorado; o que agora vejo que contradiz a vossa
opinião, pois os que amam não tem entendimento.—Só
o discreto (respondeu Feliciano) sabe ser amante, e por
isso perde o juizo nas mãos de amor; que o nescio mal
poderá perder n'ellas o que não tem. E falando mais
ao ponto da vossa duvida, o amante pelo ser não fica
nescio, mas parece-o em muitas acções dos sentidos,
e entendimento; porque, transportado na imaginação
do que ama, se descuida de tudo o que não é sua paixão.—Extranhamente
(accudiu Solino) me contenta ouvir
esta razão para desculpar commigo os maus successos
de namorados, a que não sabia tão boa desculpa;
que assás grande é para esquecer cousas menores
quem está fora de si: porque, deixados esses exemplos
de amantes, cuja grandeza de estado faz maior, e mais
notavel o desatino, com que nas mãos do amor renunciaram
o entendimento; de outros de menos estofa, e
mais modernos sei eu descuidos, que podiam entrar em
historia n'esta occasião, e por me aproveitar d'ella: Eu
conheci um cortezão mui empenhado em finezas de
amor, que passeava em um terreiro, onde tinha a dama
em um quartão, que já aturava aquelle fadario todos
os dias como em atafona; acertou n'aquelle a ser mais
favorecido da senhora, que de quando em quando lhe
apparecia, cevando com sua vista os desejos do namorado
mancebo, que por seguir a caça se esqueceu do
tempo, e das horas de comer, mettendo-se pelo certão
da calma que n'aquelle tempo fazia; o cavallo, que não
devia de estar tão affeiçoado a aquella estancia como
á sua costumada, estancava muitas vezes do passeio,
sem haver accordo nem espora que o despertasse; até
que uma vez, estando o amante parado com o ponto
no alvo da janella, acertou a passar um macho que levava
uma rede de palha, a que o rocim se arremessou
com tanta furia, que, prendendo os copos da brida nos
laços da rede, se embaraçou de maneira, que levou ao
quartão enamorado por todo o terreiro, onde se resentio
do rapto, sem se poder valer contra os couces do
macho, e risada dos rapazes. Mas não é muito padecer
d'elles afrontas quem do um tão mal acostumado fia
[79]
sua liberdade. Outro, que ainda nas guerras de amor
não era armado cavalleiro, passeava a pé á vista de
seu cuidado, ora com os olhos na janella, ora com o
tento na postura, e galanteria de seu bom trajo: a dama,
que não trazia ainda aquella affeição em abertas, e publicadas,
porque não notassem os que passavam os
meneios, e esgares que o mancebo fazia, acenando-lhe
se tirou do posto passando-se a uma janella mais pequena
que cahia sobre uma esquina das mesmas casas:
o galante mais com o tento na mudança, que no caminho,
com os olhos no alto, deu com a testa um grande
encontro na esquina, de que se esmechou, e atolou em
um monte de cal amassada de fresco, que estava arrimado
á parede, ficando até os sendaes mais caiado,
que cantareira d'Alfama.—A todos pareceram os contos
de Solino cheios de graça; e (disse Leonardo) sempre
sahe o amor culpado n'estes ferimentos; e não tenho
por grande desar todo o que succede á sua conta, que
por isso o pintam cego, e são conhecidos por taes os
que o servem: porém a mim me parecia que quando o
amante perde o tento, e o sentido de tudo o mais, devia
ficar só discreto, e avisado para sua dama, que é o
objecto em que todo se emprega; que para lhe falar lhe
sobejariam razões galantes, respostas obrigadas, termos
de subtileza, e galanteria: e eu pela experiencia
acho o contrario, que dos noivos, e dos amantes se contam
as primeiras parvoices.—Não sei (disse Solino) se
dirá agora Pindaro que tomaram isso os namorados
dos poetas, como os encarecimentos.—Os poetas (respondeu
elle) não são havidos por parvos; e quem lhes
quiz fazer todo o mal lhes chamou doidos: o que poderia
ser; que o arrebatarem-se, e alhearem-se de si os
amantes com affeição, como os poetas com o furor divino
que os excita, aprenderiam d'elles. Pelo que o
vosso remoque não deu boa chaça: mórmente que esses
primeiros erros são de outra geração; e nenhum
parentesco tem com a parvoice. Antes é um modo de
se atalhar, e suspender um homem o seu entendimento
com muita razão; porque não pode dizer cousa, que
pareça bem aos outros a primeira vez que fala com
aquella a quem ama; que é passo, onde os mais discretos
o perdem.—Parece-me que está no certo meu companheiro
(disse Feliciano) que eu sei de homens, que entre
[80]
os outros podiam falar sem medo, terem-no muito
grande a estes primeiros encontros; que certo me parece
mais respeito que se deve á formosura, que falta
que se possa dar em culpa ao entendimento: pois o
verdadeiro é que amor o apura, e engrandece; e por
este respeito os Athenienses lhe levantaram uma estatua
na Academia de Palas como a sabio, e lhe dedicaram
uma escola os Samios, significando que só na de
amor se alcança com perfeição tudo, o que pelas do
mundo variamente se aprende, e com muito discurso
de annos se alcança: o aviso no falar, a discrição no
escrever, a brandura no conversar, a policia no vestir,
a graça no parecer, a cortezania no tratar, a liberalidade
no dispender, o esforço no pelejar, a largueza no
jogar, a humildade no servir, e a pontualidade no merecer.
Do pensamento, e juizo dos amantes sahiram ao
mundo as emprezas discretas; as chimeras escuras, as
idéas levantadas, os motes avizados, os versos excellentes,
os enredos subtis, as cartas galantes, as fabulas
bem fingidas, os primores, os extremos, e as finezas
tudo é doutrina tirada das escolas de amor. E pois
n'ellas se alcança tudo, não é muito que se ache tambem
um termo de falar encarecido, e levantado sobre
todas as cousas vulgares que tratamos, posto que o
juizo d'este acerto se não deve fazer por homens livres
d'esta paixão amorosa, se pode haver algum, a quem
não coubesse em sorte padecel-a: e bastava sem outros
exemplos, fazer a eleição d'ella o sr. Julio, que em
todas as partes de côrte e gentileza pode servir de espelho
aos mais apurados.—Vós me obrigaes por tantas
vias (respondeu o fidalgo) que fico desconfiado de poder
pagar nem com encarecimento do que mereceis,
nem com a restituição dos louvores injustos que me
daes, que só são devidos ao vosso entendimento. E
pois a victoria d'esta batalha ficou por elle em meu favor,
quero-me aproveitar d'ella, e do cuidado que me
deu o dia com me recolher a casa, e fazer mais comprido
o repouso da noite.—Essa resolução (disse Leonardo)
é em damno de todos: e muito mais de sentir,
porque á força nos obrigaes a que consintamos
n'elle: mas como em logar de preza trouxestes da
caça empreza tão difficultosa, poupaes horas para
cuidar n'ella á nossa custa.—Antes (respondeu elle)
[81]
para reformar no somno as que me desvelei na madrugada.
A isto se levantou; e os mais dando boas noites o
iam seguindo, e disse para todos Solino: O senhor D.
Julio vae a sonhar com aquelle thesouro encantado que
lhe appareceu na fonte; e para este cuidado não quer
companhia; que se a communicação dos bens de amor
faz muito maior a gloria d'elles nos contentes; aos
que só o estão de seu pensamento nenhuma cousa é
mais agradavel, que saudosa lembrança.
DIALOGO VI
DA DIFFERENÇA DO AMOR, E DA COBIÇA
Cada um dos amigos ao outro dia fez curiosa diligencia
por saber algumas novas da peregrina, que D.
Julio tanto encarecera a noite passada; e não achando
d'ella nenhuma noticia, tiveram a historia por fingimento.
Juntaram-se ás horas acostumadas á porta de
Leonardo, a tempo que tambem o fidalgo apparecia, e
que o velho os vinha a esperar ao peitoril da escada
com um hospede que lhe viera, que era um clerigo de
edade, pessoa, e trajo auctorisado; que dos mais foi
logo conhecido por ser prior de uma egreja que perto
d'alli ficava: sentaram-se agasalhando-o entre si com
a devida urbanidade; e depois de lhe perguntarem de
sua saude; como estavam com o desejo de tirarem a
terreiro a D. Julio, fizeram signal a Solino que começasse;
porém Leonardo não deu logar á boa vontade
que elle tinha, e se lhe adiantou na pergunta.—Bem
cuidava eu, senhor D. Julio, (disse elle) que aquella
formosa peregrina era encantada, e que foi traça do
vosso entendimento fazer a todos cavalleiros d'essa
aventura; porém a mim só a encommendastes; que
pela edade pudéra já estar aposentado para tal empreza;
eu a tomei por vos obedecer, e andei bem cuidadoso
no seguimento d'ella, sem até agora atinar no
caminho, em que vos perdestes.—Minha foi só a desgraça
(respondeu elle) pois perdi comvosco, e com os
mais o credito do que disse, e para meu desejo a glo ria
[82]
do que pudéra tornar a vêr em sua formosura.—Essa
levantastes vós tanto sobre as estrellas (disse Solino)
que se devia de agasalhar com ellas no céo, e enjeitar
a pouzada d'esta aldeia.—Parece-me (accudiu o prior)
segundo o que vos ouço, que nós podiamos mostrar o
jogo; porque a occasião, que me trouxe a este logar,
e leva a Lisboa, é uma estranha peregrina que hontem
appareceu na nossa aldeia, de cujos successos, e formosura
se podiam contar grandes extremos; que já
pode ser que seja a de que falaes.
Com esta nova se mostraram os amigos mui alvoroçados,
e D. Julio contente; e Leonardo respondeu
ao prior:—Não imaginei que tinha tanto bem junto
com o de vos ter n'esta casa; affirmo-vos que, se ella
não fôra vossa, não poderieis pagar melhor a pouzada,
que com tão boas novas: pelo que vos peço que
as não dilateis, contando-nos mui particularmente
d'essa peregrina, que tem tão obrigados os desejos dos
que aqui estamos, como agora pendurados os olhos,
e ouvidos do que nos haveis de dizer.—Hontem á
tarde (proseguiu o prior) a tempo que já o sol se ía
encobrindo com as azas da noite, andava eu continuando
com a obrigação da reza à vista da egreja;
veiu fazer oração á porta d'ella, e d'alli ter commigo
uma mulher em habito de romeira; que se a
minha vida merecera a Deus que mandasse a algum
anjo falar comigo, podera imaginar que ella o seria;
porque a sua belleza passava os limites do encarecimento
humano, e com uma voz, que respondia bem á
honestidade do seu rosto, e á humildade do seu trajo,
me falou (posto que em lingua estrangeira) de modo
que se deixava entender mui sem trabalho: perguntou-me
se acharia gasalhado em algum hospital, ou casa
de caridade d'aquella terra, em que passasse a noite,
e pela manhã guia de confiança para ir ter á cidade,
offerecendo que n'ella pagaria bem a quem a encaminhasse.
Eu, que no merecimento de sua vista achei
que era pouco tudo o que lhe podia offerecer, fiquei
enleado; porém lhe disse: Senhora, esta terra é muito
pequena; e para o que vós representaes, outra maior
me parecera limitada. Eu, posto que sacerdote, e d'esta
edade, tenho em minha casa uma irmã viuva, e sobrinhas,
que vos saberão servir melhor que as naturaes
[83]
da aldeia; fazei-me mercê de aceitardes a pousada,
qual ella é, e, á conta do que faltar ao que vós mereceis,
supprirá a vontade que é muito grande. Ella me
deu as graças do offerecimento com poucas palavras,
mostrando que o acceitava: vim com ella a minha casa,
onde foi agasalhada, e servida com grande gosto, pelo
que as moças tinham de se estarem revendo nas graças
da sua belleza. Depois da cêa, em que a peregrina
fez pouco damno, lhe pedimos nos contasse a causa
de sua peregrinação, e como sem companhia viera ter
ao nosso logar: e ella mudando a côr em um suspiro,
entre algumas lagrimas, e com tão discretas razões,
que as não saberei eu agora referir com a perfeição
propria (posto que algumas palavras eram de linguagem
alheia) contou o seguinte:
Na ilha de Irlanda, e na cidade de Dublin principal
de seus estados, no maior enleio, e dissensão dos principes
d'ella, que com a differença, e variedade das erradas
seitas de Inglaterra, a cujo rei obedecem, vinham
em total ruina, e destruição d'aquella provincia, nasci
de generosos paes, tão mimosa dos afagos, e enganos
da fortuna em meu principio, quanto depois a senti
esquiva, e deshumana em minhas desgraças. Não tiveram
meus progenitores outro fructo, em que empregassem
o amor paternal, (que faziam notavel excesso
á qualidade de seu sangue) mais que a mim, que com
esta boa sorte era invejada de todas as de minha edade,
e pertendida dos mais illustres mancebos de toda
Irlanda. No melhor de meus tenros annos, que a estes
costuma morder sempre por varios modos a inveja venenosa
da dura parca, de uma arrebatada enfermidade
perdeu minha mãe a vida; e eu como ainda na minha
não provara outros males, senti este primeiro com
grande pena: mas como a sorte m'o ordenara para ensaio
de novas desgraças, depois de me ter encetado o
soffrimento; em poucos mezes depois perdi meu pae,
e senhor, a quem muito amava, e fiquei mettida entre
parentes cubiçosos de minha herança, e amantes fingidos,
que obrigados das riquezas d'ella me procuravam
por esposa. Tinha eu a todos, os que me offereciam,
pouca vontade; e grande obrigação de tomar estado
conveniente aos respeitos de minha nobreza. E
como os favores, em que me creei, me ensinaram a ser
[84]
altiva (que este é um dos grandes damnos que faz a
prosperidade) puz o pensamento em quem com despreso,
e ingratidão castigou minha arrogancia: havia
n'aquella mesma cidade um principe, mui chegado por
descendencia ao sangue real de Bretanha, cheio de
muitas graças da natureza; que, ainda que me era
muito desegual por nascimento, tinha tão poucos bens
da fortuna, que fazia eu no meu dote confiança para o
pretender. Alcançou elle d'isto alguns signaes, que teve
em pouco; não advertindo que a vontade de uma dama
sempre põe em divida a um espirito generoso, que
conhece o preço d'ellas. Succedeu pois que, tendo eu
já de minha pretenção poucas esperanças, o elegeram
os da ilha de Lister, Ragrim, e das mais da parte oriental
de Irlanda, por capitão de uma armada de corsarios,
afim de fazerem uma preza muito importante no
mar Oceano: e como ás vezes o castigo dos maus intentos
é a mesma fortuna, (posto que outras como cega
os favorece) se perdeu esta armada com uma tormenta,
na qual a maior parte da gente pereceu; e a que ficou
do miseravel naufragio se salvou em uma enseada,
onde foi captiva de um turco corsario, que a levou a
Argel, e alli por o pouco segredo dos seus ficou o seu
general conhecido por quem era; e como o sangue,
d'onde descendia, junto ao cargo que levava, o faziam
de mór preço para os que o captivaram, ficou impossibilitado
o seu resgate, e elle sem remedio n'aquella prisão
alguns annos: até que a necessidade, e apêrto d'ella
me aconselharam que de novo emprehendesse o de que
com seus despresos desconfiara, mandando-lhe offerecer
liberalmente meu dote para resgate de sua liberdade.
E elle com o desejo d'ella, e obrigado d'esta lembrança,
tendo por menores grilhões os que de novo lhe
punha, que os que elle trazia, aceitou a offerta, e me
mandou em satisfação um escripto, em que me jurava
por sua esposa. Puz eu, sem mais cautella, em execução
o meu intento, perdendo a affeição ás muitas riquezas,
que tinha, pela honra e contentamento, que
d'aquelles desposorios esperava. Tornou livre á sua
patria, e mudou de improviso a tenção que fingira para
alcançar o remedio á custa do meu engano. Estranhou-lhe
o mundo esta crueldade: e os meus vendo-me sem
dote, e sem marido, e, o que o havia de ser, tão ingrato,
[85]
e na opinião de todos tão culpado, me levaram a o
demandar por justiça nos tribunaes supremos, onde,
depois de convencido, me foi julgado por devedor, e
por esposo. Mas como a minha vontade não era que
elle o fôsse contra a sua, esperei o tempo mais conveniente
para a declarar. Obrigado emfim da justiça, e,
depois d'ella, rendido aos conselhos dos principaes parentes
que o tratavam; o dia, em que se havia de desposar
comigo, cumprindo por sentença a palavra que
me tinha dado, antes de lhe dar a mão, metti na sua
um papel em logar da minha, que era quitação plenaria
de tudo o que por elle déra, e juntamente do que
elle com tanta ingratidão recusara, escolhendo para
castigo de minha altiveza a humildade da religião mais
apertada. Fez isto em toda a ilha grande espanto; e
eu com o resto, que do meu dote ficára, aborrecendo a
patria como a madrasta, determinei logo buscar em
reino alheio segura morada. E porque a fama da religião
portugueza, e da famosa cidade de Lisboa, onde
muitas religiosas do illustre sangue de Bretanha vivem
santamente em clausura, me trazia mais affeiçoado o
desejo; mandei por alguns mercadores de confiança o
maior cabedal do que possuia a quem até á minha chegada
o detivesse; e eu como tive a certeza de este dote
mais necessario estar seguro, fugindo ás affrontas, e
odio de meus naturaes, me embarquei com o mais que
me ficava; e com prospero vento tomei porto em Galiza,
e visitei a casa, e sepultura do glorioso apostolo Santiago;
d'onde caminhando por terra, livre já dos enredos de minha
ventura, não pude escapar á cobiça dos criados que
me acompanhavam; que esquecidos da fé que me deviam,
e pouco affeiçoados da catholica que professava
á sua vista com tanta firmeza, me roubaram as joias,
o dinheiro que trazia, deixando-me n'estes desvios
desamparada. Senti mais esta derradeira desgraça,
por ser a que me tomou com a paciencia quasi rendida
aos trabalhos da viagem, que venceram o descostume
e fraqueza femenina; e tambem por me achar tão só
na confusão d'estes caminhos: porém se pelos que parecem
tão errados me quer Deus guiar ao mais seguro,
eu ponho em suas mãos o soffrimento: e por elle,
senhor, vos peço como a ministro seu que em tudo pareceis,
que, ainda que vos dê cuidado, me mandeis
[86]
d'aqui em companhia de confiança, até onde d'aquellas
bemaventuradas religiosas seja conhecida; que á
sua vista poderei logo satisfazer a diligencia: a vós
pagará o céo este trabalho, e a estas senhoras o amor
com que favorecem o meu desamparo; que a maior
consolação, que devem ter os perseguidos da sorte, é
saber que a todo o tempo, que se acolherem a Deus,
acham n'elle brandura; e que tem á sua conta pagar
largamente as boas obras, que no decurso de seus trabalhos
receberam.
Esta historia contou a peregrina com os olhos cheios
de agua, com que orvalhava de quando em quando as
rosas do seu rosto; e a nenhum dos que alli estavam
faltaram lagrimas. Eu lhe disse: Senhora, se o estado
que buscaes com tanto desejo, não fôra melhor que o
que vos roubou a ventura, muito era para sentir a que
vos offende. Porém como o caminho dos que Deus escolhe
é tão differente do que seguem aquelles que lhe
vão fugindo; não podeis n'este ter maior seguro, que
saber que vos acompanha nos trabalhos presentes, e
vos ha de dar o galardão e premio de todos: e para
que eu tenha n'elles alguma parte de merecimento, me
offereço ao remedio dos que ficam até tomardes logar
n'essa clausura. Lisboa é terra grande; e a muita confusão
da gente e trafego d'ella a faz embaraçada; e vós
é razão que com a decencia e commodidade, que vossa
pessoa e qualidade requer, vos deis a conhecer. Pelo
que, se quizerdes descançar com estas minhas parentas,
e ja criadas vossas n'esta aldeia, eu irei á cidade,
e procurarei servir-vos com todo o cuidado. Isto me
agradeceu a estrangeira com muito boas palavras,
mostrando tambem nas côres do rosto signaes de obrigação.
E hoje, antes da minha partida, me fez uma
lembrança do que por sua parte havia de perguntar.
No caminho me atalhou a jornada uma occasião forçosa,
que me fez passar a noite tão perto de casa como
vêdes, mas com o maior interesse que podia esperar:
pois, além das mercês do senhor Leonardo, goso a
conversação de tantos amigos e senhores, que é fim, a
que se podiam dirigir outras jornadas maiores.—Já
agora (disse D. Julio) não serão tão culpados meus extremos;
pois nos que disse o senhor prior da peregrina
ficam acreditados; e passam as suas obras tanto
[87]
adiante das minhas palavras, que deixa a sua egreja
e familia para por a servir no que eu nem ainda me
soube offerecer: e contou ao prior o como encontrara,
andando á caça, a mesma estrangeira, e o que n'aquella
conversação tinha passado sobre os louvores, com
que elle quizera pintar sua formosura.—Nenhuns lhe
podieis dar (proseguiu elle) que não ficassem os maiores
encarecimentos devendo muito á verdade: e o maior
espanto, que eu achei nos de sua gentileza, foi que,
sendo ella tal, houvesse um homem bem nascido, que
sobre obrigações tão forçosas a despresasse.—Isso (tornou
D. Julio) não tenho eu por espanto; que d'esse
modo se costuma vingar a sorte da naturesa, quando
na perfeição de suas obras a não pode egualar: mais
se me representa a mim que seria o homem nobre, e
sem entendimento, como ha muitos, pois fugiu de tantos
e tão poderosos attributos, como eram formosura,
riqueza, magnificencia, cortezia, e humanidade, todos
empregados em seu favor.—E a mim (acodiu Solino) me
pareceu ingrato, mas discreto, fugindo o jugo de uma
mulher que lhe ficava sendo duas vezes senhora, uma
pelos poderes naturaes de sua belleza, e outra por a
divida, e preço de seu resgate.—O meu voto é (disse Pindaro)
mui differente; antes julgo que o que o homem
aceitou por necessitado, veiu a enjeitar por cubiçoso,
vendo que se dispendera com sua liberdade o dote que
dourava as perfeições de sua esposa; que nunca deixara
de o ser, se fôra tão rica como no principio, em
que o libertou; porque a cobiça e o amor são grandes
competidores.—Não me descontentam as opiniões (disse
Leonardo) mas já que vos entalastes entre esses dois
inimigos do socego humano, seja a questão e a materia
da conversação da noite á conta d'elles. E perguntou
ao doutor, qual dos dois é mais poderoso, e obriga os
homens a maiores extremos?
—Se houvessemos de dar credito (respondeu o doutor)
á experiencia, e tomar os successos do mundo por argumento,
com poucas porfias se manifestará a verdade
da vossa pergunta: mas tratando primeiro das razões,
vejamos em que se parecem, e os poderes em
que os antigos igualaram o amor, e a cubiça; que de
ambos deixaram jeroglificos, e figuras. Pintaram pois
ao amor menino, formoso, com os olhos tapados, despido,
[88]
com azas nos hombros, e armado de arco e settas:
menino, por facil e fagueiro; formoso, porque a belleza
é o objecto dos amantes; despido, porque se não
póde encobrir; cego, porque não vê, nem conhece a
razão; com azas nos hombros, por ligeiro, e mudavel;
armado, por forte, poderoso e cruel. A cubiça pintaram-a
mulher, despida, com os olhos tapados, e azas
nos hombros. Despida, pela facilidade com que por
seus effeitos se descobre; cega, porque não vê nenhum
respeito humano em rasão do que deseja: com azas
pela velocidade com que segue aquelle objecto, que
debaixo da especie de proveito se lhe representa. Assim
que só nas armas, e no sexo feminino achamos na
pintura differença: porém se considerarmos os effeitos
da cubiça, ou foi que na pintura de mulher as quizeram
cifrar todas, ou que lhes faltou lugar para tantas
armas; porque se amor é forte e poderoso, e vence a
tudo, como disse o poeta; o mesmo confessa que a todos
os extremos fórça, e obriga a sede do ouro aos humanos;
se a amor como a poderoso o fingiram Deus
cruel, como diz o poeta Seneca; não só a cubiça é Deus
do avarento e cubiçoso, mas o mesmo ouro que deseja,
como d'elles disse um doutor santo; se lhe chamam
cruel pelos damnos que no mundo fizeram seus poderes,
mais reinos assolados, cidades destruidas, e damnos
immortaes se fizeram no mundo por cubiça, que
por amor: e antes de chegar aos exemplos, com que
se póde provar esta verdade, vejamos em seu nascimento
que coisa seja amor humano; e o que é cubiça.
A elle chamaram muitos auctores furor; e este definio
maravilhosamente um doutor grego, que disse que
amor era um desejo irracional, que facilmente se emprega,
e com grande difficuldade se perde. E da cubiça
escreve outro mais moderno, que é um appetite fóra
da medida certa, que ensina a razão; que não tem modo,
nem fim. É certo que cada um d'elles podia trocar
com o outro esta definição, sem ficar enganado; porque
o mesmo é excesso de um desejo irracional, que
appetite fóra dos limites da rasão: e o mesmo ser leve
em se empregar, e deixar-se com difficuldade, que
não ter modo, nem fim. Mas posto que na pintura, e
nascimento os podiamos igualar, os effeitos da cubiça
são com mais força, e vehemencia, que os do amor;
[89]
porque, se faz cego o amante para perder o lume da
razão, todavia não o faz vil, antes o engrandece: e o
cubiçoso é cego para não vêr razão, nem honra, e para
se abaixar a todas as infamias, a que se sujeita o
interesse: se o pintam despido para se não poder encobrir,
com mais vergonhosas mostras se pinta a cubiça:
o que na mesma pintura de mulher está declarado.
Se é ligeiro o amor para se empregar, com tudo
busca sempre a formosura como objecto seu, e obra a
que honrou a mesma natureza: e a cubiça se emprega
nas mais humildes e indignas coisas da terra, como
d'ellas possa tirar fructo o cubiçoso: que a Tito cheirava
bem o dinheiro que cobrava das immundicias de
Roma; e no que são atrevimentos e ousadias, muito
atraz ficaram os amantes dos cubiçosos. Romper as
entranhas da terra, e chegar á vista do inferno por tirar
ouro: descer ao fundo do mar por buscar perolas,
descobrir novas regiões, soffrer climas estranhos, e
barbaras gentes para adquirir commercios, obras foram
de cubiça, e não de amor, como tambem o foi a
navegação, que na empreza do Velocinio d'ouro começou:
e se amor é cruel, muito menos o parece nas obras
que a cubiça, pois elle ao amante offende com suavidade
amorosa, e aos estranhos com animo compassivo
tanto mais nobre, quanto elle o é mais, que a cubiça,
que mata no mundo mais homens em um só dia, que
o amor em muitos annos. Assim que a meu ver em
competencia, ella tem mais poderes, e na semelhança
se parece tanto com o amor, que é elle mesmo; mas
com tal differença, que elle ama a formosura humana,
e a cubiça a riqueza.
—Não consinto (disse o prior) que o vosso entendimento
faça tão grande aggravo ao amor, como é igualar
com elle a cubiça: porque quando em poderes tenham
grande semelhança, na nobresa e nascimento
tem muito maior desegualdade; que posto que o amor
considerado como appetite carnal seja excesso de um
desejo fóra da razão; significado como affeição humana,
é uma força que ajunta, ou deseja unir duas vidas
em uma, a do amante e da coisa amada, e é este amor
tão natural a todos, que é defeito e torpeza não saber
amar, como diz S. Chrysostomo. E pelo contrario Aristoteles
chamou a cubiça desejo fóra da natureza. O
[90]
amor nasce tão nobremente, que tem por objecto a
belleza humana, e os dotes naturaes mais excellentes
como são graça, juizo, parecer, e perfeição: e assim
diz S. Agostinho, que amamos coisas boas, porém com
amor mal intencionado. E a cubiça como é vicio do entendimento,
e appetite preternatural, sempre é mal
nascida, e inclinada a coisas baixas. Assim que sejam
os poderes, e as pinturas quão parecidas quizerdes;
são as naturezas de ambos mui differentes.—Parece-me,
senhor doutor (disse Feliciano) que aquella razão ha
de achar muitos votos contra o vosso, porém eu por
me pegar ao melhor parado, nem quero ir contra elle,
nem hei de encontrar o do senhor prior, antes ajudado
da doutrina de ambos accrescentarei o meu pouco,
mettendo-me entre tão boas partes pela de amor; e
digo que posto que elle e a cubiça sejam semelhantes
no poder, no que é amar são em tudo deseguaes, porque
não se ama a coisa que pelo que é, e por amor de si
propria se não ama; e menos se póde amar a que se
não conhece: e assim seria erro chamar amor ao do
cubiçoso, que se emprega em coisas que por si não
merecem amor, e em outras, de que não tem nenhum
conhecimento: amar a uma pessoa, que obriga e sujeita
a nossa vontade; é ter-lhe amor por qual ella é, e
por essa a desejamos unir comnosco, por natural appetite:
mas empregar a affeição no dinheiro, e no ouro,
que não amamos pelo que é, senão pelo que com elle
se alcança, não póde ser amor. E menos o será amar
o que ainda não conhecemos, como faz o cubiçoso a
muitas coisas, que não vio, pelo interesse que d'ellas
espera. E não tratando ainda de que o amor não se
considera só no que ama, senão tambem na coisa amada;
e que falta correspondencia, sendo essa insensivel:
o amor todo se emprega no interesse dos sentidos; e
este falta em todos elles ao cubiçoso: porque, se a sua
temerosa côr o cativara, nem d'essa o deixa usar o
seu cativeiro. D'onde veio dizer o poeta Horacio que o
ouro para os avaros não tinha côr, porque o enterram
segunda vez, pois por essa e por seu nascimento lhe
podem chamar desenterrado: nem com a voz deleita
os ouvidos, nem com a suavidade do cheiro recrea,
nem com o tacto agrada, nem com o gosto satisfaz.
Diga-o Midas, que o pediu aos Deozes por dom: e como
[91]
lhe ficou por mantimento, perecia na abundancia
do que tanto desejara. Diga-o Pithio, o qual deu a el-rei
Dario o platano e videira de ouro: o gosto, que
achou na ceia que sua mulher lhe ordenára: o qual
com sua demasiada cubiça não dava lugar aos seus cidadãos
de se empregarem em outro trabalho mais,
que em beneficiar as minas do ouro, em cuja ruina
muitos d'elles miseravelmente pereciam: pelo que,
vendo as matronas da cidade tanto damno, foram juntas
pedir á mulher de Pithio que, compadecendo-se de
tão grande mal, rogasse por ellas a seu marido, pedindo-lhe
que désse aos seus melhor tratamento: e ella,
a quem não faltava entendimento, nem piedade, conhecendo
que era vão vencer com rogos a sua cobiça,
ordenou a Pithio uma ceia esplendida em um dia de
festa; na qual todas as eguarias, que lhe deu, eram
formadas de ouro. Alegrou-se muito com ellas na primeira
vista, e com a magnificencia do apparato, com
que lhas apresentavam: porém quando pelo discurso do
banquete não viu nenhuma de que podesse comer, perguntou
pelas eguarias verdadeiras, confessando d'aquellas
que eram fingidas. Como (respondeu então a
sabia matrona) queres que te apresente outra comida,
se só no cuidado da que tens deante occupas a
todos
teus vassallos, pois se não lavram os campos, nem
se cultivam as arvores, nem se pescam os rios, nem
se caçam as aves, nem se criam os animaes, pelo exercicio
continuo de tirar ouro? Contenta-te tambem com
o fruto d'elle por mantimento. E com este ardil emendou
em alguma parte sua demasia.
Bem parece que entendia esta verdade Halaono imperador
da Tartaria, que vencendo, em Baldaco, o Califa
mestre da seita Mahometica, que era o mais poderoso
rico, que então havia no mundo, vendo que, por
se não ajudar de suas riquezas, e as não despender
em soldo, não tivera resistencia contra o exercito dos
Tartaros; depois de captivo o mandou metter em uma
camara entre o ouro e joias preciosas, que antes tinha,
sem lhe mandar dar outro mantimento, dizendo
que d'aquelle comesse á sua vontade: e assim entre a
grande abundancia de suas riquezas o miseravel Califa
morreu de fome.
Pois se o ouro por si não póde satisfazer ao gosto,
[92]
nem deleitar sentido senão com o engano do que com
elle alcança, como póde ser capaz de amor?
—Vós (disse Pindaro) temestes ao doutor; porém não
o seguistes: e eu ajudado do vosso receio, e da sua auctoridade,
me hei de valer da primeira opinião que propoz,
e é que o amante e o cubiçoso não differem mais
no amor, que no emprego d'elle; e para isto me fundo
em uma opinião moderna, que tem por si muitas auctoridades
antigas; e é que nenhuma pessoa ama mais a
outra, que a si mesma, nem póde ter amor a outro, se
primeiro se não amar a si; e do amor que se tem, nasce
o desejar e amar as coisas a que se affeiçoa, e inclina
mais a sua natureza: amo isto, porque me parece bem,
e o quero unir a mim, pelo que me quero, e desejo tudo
o que me agrada e satisfaz por meu respeito; e por
isso chamaram ao amigo uma alma em dois corpos,
e, como diz o proverbio,
o amigo é outro eu;
quero-lhe
tudo o que para mim quero, e amo-o como a minha
alma unida com a sua. E Aristoteles diz que o amigo
se hade egualar no amor com o que cada um tem a si:
logo tanto quer e deseja o amante o objecto da belleza,
em que se emprega, como o cubiçoso o ouro, que
quer para si. E quanto á objecção de que o ouro senão
ama pelo que é, senão pelo que vale, e por o que
com elle se compra e alcança, os vossos mesmos exemplos
dirão por mim o contrario; que o cubiçoso, e avaro
antes perderá a vida, que resgatal-a com o ouro, a
que quer mais que a ella; e antes perece á fome, que
satisfazel-a com dispender o que tem em mais estima
que a fartura; que para elle é mór damno gastar, que
todos os outros; como Lucilo conta de um avarento
chamado Hermones, que, sonhando uma noite que gastara
certa quantidade de dinheiro, foi tanta a sua paixão
e dôr, que, cuidando que era verdade, se afogou.
E assim diz S. Jeronymo que tanta necessidade tem o
cubiçoso do que possue, como do que lhe falta, pois lhe
falta animo para usar d'elle: e diz n'outro lugar que
só a avareza e cubiça fez no mundo pobres, porque assás
o é mais, que todos, o que tudo deseja; e possuindo
mendiga, e padece como se lhe faltára. Logo certo
é que o ouro ama o cubiçoso, e não já o que com elle
se compra; pois o não quer para comprar, senão para
o possuir. E respondendo á deleitação dos sentidos,
[93]
que o amor humano offerece, e na cubiça falta, ousarei
a dizer que o ouro, ainda enterrado, parece melhor
ao cubiçoso, que ao amante a formusura que appetece;
e que é mais suave a seus ouvidos o rumor, e tinido
do dinheiro, que a brandura de todos os requebros,
e galanterias namoradas; e que nenhum gosto para
elle é egual com o que tem de tocar, tratar, e revolver-se
entre o mesmo dinheiro: o que se póde ver com
grande admiração n'aquelle afamado cubiçoso o Imperador
Caligula, que, depois que a muitos obrigou que
o instituissem por herdeiro, aos quaes, depois de testarem,
fez matar com peçonha (rindo-se de haver homem
que quizesse viver mais depois de haver testado)
atraz de em sua casa instituir publica mancebia de todos
os vicios, de que tirava um copioso tributo, se lançava
despido entre o dinheiro, que d'estas infames
obras procedia; e, dando sobre elle mil voltas, tinha
em menos conta todas as outras delicias, que os homens
a preço do dinheiro procuravam. Certo é logo
que o ouro ama, e a elle quer, e com elle se deleita o
avaro e cubiçoso; que, se o desejára para o empregar
em o que com elle se alcança, perdera o primeiro nome,
e podera merecer o de rico, prudente, e liberal:
porque o ouro, e as riquezas, como diz S. Leão Papa,
não são boas de si, nem más; mas o bom ou mau uso
d'ellas engrandece, ou desacredita a quem as possue:
e assim não é rico o que muito tem, senão o que com
o que tem se contenta: e não ha maior pobreza, que,
por empregar o desejo em um baixo metal, que sem
bom uso não presta, deixarem os homens o muito que
com sua valia poderam adquirir.
—Todos (disse Solino) deram sua pancada a esta lebre;
Leonardo, que a levantou, deixou-se ficar no covil; e
eu fiquei atrás dos galgos sem dar um brado; farei
muito, se agora quizer desmanchar o bemdito de todos.
Comtudo a minha opinião é que quanto tendes feito
na grandeza e poderes da cubiça é errado, e que se
haviam de attribuir ao ouro, e não a ella. E tratando
da pintura, em que a embaraçastes, e quizestes assemelhar
com o amor, tenho por mui errada a declaração
d'ella: e posto que seja contradizer a tão grandes
entendimentos, a hei de explicar ao meu modo, que
me parece que a pintaram os antigos: mulher por sua
[94]
fraqueza; pois é tal, que se rende a qualquer pequeno,
e vil interesse; despida como desavergonhada, por
quão sem respeito, nem moderação se atreve a commetter
qualquer infamia; com azas por a ligeireza,
com que se arremessa a qualquer preza como ave de
rapina; cega por pedinte, mendiga, e importuna: e se
isto não é, venho a presumir que a fingiram com o rosto
de mulher, e as pennas de ave como a harpia, que na
etymologia propria do seu nome manifesta o roubo e
condição do cubiçoso: e assim como a harpia damna,
e descompõe todos os manjares a que chega, assim
a cubiça estraga e corrompe toda as virtudes: pelo
que me parece que nenhum parentesco tem com amor,
que na nobreza é tão desegual, e pelos louvores de sua
excellencia tão conhecido. O a que se podera voltar a
nossa porfia, e arguir mil historias extremadas, é a
tratar dos poderes do ouro, e da valia do interesse,
que já nos tempos antigos, e no prezente de agora póde
tanto, que obrigou a dizer a um auctor que esta é
a verdadeira edade do ouro, porque só elle senhoreia
os animos dos homens. E viera isto mais ao proposito
da vossa peregrina, que com elle e sua formosura não
pôde vencer a um coração ingrato.—A mim me parece
(respondeu Leonardo) que vós tinheis mui boa razão
se a não guardareis para tão tarde: porém em a noite
d'amanhã se lhe fará justiça; que n'esta é rasão que
se dê ao hospede lugar conveniente para o repouso,
pois ha de ir á cidade e voltar no mesmo dia.—Por não
mandar em casa alheia (disse o prior) não defendo a
minha parte; mas prometto, se voltar a horas que
possa passar a noite tão bem como esta, de a não perder.
Então se levantaram os mais e se despediram; e o
prior gastou muitas palavras em manifestar a Leonardo
a inveja que tivera d'aquella companhia: ao que
elle respondeu com a que a todos fazia com a vista da
peregrina, que lhe ficára em casa; que posto que a
boa conversação é manjar da alma, a vista de uma
estranha formosura, que rouba as de todos, tem muito
maior poder sobre o desejo.
[95]
DIALOGO VII
DOS PODERES DO OURO E DO INTERESSE
No mesmo tempo, em que os amigos se juntaram
para o seu costumado exercicio, se apeava o prior no
pateo de Leonardo; que o desejo que lhe causara a
noite do dia d'antes, o fez tornar mais cedo da cidade.
Foi recebido com alegria: e depois de lhe perguntarem do
bom successo de sua jornada, lhe disse Solino:—Agora
vejo que roubou a ventura a empreza d'aquella peregrina
ao sr. D. Julio: pois a deu a quem a deixa de vêr
por nos ouvir.—Antes vereis (respondeu o prior) quão
poderoso é o ouro, que até para ouvir falar n'elle deixo
a propria casa, e n'ella a vista de tão extremada formosura.—Não
sois vós (acudiu Leonardo) o primeiro
que a deixastes por ouro, nem usaes n'esta occasião
como avarento, pois que vindes com esse titulo de cobiça
enriquecer a todos, e a esta casa.—Vós (respondeu
elle) me individaes para me empobrecer com a mercê
e cortezia que me fazeis; de maneira que sempre o
meu erro é dourado para contentar os cobiçosos, quando
pareça a Solino culpa deixar a vista da minha hospeda
pelo interesse da vossa conversação.—Não é só
elle o que vos accusa (disse D. Julio) antes eu de a vós
deixardes me queixo, ainda que de a acompanhardes
tinha ciumes.—Só esses faltavam (tornou Solino) para
a conversação ficar de ouro e de azul; mas se d'este
se batera moeda, nenhum de nós se queixára de pobre,
porque a dos comprimentos é a mais corrente de
todas. Porque o maior mal que o avaro faz ao ouro, é
impedir-lhe a corrente com a prisão em que o encerra,
podendo com elle até ás prisões fazer agradaveis e formosas,
que para isso imagino que se inventaram as
cadeias e grilhões de ouro, que d'elle servem para ornato,
e dos outros metaes para castigo.—Não me descontenta
essa razão (disse Leonardo), porque se ao ouro
quando sahe da mina, antes de o pôrem em seus quilates,
chamam os artifices
ouro bruto, quanto com mais
razão merece este nome o que o avarento tem escondido
e fechado? E a este proposito me cabe contar
[96]
uma historia que li esta manhã; e se fôr sobejo, pelo
que callei a noite passada, se póde descontar o que
agora disser.
Houve em Italia, em um dos mais conhecidos logares
d'ella, um honrado pae de familia, nobilissimo por
geração, rico de bens procedidos da herança e nobreza
antiga de seus antepassados, dotado de muitas partes,
e graças da natureza, e tão liberal do que possuia, que
mais parecia dispenseiro das riquezas, que carcereiro
d'ellas. Teve este em sua mocidade um filho tão industrioso
e experto nos negocios de mercancia, que
ajuntou em poucos annos grande copia de dinheiro, o
qual elle guardava com tão solicito cuidado, como costumam
os que com cobiça e trabalhos o adquiriram: e
era notavel espanto aos naturaes verem em um velho
a largueza e liberalidade de mancebo; e em o filho a
avareza e tenacidade de velho. O pae, que o via responder
tão mal a suas inclinações, e que já com a edade
e continuação de gastar largo, estava menos rico, muitas
vezes lhe dizia e aconselhava com brandura que
conservasse, com o que ganhara, a honra que tinha de
seus passados; e não degenerasse d'elles, por seguir a
villeza do interesse: que usasse das riquezas como nobre,
e favorecesse a velhice de quem o creára, e honrasse
aos pequenos irmãos que tinha; que fosse proveitoso
aos amigos e parentes; benigno aos pobres e
se não captivasse ao trabalho de enthesourar riquezas
sem fructo. Mas como falar a um morto, e aconselhar
a um avarento é cuidado vão, nenhum effeito faziam
os paternos rogos em sua má natureza. Succedeu que
o senado d'aquella republica por a nobreza, e pessoa
do mancebo, e pela industria e sagacidade que mostrava,
o elegeram em companhia de outros para ir com
uma embaixada a Roma ao Summo Pontifice. Depois
de sua partida, vendo o pae occasião ao que havia
muito que desejava, mandou secretamente fazer chaves
falsas, com que entrou na camara do filho; e abriu
os cofres em que aquelle inutil thesouro estava depositado;
e com a brevidade que o desejo lhe pedia, vestiu
a si, a sua mulher e filhos custosamente; deu libré
a seus creados; comprou ricas armações e baixellas;
encheu a estrebaria de cavallos formosos; fez esmolas
a muitos pobres; acudiu em occasiões a parentes e
[97]
amigos necessitados; dispendeu emfim aquella prata
e ouro que o filho com muitas vigilias ajuntára da maneira
em que elle, quando florescia em riquezas usava
d'ellas. Gastado o dinheiro encheu os saccos em que
antes estava, de miudos seixos e areia: e posto tudo
na mesma ordem em que o filho o deixára, tornou a
fechar os cofres e as casas como d'antes. Tornou depois
o filho da sua embaixada: e os pequenos irmãos
o foram esperar á entrada da cidade vestidos custosamente,
e com o magnifico apparato de que então usavam.
Vendo-se o irmão rodeado d'elles ficou confuso;
e enleado lhes perguntou logo d'onde houveram tão
ricos vestidos, e tão formosos cavallos. Ao que elles
com uma simplicidade innocente responderam que seu
pae e senhor vivia com differente largueza da que d'antes
tinha; e que outros trajos e cavallos de maior preço
lhe ficavam. Entrando depois em casa de seu pae,
nem a ella, nem a elle conhecia, pelo differente estado
em que a deixára: e como n'esta mudança se lhe não
aquietava o coração, foi-se com muita pressa aonde o
tinha posto. Entrou na sua camara, abriu os cofres: e
vendo que os saccos estavam cheios, e da maneira que
elle os deixára, se aquietou, porque não dava logar a
mais vagarosa experiencia a pressa com que os companheiros
o chamavam, e o senado o esperava. Depois
que deu fim a aquella obrigação (que a elle não pareceu
que fosse tão custosa) fechando-se devagar no seu
aposento, abriu as arcas e os saccos, em que lhe parecia
que estava a sua bemaventurança; e vendo o engano
da areia e seixos que dentro tinham, começou a
gritar com grandes lamentações e brados. A que primeiro,
que todos, acudiu o generoso velho, perguntando-lhe
que tinha? de que se queixava? e quem o offendera?
Ai de mim (disse elle) que me roubaram as riquezas,
que com tantos trabalhos, e em tão largo discurso
de annos tinha grangeadas. Como é possivel que
te roubaram (respondeu o pae) se eu vejo esses cofres
e saccos cheios, que parece que não podiam tirar nada
d'elles, nem elles levarem mais? Ai triste de mim (tornou
o filho) que o de que elles estão cheios, não é do
ouro e prata, com que os deixei; que não tem agora
mais que pedras e areia sem proveito. A isto respondeu
o generoso pae, sem no rosto fazer mudança: Ah!
[98]
enganado filho! que importava para ti que estes saccos
estivessem cheios de ouro fino ou de areia grossa,
se a tua avareza te não deixava fazer nas obras differença
d'ella? Cessaram os brados, mas não já o sentimento
do filho com esta resposta; que a mim me pareceu
digna de ser contada entre as mais celebres do
mundo.
—Eu a tenho por tal (disse o prior), e a historia por
maravilhosa para o nosso intento; e andou muito bem
o pae de cumprir em vida o testamento do filho; porque,
como disse Pub. Mimio, nenhuma cousa o avaro
faz boa, senão quando morre, porque deixa o que tem a
quem possa usar d'elle.—E o mesmo (disse Feliciano)
escreveu que para ninguem o avarento é bom: e para
si peior que para todos; pois nem dispende, nem se
aproveita: e n'este sentido me parece maravilhosa a
allegoria d'aquella engenhosa fabula de Midas, que,
pedindo aos deuses, como cobiçoso, que tudo o que tocasse
se lhe convertesse em ouro, perecia de fome na
grande abundancia do que pedira. E quando a necessidade
o fez mudar a petição forçado do mal, que como
bem procurára, lhe mandaram que se fosse lavar ao
rio Pactolo; que fez corrente do que elle queria fazer
estanque, pondo em suas douradas areias, para communicar
a todos, o que Midas só para si queria ter usurpado.—Bem
se representou em Midas (accrescentou
Pindaro) um cobiçoso no pedir e em se não aproveitar:
que por isso disse Seneca que mais facilmente se atreveria
a alcançar da fortuna que désse, que de um cobiçoso
que não pedisse. Mas deixemol-os a elles com
seu engano, e falemos nos poderes do ouro, que é o
para que Solino nos convidou a noite passada.—Como
é certo (disse elle) que para o ouro todos se convidam
de boa vontade, e vós, pela que tendes a este metal,
parece que estivestes de ponto sobre a materia.—Não
a apontei (respondeu Pindaro) por esse respeito, mas
por me contentar da que escolhestes; e é desgraça
minha que para os outros levantaes d'ouros, e para
mim de espadas.—Eu me quero metter entre ellas (acudiu
D. Julio) e se assim parecer aos mais, diga Solino
todos os males do ouro, pois tem boa mão para dizer
mal; o Pindaro todos os bens: e sobre o que ambos
disserem ficará logar aos mais de darem suas razões.—Errastes,
[99]
sr. D. Julio (disse o doutor), que para Solino
dizer mal no sentido que vós quereis, ha de dizer bem do
ouro, e Pindaro os males.—Dou-me por vencido, respondeu
elle:—E eu por obrigado (disse Pindaro) a obedecer.
Todos festejaram a eleição; e ordenando que
fosse o primeiro, começou d'esta maneira!
Se as causas são pelos effeitos conhecidas, e elles
testemunham a excellencia ou maldade d'ellas, qual o
foi de maiores males e damnos na redondeza, e metteu
aos homens em mais perigosos trabalhos que o ouro,
a quem com muita razão podiam todos chamar
peste
do mundo? E posto que os notaveis exemplos das destruições
e ruinas que n'elle fez, podiam tomar mais
tempo do que agora tenho para tratar d'elle; quero
começar primeiro de seu nascimento, para que mostrem
os seus arriscados principios os desastrados successos
para que a malicia humana o descobriu. E
não desprezando o que diz Plinio tão doutamente, que
não contentes os homens com o que a superficie da
terra produzia para sua recreação e mantimento, a
formosura das arvores, a diversidade dos fructos, a
belleza e cheiro das flores, a verdura das hervas, o esmalte
das boninas, a abundancia dos legumes; quizeram
desentranhar do centro d'ella os segredos que a
benigna natureza nos escondia. Nasce o ouro nas entranhas
dos montes, e nas arterias occultas dos penedos;
e subindo como arvore da profunda raiz, d'onde
começa, vae espalhando os ramos em desegual medida,
convertendo o sol com seus poderes aquella materia
disposta e propinqua, até que chega a ser ouro, e se
demonstra por duvidosos signaes na face da terra;
que logo d'aquella emprenhidão se mostra triste,
dando por indicios da riqueza que encerra, herva descórada,
delgada, subtil e sequinhosa areia, e barro leve,
secco e sem proveito; e até as aguas, que por entre as
veias descem, sahem cruas e com sabor pesado. Espreitando
estes signaes a industria humana, entra fazendo
guerra ao profundo, caminhando por debaixo
dos montes sustentados em columnas da mesma terra,
deixando a vista do sol e das estrellas, pondo as vidas
ao risco das ruinosas machinas, que mil vezes o opprimem,
que tanto a nossa sede fez cruel á benigna terra,
que parece menor temeridade tirar do fundo do mar
[100]
perolas e aljofar, que do seu seio o inimigo ouro, que
ainda então o não é mais que nas esperanças. Depois
de tirado com tão custosas diligencias, sahindo como
parto de venenosa vibora, rompendo as maternas entranhas,
com o fogo se aparta, apura o aperfeiçoa.
ficando menos apto para o serviço dos homens, na cultivação
dos campos e arvoredos, e mais apparelhado
para sua destruição e ruina: porque ou se lavra para
ostentações e demasias da vaidade, ou se bate e cunha
em moeda, cujo preço tyrannisa os poderes e graças
da natureza. Tirou o ouro a valia a todas ellas, e fez
em si estanque de todos os commercios do mundo, no
qual, antes que elle apparecesse, se trocavam as cousas
umas por outras, com uma composição e trato
mais conforme e obrigado á necessidade e commodos
da vida que aos roubos da cobiça, maldades da avareza
e sobejidões da vaidade; e apoderou-se tanto de
tudo o que na terra havia, que veiu a ser preço até da
liberdade dos homens contra o direito natural, em que
viviam. Foram crescendo seus atrevimentos: e se antes
de sahir do centro da terra começou a matar homens,
sahindo d'ella se levantou contra o céo, fazendo
guerra de rosto a rosto a todas as virtudes: tirou logo
a vara das mãos á justiça: e deitado em sua balança
perverteu o fiel de sua egualdade. Diga-o Commodo
imperador, que todos os crimes de homicidios e insultos
deseguaes, remiu a preço de ouro, vendendo por
elle publicamente não só a pena dos delictos, mas os
proprios logares dos julgadores. Cerrou os olhos á misericordia,
para não se compadecer dos affligidos: como
se viu no exercito de Tito Vespaziano, que tendo cercada
Jerusalem, os moradores, que opprimidos da fome
se sahiam da cidade com licença sua, enguliam primeiro
uma pequena moeda de ouro, para que na passagem
o pudessem salvar dos inimigos; os quaes sabendo
esta astucia, a dois mil, que em dois dias sahiram
da cidade, partiram pelo meio para lhes tirarem
do bucho a moeda, por não esperarem que com o termo
commum da natureza d'ahi a pouco espaço a lançassem
fóra: assim que aquella pequena quantidade de
ouro, qual de finissima peçonha, lhes tirou a vida.
Derribou a columna, e quebrou os braços á fortaleza,
atados com as prisões de seu interesse: diga-o Ulysses
[101]
que por elle vendeu a Priamo o corpo de Heitor
Troyano; e Aulo Posthumio, que a preço de ouro deixou
a empreza da guerra de Jugurtha, e a gloria d'ella.
Desterrou do mundo a fidelidade; pois por elle vendia
Nicias aos romanos a vida de el-rei Pyrrho seu senhor:
Demonica a cidade de Efezo a Bresso capitão
francez, que de industria a afogou com peso de ouro:
Tarpeia Romana, a entrada do Capitolio aos Sabinos,
que do mesmo modo com o peso de ouro e dos escudos
a acabaram. Depravou a piedade, e veneração
que os antigos tinham aos mortos, não perdoando a
suas sepulturas, como el-rei Dario, enganado com o
letreiro da de Semiramis, que dizia que, se algum rei
seu successor se visse em necessidade, abrisse aquella
sepultura, e acharia um thesouro: elle confiado creu
o letreiro, revolveu a pedra; e achou outro que dizia:
Se não foras cobiçoso, não andaras desenterrando os
mortos.
Os romanos desenterraram os mortos de Corintho
para lhes tirarem a moeda que tinham por costume
metter comsigo na sepultura; para o que é mais notavel
aquelle caso extranho que conta Paulo Diacono,
de Rodoaldo rei de Lombardia, o qual, porque seu pae
se mandára enterrar com as insignias reaes de ouro,
abriu uma noite secretamente a sepultura, e, depois
de roubar e despojar o cadaver paterno, lhe appareceu
S. João Baptista, em cuja egreja aquelle corpo estava
enterrado; e reprehendendo-o rigorosamente, lhe
mandou em castigo do atrevimento que commettera,
que mais não entrasse n'aquella sua egreja: e assim
querendo o rei alguma vez commetter a entrada, foi
pelo mesmo santo lançado fóra. O ouro sustenta e favorece
a todos os peccados capitaes, a soberba com
suas pompas, apparatos e vaidades. As baixellas de
Midas, as grandezas de Cresso, os escravos de Claudio,
o theatro de Nero, as casas de Clodio, e todos os mais
excessos da vangloria d'elle nasceram. A avareza n'elle
como em materia propria se conserva e accrescenta;
por elle deixava Oco, riquissimo rei dos persas, de sahir
de casa por não dar certas moedas de ouro ás mulheres
que o sahiam a receber como era costume d'aquelle
reino, como conta Plutarcho. Nero despojava por
este as matronas bem vestidas, e roubava as tendas dos
mercadores: e Angeloto, de quem escreve Pontano que
[102]
era tão avaro, que se levantava de noite a furtar a ração
a seus proprios cavallos; e sendo achado pelo estribeiro
ás escuras no furto, o açoutou cuidando que era
dos escravos da estrebaria. A sensualidade com o ouro
se cria, pois a força d'elle corrompe a pudicicia, como
os antigos engenhosamente significáram na fabula de
Danae, a quem Jupiter enganou convertido em chuva
de ouro: d'elle nasceram os estupros de Commodo, os
incestos de Caligula, as luxurias de Heliogábalo, os
adulterios de Julio Cesar; pois só a perola com que
conquistou a Servilia, mãe de Bruto, lhe custou seiscentos
sestercios. Por ouro tem a ira feito abominaveis
estragos e homicidos no mundo. Pygmalion matou
a seu cunhado Sichueu por lhe roubar o thesouro
que tinha. Polimnestor tirou a vida a Polidoro, de
quem era tutor, por lhe roubar a herança das riquezas
que esperava. As demazias e sordidezas da gula,
a delicia e sobejidão dos manjares com elle se compram.—Das
mezas de Cleópatra, das hortas e banquetes
de Lucúlo, dos manjares e convites de Heliogábalo
elle tem a culpa. A venenosa inveja n'elle, como em
seu objecto natural, se emprega toda. Herifile invejosa
das manilhas de ouro de Adrasto entregou á morte
Amfiarau seu marido; e Julio Cesar invejoso das riquezas
da Luzitania, se fez salteador das cidades d'ella.
A preguiça e descuido sobre o ouro descança e se
aquieta: elle fez preguiçosa e muda a lingua de Demósthenes
com o preço que lhe deram por não orar:
e o symbolo e jeroglifico da preguiça foi o kagado, por
o vagar e peso com que se move. Que cousa com mais
difficuldade e tardança se abala, que um rico? E se a
diligencia cahiu em sorte á pobreza, pois a necessidade
foi inventora das artes e subtilezas; o peso do ouro
entorpece os sentidos empregados todos n'aquella materia:
e, por conhecer esta verdade, Crates Thebano o
afogou no mar para apprender a philosophia. Pitaco e
Anacarso não acceitaram a Cresso o que lhes mandava:
Anacreonte tornou a engeitar a Policrates o que
lhe déra: e Curio recusou aos Samnitas o grande peso
d'elle que lhe traziam.
Foi o ouro finalmente a ruina de todos os bens, que
mereciam este nome; e um veneno mortifero para a
vida humana: e se muitos a perderam indo em seus
[103]
alcances pelo centro da terra, e outros buscando as extranhas,
em que elle se cria, por remotos climas entre
irracionaes Ethiopes feneceram; não estão seguros do
mesmo damno os que dentro em suas casas, e fechado
em seus cofres o possúem. E fazendo pausa em seus
males (que para os contar todos fôra infinito) só um
bem tem o ouro, que eu não quero deixar á conta dos
louvores de Solino, que é o que os Gregos declararam
n'aquelle seu celebrado proverbio, que diz:
O de que
serve ao ouro a pedra de toque, serve o ouro ao homem; pois
no toque d'elle, como em um espelho de desenganos,
é conhecido: e se elle d'esta minha invectiva se houver
por aggravado, vingança lhe tem dado a ventura
até ao que de seus males me fica por dizer.
Todos ficaram por extremo satisfeitos de ouvir a
pratica de Pindaro; e o prior a gabou de bem ordenada,
e elegante; e gastaram n'isto algumas razões, tendo
os olhos em Solino, que começando a falar com engraçadas
mostras os obrigou a silencio, e disse:
—Posto que eu podera dizer do ouro, como a raposa
de Ezopo das uvas, a que nào chegava; nem quero tomar
tão humilde vingança de quem me foge, nem (como
alguns costumam) dizer mal de meu proprio desejo:
a empreza é facil, e só no muito, que ha para dizer
d'ella, difficultosa: porém se a copia aos discretos empobrece,
(como um d'elles disse) nào pode ser que a do
ouro faça effeito tào desegual; pois que n'elle consiste
toda a riqueza. Bem o posso invocar como poderoso, e
desejar ao menos uma bôcca de ouro, de que sahiram
dignamente os seus louvores; mas é tào inimigo do
que lhe quero, que, por me offender a mim, fugíra d'elles.
E começando do nascimento d'este desejado metal,
que quanto mais queremos culpar engrandecemos:
Nasce (como Pindaro disse) nas entranhas dos montes,
porque até a mesma natureza nos ensinou a fazer
d'elle thesouro, pondo tantos muros da terra, para o
defender, para que tambem a difficuldade e rareza lhe
dê maior valia. Logo sahindo da mina, onde se cria, e
provado no fogo, em que se apura, começa a fazer competencia
com sua formosa côr ás mais bellas obras da
natureza. O mais nobre dos planetas, que é o sol, dourado
nos apparece, e o seu luzente carro com raios de
ouro allumia a terra: o fogo, mais nobre e poderoso
[104]
dos elementos, da sua côr se veste; o arco celeste, que
nas tempestades da terra nos assegura, perfilado de
ouro se descobre; as nuvens ao pôr do sol, da sua côr
guarnecem os horisontes. As rosas brancas e encarnadas,
os lirios roxos, e azues, as cecens brancas, os
bem-me-queres, e as boninas com uma roza dourada
no meio se guarnecem, e enfeitam para os olhos dos
homens; os fructos das arvores, quando chegam á sua
desejada perfeição, e as searas na fertilidade de suas
espigas se tornam de ouro: e as mais formosas creaturas
humanas, com as cabeças douradas, mostram
sua belleza; e a esta imitação trazem os principes, e
monarchas do mundo o ouro sobre a cabeça; os reis e
imperadores nas corôas, os papas nas thiaras, os bispos
nas mitras, e as matronas illustres nos toucados,
ao pescoço, sobre o peito, e pendurado das orelhas,
nos dedos, e nos braços, fazendo voluntarias prisões de
sua formosura. No culto divino elle orna e aformosea
os templos sagrados, as cruzes, imagens, retabulos, calices,
patenas, lampadas, e castiçaes; com elle se adornam
os tectos, frizos, columnas, pedestaes, e todos os
ornamentos, e vestiduras da egreja. Batido em moeda
é preço, e resgate das cousas de maior valia, sem que
n'elle se começasse o trato, e commercio do dinheiro:
pois antes que o cunhassem de ouro, o houve de prata,
cobre, e latão: assim que, sem prejudicar a seus louvores
o mal que usam d'elle os avarentos, lhe podiamos
com razão chamar formosura do mundo; ornato,
e guarnição de todas as virtudes. A humildade carregada
de ouro se inclina mais, e é mais formosa, como
foi a de Primislau primeiro rei de Bohemia; que no
maior poder de sua riqueza, e senhorio, mandava trazer
ante si as alparcas de pastor com que se creara,
mandando que andassem em morgado a seus descendentes
para antidoto contra a soberba da dignidade
real. E deixando exemplos estrangeiros, a nossa rainha
Santa Izabel, o nosso infante D. Fernando, a nossa infante
D. Sancha, D. Branca, e D. Joanna, e o condestavel
D. Nuno Alvares Pereira, bem douraram com sua
grandeza, e poder a virtude da humildade. Com o ouro
se exercita, e põe em pratica a liberalidade, que sem
elle parecera virtude sem mãos; que mal as tivera Marco
Antonio triumviro para aquelle excesso de magnificencia,
[105]
que usou com um amigo, se o não tivera: porque,
mandando-lhe dar pelo seu thesoureiro vinte cinco
mil escudos, parecendo ao avarento creado que aquella
largueza nascia da ignorancia de seu senhor, lhe mostrou
aquella quantidade de dinheiro sobre uma meza,
dizendo lhe que aquillo era o que mandava dar. Mas o
romano por desmentir a malicia do thesoureiro (que
entendeu logo) lhe disse: Fizeste bem de me avisar;
que não cuidei que dava tão pouco: pelo que sobre estes
accrescenta outros vinte cinco mil; e dá-lhe cincoenta.
O mesmo, e quasi pelo mesmo modo, ouvi que
acontecera a um principe de Hespanha com seu pae,
mandando dar a uma moça humilde trinta mil cruzados.
E vindo aos nossos exemplos: bem dourou e engrandeceu
a liberalidade com seus poderes o nosso primeiro
rei D. Affonso Henriques, que nas terras, que
conquistava, edificou mais egrejas ricas, que Paços
Reaes, e casas pobres: bem o seguiram os mais de seus
descendentes em differente modo. D. Pedro o justiçoso
com os pobres, que até a manga do braço direito mandava
fazer mais larga, e comprida, para alcançar a todos
no fazer mercês, como o mesmo rei dizia. Seu filho
el-rei D. João o I, foi tão liberal com os vassallos
que o serviram, que deixara sem patrimonio a corôa,
se el-rei D. Duarte seu filho não fizera a lei mental,
com que limitou sua largueza. El-rei D. Manuel com os
poderes de sua riqueza, e a magnificencia de sua condição
assombrou as nações extranhas, e ao nome portuguez
fez mais honrado. A castidade mais excellente,
e formosa parece guarnecida de ouro, que nos humildes
trajos da pobreza; e por isso foi tão louvada em
Scipião, que poderoso, rico, e vencedor, quando entrando
Carthago lhe offereceram captiva uma formosa
dona, e bem nascida, em logar de gosar d'ella a mandou
honradamente acompanhada a seu marido com o
resgate, que por sua liberdade lhe offereciam. Não faltou
esta excellencia em muitas donzellas do sangue
real d'este reino, que, deixando riquissimos dotes da
ventura, offereceram a Deus este da natureza. E se é
celebrado el-rei D. Affonso o Casto em Hespanha, não
desmerecia este nome o rei portuguez, que persuadido
de seu valoroso animo, e errado conselho, perdeu a vida
nos campos africanos. A paciencia quanto é mais louvavel
[106]
e excedente no poderoso rico, que no miseravel,
em quem não tem execução a ira, nem a vingança.
Rico e poderoso no mundo era Filippe, rei de Macedonia,
que perguntando aos embaixadores athenienses o
que lhe queriam, respondeu com inconsideravel liberdade
um d'elles, que
vêl-o sem vida; e elle voltando aos
outros com muita brandura disse:
Dizei aos Athenienses
que mais modesto é quem soffre essas palavras, que os
sabios de Athenas, de quem elles se prezam. E se contam
d'el-rei D. Affonso I, rei de Napoles, que, sabendo que
um creado seu dizia mal d'elle, lhe fez muitas mercês,
com que elle obrigado disse depois de suas obras mil
louvores; e o rei avisado d'isto disse:
Folgo que esteja
em minha mão dizerem bem de mim: tambem houve rei em
Portugal que em muitas occasiões usou o mesmo termo,
como se verá da chronica d'el-rei D. João o II, e de
muitas memorias do III, não esquecendo a paciencia
d'el-rei D. Diniz com seu filho, e a d'el-rei D. Pedro,
sendo principe, com seu pae. A temperança medida
por vasos de ouro, e ainda á vista d'elle, é mais estimada:
como a de Curio, que com o ouro dos Samnitas
deante não deixou a panella de couves, e nabos que
cozinhava; antes respondeu aos que lh'o traziam, que
não era necessario a quem com tão humildes viandas
se sustentava. A sobriedade, e temperança nos nossos
reis naturaes é tão louvada, que de mui poucos sabemos
que bebessem vinho, e de nenhum que comesse
demasiado: e tanto pareceu isto bem ás nações extrangeiras,
que a imperatriz D. Leonor, filha d'el-rei D. Duarte
de Portugal, e mulher de Frederico III, Imperador
de Allemanha, não tendo geração, e averiguando os
medicos que por a frialdade d'aquella provincia não
concebia, porém que, se bebesse vinho, teriam filhos;
ella não consentio no remedio: e Frederico disse que
antes queria sua mulher esteril, que mal acostumada.
A caridade, subida sobre columnas de ouro, se levanta
sobre as estrellas; e ainda nos que sem lume da Fé a
conheceram, com o poder do ouro a sustentaram: como
Cimon Atheniense, poderoso, e rico, que mandava abrir
as portas aos jardins e pomares, que tinha para que
entrassem livremente os necessitados a colher seus
fructos: mandava aos seus que, achando algum velho
mal vestido trocassem com elle os seus para o melhorarem;
[107]
dava todos os dias banquete publico aos que
mendigavam pela cidade: e aos pobres de qualidade
sustentava com esmolas secretas. Não fôram n'isto os
nossos reis e principes portuguezes inferiores, como o
testemunham os varios hospitaes, mosteiros, casas de
caridade, e santos costumes, que deixaram n'este reino,
para agasalhar peregrinos, sustentar, e vestir pobres,
e curar enfermos e feridos: no que fôram, entre os outros,
insignes os reis D. Affonso I, D. João I, II, e III, e o
insigne cardeal e devoto rei D. Henrique. Á diligencia
com muita razão lhe calçáram os antigos esporas douradas,
pois o duro estorvo da pobreza, como pintou Alciato,
impede as azas e limita os passos á diligencia.
Com ouro e com os poderes d'elle conquistaram Alexandre,
e Cesar em mui limitados annos a redondeza:
o nosso rei D. Diniz com os poderes d'elle accrescentou
em seu reino quarenta e quatro villas com castellos,
e fortalezas; izentou a Ordem de S. Thiago de Portugal;
e instituio a de Christo; e fez os primeiros estudos
de Coimbra. E os reis D. João, e D. Manuel descobriram,
e ganharam para a Fe as terras do Oriente
com tanta inveja, como espanto das nações extrangeiras.
De maneira que, se os avarentos, que usam mal
do ouro e das riquezas, guerream com elle contra as
virtudes, nenhuma cousa ha que tanto como elle as
engrandeça e alevante. E se os cubiçosos na sua conquista
perdem tantas vidas, muitas mais se compram,
e resgatam a preço d'elle. E deixando o balsamo de
ouro, tão admiravel nas feridas, o ouro potavel, tão celebrado
dos distilladores nas enfermidades; qual risco
da vida, qual perigo ou necessidade d'ella, qual oppressão
ou captiveiro não remio o ouro? Elle faz a formosura
das cidades, a belleza dos edificios, a fortaleza
dos exercitos, a bizarria dos trajos, a galanteria das
côrtes: com elle se alcançam n'ellas as honras, dignidades,
titulos, e privanças, e até os louvores e as mesmas
graças da natureza: todos o buscam, o desejam,
e o conquistam: e ainda os outros metaes se querem
converter n'elle por meio de alquime; os animaes se
rendem á sua formosura; pois não ha caça mais certa
que a que se toca com laço de ouro, nem melhor pescaria
que a que se alcança com anzol d'elle: e é tão
grande a fôrça de seus poderes, que se atreveu a dizer
[108]
um auctor, que na maior furia de um leão, de um tigre,
e de outra qualquer féra, se lhe lançarem moedas
de ouro deante, amansarão com ellas sua braveza. E
passando por todas as cousas da terra sua valia, podem
os ricos subir ao céo por escadas de ouro, e dar-lhe com
elle assalto e bataria, pondo as balas e settas d'este
metal nas mãos da caridade. E de elle se subir em tanta
altura nasce ficar de mim tão longe, como está de ser
digno de seus louvores meu humilde talento, que, se
fôra de tão illustre metal, tudo alcançara.
A todos pareceu extremada a oração de Solino, posto
que alguns a esperavam menos grave, e mais engraçada:
e assim lhe disse Leonardo:—Parecestes-me esta
noite mais orador insigne, que murmurador galante.
Folgo que, errando eu a eleição, acertasseis vós tambem
os louvores.—Não vos agradeço (respondeu elle) os
que me daes; por quanto d'antemão vos vingastes d'elles.
Porém se quereis vêr em outrem com gravidade o
que de mim esperaveis como satyra e agudeza, pois
os bens e males do ouro estão encetados; diga o senhor
prior agora os poderes do interesse, que no successo
da sua peregrina achará largo campo para esta materia.—Essa
é mui larga (disse o prior) e são passadas muitas
horas da noite; e eu me não escusara com ellas, se
não imaginara que todas as verdades, que cahem sobre
este sujeito, hão de parecer murmuração. Porque
dizer que o interesse tudo vence, e a tudo alcança, é
sentença antiga, e experiencia moderna; porém, se particularisar
os modos e termos, com que batalha, será
ir com os dedos aos olhos de muitos. Se disser que o
interesse quebrou muitos sceptros reaes, quem se defenderá
d'elles? Se affirmar que torce, e derriba varas
da justiça, quantas se virarão para castigar-me? Se
ousar a dizer que profana as leis, e offende a immunidade
das egrejas, temo que até na minha me neguem
a entrada. Se contar que é carta de seguro de salteadores,
couto de homicidas, torre do facinorosos, e merecimento
de descuidados, quantos se levantarão contra
minha verdade? Só direi em um conto breve o que
de sua valia se pode presumir na necessidade; e será
julgar pelas unhas o leão, e pela pisada de Hercules a
medida de sua grandeza.
Um homem curioso, bem intencionado, e não mal
[109]
entendido, andou alguns annos na milicia do Oriente:
e vindo d'elle a este reino para se despachar, trouxe
entre algumas cousas de menos valia, que curiosidade,
umas imagens de santos, e anjos de marfim, maravilhosamente
obrados. E depois de entrar em seu requerimento,
deu conta a um amigo, pratico nas cousas da
côrte, do estado de seus negocios; aconselhou-o elle
como convinha e buscando entre o movel, que trouxera,
peça que podesse offerecer a um ministro, com
quem tinha intelligencia, lhe inculcava aquelles santos
de marfim, que o tinham muito affeiçoado.—Como
(disse elle) não trouxestes da India algum pagode, ou
idolo de ouro d'esses gentios?—Para que? lhe perguntou
o pouco esperto requerente.—Ah, respondeu
o amigo, que para o que vós pretendeis, e cá se costuma,
Mais podem diabos de ouro, que anjos de marfim. E
assim não me parece que está mal o dito vulgar do
povo,
que o interesse é diabo. E pois o tempo é tão
curto,
seja isto uma cifra do que se pode dizer de seus poderes;
que são tão grandes, que a mim me tiram a liberdade
de falar, contra o desejo que tenho de vos obedecer.
E sendo elles taes, e o ouro o principal interesse
de todos, mui bem lhe cabem com os males, que Pindaro
d'elle disse, os louvores com que Solino o celebrou
fazendo a differença sómente no uso d'elle. Que se Santo
Agostinho lhe chamou enfermidade da soberba, fraqueza
das virtudes, materia de trabalhos, perigo do
possuidor, senhor insoffrivel, e escravo atraiçoado;
Santo Ambrosio, laço do demonio; S. Chryzostomo, escola
dos vicios, e doença da alma; e se d'elle nasceu a
Cresso a soberba, a Heliogábalo e Sardanápalo a luxuria,
a Nero a crueldade, a Cómmodo e Vitelio a gula:
se por elle Polycrates morreu na forca, Cresso na fogueira,
Crasso degolado, Heliogábalo arrastrado, e outros
ricos tiveram fins semelhantes; não teve a culpa o
ouro, senão a má avareza de quem o possuia, ou a cubiçosa
sede do que o desejava; pois elle nos animos livres
não impede o caminho das virtudes, antes lhes dá forças,
lustre e grandeza: como em um Constantino Magno, que
enriqueceu a egreja Romana; um Carlos IV, que comprou
com elle a vida; um Emmanuel, que honrou o nome
Portuguez, o dilatou a fé catholica pelo Oriente; um
Lourenço de Medicis, que honrou Florença: um Leonardo
[110]
Lauredano, que libertou Veneza; um Carlos Brugi,
que soccorreu a esterilidade de Flandres; e outros muitos,
que o souberam dispender valorosamente. De maneira
que n'elle está a condemnação ou justificação, a
morte ou a vida de quem o possue ou deseja. Para o
que eu acho extremada aquella historia, que toca Auzonio
poeta em um seu epigramma. E é que um homem
desesperado com uma paixão, que teve, se hia enforcar
em um logar secreto, levando comsigo o baraço, em
que havia de deixar a vida. Succedeu que com a força
que fez, cahindo uma parte da terra n'aquelle logar, se
lhe descobrio um thesouro; a cuja vista mudou logo o
pensamento: e, levando o que achara, deixou em seu
logar o baraço que trazia. Vindo depois o que alli o
escondera, e achando-o menos, e em seu logar a tentação
de sua desventura, fez, porque perdera um thesouro,
o que o outro deixou de fazer porque o achara:
de modo que a um deu a vida o ouro, a outro matou a
avareza d'elle.—Com tão boa historia (accudiu D. Julio
levantando-se) é razão que vamos satisfeitos, e deixemos
ao senhor prior bem agazalhado, posto que pelo
interesse de sua conversação deixara eu muitos dos
que os outros desejam; porque se a opinião dos cubiçosos
deu preço ao ouro e pedraria, á conversação dos
sabios o não pode tirar a mesma ventura.
DIALOGO VIII
DOS MOVIMENTOS, E DECORO NO PRATICAR
Foi-se o prior da casa de Leonardo em apparecendo
o dia: e n'ella em vindo a noite se ajuntaram os amigos,
sentindo grandemente a falta d'aquelle que os deixara.
Foi essa a primeira cousa, de que trataram: e
entre outras disse Feliciano:—Por todas as razões se
devia desejar a conversação de tão discreto, e douto
cortezão, como é o prior, em todo o tempo, mas n'este
das noites do inverno muito mais: e n'ellas encherá
elle muito bem o seu logar; porque, além de saber e
auctorisar o que diz com o fundamento das lettras e
curiosidade que tem, é muito composto e engraçado no
que fala: e por extremo me pareceu bem aquelle modo
[111]
de encarecer negando na materia do interesse, e o descrever
com brevidade nas historias.—Quanto mais ouvirdes
d'elle (lhe respondeu Leonardo) vos parecerá
melhor. E sabei que, antes de trazer aquelles habitos
parecia muito bem nos de côrte; e que debaixo dos
compridos pode ainda dar lições d'ella a muitos de capa
e espada.—Parte é o falar bem (accudiu D. Julio) que
leva tudo após si: e não consiste este bem só nas razões
discretas e palavras escolhidas, senão no bom
modo e graça de as dizer: o que eu comparo a uma
cousa escripta de boa ou ruim lettra; que a boa aformosea,
e dá ser, côr, e graça ao que lêdes; e a ruim
desconcerta, empeça, e afeia as razões, sendo todas
umas: e não faltarão mui perto exemplos d'esta verdade.—Fujamos
das comparações para a doutrina (disse
Pindaro) e melhor fôra ser essa a materia, em que se
gastára este serão.—Ainda vos ficaram sobejos do passado
(tornou Solino) pois vos adeantaes da companhia:
porém eu a quero fazer ao vosso voto, se ha de ir aos
mais.—Nem a mim me descontenta (disse Leonardo) se
o doutor nos abrir o caminho.—Sempre (respondeu elle)
me mandaes deante como os frades menores nas procissões;
quero-os tambem imitar na obediencia: porém
lembro-vos que são duas materias as que tocou o sr.
D. Julio, convém a saber, a graça, e composição do
rosto e corpo no falar, e o concerto das palavras, e discrição
das razões.—Essa divisão parece escusada (disse
Leonardo) porque a graça não se aprende, nem se pode
alcançar por arte, pois é mero dom da natureza—Todas
as cousas d'ella (tornou o doutor) se aperfeiçoam e melhoram
com a arte: e, para saberdes logo esta verdade,
tomarei á minha conta o em que vos parece que ha
menos que dizer; e fique á vossa a demazia.
Primeiramente no movimento, e graça do falar, chamou
Marco Tullio
eloquencia do corpo: e Quintiliano
disse que com todas as partes d'elle se ha de ajudar a pratica.
E posto que esta doutrina parece que convinha
então aos oradores, como agora aos prégadores, uns
e outros praticam, e em todo o tempo é necessaria: e
assim pintaram alguns o jeroglifico da rhetorica com
uma mão aberta, outra cerrada.—Muito contraria me
parece essa lição (disse D. Julio) á policia da côrte,
onde é regra que o homem ha de falar com a lingua,
[112]
e ter quieto o corpo e as mãos.—Eu concertarei essa
regra com as minhas (replicou o doutor), que o homem
no falar nem ha de parecer estatua, nem bonifrate: e
logo vereis que o que quero dizer é o mesmo, em que
vos quereis anticipar. O primeiro instrumento da pratica
é a voz: e, para essa ser engraçada no falar, ha de
ter estas propriedades,
Ser clara, branda, cheia, e
compassada:
porque a voz escura confunde as palavras, a aspera
e secca tira-lhes a suavidade; a muito delgada e
feminina faz impropria a acção do que fala; a muito
apressada empeça e revolve as razões, que por si podem
ser muito boas: não trato das que a natureza inhabilitou
para esta perfeição, como é a voz do gago,
do cicioso, e do rustico grosseiro: mas na do cortezão
tomara eu estes attributos; porque ha alguns que falam
com a voz tão mettida por dentro, que deixam as
palavras para si, e os ouvintes ás escuras, que lhes é
necessario estar espreitando o que lhes querem dizer:
e outros, que pronunciam com tanta aspereza, que espinham
as orelhas dos que escutam; e outros, que falam
tão apressadamente, que parece que levam esporas
na lingua.—Entre vozes (disse Solino) tambem eu
hei de soltar a minha: e no que é a voz cheia, que dizeis,
quizera saber a differença; porque eu tenho que
ainda é peor a muito grossa que a feminina: porque
ha homem que, quando fala, mais parece tom de baixo,
que espirito de voz. E egualmente aborrece vêr um homem
com um rosto como uma peneira, muito versudo
da barba e sobrancelhas, sahir com voz de frauta muito
exprimida.—O meio (respondeu o doutor) em todas as
cousas é a perfeição d'ellas: e se estaes bem lembrado,
tambem deixei de fora a voz grosseira, como a quem
a natureza privou da graça no falar. Depois da voz, os
olhos dão muito espirito ás razões: porque, como elles
são as janellas d'alma, por elles se communica vida ás
palavras: e assim hão de ser claros, alegres e moviveis:
porque os muito intensos, e extendidos entristecem;
os muito apertados e franzidos movem a desprezo; os
muito abertos, pasmados, e sahidos para fora, fazem
temor; e posto que os olhos, por risonhos, nunca perdem
a graça, parece que nas praticas graves, e de importancia,
não hão de ser muito chocalheiros.—N'isso
tendes vós muita razão (disse D. Julio) que ha homens.
[113]
que dão olhado ao que falam: porém não vos esqueçaes
das sobrancelhas.—Tambem a acção do falar toma
muito d'ellas (tornou o doutor) porque franzidas fazem
carranca, e mostram que fala um homem com melancholia;
baixas representam tristeza, ou vergonha;
muito arqueadas significam espanto; e levantadas alegria.
E não menos convém a composição da barba, que
fincada nos peitos mostra desconfiança ou porfia; e
posta no ar vangloria: e o pescoço, que nem se ha de
ter tão levantado que faça soberba nas palavras, nem
tão baixo, que pareça que não pode com a cabeça; a
qual não ha de estar tão firme, que pareça que a espetaram
n'elle; nem se hade quebrar para todas as
partes como grimpa. Da mesma maneira a bôcca ha
de ser quieta quando fala, sem estar mordendo beiços,
nem torcendo-se, nem inchando com as palavras; nem
com o riso se ha do mostrar tão descuidada, que as
entorne pelos cantos; nem tão apertada, que offenda
a boa pronunciação e graça d'ellas; no que vae mais
á lingua portugueza, que a outras muitas: porque sabemos
que todas as nações orientaes naturalmente opprimem
a voz na garganta quando falam, como os Indianos,
Persas, Assyrios, e Chaldeus: e todos os Mediterraneos
referem as palavras aos padares da lingua,
como fazem os Gregos, Frygios e Asiaticos: e todos os
occidentaes, como os Francezes, Italianos, e Hespanhoes,
mastigam as palavras entre os dentes, e as pronunciam
na ponta da lingua: posto que em alguns logares,
conquistados outro tempo dos Africanos, ficaram
usos e palavras, que ainda obrigam a sua pronunciação;
mas os que estão mais izentos d'ella são os Portuguezes,
como aqui na primeira noite da nossa conversação
se tocou. Além d'estas partes do rosto tem o
movimento do corpo o seu logar: que pode parecer
airoso, quando fala, mostrando as materias sobre que
fala nos contos, historias, graças ou galanterias, não
representando o que diz com meneios de comediante,
nem com modestia e compostura sobeja, mas com uma
boa sombra, e um termo no persuadir assocegado, no
relatar mais ligeiro, no arguir esperto, no desculpar
ou defender-se mui brando; nem fazer badallos dos pés
quando fala assentado, bolindo sempre: nem estar com
os olhos n'elles quando passeia. Sobre todos os mais
[114]
gestos ou acções, que tenho tocado, se ajuda a pratica
do movimento das mãos, que ha de ser com um leve
ar e compostura, com que o discreto favorece as palavras
que diz, não falando com ambas ellas, nem chegando
com alguma perto da vista dos ouvintes; e guardando
estas e outras advertencias semelhantes, pode
fazer um homem uma agradavel gentileza no praticar,
emendando algumas faltas da natureza, ou favorecendo
com o cuidado as graças, que ella lhe dotou: não tratando
dos incuraveis, a que já não possam valer estes
remedios; mas dos que á falta d'elles, e com o largo
discurso de maus costumes se vieram a fazer incuraveis.—Parece
que daes a entender, senhor doutor, (disse
Pindaro) que ha mais algumas advertencias, que podem
ser de importancia n'esta materia: e, para a tratar
de fundamento, não é razão que fiquem de fora.—Para
essas e para o mais, que tenho dito (respondeu
elle), nomearei alguns vicios, que são contra o bom
termo da pratica; que, reprovados n'ella, acreditarão
as minhas opiniões, a que eu não posso nem quero dar
nome de preceitos, posto que são fundadas em os melhores
dos que d'esta materia escreveram.
O primeiro é
escutar-se um homem a si proprio quando
fala, por se contentar do que diz.
O segundo
repetir outra vez o que tem dito, com os olhos
nos ouvintes, para que lh'o gabem.
O terceiro
deter-se tanto nas palavras como que as vae
pezando,
e compondo para as dizer.
O quarto
ir-se arrimando a bordões para que lhe accudam
em tanto as palavras.
O quinto
ir á mão ao que quer responder, por querer falar
tudo.
O sexto
bracejar muito, e dar grandes risadas a seus proprios
ditos.
O setimo
borrifar as palavras com o humidade da bôcca,
por falar com vehemencia.
—Vós (accudiu Solino) formastes aqui uns sete peccados
mortaes contra a discrição, e cortezania, que não
merecerá n'ella ter graça quem n'elles estiver culpado.
Cada um dos presentes examine sua consciencia, porque
receio que falaes de proposito contra alguem.—É
[115]
tão má a vossa natureza (lhe tornou o doutor) que
quer perverter a minha boa tenção, e d'estes peccados
contra a policia tirar outros que offendam a amisade:
vale-me porém ser a vossa conhecida. E proseguindo
a materia dos vicios, os tres primeiros nascem do amor
proprio que cada um tem a suas cousas, a que os gregos
chamaram
Filaucia: os quatro seguintes, ou da ignorancia,
ou do descostume e falta de doutrina cortezã.
Escutar-se um homem, quando fala, é de quem bem
lhe parece o que diz: e posto que o vicio é natural,
tem ruim patria; que o homem, que se escuta, é lisongeiro
de si mesmo, e elle se paga por si de suas palavras,
vendo-se e enfeitando-se n'ellas como em espelho,
conforme os proverbios antigos, que
a cada um parece
o seu formoso; e outro, que
não ha melhor musico que
cada um a si mesmo; e que
a cada um contenta o seu rosto, a
sua arte, e cheira bem o seu suor.—Outro (disse Solino) me
parece a mim melhor que todos esses, porque os declara;
e é que
quem se contenta a si contenta a um grande
nescio;
que não pode deixar de o ser o que do seu engano
se satisfaz. E não achareis discreto d'esse feitio, que
não caia nos tres primeiros laços: porque são encadeados
uns com outros: e em se escutando um homem
a si, o vereìs ir encarecendo as palavras com as sobrancelhas,
enchendo com ellas a bôcca, e pronunciando-as
com muito cuidado.—D'esses disse Horacio (accudiu
Pindaro) que
falavam empolas; é está muito bem o
nome á inchação das suas palavras. Mas o segundo vicio,
que é da repetição, parece menor erro; porque o
que é bem dito se pode repetir, conforme ao que disse
o poeta; e só será a culpa quando o dito não fôr acertado.—Essa
estimação não ha de ser feita por seu
dono (respondeu Solino), nem elle pode pôr o preço a
suas palavras, cuidando que fala ouro; em obras alheias,
referidas por outrem, tem logar essa desculpa; e não
se podem servir d'ella os que com os olhos, e com a
repetição do que disseram, estão puxando por vós a
que lh'as gabeis, e vos contenteis á força da sua razão;
e mettem de quando em quando um
entendeis-me? estaes
commigo? digo bem? que vos parece? não sei se me declaro.
De maneira que, para encarecerem o seu aviso, fazem
dos outros nescios. E com este cahem logo no terceiro,
que é deter-se muito em cada palavra, soltando-as por
[116]
compasso, dilatando uma da outra, porque se não peguem:
e é vicio, que fará ser aborrecivel a todo o mundo
a quem o tem; e até á mesma discrição fará importuna
este mau uso d'ella. E mais é mui certo andar
annexa esta boa parte a uma fala de doente mui molle;
que tudo junto vem a ser um xarope de semsaboria,
que não ha quem o leve. O quarto não entendo bem,
porque não sei ao que chama
bordão o doutor.—Sabei
(disse elle) que os arrimos, a que se pega ou encosta o
que fala, quando as palavras lhe cançam, se chamam
bordões, e são de duas maneiras: uns que pertencem,
ou
para melhor dizer, que são impertinencias nas acções
do falar; e outros nas palavras: os primeiros são mais
culpaveis que os segundos, porque ha um que não sabe
praticar comvosco sem vos estar desabotoando, ou
alimpando o cotão, e arrancando a frisa do vestido:
outro, que a cada palavra vos pega do cinto, ou travando-vos
do braço vos molesta: e ainda ha alguns tão
desatinados, que vos dão com a mão nos peitos a cada
cousa que dizem: e outros que, se deixam de entender
com quem praticam, o hão comsigo, não estando quietos
com as mãos; esgravatando os dentes, ou bolindo
nos narizes e falando, tirando cabellos da barba, e
mordendo as unhas; e outros vicios semelhantes, que
servem como uns espaços e reclamos, a que lhe acodem
as palavras. Os segundos são mettidos na mesma pratica
com alguns, que em cada palavra d'ella mettem
um
diz,
assim que digo,
tal e qual,
sim senhor,
vae vem,
então,
senão quando,
espere vossa mercê,
assim que senhor,
estaes commigo; e outros muitos, fora os que vós
apontastes
no vicio da repetição, que são bordões da primeira
classe.—Certo (disse Feliciano) que tem muita razão
o doutor em dizer que este vicio e os dois, que se
seguem, nascem do descostume, e falta da doutrina
cortezã: porque eu alcancei ainda por condiscipulo um
estudante, que na opinião dos mais não era tido por o
que falava peior, que, por o grande odio, que tinha aos
bordões, inventou um modo excellente para os desterrar
da conversação dos amigos, com que tratava de
ordinario; e foi um jogo de não menor engenho, que
utilidade; e pelo exercicio d'elle se perdeu até a semente
dos bordões entre aquelles amigos.—Não vos esqueçam
(disse Leonardo) os termos de tão bom jogo,
[117]
que já pode ser que occupemos com elle uma noite,
mais bem empregada, do que o remedio será necessario
para os presentes, porque não são dos homens limitados,
que se apegam a estes encostos: e se quereis
conhecel-os, ouvi-lhes contar uma historia, e metter-vos-hão
n'ella mais bordões, do que tem de palavras.—O
quinto vicio (proseguiu o doutor) é incomportavel; porque
ha homens tão sôfregos de falarem tudo; que atalham
as palavras ao que lhes começa a responder, querendo
anticipar com o seu entendimento a tenção alheia.—Esses
taes (disse Solino) falam a duas mãos, porque
querem que vá tudo por elles. E como me acho entre
esses, por não pedir por mercê que me ouçam uma palavra,
deixo o feito sem parte; e como ficam falando á
reveria, desfaço as suas sentenças com uma bochecha de
agua.—Esses faladores são como cigarras, que atrôam,
e não deleitam (disse D. Julio) e é sentença mui approvada
entre cortezãos que tres cousas não ha de haver
entre elles demasiadas,
sobeja parola, comprida porfia,
e grande rizada; porque
quem muito fala d'elle damna
(como diz o rifão)
e com quem aporfia não disputes; e onde
ha muito riso ha pouco siso; que todos estes pertencem á
conversação.—Essa terceira parte (proseguiu o doutor)
é do sexto vicio, que é bracejar quando fala, e festejar
com risadas seus proprios ditos o que se quer vender
por discreto. E assim vereis alguns, que falam ás pancadas;
e se acharem um pulpito deante, o farão em
pedaços, como se a policia podéra soffrer o desassocego
e inquietação da sua esgrima. As risadas, além de arguirem
falta de entendimento, são mais impertinentes
quando um homem festeja seus proprios ditos; que,
para terem galanteria, elle, que os diz, ha de ficar sisudo;
e os que o ouvem, risonhos. E assim os engraçados
de nossos tempos que conhecemos, e outros, que
deixaram esse nome, sabiam festejar moderadamente
as graças alheias, e dissimular o riso nas suas, fazendo
menos caso d'ellas.—Duas cousas (disse D. Julio) se me
offerecem para vos perguntar n'essa materia: e seja a
primeira, que moderação se ha de usar no riso, com
que um homem festeja o conto ou graça do que falla
deante d'elle?—Os homens (respondeu o doutor) não hão
de ser tão sevéros que nunca riam como Catão Censorino,
Anaxagoras, e Sócrates: nem como Marco Crasso,
[118]
que rio uma só vez na vida; pois é definição e differença
do homem
ser animal racional, e a sua propria
paixão é
ser rizivel: porém não menos se ha de
guardar
de ser desentoado nas risadas; que, para n'isto haver
uma moderação politica, lhe buscaram os antigos muitas
differenças: e deixando o riso Jonio, Megarico, Sardonio,
e Synclusio, dos quaes falam tantos auctores
gregos, e latinos; colhida d'elles a melhor doutrina, não
ha de rir o homem com a bôcca aberta que dá grande
tom ao riso, nem com os beiços apertados, como costumam
os que tem cieiro n'elles; nem sómente mostrando
os dentes, que a estes chamaram os latinos
riso de cavalgaduras; nem com um riso molle e
affeminado,
como era o Jonio; mas com uma boa sombra e
graça na bôcca e no ar do rosto, com que se mostre,
agradecido do que escuta. E se esta resposta vos satisfaz,
bem podeis continuar com a segunda pergunta.—Ainda
que as minhas (tornou elle) não fôssem muito
a proposito, com o interesse de vossa doutrina ficariam
desculpadas, como será esta: Se na graça, que outrem
conta, em que eu a não acho, sou obrigado em primor
cortezão a me mostrar risonho? Obrigado é o cortezão
(respondeu o doutor) a se mostrar agradavel aos com
quem se pratica: e não o poderia ser quando seccasse
o riso na occasião, em que outrem mette cabedal para
o provocar a elle; que seria mettel-o em desconfiança.—Eu
me dou por satisfeito (disse o fidalgo) e já agora
podereis passar ao setimo erro; em que ha pouco que
discorrer segundo me parece; que nao é mais que um
descuido e desattento dos que, mostrando o fervor do
animo com que falam, borrifam com humidade o que dizem,
e ás vezes a quem os escuta.—Não cuido eu (disse
Feliciano) que são esses os de que trata o proverbio, que
falam fontes de prata.—Antes (tornou Solino) lhes
chamara
eu
homens que falam frescos que nem uma manhã
de abril deixa tao orvalhado um campo do boninas,
como elles a roda dos que os estão ouvindo; e para estas
immundicias houvera de ter a discrição um Almotacé
da limpeza.—Desterrados pois (continuou o doutor)
da conversação estes sete inimigos d'ella, parecerá um
homem cortezão aos que o escutarem, falando agradavelmente
nas palavras as leis que agora lhe der o senhor
Leonardo: que posto que a verdadeira discrição
[119]
seja natural, nenhum dos dons da natureza deixa
de receber beneficio da arte, da continuação e dos costumes.—Muito
depressa vos quereis desobrigar (respondeu
Solino) e eu ainda esperava que passasseis pela minha
porta, dando algum toque na murmuração, como
déstes no riso: que tambem estes preceitos são fóra das
palavras.—O riso sim (lhe tornou elle), mas não o murmurar;
que é culpa que não se attribue á pratica, posto
que alguns digam que sem esse sal a mais discreta é
pouco saborosa: e é porque ha muitas cousas, que não
queremos dizer, e folgamos em extremo de as ouvir.
Assim que o que murmura ordinariamente agrada a gostos
alheios de gente ociosa, com risco proprio. Porém,
por fazer as pazes comvosco, entrarei em contendas, de
que estou desobrigado, tocando na murmuração engraçada;
e para lhe dar logar, a metterei no meio de uma
sentença excellente, que diz que
dos animaes bravos a
peior mordedura é a do praguento; e
dos mansos a do lisongeiro.
O praguejar é maldade, o lisongear traição, o motejar
levemente galantaria: o discreto nem ha de morder,
nem lamber; porém picar levemente, e com arte,
é graça da conversação. Para o que, deixando auctoridades,
exemplos, preceitos, e cousas infinitas, que poderão
levar grande tempo: o cortezão, quando arguir
para graça, ha de considerar tres cousas: o que fala,
com quem, e deante de quem. O primeiro por fugir de
materia em que o presente desconfie: o segundo por
não motejar com quem não saiba pesar e conhecer as
galantarias: o terceiro por não falar graças, de que,
algum dos ouvintes se envergonhe: porque de outro
modo, sendo a graça pesada, perderia o nome. Não falo
do murmurar de ausentes, que em todo o modo me parece
culpavel. E bem podiam servir para lei d'estas galantarias
as vossas, que a todos agradam, e que, se aos
ouvintes não fazem fastio, tão pouco aos offendidos
causam queixume.—Lembra-me (disse Pindaro) que no
quinto vicio condemnastes o querer um homem falar
tudo: e não déstes regra aos que falam pouco.—Seria
(respondeu o doutor) por me conformar com uma sentença,
que diz:
Aos que pouco falam, poucas leis lhes
bastam.
Além d'isto até agora não tratei dos louvores do
silencio, nem da verdade d'aquelle dito:
Assás sabe o
que não sabe; se calar sabe. E o outro, que:
O
nescio calando,
[120]
parece-se com o discreto. Falo sómente da
maneira de
praticar entre os amigos, onde as palavras não tem
mais que estas duas medidas, que são
falar a tempo,
e
a proposito: a tempo, porque nem em todos se pode
dizer
tudo o que é bem dito.
Nas comidas se ha de fugir falar em cousas que enojem o
estomago, e offendam ao gôsto, ainda que em
outros logares podem dar muito. Entre enojados não
dizer graças, ou contos, que desautorisem a tristeza, e
provoquem a riso. Entre enfermos não contar historias,
que causem temor ou desconfiança em seus males.
Entre ecclesiasticos guardar-se de coisas que saibam
a lascivia, e profanidade. A proposito; porque ha
muitos, que se desviam do principio da pratica, de maneira
que do primeiro salto vão parar a Flandres; outros,
que em tudo querem metter uma historia que
sabem, contar uma nova que lhes veiu, um dito que
ouviram, um sonho que sonharam; e pela deleitação,
que tomam de contar coisas proprias, perdem o decóro,
com que hão de escutar as alheias, e o tento do que
elles mesmos respondem: e tambem me a mim parece
que me vou mettendo nas que não são minhas; que
me fizeram passar os termos de maneira, que nem a
meu amigo ficou tempo para continuar com a segunda
parte d'este discurso.—Vós dizeis tudo tão bem (tornou
Leonardo) que se perde pouco no que eu havia de accrescentar,
quanto mais, que o que se dilata não se
tira; e já ámanhã terei cuidado, ou espaço de cuidar
no que hei de dizer, por não cahir no terceiro peccado
de ir compondo as palavras com o vagar que enfastia.—Em
casa cheia (disse Solino) de pressa se faz a cêa; e
em entendimento tão rico, como o vosso, nem de cousas,
nem de palavras pode haver pobreza: guarde-vos
Deus de uns meus senhores, que as pedem fiadas aos
livros de cavallarias, com suas sentenças de cabo de
capitulo, que se se lhe atravessa um escarro de um
dos ouvintes, varreu-lhes toda a prégação da memoria,
e vão com a pratica em muletas até tomarem assento
com muito trabalho seu, e de quem os escuta.—Hora,
não o dêmos tão grande ao senhor Leonardo
(disse D. Julio) que hoje o não deixemos dormir, pois
ámanhã o havemos de despertar; que as duas noites
passadas foram de hospede, e a conversação dos que
[121]
são de mais gôsto, roubam melhor o tempo; e comtudo.
a parte que se tira ao repouso, sempre faz falta,
Começaram-se os outros a levantar, e o velho ainda
os deteve em pé dizendo:—O senhor D. Julio em tudo
tem tenção de me fazer mercês; porém esta não é das
em que fico devendo mais: porque antes quizera poupar
o tempo do somno para viver, que o da vida para
dormir. E se é verdade que na conversação de tão bons
amigos só se vive, qual posso eu ter melhor, que, fazendo
estas noites mais compridas, alargar a minha
edade? que sentença é antiga, que
o tempo, em que dormimos,
perdemos da vida: pelo que chamaram ao somno
imagem da morte.
DIALOGO IX
DA PRATICA, E DISPOSIÇÃO DAS PALAVRAS
Ia crescendo o gosto d'aquelles amigos com o exercicio
de tão proveitosa conversação, de tal maneira,
que nenhum perdia o sentido das materias, que ficavam
tocadas, para se armarem de razões, contos, e
exemplos, com que cada um mostrasse aos outros sua
sufficiencia. N'aquella porém da pratica vulgar ficou
Leonardo muito atalhado, assim por ser cousa em que
tudo pende de opiniões incertas; como porque o doutor
lhe cortara a urdidura, com que havia de ir tecendo
o seu discurso, desejava mudar o proposito a outra
cousa, que viesse mais ao seu; mas como aquelle era
o de todos, não via caminho de o desviar. Veiu pois a
noite do outro dia, e com ella os companheiros mui alvoroçados;
aos quaes elle festejou com a mesma alegria;
e logo, depois que se assentaram, lhes disse: Se
hei de falar verdade, eu estou tão carregado com o officio
que de novo me déstes, que me não atrevo a dar
boa conta d'elle; porque todas as que fiz para me dispôr
a isso, me sahiram erradas: e me parece tão difficultoso
falar de cuidado, e ordenadamente na materia
em que se ha de praticar na lingua portugueza, que
me hei de chamar ao engano, e o maior de todos foi
darem-me espaço para temer, quando eu cuidei que o
[122]
tomava para me prevenir.—Em vós (disse D. Julio) é
gentileza esse receio; e ainda que fôsse fingido, eu o
tenho por a primeira regra de falar bem, pois ensinaes
aos discretos a não falarem com sobeja confiança; e
pela que eu tenho de vossa discrição, só em uma cousa
achara difficuldade, que é pôrdes em regras, e preceitos,
o que tendes por natural, e por costume; que servieis
mais para exemplo de quem vos ouve, que para
mestre dos que não podem comprehender a vossa doutrina.—Se
com titulo de me fazerdes mercê (respondeu
elle) quereis que desconfie, mais facil vos será isso, que
a mim o acertar: mas, para que não erre no principal,
digo que não posso fazer escola de falar bem, mormente
entre cortezãos tão discretos, que cada um me poderá
dar preceitos para o ser: mas se disser em algumas cousas
a minha opinião, faço-o para com as razões dos que
a contradisserem aprender a acertar.—Parece-me (disse
Solino) que as melhores duas lições para os discretos
são essas primeiras,
receio, e
humildade. E passando
adiante, começae já a descobrir essa rhetorica, nova á
lingua portugueza.—Por escusar (tornou elle) uma muito comprida;
e dilatada em preceitos, e limites, que á
força se hão-de misturar com os da latina; e por evitar
a largueza da arte, e poupar a paciencia dos ouvintes
para outras noites, accudirei brevemente a alguns
vicios da lingua portugueza, não fugindo dos termos
da latina, nem levando-os a elles por fundamento,
mas fazendo-o n'estas cinco advertencias:
Falar vulgarmente, com propriedade.
Fugir da prolixidade.
Não confundir as razões com a brevidade.
Não enfeitar com curiosidade as palavras.
Não descuidar com a confiança.
—Certo (disse o doutor) que me parece essa uma rhetorica
abreviada, que podia servir a todas as linguas:
porque a confusão dos muitos preceitos e figuras, que
lhe attribuem os mestres d'esta arte, se podem comprehender
debaixo d'esses cinco muito bem achados. E
pois Solino chamou aos meus vicios sete peccados contra
a discrição, podia chamar a estes preceitos os cinco
sentidos d'ella. E tratando do primeiro, como entendeis
[123]
falar vulgarmente com propriedade, que em
parte me
parece que o vulgar não guarda muitas vezes o respeito
ao proprio? —Falar vulgarmente (respondeu Leonardo
é qual os melhores falem, e todos entendam
sem vocabulos estrangeiros, nem esquisitos, nem innovados,
nem antigos, e desusados: senão communs, e
correntes, sem respeitar origens, derivações, nem etymologias;
que a linguagem mais pende do uso, que da
razão: e por isso se chama lingua materna, porque nas
mulheres, que menos sahem da patria, se corrompe
menos o uso do falar commum, posto que ellas saibam
pouco da razão de seus principios. E d'isto, e do falar
com propriedade, tenho dito na pratica que tivemos
sobre as cartas missivas; o que não será necessario
repetir agora de novo, mas sómente dar mostra de
que estes dois termos se não encontram: que se o falar
proprio, é com palavras naturaes, e menos figuras da
rhetorica, para ornamento d'ellas; e não usar dos tropos
de allegorias, metaforas, translações, antonomazias,
antifrazes, ironias, enigmas, e outras muitas; isso
se usa na pratica vulgar para se tratarem livremente
as palavras proprias, pois sómente algumas translações,
antonomazias, e ironias se acham n'ella; e mui
raramente outras figuras: e posto que n'isto me detenha
mais do que determinava, me hei de embaraçar
com estas três figuras.
Translação é figura quando
passamos
as palavras de uma cousa a outra, porém com
uma semelhança conveniente, como quando dizemos
uma fonte de sabedoria,
um pôço de
lettras,
um rio de ouro,
um thesouro de partes, ou
de
graças. Esta figura se costuma
usar para um de quatro effeitos, ou para evitar
palavras deshonestas, ou para abreviar razões compridas,
ou por accudir á pobresa da linguagem, ou por
aformosear e enfeitar a pratica. No primeiro modo faz
officio mui necessario, que é dar a entender, por palavras
alheias, cousas que sôam mal por o seu nome proprio,
como dizer:
uma mulher que usa mal de sua formosura;
que se vende a preço;
que se entrega a
Venus;
que
serve o seu gôsto.
Um homem affeiçoado a
ramos;
perdido
por Bacco;
esquecido de si. Tambem, para
abreviar razões,
é de muita utilidade na pratica, como quando dizemos,
ficou em secco,
deitou azar,
torceu a orelha,
deu cinco.
Os outros dois modos me parecem na pratica sobejos,
[124]
e culpaveis: o primeiro, porque sempre se ha de
fugir n'ella o enfeite, e ornamento das palavras: e o
outro, porque não faltam na lingua portugueza as necessarias
para cada um declarar o que lhe convém dizer.
A figura da
Antonomazia se usa algumas vezes na
conversação: posto que só nas pessoas, ou partes do
mesmo reino será mais aceite. Entre nós, quando nomeamos
o Poeta, se entenderá Luiz de Camões,
o
Historiador,
João de Barros:
o Duque, o de Bragança:
o
Marquez, o de Villa Real:
a Cidade, a de
Lisboa:
a Coutada,
a de Almeirim; e outras semelhantes cousas, ás
quaes a grandeza deu superioridade das outras do mesmo
nome. A
Ironia, mais que todas, é propria na
conversação,
pois consiste mais na graça, riso, ou dissimulação
do que fala, que nas palavras: esta se considera
em duas maneiras, a primeira tirando a propriedade
ás cousas; a segunda, furtando o sentido ás razões;
uma é mero escarneo; a outra dissimulada subtileza.
A primeira, quando do fraco dizemos que é um
Hercules: do louco, que é um Catão: do miseravel, que
é um Alexandre: e da mulher pouco casta, que é uma
Helena. A segunda, como se disseramos:
Nunca lhe cahiu
a lança da mão ao que a não tomou n'ella:
não lhe
chegou ninguem com a espada, falando do que fugiu:
nunca
pediu nada, falando do que furta:
paga mais do que
deve, entendendo o que paga por justiça. No que pertence
ás figuras me parece que basta esta lembrança.
E as palavras, que se devem escusar para falar vulgarmente,
não hão de ser estrangeiras, nem esquisitas,
nem innovadas, nem tão antigas, que se perdesse
já o uso d'ellas. Das primeiras teem muita culpa os estudantes,
e lettrados, que introduziram as latinas na
conversação, fazendo a linguagem de misturas.—Essa
culpa (respondeu o doutor) é dos mancebos que como no
praticar não teem a madureza, que só costuma a ensinar
a experiencia, cuidam que se melhoram em falar
escuro, e elegante, fazendo na prosa accentos de musica,
ou medidas de poesia.—Muitos lettrados sei eu (disse
Solino) que não são moços, e n'isso o querem parecer,
que falam uma linguagem como sereia, mulher até aos
peitos, e ametade peixe; e são homens, a que não escapa
por nenhuma via o verbo no cabo; e sendo a nossa
lingua de muito bom metal, lhe misturam tanta liga,
[125]
que perde muito de seus quilates.—Não tenho por grande
erro (acudiu Pindaro) quando a conversação é entre
doutos, usar de algumas palavras tiradas do latim,
quando forem melhores que as com que nos podiamos
declarar em portuguez: antes creio que, se isto se fôra
introduzindo, viera a nossa lingua pouco a pouco a se
apparentar com ella, e ficar tão polida, e apurada como
a toscana.—E essa (tornou Leonardo) que fructo tirou
do parentesco, se não foi chamarem-lhe alguns auctores
bôrra da lingua latina?—O caso é (disse Solino) que
vós devieis ser affeiçoado á phrase de um cirurgião de
Coimbra do nosso tempo, que por ella se fez famoso,
que disse á moça de um ferido, a quem curava:
Traga-me
um panno corpulento, para fricar os labios d'esta cicatrice.
E a um rustico, que vinha esmechado, respondeu
que não tinha mais lesa que a superficie da fronte; e
tendo palavras com outro, lhe disse que o aniquilaria,
se dissesse alguma cousa em vilipendio de sua dignidade.
E certo que tenho raiva, sabendo que a lingua
portugueza não é manca, nem aleijada, vêr que a façam
andar em muletas latinas os que a haviam de tratar
melhor.—Ha outros (proseguiu Leonardo) que nem
com isso se contentam; e andam buscando palavras
muito esquisitas, que por termos mui escuros significam
o que querem dizer. Como um que se queixava de sua
dama, que de ciosa andava inquirindo os escrutinios
do seu pensamento. E outro a um barbeiro disse, que
lhe rubricára a parede com a sangria.—Alguns (disse o
doutor) conheci eu culpados n'esse modo impertinente
de falar, que por taes eram reprovados: porém o uso
das palavras innovadas não achei ainda entre os portuguezes,
como os hespanhoes e italianos. Nem tenho
por grande vicio aproveitar de algumas antigas, muito
bem usadas em outro tempo, e desterradas, sem razão,
na nossa edade.—Não faltam (respondeu Leonardo) curiosos,
que por acharem pobre a lingua, ou por elles
o estarem de seus vocabulos, fazem alguns ao seu modo:
como um lettrado, que querendo auctorisar umas
casas para certa occasião, disso:
É necessario que as paredes
d'este domicilio sejam alreadas, e que o fato uzivel fique
retendo nas ultimas d'elle. E outro disse de um navegante,
que fôra felice, se não fortuneara tanto no exito da
viagem.
E ao que dizeis das palavras antigas, posto que
[126]
em algum tempo fôssem boas, não o ficam sendo na
parte em que se perdeu o uso d'ellas; pois, como já
disse, esse só é o fundamento e razão das palavras: e
assim, não diremos
leixou,
trouve,
dixe,
ca,
sicais,
acram,
leidisse,
e outros vocabulos de que usaram auctores gravissimos
de cujos escriptos podemos aprender a perfeição
da lingua portugueza. E bastou o contrario uso
para n'esta parte poderem seguir os que agora escrevem,
e falam bem.—Com uma só razão (accudiu Solino)
condemnára eu a toda essa turba dos que no falar querem
parecer singulares, e é que não falam para que
os entendam melhor, senão para que pasmem d'aquella
sua estranha eloquencia e galanteria. E haveis de saber
que é lanço muito certo, que os que se contentáram
com saber pouco do latim, falam mais alatinado,
para que os ouvintes cuidem que o sabem: e assim
como virdes cirurgião, ou boticario, que acabou a grammatica
na quinta classe, ponde-lhe abrolho, que o não
tirareis com vinte galgos á estrada do falar commum
e se me esperardes estudante de philosophia em grade
de freiras, vereis uma linguagem meada de logica, que
vos não entendereis com o sentido d'ella. E dos que falam
pela tempera velha, eu o não consentira, senão em
homens de barba larga, penteada sobre os peitos, com
carapuça redonda, e pelote de abas pregadas, que vos
conte historias d'el-rei D. Manuel, e dos infantes em
Almeirim, e de quando D. Rodrigo de Almeida tomou
por compadre a Villa de Condeixa, do filho que alli lhe
nasceu, em tempo do bispo D. Jorge. Porem nos vestidos
justos de agora, e barbinhas turquescas tiradas
pela fieira, e tintas sobre branco, palavras d'aquelle
tempo parecem remendo de outra côr.
FIM DO 1.º VOLUME
INDICE
Advertencia |
5 |
Dialogo I—Argumento de toda a obra |
7 |
Dialogo II—Da policia e estylo das cartas missivas |
22 |
Dialogo III—Da maneira de escrever, e da differença das cartas missivas |
35 |
Dialogo IV—Dos recados, embaixadas e visitas |
54 |
Dialogo V—Dos encarecimentos |
70 |
Dialogo VI—Da differença do amor e da cobiça |
81 |
Dialogo VII—Dos poderes do ouro e do interesse |
95 |
Dialogo VIII—Dos movimentos e decoro no praticar |
110 |
Dialogo IX—Da pratica e disposição das palavras |
121 |
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
|
Original |
|
Correcção |
#pág. 67 |
os proprio filhos |
... |
os proprios filhos |
#pág. 91 |
totos |
... |
todos |
#pág. 118 |
descuido) |
... |
descuido |