The Project Gutenberg eBook of Romanceiro I: Romances da Renascença This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Romanceiro I: Romances da Renascença Author: Visconde de João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett Almeida Garrett Release date: October 12, 2020 [eBook #63438] Language: Portuguese Credits: Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Books project.) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK ROMANCEIRO I: ROMANCES DA RENASCENÇA *** Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Books project.) OBRAS DO V. DE ALMEIDA GARRETT IV (PRIMEIRO DO ROMANCEIRO) ROMANCEIRO PELO V. DE ALMEIDA GARRETT I ROMANCES DA RENASCENÇA QUINTA EDIÇÃO LISBOA IMPRENSA NACIONAL 1875 NA TERCEIRA EDIÇÃO Publicamos emfim ésta nova edição da primeira parte do ROMANCEIRO que vai muito superior ás antecedentes, tanto pela correcção como pelos addicionamentos importantes que leva. A de Londres de 1828 continha apenas a Adozinda e o Bernal-francez; a de Lisboa de 1843 ja lhe accrescentou mais quatro romances; na presente ha oito, alêm das novas traducções em várias linguas que n’este intervallo se teem publicado pela Europa. Não são todas porém, e ja muitas das mais notaveis versões appareceram colligidas no appendice do terceiro volume da presente obra publicado em 1851; outras o tinham sido no segundo junctamente com os originaes portuguezes primitivos que o nosso auctor reconstruíra. A sua predilecção por éstas reliquias da antiga poesia peninsular tem feito com que, desde a infancia até hoje, tenham ellas sempre sido a occupação das suas ‘Horas de lazer’—‘_Hours of idleness_’ segundo a frisante expressão de Lord Byron; um quasi mialheiro poetico em que por intervallos, mas sempre, se vão deitando pequenas quantias até que chegam a formar um thesouro. Este é ja um verdadeiro thesouro para os que sabem avaliar a riqueza de uma lingua e de uma litteratura. No meio dos trabalhos mais graves, das contrariedades mais apertadas da vida pública, o auctor não se tem esquecido do seu mialheiro, que, tornâmos a dizê-lo, para nós é thesouro riquissimo. Se ainda assim o não julga Portugal, saiba ao menos que essa é a opinião da Europa. Julho 8, 1853. OS EDITORES. NA SEGUNDA EDIÇÃO Depois que publiquei em Londres, em 1828, o meu romancinho a _Adozinda_ que aqui vai na frente d’este volume, cheguei a ter uma bastante collecção d’essas trovas e romances populares, xácaras e soláos—designações que, sinceramente confesso, não sei ainda quadrar bem nas diversas especies e variedades em que se divide o genero. Eram uns vinte e tantos havidos pela tradição oral do povo, quasi todos colligidos nas circumvizinhanças de Lisboa pela indústria de amigos zelosos, e principalmente pelo obsequioso cuidado de uma joven senhora minha amiga muito do coração. Por voltas do anno seguinte, 1829, os tinha eu pela maior parte correctos, annotados,—e collacionadas as principaes das infinitas variantes que todos trazem, porque cada rhapsodista d’estes que sabe a sua xácara, a repette a seu modo, e sempre differente em alguma coisa do que outro a diz. Cresceram logo mais os meus haveres pela contribuição de outro amigo tambem muito particular e muito prezado, o Sr. Duarte Lessa, homem de raras e prestantes qualidades que amenizava a constante applicação a mais graves estudos, cultivando a litteratura e as artes, cujas obras appreciava com tacto finissimo e zelava com fervor patriotico, porque intendia—e bem o intendia!—que ellas são o espirito, a alma, o _in ipso vivimus et sumus_ de uma nação. Tinha elle adquirido em Londres varios livros e manuscriptos que haviam sido do célebre portuguez o cavalheiro de Oliveira, aquelle que renunciou ao importante cargo de nosso ministro na Haya para abraçar a communhão protestante, na qual viveu em Inglaterra os ultimos annos da sua vida, quasi unicamente da charidade de seus novos correligionarios. Havia entre esses livros um exemplar da Bibliotheca de Barboza, inquadernados os tomos com folhas brancas de permeio, e escriptas éstas, assim como as amplas margens do folio impresso, de lettra muito miuda, mas muito clara e legivel, com annotações, commentarios, emendas e addições aos escriptos do nosso douto e laborioso mas incorrecto abbade. Via-se por muitas partes que o longo trabalho do Oliveira fôra feito depois da publicação das suas _Memorias_, porque a miudo se referia a ellas, confirmando e ampliando, corrigindo ou retractando o que lá dissera. Nos artigos _D. Diniz_, _Gil-Vicente_, _Bernardim-Ribeiro_, _Fr. Bernardo de Brito_, _Rodrigues-Lobo_, _D. Francisco-Manuel_, e em varios outros que vinha a proposito, as notas manuscriptas citavam, e transcreviam como illustração, muitas coplas, romances e trovas antigas—e até prophecias, como as do Bandarra—fielmente copiadas, asseverava elle, de Mss. antigos que tivera em seu poder na Hollanda e em Portugal, franqueados uns por judeus portuguezes das familias emigradas, outros havidos das preciosas collecções que d’antes se conservavam com tão louvavel cuidado nas livrarias e cartorios dos nossos fidalgos. Foi-me logo confiada a inextimavel descuberta; percorri com avidez aquellas notas, examinei-as com escrupulosa attenção, e, extractando uma por uma quantas coplas, cantigas e xácaras achei, completas e incompletas, accrescentei assim os meus haveres com umas cinquenta e tantas peças, d’ellas anonymas e verdadeiramente tradicionaes, d’ellas de auctor conhecido e que nas edições de suas obras se incontram,—taes como Bernardim-Ribeiro, Gil-Vicente e Rodrigues-Lobo—mas que differiam das impressas, consideravelmente ás vezes, muitas até na linguagem da composição, poisque algumas alli achei em portuguez, e manifestamente antigo e da respectiva epocha, as quaes só andam impressas em castelhano. Com este auxilio corrigi denovo muitos dos exemplares que ja tinha, e completei alguns fragmentos que ja desesperára de podêr vir nunca a restaurar. E tomando para modêlo as estimadas collecções de Elis e do bispo Percy, e a das fronteiras de Scocia por Sir Walter Scott, comecei a dar novo methodo e mais amplos limites á minha compilação que ao principio intitulára _Romanceiro-Portuguez_. O longo e mais serio trabalho que por esse tempo emprehendi no meu tractado geral _Da Educação_, cujo primeiro volume se publicou em Londres em 1829, me fez relaxar n’aquell’outro: depois os cuidados politicos e alguns officiaes, o complemento e impressão de outra obra de mais grave assumpto, o _Portugal na Balança da Europa_, que foi impresso no anno seguinte, 1830,—talvez alguma inconstancia de auctor, bem desculpavel n’aquella tarefa, tam tediosa ás vezes, de collacionar, estudar e explicar textos ja viciados da ignorancia do vulgo por cujas bôccas e memorias andaram, ja de outra ignorancia mais confiada e mais corruptora ainda, a de copistas presumpçosos de lettrados e de castigadores do que elles suppoem vício. Comtudo, e apezar d’aquellas e de outras occupações e distracções, eu sempre voltava de vez em quando ao meu _Romanceiro_, e o tinha bastante adeantado, quando nos fins de 1831 abandonei tudo o que eram cuidados de sciencia ou recreações litterarias para me alistar no exercito da Rainha, e imbarcar para os Açores. Em Janeiro de 1832 sahi de París com praça de simples soldado, consegui por este modo tomar minha humilde parte n’aquella expedição, cujos avisados e cautelosos directores com tanto impenho afastavam toda a gente conhecida de verdadeira liberal, por todos os modos, por modos que hãode parecer incriveis, e que elles hoje negariam a pés junctos, se fosse possivel negar o de que ha tantas testimunhas e tantas victimas ainda vivas, tantos documentos que hãode durar mais que ellas. A minha curta estada nas ilhas foi impregada quasi toda nos trabalhos de legislação e organização administrativa a que alli se procedeu, e de que me encarregou a amizade e confiança de um amigo particular, então em grande valimento, ao qual e á dura necessidade de me achar eu unico alli que tivesse estudado aquellas materias, teve de ceder forçosamente a ciosa malevolencia dos accaparadores que ja na esperança estavam devorando as ruinas de Portugal a que almejavam chegar—pelos esforços e risco alheio—não porcerto para meditar sôbre ellas como outros Marios—oh que Marios!—mas para as revolver e basculhar como Alaricos... Faziam-me a honra de me querer mal esses senhores: lisongeio-me de lh’o merecer: davam-se ao incómmodo de me intrigar; e era desperdicio de tempo e de arte, porque não ha mister intrigas para tirar favor de principes a quem, como eu, os apprecia muito e se honra muito d’elles, mas não é capaz de fazer o mais leve sacrificio para os conservar; jamais soube, em tantas opportunidades, convertê-los em nenhuma _consequencia legítima_; nunca, nem o mais indirectamente que é possivel, tractou de os consolidar em nenhuma realidade utilitaria e de proveito pessoal. Peço perdão da digressão: não a fiz eu mas as coisas,—que pelos tempos em que vivemos tam baralhado anda tudo, que até a historia litteraria e poetica se confunde com a dos successos e relações politicas. D’esse tam pouco e tam occupado tempo permittiu comtudo o accaso que alguns instantes se podessem approveitar em beneficio do pobre _Romanceiro_, que alli ia tambem, o coitado, na expedição, incolhido e amarrotado na mochilla de um triste soldado raso, sem se lembrar de aspirar á inaudita honra de seu illustre predecessor, o Cancioneiro de Rezende, que serviu de Evangelho para jurar aquelle rei gentio.—Havia pouco por alli quem lhe importasse com Evangelhos e juramentos. Foi o caso que umas criadas velhas de minha mãe e uma mulata brazileira de minha irman appareceram sabendo varios romances que eu não tinha, e muitas variadas licções de outros que eu sim tinha, porêm mais incompletos. Assim se additou copiosamente o meu _Romanceiro_. Mas este achado fez mais do que inriquecer, salvou-o: porque, ao partir para San’Miguel, o deixei em Angra com minha mãe que Deus tem em glória, que desejava distrahir, com essas curiosidades que ella intendia e avaliava com o tacto perfeito e a sensibilidade elegantissima de que era dotada, alguma hora das tantas em que ja lhe pesavam duramente as molestias do último quartel da vida... Molestias aggravadas de muita afflicção e cuidado—nenhum que seus filhos voluntariamente lhe dessem—todos a adorámos e honrámos sempre—mas que lhe davamos, comtudo, pelas circumstâncias fataes da epocha e das confusões politicas em que andavamos mettidos. Os meus outros papeis, trabalhos de historia consideraveis, fructo de longas visitas ao Museu-Real de Londres e á riquissima livraria portugueza do meu amigo o Sr. Goodeen; uma tragedia que tinha sido julgada valer alguma coisa pelos que a viram—era o assumpto o Infante-Sancto em Fez;—um largo poema com pretenções, antes desejos, de ser Orlando, ja em trinta e tantos cantos—e promettia crescer!—cujo assumpto era o _Magriço_ e os seus _Doze_;—o segundo volume do tractado _Da Educação_ prompto a entrar no prélo:—quatro livros ou cantos de um romance ou poema—cabia-lhe uma e outra designação—a que dava thema a interessante e romanesca legenda da fundação da casa de Menezes—pedido de minha boa irman que decerto não tinha vaidade, porque sempre lhe sobrou o juizo, mas gôsto sim, de que seus filhos se honrassem com o nome illustre de seu pae:—uma quantidade immensa de estudos e trabalhos sôbre administração pública;—tudo isso veio commigo para S. Miguel e ahi o deixei ao imbarcar, porque era defeso ao pobre soldado levar as suas mallas, e o logar era pouco para as bagagens dos que só eram bagagem. D’ahi me vinha, com outros valores mais substanciaes, e se perdeu tudo em um navio que affundaram as ballas inimigas á entrada do Porto nos derradeiros dias d’esse mesmo anno de 1832. Descancem em paz no amigo lodo do meu patrio rio! N’outros lodaçaes peiores teriam de cahir talvez se escapassem: o da indifferença pública que porventura mereciam, o de muitos odiosinhos e invejasinhas tolas que não mereciam decerto, porque eram filhos de bom e innocente ânimo, como sempre têem sido os meus. Assim fossem todos! Desde 1834, que me voltou a Lisboa o milagrosamente escapado _Romanceiro_, ainda não passei verão que lhe não désse algumas das horas descuidadas que n’aquella quadra ou se hãode dar a éstas occupações mais leves ou a nenhumas. E n’estes oito annos tem-se locupletado consideravelmente com as contribuições de muitos amigos e benevolentes a alguns dos quaes nem posso ter o gôsto de agradecer aqui o favor recebido, porque incitados pela leitura da _Adozinda_, me remetteram anonymamente pelo correio o fructo de suas colheitas. A principal parte de um bello romance, um dos mais bellos que jamais vi em collecção alguma nacional ou extrangeira e que hoje inriquece o meu Romanceiro, assim me foi mandada, creio que do Minho. Outro fragmento que vinha nos respigos ajunctados n’esta ceara pelo nosso insigne poeta o Sr. A. F. de Castilho, e que elle teve a bondade de me confiar, veiu dar-lhe o complemento que faltava e restituir á perfeição em que hoje está. É um romance de origem visivelmente franceza, se provençal ou normanda não me atrevo a decidir, em que se conta—um tanto diversa das chronicas antigas e do elegante poema de _Millevoix_, a historia do secretario Eginard e da muito bondosa filha de seu senhor e amo o poderoso imperador Carlos-Magno. Os nossos Scaldos vulgares lem hoje... não lem tal, mas repettem _Gerinaldo_, corrupção do que ao principio foi Eginaldo, adoçados em _ll_ os _rr_ francezes, como se fez em Giraldo, Reginaldo, antigamente em Bernal e Bernaldo, e em outros muitos nomes que de la vieram tam duros ou mais. Mencionei este exemplo entre muitos por cahir em coisa notavel, e para se ajuizar dos outros. Mr. Pichon, bem conhecido em Lisboa, que foi ultimamente consul francez no Porto e agora creio que em Barcelona, tinha começado a formar em 1832-33 uma pequena colecção de xácaras portuguezas de que tambem me approveitei. Mas o incançavel collector a quem mais obrigações devi em Portugal foi o meu condiscipulo o Sr. Dr. Emygdio Costa, advogado n’esta côrte e ha pouco fallecido, que generosamente me confiou a sua larga collecção principalmente feita nas duas Beiras, n’aquelle verdadeiro coração e amago do Portugal primitivo que occupa a região d’entre Lamego e Serra d’Estrella. O Sr. Rivara, bibliothecario em Evora, o meu velho amigo o Sr. M. Rodrigues d’Abreu, bibliothecario em Braga, o meu antigo e fiel companheiro o Dr. J. Eloy Nunes-Cardoso, de Montemor-o-Novo, com assentamento dobrado, como diria um _bel esprit_, um _dos cultos_ de Seiscentos, na Casa Real d’Apollo, por doutor e trovador tambem,—todos estes cavalheiros me têem ajudado com indicações, livros, folhetos antigos e cópias laboriosamente escriptas sob o dictar dos rusticos depositarios das nossas tradições populares. Os trabalhos e recopilações de D. Agustin Duran sôbre os cancioneiros e romanceiros castelhanos, obra publicada em Madrid em 1832, mas que só por aqui chegou cinco ou seis annos depois, veiu illustrar-me em muita dúvida e ajudar-me a classificar muita coisa difficil. A nova e augmentada edição do Sr. Ochoa, impressa em París em 1838, e que mais depressa nos trouxe a mais habitual conversação e commercio litterario que temos com a França, algum tanto me auxiliou tambem. A traducção elegante de Mr. Lockart que n’aquella tam linda e fastosa edição de Londres de 1841 deu á lingua e á nação ingleza a mais poetica e romantica idea que jamais será possivel dar a um povo extranho e em idioma extranho das immensas riquezas do Nibelungen peninsular, mais que nenhuma coisa me inspirou e animou no meu trabalho, porque é um documento, um monumento grandioso da extraordinaria importancia e valia que este genero de coisas está merecendo á Europa culta. O Sr. Herculano, bibliothecario da Real bibliotheca da Ajuda, com cuja provada amisade me honro tanto quanto a nação deve gloriar-se de seus escriptos, tambem me tem ajudado não pouco com os preciosos achados que, no seu incessante lavrar das minas archeologicas, tem incontrado e repartido commigo. Por seu favor tornei a examinar, no Ms. original, o famoso cancioneiro ditto do Collegio dos Nobres, hoje na bibliotheca Real; e com éstas e com as collecções allemans e francezas, e creio que com quasi todas as dos povos do Norte, tenho collacionado as nossas rhapsodias populares, muitas das quaes, por este modo vim a conhecer visivelmente, que tinham a mesma commum origem. Os eruditos trabalhos de Mr. Raynouard sôbre a lingua romance ou provençal me allumiaram muita vez n’esta obscura e inredada tarefa. A interessante e conscienciosa memoria do Dr. Bellermann impressa em Berlim em 1840, e o conhecimento de que a sociedade alleman para a reimpressão dos livros raros estava publicando em portuguez o nosso Cancioneiro de Rezende; o interêsse geral que hoje se tem desenvolvido no mundo pela litteratura popular das nações modernas e especialmente das nossas peninsulares—interêsse que, porfim e emfim, hade vir a reflectir em nós tambem, e despertar-nos para abrir os olhos ás riquezas proprias, ainda que não seja senão pelas ver tam prezadas de extranhos—os conselhos e rogos do meu particular amigo e quasi compatriota nosso, o sr. João Adamson, tudo isto me fez alargar mais o plano da minha obra e collecção. Resolvi, sob nova denominação de _Romanceiro e Cancioneiro-Geral_[1], reunir todos os documentos que eu podesse para a historia da nossa poesia popular, desde onde memorias ou conjecturas ha, até á epocha actual, acompanhando-os de explicações e glossas, que vão servindo de nexo, que sejam como a liaça, o nastro que áte estes pergaminhos. Quem não tem olhado senão á superficie da nossa litteratura, quem cego do brilho classico das nossas tantas epopeas, seduzido pela flauta magica dos nossos bucolicos, enthusiasmado pelo estro tam ricco e variado dos innumeraveis poetas que, nos quartetos e tercetos sicilianos da elegia, da epistola e do soneto, rivalizam, e tantas vezes luctam de vantagem, com o proprio Petrarcha: quem, sôbre tudo—porque n’esse genero é a musa portugueza superior á de todas as linguas vivas—adora em Sá-de-Miranda, Ferreira, Diniz, Garção e Filinto o genio redivivo de Horacio e de Pindaro—não crê, não suspeita, hade ficar maravilhado de ouvir dizer, como eu quero dizer e provar no presente trabalho, que ao pé, por baixo d’essa aristocracia de poetas, que nem a viam talvez, andava, cantava, e nem com o desprêzo morria, outra litteratura que era a verdadeira nacional, a popular, a vencida, a tyrannizada por esses invasores gregos e romanos, e que a todos os esforços d’elles para lhe oblitterarem e confundirem o character primitivo, resistia na servidão com aquella fôrça de inercia com que uma raça vencida, com que a população aborigine de um paiz resiste a igual impenho de seus conquistadores que lhe usurparam a dominação, e que, seculos e seculos depois, quando esses já não são, ou não cuidam ser, senão uma casta privilegiada e patriciana, reagem fortes aquell’outros com o que seus proprios senhores lhes insinaram, regenerados por seu longo martyrio, e extirpam muitas vezes, mas geralmente se contentam de avassallar, os seus antigos oppressores. É a historia de todos os povos, e por consequencia de todas as litteraturas. É a historia litteraria de Portugal no segundo quartel d’este seculo: é o que foi ésta reacção vulgarmente chamada romantica, mas que não fez mais do que trazer a _renascença_ da poesia nacional e popular. Nenhuma coisa póde ser nacional se não é popular. Aqui está o porquê, o como e o paraquê fiz a collecção de que este volume é a primeira parte, ou mais exactamente a introducção, e que apenas contêm o que eu, á mingua de melhor nome, designarei com o titulo de _Romances da renascença_: são os que resuscitei e como que traduzi das quasi apagadas e mutiladas inscripções que desinterrei da memoria dos povos. Os textos originaes d’estes, restituidos quanto é possivel, os de muitos outros que appareceram menos imperfeitos na mesma excavação, muitissimos que se têem achado em livros e papeis desprezados hoje, e em collecções Mss., estão promptos, classificados, annotados, e sahirão em seguimento d’este volume, apenas o permittam as difficuldades, sempre recrescentes em Portugal, de se publicar qualquer coisa. Eu tenho posto termo, ou pelo menos suspensão indefinida a toda a occupação litteraria propriamente ditta, para absolutamente me dedicar, em quanto posso e valho, á conclusão de um trabalho antigo, mas interrompido muitas vezes, que agora jurei acabar; são _Vinte annos da historia de Portugal_, periodo que começa em 1820 e chega aos dias de hoje, mas que não sei se ja anda mais inredado e confuso do que o dos mais antigos e obscuros seculos da monarchia. Espero começar a publicá-lo no fim d’este anno[2]; e nenhum tempo ou logar me sobrará portanto para mais nada. O _Romanceiro_ porêm e _Fr. Luiz de Sousa_ estão promptos a entrar no prelo e, quanto é por minha parte, não farão esperar o público. Lisboa, 12 de Agosto de 1843. ROMANCEIRO LIVRO PRIMEIRO I ADOZINDA AO SR. DUARTE LESSA[3] Eis-ahi vai, meu amigo, o romance em que lhe fallei n’uma das minhas últimas cartas de Portugal. Estava quasi todo copiado; e aqui nem paciencia nem tempo me chegavam para as muitas correcções e alterações que elle precisava; por limar lhe vai, e por limar irá para a imprensa: tanto melhor para quem gostar de dizer mal, que não lhe faltará de quê. Creio que é ésta a primeira tentativa que ha dous seculos se faz em Portuguez de escrever poema ou romance, ou coisa assim de maior extenção, n’este genero de versos pequenos, _octosyllabos_, ou de redondilha como lhe chamavam d’antes os nossos. No meu resummo da historia da lingua e da poesia portugueza, que vem no primeiro volume do _Parnaso-Lusitano_ impresso ultimamente em París,—a so coisa minha que ha n’aquella collecção, porque assim na escolha das peças, como na ordem e systema da obra me transtornaram e me inxovalharam tudo com notas pueris, ridiculas, e até malcreadas algumas,—n’esse resummo toquei de leve, e em tudo o mais, sôbre a belleza d’estes nossos versos _octosyllabos_, que nos são proprios a nós hespanhoes, tanto portuguezes como castelhanos, e, para certos assumptos e certos generos de poesia, mais adequados do que nenhuma outra especie de rhythmo. Boscan gaba-se de haver introduzido na Peninsula os metros toscanos: hoje está averiguado com certeza que não foi comeffeito elle o primeiro que nas duas linguas cultas das Hespanhas compoz dos taes versos hendecasyllabos; mas é certo e alêm de toda a dúvida que do tempo de Boscan e de Garcilasso em Castella, e logo de Sá-de-Miranda e Ferreira em Portugal, começaram aquelles nossos metros primitivos a cahir em mais desuso, a não se impregarem senão em certo genero de poesia ligeira ou, segundo lhe os Francezes chamam, _fugitiva_. Francisco Rodrigues-Lobo e muito depois D. Francisco Manuel-de-Mello ainda n’elles fizeram romances historicos; Violante do Ceo muitas das suas lindas e agora tam mal appreciadas poesias; ainda se fizeram posteriormente eglogas, e o que os poetas da Phenix-renascida e os campanudos vates das mil e uma academias do seculo XVII e XVIII chamavam _romances_—que certamente não eram o que hoje strictamente se intende por este nome. Em tempos mui posteriores felicissimamente os reviveu o nosso grande e incomparavel Tolentino na satyra, e no tam faceto e delicadissimo seu proprio e privativo genero da poesia _de sociedade_. A nossa poesia primitiva e eminentemente nacional, a que do principio e, para assim dizer, do primeiro balbuciar da nossa lingua, nos foi commum com todos os outros povos que mais ou menos tiveram communhão com a lingua provençal, primeira culta da Europa depois da invasão septentrional, foi seguramente o romance historico e cavalheresco, ingenua e ruda expressão do enthusiasmo de um povo guerreiro. Logo vieram esses trovadores de Provença e nos insinaram modos mais cultos porêm menos originaes e menos cunhados do sêllo popular: era coisa mais de côrte. E como tal não pôde absorver, senão modificar, o que brotára spontaneamente do natural da terra. Mas as duas feições ficaram ambas, e deram assim á poesia portugueza um character talvez unico no mundo,—nas Hespanhas decerto. Em geral a poesia da meia-edade, singela, romanesca, apaixonada, de uma especie lyrica-romantica que não tem typo nos poetas antigos, comquanto deixou seu cunho impresso no caracter das linguas e poesias modernas de todo o sul e occidente da Europa, não teve comtudo imitadores nem se cultivou e apperfeiçoou nunca mais, quasi desde o completo triumpho dos classicos, senão agora recentemente depois que as balladas de Bürger, os romances poeticos de Sir W. Scott e alguns outros ensaios inglezes e allemães, mas principalmente os do famoso escocez, introduziram este gôsto e o fizeram _da moda_. Fatigados do grego e romano em architecturas e pinturas, começámos a olhar para as bellezas de Westminster e da Batalha; e o appetite imbotado da regular formosura dos Pantheons e Acropolis, começou, por variar, a inclinar-se para as menos classicas porêm não menos lindas nem menos elegantes fórmas da architectura e da sculptura gothica. Succedeu exactamente o mesmo com a poesia: infastiados dos Olympos e Gnidos, saciados das Venus e Apollos de nossos paes e avós, lembrámo’-nos de ver com que maravilhoso infeitavam suas ficções e seus quadros poeticos nossos bis e tres-avós; achámos fadas e genios, incantos e duendes,—um stylo differente, outra face de coisas, outro modo de ver, de sentir, de pintar, mais livre, mais excentrico, mais de phantasia, mais irregular, porêm em muitas coisas mais natural. O antiquado agradou por novo, o obsoleto entrou em moda: arte mais fina, gôsto mais delicado e de ingenhos mais cultos o soube impregar habilmente, ‘decalcar n’outra civilização.’ A poesia romantica, a poesia primitiva, a nossa propria, que não herdámos de Gregos nem Romanos nem imitámos de ninguem, mas que nós modernos creámos, a abandonada poesia nacional das nações vivas resuscitou bella e remoçada, com suas antigas galas porêm melhor talhadas, com suas feições primeiras porêm mais compostas. É a mesma selvatica, ingenua, caprichosa e aeria virgem das montanhas que se appraz nas solidões incultas, que vai pelos campos allumiados do pallido reflexo da lua, involta em veos de transparente alvura, folga no vago e na incerteza das côres indistinctas que nem occulta nem patenteia o astro da noite;—a mesma beldade mysteriosa que frequenta as ruinas do castello abandonado, da tôrre deserta, do claustro coberto de hera e musgo, e folga de cantar suas endeixas desgarradas á bôcca de cavernas fadadas—por noite morta e horas aziagas. É a mesma sem dúvida: porêm o gôsto mais puro e fino de seus adoradores, sem alterar a lithurgia, modificou os ritos e os accommodou para espiritos e ouvidos costumados aos hymnos, menos variados porêm mais cadentes, da antiguidade classica. Não ficou menos natural nem menos nacional, porêm muito mais amavel e incantadora a nossa poesia primitiva assim resuscitada agora. Muito antes do nomeado escocez ja tinha havido tentativas para nacionalizar a poesia moderna e a libertar do jugo da theogonia d’Hesiodo:—mas a propria e verdadeira restauração da poesia dos trovadores e menestreis, sem questão nem disputa, só W. Scott a fez popular e geral na Europa.—Com ella se restauraram tambem os metros simples e curtos que mais naturaes são ao stylo cantavel, essencial ás composições d’aquelle genero. Depois de muitas tentativas, de exame longo e reflectido, eu por mim convenci-me de que o metro proprio e natural de nossa lingua para este genero de poesia, e para todos os generos populares, não era o hendecasyllabo, o que dizemos vulgarmente heroico. Os portuguezes são uma nação poetica, a sua lingua naturalmente se presta e spontanea se offerece ás fórmas e cadencias metricas; os nossos mais rudos camponezes improvisam em seus serões e festas com uma facilidade que deve de espantar os extrangeiros: mas observe-se que o metro d’estes improvisos é sempre sem excepção alguma o de redondilha de oito syllabas, rara vez o da endexa; acaso farão os versos compostos visivelmente de dois metros, isto é, os alexandrinos ou dittos de arte-maior. A causa é óbvia; aquella é a medição mais natural que lhes offerece a musica da lingua. Entre as canções antiquissimas conservadas nos dois cancioneiros, o do Collegio dos Nobres (impresso por Sir Charles Stuart em París) e o de Rezende, ha muita variedade de metros; mas outras poesias mais antigas, os romances populares ou _xácaras_, que por tradição immemorial se conservam entre o povo, principalmente nas aldeias, todos são no metro octosyllabo ou em endexas. Logo direi aqui alguma coisa mais de vagar sôbre éstas curiosissimas, e tam desprezadas mas tam interessantes, reliquias da nossa archeologia. O genero romantico não é coisa nova para nós. Não fallo em relação aos primeiros seculos da monarchia: restam-nos ainda _specimens_ das canções que não serão talvez de Gonçalo Hermigues, de Egas Moniz, d’elrei D. Pedro Cru, mas são antiquissimos documentos de certo. As trovas dos Figueiredos, apezar do tam suspeito testimunho de Fr. Bernardo de Brito, creio, por convicção intima, que são das mais antigas composições poeticas da lingua que chegaram até nós. Não alludo porêm a epochas tam remotas e incultas. Depois de introduzido o gôsto classico por Sa-Miranda, e Ferreira principalmente, depois de esquecidas as graças singellas de Bernardim Ribeiro pelos mais ataviados primores de Camões e Bernardes, ainda então houve quem de vez em quando deixasse a lyra de Horacio e a frauta de Theocrito para tocar o alahude romantico dos menestreis. O proprio auctor dos Lusiadas nas canções, que, depois d’aquella, são sua melhor composição, para meu gôsto, n’essas canções tam bellas e tam profundamente sentidas, tam repassadas de melancholia suavissima, em alguns episodios dos mesmos Lusiadas, foi todo romantico, e felicissimamente o foi. Francisco Rodrigues-Lobo, segundo ja observei, em muitas das pequenas peças que se incontram dispersas pelo _Pastor-peregrino_, pela _Primavera_, e nos seus romances moiriscos e historicos, é eminentemente romantico. Tal é Jeronymo Cortereal no _Naufragio-de-Sepulveda_, quando o deixam com a natureza e lhe permittem ter _senso commum_ as loucuras mythologicas com que perdeu tam bem escolhido assumpto, tam bellas scenas. Deixando outros muitos, dos quaes o menor exame facilmente mostrará o mesmo, citarei aquelle romancesinho de Gaia e do rei Ramiro, que V. descobriu em Londres com o precioso achado dos papeis e livros do nosso infeliz Oliveira. Depois que, na extincção dos Jesuitas, e pelos esforços da benemerita Arcadia se restauraram as bellas-letras e a lingua, e o verdadeiro gôsto poetico affugentou os _acrostichos_ e os _labyrintos_ seiscentistas, o genero classico resuscitou mais puro e tam bello nas lyras do elegante e puro Garção, do altissonante Diniz, do sublime Filinto, do numeroso Bocage, do classico Ribeiro-dos-Sanctos, do ingenuo Maximiano Tôrres, do galantissimo Tolentino, do philosopho Caldas; mas o genero romantico injustamente involvido na proscripção do seiscentismo, esse desprezado e perseguido, ninguem curou d’elle, julgaram-n’o sem o intender, condemnaram-n’o sem o ouvir. No meu poemasinho do Camões aventurei alguns toques, alguns longes de stylo e pensamentos, annunciei, para assim dizer, a possibilidade da restauração d’este genero, que tanto tem disputado na Europa litteraria com aquelloutro, e que hoje coroado dos louros de Scott, de Byron e de Lamartine vai de-par com elle, e, não direi vencedor, mas tambem não vencido. D. Branca, essa mais decididamente entrou na lice, e com o alahude do trovador desafinou a lyra dos vates; outros dirão, não eu, se com feliz ou infeliz successo. Não é portanto, em nenhum sentido, novo hoje para a litteratura portugueza o genero romantico, nem me appresento agora com este meu romancesinho ao público portuguez a pedir privilegio de invenção ou patente de introducção. Se reclamo aqui prioridade é somente em ter instaurado as antigas e primitivas fórmas metricas da lingua em uma especie de poesia que tambem foi a primitiva sua, e ao menos a mais antiga de que tradição nos chegou. De pequeno me lembra que tinha um prazer extremo de ouvir uma criada nossa, emtôrno da qual nos reuniamos nós os pequenos todos da casa, nas longas noites de hinverno, recitar-nos meio cantadas, meio rezadas, éstas xácaras e romances populares de maravilhas e incantamentos, de lindas princezas, de galantes e esforçados cavalleiros. A monotonia do canto, a singelleza da phrase, um não-sei-quê de sentimental e terno e mavioso, tudo me fazia tam profunda impressão e me inlevava os sentidos em tal estado de suavidade melancholica, que ainda hoje me lembram como presentes aquellas horas de gôso innocente, com uma saudade que me dá pena e prazer ao mesmo tempo[4]. Veio outra edade, outros pensamentos, occupações, estudos, livros, prazeres, desgostos, afflicções—tudo o que compõe a variada tea da vida,—e da minha tam trabalhosa e trabalhada vida!—tudo isso passou; e no meio de tudo isso, lá vinha de vez em quando uma hora de solidão e de repouso,—e as noites da minha infancia e os romances incultos e populares da minha terra a lembrarem-me, a lembrarem-me sempre. Lendo depois os poemas de Walter Scott, ou, mais exactamente, suas novellas poeticas, as _ballads_ allemans de Bürger, as inglezas de Burns, comecei a pensar que aquellas rudes e antiquissimas rhapsodias nossas continham um fundo de excellente e lindissima poesia nacional, e que podiam e deviam ser aproveitadas. Em París fui ver o cancioneiro do Collegio dos Nobres na defeituosa edição de Sir Charles Stuart; depois voltando a Portugal tornei a percorrer o de Rezende: no primeiro nada, no segundo pouco achei do romance historico ou narrativo. D’ésta última especie não ha impresso mais que esses duvidosos fragmentos conservados por Fr. Bernardo de Brito e por Miguel Leitão. Recorri á tradição: estava então eu fóra de Portugal; stimulava-me a leitura dos muitos ensaios extrangeiros que n’esse genero íam apparecendo todos os dias em Inglaterra e França, mas principalmente em Allemanha. Uma estimavel e joven senhora de minha particular amizade—a quem por agradecida retribuição é dirigida a introducção do presente romance—foi quem se incumbiu de me procurar em Portugal algumas cópias das xácaras e lendas populares. Depois de muitos trabalhos e indagações, de conferir e estudar muita cópia barbara, que a grande custo se arrancou á ignorancia e acanhamento de _amas-sêccas_ e lavadeiras e saloias velhas, hoje principaes depositarias d’esta archeologia nacional,—galantes cofres, em que para descobrir pouco que seja é necessario esgravatar como o _pullus gallinaceus_ de Phedro,—alguma coisa se pôde obter, informe e mutilada pela rudeza das mãos e memorias por onde passou; mas emfim era alguma coisa, e forçoso foi contentar-me com o pouco que me davam e que tanto custou. Assim consegui umas quinze rhapsodias ou, mais propriamente, fragmentos de romances e xácaras que em geral são visivelmente do mesmo stylo, mas de conhecida differença em antiguidade, todavia remotissima em todos. Comecei a arranjar e a vestir alguns com que ingracei mais; e para lhe dar amostra do modo por que o fiz, adeante copio um dos mais curiosos[5], ainda que não dos menos estropiados, e com elle o restaurado ou recomposto por mim, o melhor que pude e soube sem alterar o fundo da historia e conservando, quanto era possivel, o tom e stylo de melancholia e sensibilidade que faz o principal e peculiar character d’estas peças. A minha primeira idea foi fazer uma collecção dos romances assim reconstruidos e ornados com os infeites singelos porêm mais symetricos da moderna poesia romantica, e publicá-la com o titulo de _Romanceiro-portuguez_, ou outro que tal, para conservar um monumento de antiguidade litteraria tam interessante, e de que talvez só a lingua portugueza, entre as cultas da Europa, careça ainda; porque de quasi todas sei, e de todas creio, que se não pode dizer tal[6]. Mas sobreveio tanta interrupção, tanta distracção de tam variado genero, mortificações, cuidados, trabalhos mais serios; emfim desisti da impreza. Ja tinha decorrido muito tempo, e voltado eu a Portugal, lembrando-me sempre de vez em quando este impenho tam antigo e tam fixo; e a occasião a fugir-me. Uma circumstância fatal e terrivel me fez voltar ás minhas queridas antigualhas. Lançado n’uma prisão pela maior e mais patente injustiça que jamais se ouviu[7], voltei-me, para occupar minha solidão e distrahir as amarguras do espirito, aos meus romances populares, que sempre commigo têem andado, como uma preciosidade, que bem sei não avalia ninguem mais, de que muita gente rirá, mas que eu apprecio, e me ponho ás vezes a contemplar, e a estudar como um antiquario fanatico a quem se vão as horas e os dias deante d’um tronco de estatua, d’um capitel de columna, d’um pedaço de vaso etrusco, d’um bronze ja carcomido e informe, desinterrado das ruinas de Pompeia ou de Herculano. Mas quantos Davids e Canovas não faz, quantos Raphaeis e Miguel-Angelos não fez o estudo d’esses fragmentos que despreza porque mais não intende o vulgo ignorante! Assim passei muitas horas de minha longa e amofinada prisão, suavizando mágoas e distrahindo pensamentos.—Tinha eu começado a ageitar outro romance que originalmente se intitula _A Silvana_, cujo assumpto notavel e horroroso exigia summa delicadeza para se tornar capaz de ser lido sem repugnancia ou indecencia. Era nada menos que uma nova Myrrha, ou antes o inverso da tragica, interessante, mas abominosa historia da mythologia grega; é um pae namorado de sua propria filha!—A filha joven, bella, virtuosa, sancta emfim.—A difficuldade do assumpto irritou o desejo de luctar com ella e vencê-la se possivel fosse. Dava larga o tempo, pedia extenção a natureza dos obstaculos; o que fôra começado para uma xácara, para uma cantiga, ou, como lhe chamam Allemães e Inglezes, para uma _ballada_, sahiu um poemeto de quatro cantos, pequenos sim, porêm muito maiores do que eu pensei que fossem, e do que geralmente são taes coisas. Mudei-lhe o titulo e chamei-lhe _Adozinda_, que soa melhor e é portuguez mais antigo. O fundo da historia, as circumstâncias do desfecho d’ella são conservadas do original; o ornato, o mechanismo do maravilhoso é outro mas accommodado, creio eu, ao genero e á indole do assumpto. Mando-lhe aqui tambem uma cópia do romance original para ver e combinar. É dos mais mutilados e desfigurados, mas certamente dos que têem mais visiveis signaes de vetustade quasi immemorial[8]. Ora eis-aqui, meu amigo, a historia e origem da minha _Adozinda_, gerada no exilio, nascida entre sustos, criada na miseria e padecimentos de uma prisão. Entre tudo o que tenha rabiscado de prosas e versos este romancesinho é a composição minha a que tenho mais amor pelas memorias que me lembra, pelas affecções que me desperta.—Que de coisas passaram por mim durante o tempo que o compuz, os intervallos tam longos em que o deixei!—até o nascimento e a morte de uma filha unica, tam querida e para sempre chorada!... Adeus, meu amigo: não sei o que ahi vai escripto, nem como. São ideas sem nexo, pensamentos desatados, coisas á toa como o espirito de quem as escreve. Lea-as assim, e assim se imprimam se porventura estão em termos d’isso,—do que muito duvido, porque eu por mim, nem que me dessem os louros de Camões, ou me fizessem apotheoses como a Homero, me punha a corrigir, nem siquer a rever o que ahi vai escripto, quer prosa quer versos[9]. Londres, 14 d’Agosto de 1828. A ELYSA _Campolide, 11 d’Agosto 1827._ Thus, while I ape the measure wild, Of tales that charmed me yet a child, Rude though they be, still with the chime Return the thoughts of early time; And feelings, roused in life’s first day Glow in the line, and prompt the lay. WALTER SCOTT. Campo da lide é este; aqui lidaram, Elysa, os nossos quando os nossos eram Lidadores por glória,—aqui prostraram Suberbas castelhanas, e—venceram; Que pelo rei e patria combatendo Nunca foram vencidos Portuguezes. —Este terreno é sancto: inda estás vendo Alli aquelles restos mal poupados[10] Do tempo esquecedor, Dos homens deslembrados; Nobres reliquias são d’altas muralhas Forradas ja de lucidos arnezes, De tresdobradas malhas. Talvez fluctuava alli n’aquelle canto, Suberbo e vencedor Das Quinas o pendão victorioso; E junctos ao redor D’esse paladio augusto e sacrosancto, Invencivel trincheira lhe faziam Toda a flor dos mais nobres e esforçados; Que á voz da patria (voz que nunca ouviam Sem sentir redobrados Do nobre coração os movimentos) Heroes são todos, facil a victoria, Faceis as palmas que lh’infeixa a glória. Ah!—paremos aqui:—ve quaes na frente As arterias violentas me rebatem: Febril, descompassado corre e ardente E me angustia o sangue...—Ah! sim paremos Aqui... Não, aqui não; esse outeirinho Depressa o desceremos. Faz-me bem ésta vista:—essas arcadas[11] Suberbas, elevadas, Que uniram monte a monte e serra a serra, Acaso não serão Tam illustres talvez,—não lembram guerra, Glória não lembram; nem com sangue livido A morte da victoria companheira Para o erguido padrão O cimento amassou. Um rei que amou as artes, rei pacífico, A quem amor fadou Que seu fôsse e das musas,—que fugidas Da pátria ha tanto, á patria as volveria; Do povo á utilidade Este sublime monumento erguia. Para a posteridade Isto só lhe appurou o nome e a glória, E lhe ganhou as paginas da historia. Inda é muita oppressão; inda me acanha Tanta arte humana o coração no peito. Tam grandes massas, fábrica tammanha Absorto deixarão—mas satisfeito O ânimo, os sentidos?.. Não, Elysa, Não satisfaz ao homem a arte humana: Por mais que ella se uffana, Que aos abysmos o centro opprime e pisa C’os fundamentos de eternaes pyramides, Ou c’os erguidos vertices Ás nuvens rasga o seio tempestuoso. Nem assim:—á tristeza ou á alegria, E áquelle estado de innefavel gôso Que entre a dor e o prazer a alma suspende Brandamente e se diz _melancholia_, Oh! nada d’isso o excita. Oh! nada d’isso o coração intende! Oh! nada d’isso o espirito nos move Se a natureza, a pura natureza Por sua ingenua attracção nos não commove. Posso admirar o homem e a grandeza De suas nobres feituras, Mas somente admirar; Mais não póde excitar Mesquinha creação de creaturas. Vamos por essa incosta Subindo.—Eu gósto do alto das montanhas, Dos picos das erguidas serranias, O avaro á terra mãe abra as intranhas, Cave oiro e crimes, com que incurte os dias Seus e dos seus, e a sombra da virtude Acabe de varrer da face d’ella. Mas o que, em paz commigo e co’a existencia, Ainda ama a innocencia, Inda se apraz co’a natureza bella, A seus quadros surri, com seus dons gosa, Oh! esse venha ao cume do alto monte, Venha estender a vista saudosa Pelo valle que á falda lhe verdeja, A messe que loureja, E a despenhada fonte Que vai garrula e trepida saltando Té que se junta em cava pederneira. D’onde sai, o arco d’Iris imitando Na espadana da férvida cachoeira. Venha na solidão—e o só dos montes É mais só que nenhum,—o silencioso Mais augusto, solemne e magestoso! Venha na solidão Comsigo conversar, fallar um’hora Com o seu coração. —Quantos ha que annos longos hão vivido C’os outros sempre, sempre c’os de fóra Sem viverem comsigo nem um dia, Nem um momento só! Tenhamos d’elles dó; Viver não... têem apenas existido. Tua meiga companhia É doce, Elysa; e sempre na minha alma Foi teu brando fallar—e quantas vezes!— Celeste orvalho que abrandou a calma De paixões, que adoçou o agro a revezes: Porêm a minha solidão querida, De vez em quando, lá quando a alma o pede, Oh! não m’a tirem que é tirar-me a vida. Agora conversemos: eu ignoro A arte das vans palavras que bem soam; Oiço-as, e não demoro No ouvido os sons que de per si se escoam. O sol declina;—temos largamente Hoje philosophado. Na viva flor da edade e da saude Nem de todos sería accreditado Que tam suavemente Em austeras conversas de virtude Nos fôsse o tempo.—Crê-me, Elysa amavel, Tem muito mais prazeres a amizade E mais doces que amor: Para todos os sexos, toda a edade, Em todo o tempo a mesma, sempre affavel, Sem o cancro roedor Do ciume voraz que no mais puro D’amor, no mais seguro Suas raizes venenosas lança, E co’a mais branda flor Seus mordentes espinhos lhes intrança. Detestemos, Elysa, essa funesta Paixão brutal que a tudo e em tudo damna, Da virtude a tyranna: Não nos illuda a tam commum cegueira; Detesta o crime quem amor detesta. Crimes!—vê a amizade prazenteira, Que nenhuns tem;—e amor, ai! quantos, quantos! Honras perdidas, thalamos violados, Os vinculos mais sanctos Dos homens e de Deus, da natureza, Da propria natureza—espedaçados Por esse amor, que sua tocha accesa Do vivo fogo traz do averno immundo Para de crimes abrazar o mundo. Honesto, justo, sancto, consagrado, Nada respeita:—o sangue, o altar em meio De seus desejos não é termo ou freio; Não ha pomo vedado No Eden da virtude Que a mão perversa e rude Tocar não ouse,—árvore da vida Que dos gryphos mordida, Em peçonha de morte não converta, E a seiva salutar já corrompida Em lethal beneficio não perverta. Lembra-te aquella historia Que ingenuo o povo em seus trabalhos canta, E de longa memoria Entre elles perpetuada, É singella legenda de uma sancta, Que por brutal amor sacrificada, Desvalida virtude, Só do crime escapou no seio á morte? Eu a canção magoada Em verso menos rude, Mais moldado verti, dei novo córte Ao vestido antiquissimo, á simpleza Que ha seculos lhe deu De nossos bons maiores a rudeza. —Sereno está o ceo, Tranquillo o vento, a calma descahida; E, pois que não te infada A singella toada Do bardo alahude que sem arte soa E a rhyma desgarrada Da popular canção rustico intoa,— Aqui t’a cantarei, ouve: e se ao pranto Te commover a saudosa endeixa, Na selvagem bonina, Na campainha agreste d’esse mato Arrociá-lo deixa; São lagrymas sinceras, propria fonte Para regar as innocentes flores Que arte não sabem, nem conhecem arte; Flores como os meus versos não variados De refinadas côres, Em que alma só e coração tem parte, Não por classica musica modulados Ao graduado som de grega lyra, De cithara romana. A minha é melodia que só mana Dos intimos accordes só do peito; Nem ha corda que fira Em meu alahude rustico Tom menos natural, mais contrafeito. Em suberbos canaes, alto impedrados Por ingenhoso hydraulico, Vão d’arte subjugados Os caudaes da torrente conduzindo Riquezas de preciosa mercancia: E o arroio, que serpeia entre pedrinhas Pela relva macia, Bordado em-tôrno sinuosamente, Que póde elle levar Em sua doce e trépida corrente? —Alguma folha de silvestre rosa Que, ingenua divagando, Pastorinha formosa Lhe foi acaso á margem desfolhando. ADOZINDA CANTIGA PRIMEIRA No, I’ll not weep: I have full cause of weeping; but this heart Shall break into an hundred thousand flaws Or ere I’ll weep. SHAKSPEARE. I Onde vas tam alva e linda, Mas tam triste e pensativa Pura, celeste Adozinda, Da côr da singella rosa Que nasceu ao-pé do rio? Tam ingenua, tam formosa Como a flor, das flores brio Que em serena madrugada Abre o seio descuidada A doce manhan d’Abril! —Roupas de seda que leva Alvas de neve que cega Como os picos do Gerez Quando em Janeiro lhe neva. Cinto côr de violeta Que á sombra desabrochou; Cintura mais delicada Nunca outro cinto apertou. Anneis louros do cabello Como o sol resplandecentes Folgam soltos; dá-lh’o vento, Dá no veo ligeiro e bello, Veo por suas mãos bordado, De um sancto ermitão fadado Que vinha da Palestina; Passou pelo povoado, Foi-se direito ao castello Pediu pousada, e lh’a deram Porque intercede a menina: Que o pae suberbo e descrido, —‘N’essa gente peregrina, Disse, quem sabe o que vem?’ —Mas pede Adozinda bella, Tal virtude e formosura, Quem lh’o hade negar a ella? Não póde o pae nem ninguem. II Mas o outro dia á luz nada Houve quem visse Adozinda Debruçada em seu balcão Haver prática alongada Co’ aquelle velho ermitão. Quem sabe o que lhe elle disse? —Ninguem no castello ouviu: Mas d’aquella occasião A alegria lhe fugiu Dos olhos e do semblante: Ficou triste, sempre triste; Mas em seu rosto divino Fez-se formosa a tristeza. Como olhos d’amor quebrados Disseras os olhos d’ella; Mas não tem d’amor cuidados, Que a ninguem conhece a bella. III Qual semente arrebatada Da flor de vergel mimoso Pelos furacões do Outomno, Vai no incôsto pedregoso Cahir de serra escalvada; Vem Abril, e a seu bafejo Brota e nasce a linda flor, De ninguem vista ou sabida, Nem de damas cubiçada Nem de pastores colhida, E o vento da solidão Lhe bebe o perfume em vão. IV Quinze annos tem Adozinda; E desd’a vez que o romeiro Do saio pardo e grosseiro Lhe fallou ao seu balcão, Faz tres para o San-João. V E Adozinda sempre triste Vai sosinha pelo eirado Pelo jardim, pelo prado; Nem ja a divertem flores Em que punha o seu cuidado. Pelos sombrios verdores De sua espessa coutada Vaga á toa e derramada, Como a novilha perdida, Como a ovelha desgarrada A quem o tenro filhinho Lobo do mato levou: —Desfaz-se a mãe em balidos, Que de ninguem são ouvidos, E o filhinho não tornou! VI Que tem Adozinda bella Que em tal desconsôlo a traz? Serão saudades do pae Que anda co’os Mouros á guerra Por defender sua terra Mais a sancta lei de Deus? Tres annos ha que se foi; E dous filhos que levou, A cadaqual sua espada Com juramento intregou De lh’a tornarem lavada No sangue mouro descrido: E assim cada um jurou. Fizeram gente em suas villas, (Que preito muitas lhe dão) E guiaram seu pendão Para terras de Moirama. Ja vejo chorar donzellas, Vejo carpir muita dama, Que onde chega Dom Sisnando, Com sua espada portugueza Não ha lanças nem rodellas Que sirvam para defesa. VII Mas não são do pae saudades, Que sempre a lidar com armas Como ellas duro se fez; Mais lhe importam do que a filha Seus ginetes, seu arnez. E até—quem diria tal!— Quando a mãe, por diverti-la, Lhe falla do pae ausente E lhe diz que hade voltar, Parece que se lhe sente O coração apertar. —Suspira em silencio Auzenda, Auzenda tam bella ainda Que ao-pé da bella Adozinda Mais irman que mãe parece De filha tam môça e linda. Suspira em silencio a triste, Porque suspira não diz: —‘Filha amante de seu pae Conceder-me o ceo não quiz!’ —Ai! que sem razão se chora! —Ai! Auzenda malfadada, Tem de vir minguada hora Que á filhinha desgraçada Darás mais razão que agora. VIII Que tropel que vai nos paços De Landim ao-pé dos rios! Sons de festa e sons de guerra Em seus muros e alta tôrre? Geme a ponte, treme a terra C’o peso d’homens armados. Cavallos acobertados Trotam ligeiros;—e corre O alferes que tremolando Vai guião de roxa cruz... Ja chegado é Dom Sisnando. Entre os cavalleiros todos Sua armadura reluz: E o pennacho fluctuante Das plumas alvas de neve Sôbre o elmo rutilante De longe a vista percebe. IX —‘Portas do castello, abri-vos, Correi, pagens e donzellas, Que é chegado meu senhor, Meu espôso e meu amor!’ Auzenda bradava e corre. Portas se abrem, soam vivas, E o echo da antiga tôrre Com o som festivo acordou. —‘Viva, viva Dom Sisnando!’ E o tropel que dobra e cresce, E ás portas que chega o bando Dos guerreiros triumphantes. Do corcel suberbo desce E aos braços anhelantes Da cara espôsa voou. Doce amor que os apertou Não lhes deixou mais sentidos Que para se ver unidos, Ajuntar-se peito a peito, E em laço tam brando e estreito Longa saudade afogar. A Auzenda gotteja o pranto, Pranto que é todo alegria; E o rosto que nunca infia Do esforçado lidador Tambem sentiu—mais que a dor Póde o gôso!—descuidada Uma lagryma sensivel De seus olhos escapada. X Mas as lagrymas de gôsto, Como as de mágoa, teem fim; Dom Sisnando inchuga o rosto, E tomando a mão á espôsa: —‘D’onde vem, lhe diz, senhora, Que a joia mais preciosa Não vejo d’estes meus paços, D’onde vem que aos meus abraços Minha filha?..’ A filha bella, Pasmada, trémula, a um lado, O rosto ao chão inclinado, Parecia humilde estrella Que ao primeiro raio vivo Do sol que no alvor reluz Não fica, não, menos bella, Porêm pállida e sem luz. XI Tres annos ja são passados Que Dom Sisnando a não via, N’essa joven, linda dama Sua filha não conhecia. —‘Ei-la aqui, senhor,’ dizia A mãe, que d’um braço a trava, ‘Ei-la aqui.’—Os olhos crava O pae na formosa filha, E de assombro e maravilha Mudo, estatico ficou. Cora Adozinda, suspira, E—‘Pae!’ disse em voz tremente Submissa...—; languidamente Ajoelha, osculo frio Na paterna mão imprime: Pranto que atelli reprime, Corre agora em sôlto rio. —‘Que tens tu, filha querida, Que assim choras tam carpida? É teu pae, que hade querer-te, Que hade amar-te como eu te amo.’ E tomou-a nos seus braços, E a levanta Auzenda bella. Pasma o pae, suspira ella; E a custo os doces abraços De pae, de filha se deram. XII Pouco alegre a companhia Entrou nos paços brilhantes; E os atabales soantes Pregoaram festa e alegria No castello de Landim. CANTIGA SEGUNDA But yet thou art my flesh, my blood, my daughter! SHAKSPEARE. I Oh! que alegrias que vão Pelos paços de Landim! Que magnificos banquetes, Que sumptuoso festim! Juncto ao valente campeão, Á cabeceira da mesa Ficou a bella Adozinda. A tam celeste belleza Estão todos admirando; E o imbevecido Sisnando Não se farta de abraçá-la, De beijar filha tam linda. Auzenda de gôsto chora, E abençoa a feliz hora Em que tanto amor nasceu. —‘Inda bem’ diz ‘que a rudeza De tanto lidar com armas Á innocencia, á belleza Da amada filha cedeu!’ Ella as caricias paternas Ja não ousa de esquivar-se; Cora, mas deixa abraçar-se; Ve-se que tantos affagos A repugnancia venceram Da timidez natural, —Ou, se outra causa fatal, Mais incuberta ella tinha... Ao menos lh’a adormeceram. II Ja de exquisitos manjares Os convivas saciados, De folias e cantares Pagens, donzellas cançados, E dos brindes amiudados Finda a primeira alegria, Doce repoiso pedía Quanto ésta noite em Landim Velou em baile e festim. A seus nobres aposentos Adozinda retirada, Com permissão outorgada —A custo—do pae, se foi. Auzenda, em grave cortêjo De suas damas rodeada Deixou ha muito o festêjo, E em seu camarim deitada Espera o momento anciosa Em que a sós a amante e a espôsa Nos braços de Dom Sisnando Se hãode em breve confundir. III Como um tapete mimoso, Juncto ao paço de Landim Se estende jardim formoso, De boninas arrelvado Da verde gramma e de flores: Remata em bosque frondoso Cujos opacos verdores Eternas sombras acoitam. —De pesados sentimentos Oppresso o peito fremente, A respirar livremente O ar puro da noite fria Entrou insensivelmente Dom Sisnando em seu vergel Jamais tam rico docel De azul bordado d’estrellas Se estendeu por sôbre a terra Do estio nas noites bellas. IV Alta a lua vai no ceo, E as sombras leves e raras Não impedem ás florinhas, Não tolhem ás aguas claras De brilhar co’a luz nocturna, Menos resplendente e fúlgida, Porêm mais suave e placida, Mais amavel que a diurna. Manso o vento, que murmura Entre as folhas brandamente, Convida suavemente A respirar, a bebê-la, Essa fresca viração, Das flores exhalação, Tam doce como o bafejo De dous amantes queridos Quando por amor unidos Se dão mútuo e doce bejo. V Na feiticeira belleza Da noite, do ceo, das flores Várias d’aroma e de côres, Sisnando todo imbebido, No seio da natureza Do resto do orbe esquecido, Pouco a pouco a agitação D’alma lhe foi abrandando, E o pesado coração Do affôgo desappertando: Ja póde gemer,—suspira, E como que se lhe tira Um pêso de sôbre o peito, Que a suspirar foi desfeito. VI Porque geme, porque anceia Dom Sisnando, o lidador? Sisnando, o triumphador, Cujo alto pendão campeia Victorioso e senhor Por tanta suberba ameia De nunca entrado castello, De jamais vencida tôrre! —Dor que lhe nasce no peito É dor que no peito morre; Ancia que lhe ralla a vida Não é para ser sabida. —E desde quando? ha tam pouco Feliz e ditoso ainda, Com tanta alegria e júbilo Festejada sua vinda!.. Vassallos, espôsa, filha... Filha!.. A filha é tam formosa! Oh! essa Adozinda bella Nos olhos incantadores Tem com que matar d’amores A metade dos humanos! Não, não é peito sensivel Peito que lhe resistir: Mas o pae!.. não é possivel. VII Não é, não é.—Mas Sisnando, Sem saber onde caminha, Melancholico e pesado, Insensivel foi entrando Pelo bosque immaranhado Que ao jardim avizinha: E o silencio, que o seguiu, Que no espesso coito habita, Nem um verde ramo agita, Nem uma folha buliu. —Á toa por entre as árvores Sem seguir carreiro ou trilho, Nem guiado d’um só brilho De froixa estrella que entrasse Por tam medonha espessura, Ora lento e vagaroso, Ora os passos apressura, Ja por caminho fragoso, Ja por vereda macia, Té que n’um claro onde os troncos Escasseiam de repente, E onde pallido e tremente Seu reflexo a lua infia, Sem o saber, foi parar. VIII Agreste, não feio é o sitio, Medonho, horrivel de ver; Porêm tem a natureza Horrores que são belleza, Tristezas que dão prazer, Mão d’arte alli não chegou; A virginal aspereza Ficou em toda a rudeza Que a creação lhe deixou. De um lado, choupos anciãos Seus ramos lobregos pendem, E o vivo seixo fendem Crespas raizes nodosas Das sovereiras annosas Que as cortiças remendadas Têem dos estios lascadas A pedaços a cahir. —Do outro, altivos rochedos, Como do ceo pendurados, Diffundem pallidos medos Que em funda gruta acoitados De espectros a povoaram. —Di-lo toda a vizinhança, Que ou são sombras de finados, Ou de negras bruxas más Alli ha nocturna dança. —Redobra ao sítio o pavor Um jôrro alto que despenha Saltando de penha em penha, E os echos em deredor Vai temeroso acordando. Este unico som d’horror Á callada solidão Da mudez quebra o condão. —Sisnando, o ardido Sisnando, O do forte coração, Sentiu soçobrar-lhe o ânimo: Uma voz dentro do peito Lhe diz que não passe ávante; Mas outra voz mais possante, Outra voz que é voz do fado, Voz que ao mortal desgraçado Não deixa fôrça ou razão, Lhe brada: _Persiste, segue_... —Ai do que a ella se intregue, Que se intrega á perdição! IX No seixo cavada grutta Tem escassa entrada aberta, Quasi de todo cuberta De festões d’hera lustrosa Que cingindo a rocha bruta Pende em grinalda ramosa. Entre as folhas, que meneia Ligeiro sôpro de vento, Viu Sisnando—e alma lhe anceia— Um lampejar vago, incerto De luz fraca,—ouve um accento De voz doce mas gemente, Voz que se ouve que está perto, Que intoa suavemente Uma angelica harmonia, Tam triste que faz chorar! E ésta voz assim dizia Em seu languido cantar: —‘Anjos do ceo, acudi-me, Valei-me, sanctos do ceo, Que me rouba mais que a vida Quem só a vida me deu. ‘Sancto ermitão, que me deste Aquella esperança ainda Que a desgraçada Adozinda Viria a ser venturosa Apóz de longo penar... Sorte que vieste Sôbre mim deitar, Sorte desastrosa Vem ver começar. ‘Anjos do ceo, acudi-me, Valei-me, sanctos do ceo, Que me rouba mais que a vida Quem só a vida me deu. Mas ah! tam negro crime, Tam horrida paixão D’um pae no coração... D’um pae...—Como é possivel! Não, não, não hade entrar.’ X —‘Pois treme, infeliz, e sabe Que essa horrorosa paixão Aqui n’este coração...’ Sisnando, a quem ja não cabe No peito a angústia, o tormento De tam criminoso amor, N’estas vozes de terror Rompendo, a caverna entrou. XI Oh que pavoroso instante! Os anjos todos cubriram Seus rostos co’a aza brilhante; Sem vento os troncos d’emtôrno A ramagem sacudiram; A lua no ceo mais pallida Como de susto infiou E para traz da montanha Foi correndo, e se eclipsou. XII Quem hade a filha chorar Que está nos braços paternos! Oh! quem se hade horrorizar Dos beijos doces e ternos Que o amor...—Que amor é esse De ouvir tam medonho horror O proprio inferno estremece, E só lá... ha tal amor! XIII Oh! como heide eu cantar Se no peito a voz me treme! Historia que é de chorar, Quem a diz não canta, geme. —Só não gemia Adozinda, Que toda morta, gelada, Sancto Deus!—mais bella ainda, Na viva rocha, estirada Como um cadaver ficou. XIV E o pae ousou levantá-la, E apertar juncto a seu peito Aquella morta belleza! —Repugnou a natureza; E, da paixão a despeito, De si a affasta, vacilla... O anjo da sua guarda Inda um momento o resguarda... Mas ha na terra ou no ceo Fôrça maior que a paixão, Que subjugue um coração Que d’amor indoudeceu? Se a ha, não lhe acudiu Deus, Venceram peccados seus. Lembrou-lhe fugir... ficou: Sim, lembrou-lhe a salvação... E á sua condemnação O infeliz se votou. XV Geme, chora; altos soluços Do peito lhe véem bradando; Porêm fugir de Adozinda Não póde o triste Sisnando. Ella acorda, e em voz sumida: —‘Piedade, senhor, piedade!...’ Só pôde dizer: perdida Nos echos da soledade Vai soando e murmurando A voz triste e condoida. Ouve-a elle; e o coração No peito lhe estremeceu; Na execranda pretenção Recúa,—mas não cedeu. XVI Palavras que lh’elle disse, Respostas que lh’ella deu, Oh! não as contarei eu, Não as contará ninguem.... Quiz que lh’ella promettesse (E a terra alli não se abriu Quando tal a um pae ouviu!) Que para a noite seguinte, Quando tudo em paz jazesse Em seu leito o recebesse.... XVII Chora a infeliz, chora, geme, De horror e de pasmo treme: Insta o perigo imminente, A esperança na demora.... Com voz cortada e gemente: —‘Senhor, não insteis agora, Deixae-me cobrar alento, E ámanhan responderei.’ —‘Pois solemne juramento Farás de que...’—‘Sim, farei...’ —‘Que ámanhan, antes que o dia Do horisonte despareça, Darás resposta final E ai de ti, ai do mortal A quem ousasses!...—Pereça O infeliz n’esse momento: Só a morte, só o inferno De meu cru resentimento O poderiam salvar.’ CANTIGA TERCEIRA I must a tale unfold whose lightest word Will harrow up thy soul; freeze thy blood; Make thy two eyes, like stars, start from their spheres. SHAKESPEARE. I Que mau fado, que hora má, Oh! qual agoirada estrella Levou Adozinda bella Á fadada grutta escura? Que foi ella fazer lá? No mais denso da espessura, A tão aziagas horas, Só, alta noite, a deshoras, Sem donzella ou escudeiro, Como o pedia a decencia, Sem levar mais companheiro Que sua debil innocencia, Que seu joven coração! II Quem o sabe?—No castello Nem a propria mãe, que a adora, Que pela filha querida Dera tudo, dera a vida... Nem a propria mãe sabê-lo! E como é que Auzenda ignora, Por que incanto ou maravilha, Que ao pino da meia noite Todos os dias a filha O escuro parque atravessa, E tenteando a treva espessa Vai sosinha áquella grutta Que no mais claro do dia Ninguem a entrar ousaria? —Mas vai; não o sabe Auzenda: N’este segredo fatal Coisa sobrenatural, Coisa medonha, tremenda Ha por certo... oh! que inda mal! III Desde aquella madrugada Que Adozinda em seu balcão Fallou c’o velho ermitão, De noite á grutta fadada Sempre vai. Sibille o vento No bosque medonho e feio, Ás nuvens o pardo seio Rasgue horrisono trovão, Nada teme; a passo lento, Só, para alli se incaminha E em rezas, em penitencia Horas longas jaz sosinha. Talvez d’aquelle romeiro, Por salutar providencia, Seu fado lhe foi preditto; Talvez lhe fôsse prescritto Por tam sancto conselheiro Que passasse em oração N’aquellas medonhas fragas Certas horas aziagas Em que a fatal conjuncção D’um astro seu inimigo Maior fizesse o perigo Da terrivel maldicção Que a persegue,—ella inocente!— Que tam injusta cahiu N’aquella votada frente... Mas diz que não ha condão Peior que o da maldicção! E quantas não attrahiu Sôbre a familia inculpada A suberba despiedada D’esse orgulhoso Sisnando? Quantas vezes o infeliz, C’os filhinhos expirando, Á porta do seu castello Se viu gemendo e chorando, E o desalmado senhor Essa gentalha atrevida Escorrassar a mandou! Taes peccados não guardou Para os punir na outra vida O supremo Arbitrador. IV Mas ja despontava o dia, Que tam alegre hoje vem, Tam risonho parecia, Que não dissera ninguem Senão que traz alegria: —E tantas, tam negras mágoas, Nunca as trouxe o sol nascente Desde que assoma no oriente E se sepulta nas aguas. Toda a noite longa, immensa, Auzenda velou chorando, De suas lagrymas regando O leito viuvo e só; A ninguem sua dor intensa A desgraçada confia: Ninguem da triste houve dó, Que do espôso em companhia Todo o castello a julgou. Porêm a noite passou, E porfim, do novo dia Ja o alvor vinha raiando, Sem apparecer Sisnando. V É manhan;—tenue inda a luz, Mas ve-se que é madrugada. Auzenda ainda acordada Sente abrirem-lhe com tento A porta do aposento, E entrar...—‘Será elle?... Oh vem! És tu, suspirado espôso?! Disse ella em timida voz: Não lhe responde ninguem. Um suspiro doloroso Lhe dissipou a illusão. Oh! quem se hade inganar Com aquelle suspirar! É Adozinda,—voaram Do maternal coração Toda a mágoa e dissabores; E os sentidos que ficaram Foi para amargar as dores Que n’aquelle _ai_ a assaltaram. VI —‘Filha, filha... a ésta hora! Que succedeu?... que tens tu?’ Callada Adozinda chora. —‘Ai, não, não me chameis filha!’ Rompe em fim, a soluçar, Nadando n’um mar de pranto. Pasmo, terror, maravilha, Susto, medo, horror, espanto No peito da triste Auzenda Em confusão estupenda De tropel foram quebrar. —Que será?—E esse tyranno De todo o socêgo humano, _Dúvida_, o monstro fatal, Que até nos deixa a esperança Paraque do incerto mal Seja maior a pujança, Venha mais fino o punhal Quando n’alma se nos crava, Esse do peito lhe trava, E ao cruel padecimento Dobra angústias e tormento. VII Adozinda, ajoelhada Juncto ao leito onde convulsa Jaz a mãe attribulada, Do coração, que lhe pulsa Como se fôra quebrar, Traz d’amargo pranto um rio, Que dos olhos vem a fio As maternas mãos banhar; As mãos que ella aperta e beja, E que o pranto que gotteja Ja não sentem derramar. VIII Volve a ti, mãe desgraçada, Volve, que o morrer agora Tammanha ventura fôra Que da sorte despiedada Concedido não será. Vem ouvir tua sentença De morte... peior que morte, Vergonha horrorosa, offensa... E de quem!... de teu consorte, Do pae monstro, monstro espôso... Ai! para o tormento odioso, Para tammanha afflicção Não tem fôrça o coração. IX Tudo lhe conta Adozinda, Tudo... tudo,—interrompendo A horrorosa narração Ora as lagrymas fervendo, Ora os soluços rompendo Do rasgado coração, Ora os labios descorados De pejo e terror gelados, Sem podêr nem balbuciar O que é fôrça revelar. X —‘Irás’ disse Auzenda emfim, E a voz, que treme, assegura: ‘Irás a teu...’—_pae_ não disse, E um som rouco lhe murmura Nos labios onde a meiguice, Onde a maternal ternura Procuram em vão surrir: ‘Irás, filha, a Dom Sisnando E lhe dirás que...’ —‘Senhora!’ Interrompe ella chorando —‘Que’ torna a mãe ‘quando a hora Da meia-noite soar, Em teu quarto o hasde esperar. Não temas, filha, não tremas, Não chores, minha Adozinda, Querida filha, não gemas, Que hasde ser feliz ainda. No angustiado seio Guardemos inda a esperança: Do ceo mandada me veio Uma ditosa lembrança Que nos poderá salvar. No teu leito d’ouro fino Sou eu que me heide ir deitar; Tua camiza de hollanda A meu corpo heide lançar: E quando elle nos seus braços Ter Adozinda julgar... Ah! que o ceo hade abençoar Este ingano virtuoso, E a ser pae, a ser espôso Dom Sisnando hade voltar.’ XI O dia em rezas passaram Em devotas orações; Mas quando as trevas poisaram Sôbre as muralhas da tôrre, Voltaram as afflicções: E o tempo—que leve corre Para todos os viventes— Só áquellas innocentes Accintoso parecia Que da ampulheta fadada Bago por bago espremia Cada hora minguada. XII Emfim meia-noite soa: Dom Sisnando, aguilhoado Do torpe amor—do peccado, Impaciente ao prazo voa Que elle d’amor julga dado. Como louco, arrebatado Corre ao leito de Adozinda, Cego bêja a face linda, Que decerto não é d’ella, Mas que não é menos bella; Ao convulso peito aperta Aquelle peito formoso... —Desgraçado, é tempo ainda, Do cruel sonho desperta, Que ao precipicio horroroso Ja te vai a despenhar!... XIII Dom Sisnando é criminoso Quanto o podia ficar; Do intento abominoso Nada resta a consummar. Ja tristemente acordou De seu delirio fatal, E surrindo amargamente, Á infeliz assim fallou: —‘E era por isto... innocente! Que tanto se recatava Tua virtude fingida? Ah! essa alma corrompida Mais do que teu corpo estava. E tu...’ —Não pôde ouvir mais A triste mãe; não lhe soffrem As intranhas maternais Ouvir a filha adorada De tal modo calumniada, E por quem, e em que momento! C’um suffocado lamento, Que do peito rebentando Trouxe aos labios alma e vida, Quebra o silencio:—‘Ah, Sisnando! Ah, senhor, mattae-me embora; A desgraçada sou eu.’ E a terra n’aquella hora Rasgada não soverteu O infeliz, que meio morto, No abysmo do crime absorto, D’este golpe inesperado A violencia cedeu! XIV Silencio largo, mortal Foi a unica expressão Que por longa duração N’aquelle estado fatal Entre esses dous foi ouvida. Porêm no perdido peito De Sisnando atribulado Foi a vergonha vencida Pelo irritado despeito: Dos remorsos avexado, Porêm mais pungido ainda De seu crime mallogrado, Brada em cholera abrasado: —‘Pereça a filha descrida Que deshonrou seu...’ —_Pae_ não, _Pae_ não ousa proferir. A palavra, suspendida Por fria, pesada mão De remorso insubjugado, Lhe voltou ao coração A lacerar-lh’o, a vingar-se Da mal-soffrida oppressão. XV —‘Ouvi-me, senhor: culpada Sou eu só...’ a triste espôsa Lhe diz; mas não ouve nada Aquella alma furiosa, Ja n’este mundo rallada De quanta pena horrorosa No inferno está guardada Para crimes como o seu. XVI Parte, corre;—o brado horrivel Por todo o castello soa Tam medonho como troa Medonho trovão d’outomno. Despertos do brando somno Todos são:—ordens que deu São taes, que de horror tremeu A gente absorta e pasmada. Tristemente obedecendo, Co’a face ao chão inclinada Se vão a medo, e mal crendo Que não seja sonho vão O que ouvindo e vendo estão. XVII Do castello para um lado Uma antiga tôrre havia Cercada de largos fossos, Que é memoria haver fundado Um rei mouro que vivia Ha muito, de quando os nossos Mourisca gente regia. Alli uma espôsa sua, Que elle achou ser-lhe infiel, Sette annos e mais um dia Fechada a teve o cruel, Sozinha, a grilhões e nua; E só pão sêcco lhe dava, Mas agua não consentia Que nunca ninguem lh’a desse Para que á sêde morresse. Valeu-lhe quem tudo póde, Que ao infeliz sempre accode: Vinha-lhe orvalho do ceo, De que os sette annos bebeu. E emfim o septimo anno De tal milagre vencido Foi o proprio rei tyranno, Que a liberdade lhe deu, E do crime commettido, Se o havia, se esqueceu. XVIII Para ésta tôrre deserta, No verão ao sol exposta, Que abrasado a queima e tosta, No rigor do hinverno aberta A chuvas, á ventania, Sisnando—quem tal diria! Mandou a filhinha linda, Que alli fechada gemesse, A virtuosa Adozinda!... E ai de quem agua lhe desse, Lhe desse vestido ou cama, Que da sêde á morte crua —Qual o mouro a sua dama— Alli quer que morra nua, De todos desemparada, De seu pae amaldiçoada, Só da triste mãe chorada! XIX Sem dar somente um gemido, Sem se carpir nem queixar, Como a ovelhinha tremente Que sem dar nem um balido Se deixa á morte levar, Vai Adozinda innocente Para aquella feia tôrre. Pranto que furtivo corre De quantos olhos a viam A acompanha tristemente. E o pae!... Ancias que o remordem Ninguem as sabe nem vê. N’um aposento incerrado, Onde nem ao mais privado Concedido é metter pé, Só ficou, só permanece: Só!—antes acompanhado De quem os seus não esquece, Do remorso,—do peccado. CANTIGA QUARTA You do me wrong, to take me out o’the grave:— Thou art a soul of bliss: but I am bound Upon a wheel of fire, that mine own tears Do scald like molten lead. SHAKSPEARE. I Sette annos e um dia Foi a sentença cruel Que Adozinda cumpriria N’aquella tôrre fechada. E o tyranno bem sabia Que nem tres dias somente Viver podia a innocente Com a sêde, a denudez. Uma semana é passada Passado é um mez e outro mez, Anno e annos decorreram; E os sette annos feneceram Sem que Adozinda formosa Em tal mingua perecesse, Sem que ao menos desmer’cesse Em seu rosto uma só rosa. II Veio um dia—n’esse dia O captiveiro acabava— No mais alto o sol ardia E a terra toda abrasava, Na tôrre uma voz se ouvia, (E é ésta a primeira vez) Era uma voz que pedia, Que supplicava piedade: —‘Uma sêde, uma só d’agua, Uma só por compaixão, Que me abraso n’esta fragua, Que me estalla o coração.’ III A voz de Adozinda bella Todos clara conheceram; C’os olhos na alta janella De toda a parte correram: —‘Vive, inda vive!’ bradavam, ‘A innocente! vinde ve-la.’ E uns aos outros recontavam Das virtudes, da paciencia D’aquelle anjo d’innocencia Que, ha muito, morta julgavam. —Outra vez se torna a ouvir O mesmo clamor sahir Da torreada prisão: —‘Uma sêde, uma só d’agua, Uma só por compaixão, Que me abraso n’esta fragua, Que me estalla o coração!’ IV A todos se commoveu O mais intimo do peito, Mas não ousam a affrontar Do pae o sevo despeito. —‘Tem paciencia, anjo do ceo!’ Com lagrymas responderam, ‘Que ja não póde tardar O pae que te vem soltar. Os sette annos decorreram, O dia está a acabar; Soffre mais este momento, Que hoje acaba o teu tormento.’ V —‘Oh! como heide eu supportar, Amigos meus da minha alma, Se a vida sinto acabar, Sinto abrasar-me da calma? Sette annos me accudiu Deus, Que por milagre vivi, Dava-me orvalho dos ceos, De que sette annos bebi. Do estio ardentes queimores No meu corpo os não senti, Do hinverno os frios rigores Tambem esses não tremi. Mas ha tres dias que a mão Do Senhor me abandonou. Tudo, tudo me faltou... Oh! tende de mim piedade! Uma sêde, uma só d’agua, Uma só por compaixão, Que me abraso n’esta fragua, Que me estalla o coração!’ —De novo alto chôro ergueram, Lastimado pranto gemem; Mas de seu tyranno tremem, Só a chorar se atreveram. VI Soa a nova no castello, Vai correndo em derredor, De que porfim fôra ouvido Aquelle anjo soffredor Soltar queixoso gemido, Piedade emfim suppllicar. Só a Auzenda, que expirando No leito da morte jaz, Para que morresse em paz Vão a noticia occultando. Mas soube tudo Sisnando, E no duro coração Ja vacilla a crueldade, Ja vislumbra a compaixão: Dos seccos olhos covados, Que inspiravam medo e espanto, Como que da mão tocados D’algum anjo punidor, Salta repentino o pranto, Qual onda que estalla em flor Sôbre o penedo ourissado. Todo em lagrymas sanguineas O infeliz debulhado, Para aquella infausta tôrre Com incerto passo corre Em altos gritos bradando: —‘Agua! trazei agua, vinde, Accudi á desgraçada, A uma filha malfadada Que por mãos de seu pae morre!’ VII Assim correndo e gritando Chegava á horrivel prisão Em que gemia Adozinda: —‘Filha, filha, é tempo ainda; Perdão, ó filha, perdão Para este algoz...’—Cortou-lhe O excesso da paixão Lingua e fôrça; a voz quebrou-lhe, E por morto cai no chão. VIII Oh! que povo se ajuntava No castello de Landim! E com que horror que elle olhava Para aquelle triste fim De tammanho cavalleiro, Tam ricco e grande senhor, Tam esforçado guerreiro! A Auzenda chega o rumor Do successo inesperado, Dá-lhe fôrça e vida amor; O fio meio cortado Da existencia lhe atou. Ei-la se ergue, e em mal-firmado Passo corre—e lá chegou. IX E ja por ordem de Auzenda Co’a porta negra e tremenda Investem da tôrre erguida: Range o ferro, os gonzos gemem, Parece que ja rendida Vai de todo;—á roda tremem, Do fundamento aluida A tôrre, os solidos muros. Mas em vão de centenares Dos mais rijos braços duros Se movem os instrumentos Que em muralhas mais valentes De castellos regulares, De mais solidos cimentos Têem a miudo triumphado. X Parece incanto:—será? O povo maravilhado Ja por tal, tremendo, o dá. Cessam todos, incantado É o negro portão ferrado... E o povo desanimado Da impreza desiste ja. XI Arreda, arreda, infançoes, Cavalleiros, dae logar, Com licença, nobre dama, Que ahi vem um sancto ermitão: Com as suas orações Este incanto hade quebrar, Ou, se do demonio é trama, Com o seu bento condão Elle o hade desmanchar. —Ei-lo chega:—este semblante Não é aqui desconhecido... Ésta barba, este vestido... É elle, o mesmo ermitão Que a noite de San’João (Não ha dez annos ainda) No castello pernoitou, —Que Sisnando o maltrattou. Mas, por a bella Adozinda Pedir muito, lá ficou. XII Com a cabeça cuberta Do seu agudo capuz, Os olhos de côr incerta, Pasmados, fixos... e a luz Que d’elles sai é tam viva Que a espaços da vista priva Quem de perto os quer fitar! As mãos cruzadas no peito, Vagaroso seu andar, Tam pesado e de tal geito Que faz um echo tremendo Quando os passos vai movendo, E como que a terra e o ar, Com o pêso vão gemendo... —Foi seu caminho direito Da tôrre á porta ferrada; Sem attender a mais nada, Sem olhar nem para Auzenda, Que em lagrymas debulhada Supplices mãos lh’estendia. Chega á porta, e em voz horrenda —‘Abre-te!’—disse. Estallou O ferro medonhamente, E a porta se escancarou, —Mas elle subitamente, Voltando-se para a turba, Que alto alarido alevanta E em derredor se perturba, Com gesto que aos mais ousados Todo o ânimo quebranta, —‘Immudecei!’ lhes bradou. Ficaram todos callados; E—_immudecei_—revibrou De echos em echos dobrados Pelo castello e jardim, Pelos soutos ao redor, Pelos campos dilatados Que a Dom Sisnando obedecem E por senhor reconhecem Ao ricco-homem de Landim. —Depois estendendo a mão Ao logar onde jazia Por morto no frio chão O desgraçado Sisnando, Éstas palavras dizia Que em ouco som vão soando: —‘Eu te esconjuro, Alma perdida, Volta-te á vida! ‘Que o teu peccado, Abominado Do proprio inferno, Só tem perdão Com longa vida De penitencia, De contrição, Que a alma perdida Salve do inferno, Da maldicção. ‘Eu te esconjuro, Alma perdida, Volta-te á vida! ‘O anjo celeste Na hora última Te perdoou, E ao Pae Eterno A tua victima Por ti rogou ‘Lazaro immundo, N’esta grande hora Volve-te á vida, Vem, surge fóra!’ XIII Em pé está Dom Sisnando: Vivo está, morto parece, Tam negro veo lh’innoitece O verde-pallido rosto, Onde o seu sêllo ja pôsto Tinha o archanjo da morte. XIV De joelhos o ermitão, Com a cabeça cuberta, Á porta da tôrre aberta Faz breve e baixa oração. Eis violento repellão A terra, tremendo, deu, E d’alto abaixo a muralha Largamente se fendeu. Viram todos claramente O interior patente Em que jazia Adozinda, D’onde ha poucas horas inda Sua voz se ouviu clamar, E por uma sêde d’agua Ao seu algoz supplicar. XV N’um leito de frescas rosas, Que aromas do ceo recendem, Morta Adozinda jazia: Suas feições mais formosas, Mais angelicas resplendem. Uma suave harmonia Tam brandamente soava, Que ao coração parecia Que por piedade o affagava A quem saudoso gemia. —A alva frente, não tocada Pela mão da morte livida, De lirios do ceo coroada Brilhava com luz tam vivida Que parecia toucada De puros raios do sol. As mãos postas sôbre o peito Para o ceo se alevantavam, E como que d’alma justa Para a morada apontavam. XVI Oh! que vista, oh! que momento Para a triste mãe!—Faltava Só este último tormento. A malfadada cuidava Que nenhum padecimento Para gemer lhe sobrava! Era este.—E a dor ignora, Não sabe o que é padecer Quem o filhinho que adora Não viu ainda morrer... XVII Levantou-se o ermitão E bradou:—‘Ajoelhemos, E a mão de Deus adoremos.’ —Submissa resignação Póde a voz tolher á dor, Não tira do coração Seu espinho pungidor, Que em silencio é mais cruel, Rasga mais, e na ferida Mais acre derrama o fel. A paciencia soffrida Da triste Auzenda cedeu; Não exclamou, não gemeu, E em tributo de respeito Sua mágoa fechou no peito. XVIII E Sisnando?—O desgraçado No pó da terra humilhado, Só se lhe conhece a vida Na agitação comprimida Do convulso soluçar. XIX Para a ermida do castello Emfim o corpo levaram E n’um cofre d’ouro fino Como reliquia o guardaram. —Muito a não carpiu Auzenda, Que a morte compadecida Cedo a libertou da vida. Porêm a longa existencia De remorso e penitencia Sisnando foi condemnado: Cuberto de horror e opprobrio Cumpriu seu mesquinho fado; Onde?—Ninguem mais o soube. Do castello aquella noite Com o ermitão se sumiu; Nunca mais d’elle se ouviu. Mas á meia-noite em ponto Na capella de Landim Se ficou sempre escutando Gemer uma voz medonha, Que pede perdão bradando: E essa voz diziam todos Que era a voz de Dom Sisnando. II BERNAL-FRANCEZ Este romance é tirado de uma das mais conhecidas e provavelmente mais antigas xácaras que o povo canta. Sua contextura simples mas forte, a scena tão dramatica com que abre, o fexo sublime com que termina dão-lhe todos os characteres de poesia primitiva e grande de um povo heroico, de uma gente que tomava as coisas da vida ao serio, como a nossa era. Estou que é originariamente portuguez: não apparece em nenhum dos romanceiros castelhanos, nem na vasta collecção de Ochoa.—O texto, como o conservou a tradição oral dos povos, da-lo-hei no logar competente, segundo lh’o talhei no prefacio d’este volume[12], e demandava o systema da minha compilação: e ahi se vejam as conjecturas que tenho feito sôbre ésta preciosa reliquia da nossa poesia popular. Mr. Southey, o famoso poeta e historiador inglez, tendo lido a Adozinda e o Bernal, quando os publiquei a primeira vez em Londres em 1828, escrevia ao meu amigo Mr. Adamson, o biographo de Camões: ‘que estes eram dois monumentos de mais remota antiguidade talvez do que nenhumas d’aquellas canções irlandezas que elle até alli tivera na conta de serem os vestigios mais antigos de toda a poesia popular das nações do oeste da Europa.’ Communicando-me ésta reflexão, tam lisongeira para um collector enthusiasta de antigualhas, mandou-me o Sr. Adamson a traducção ingleza que pela primeira vez agora sai impressa, e o leitor achará logo adeante do texto portuguez[13]. No verão de 1840, quando apromptei para a presente edição ésta parte do volume, dediquei o Bernal-Francez a uma joven senhora que juntava a outras admiraveis qualidades a de possuir, no mais eminente grau que ainda incontrei, o sentimento do bello, do grande, do verdadeiro nas artes. Este romancinho era o seu valído d’entre todas as minhas escreveduras poeticas: consagrei-lh’o... Hoje é um monumento! bem pobre e mesquinho para memoria de tanta saudade! Todavia o seu desejo e impenho era que eu fizesse uma verdadeira epopea, e me deixasse d’estas coisas que nunca podiam passar de _bonitinhas_. A perda de D. Sebastião em Africa era o assumpto que me dava: dizia—e dizia bem—que devia ser o reverso da medalha dos Lusiadas, e que podia ser o mais popular e nacional de todos os poemas portuguezes depois d’aquelle. Ponho isto aqui para commentario dos versos que se seguem, e que alias não seriam intendidos. 15 de Outubro de 1842. A ADELIA Tu queres, amiga, que eu deixe Minha harpa no chopo do monte, Que nem sempre me chore e queixe, Que seja poeta... a cantar! Que da brava inculta deveza Me não fique pasmado á fonte A admirar só a natureza, Sem um brado de glória alçar! Na escarpada selvatica brenha Não se colhem senão rudes flores, Bem o sei—crescem-lhe hirtas na grenha, São singellas De fôlha e de côres, Não se toucam as bellas Com ellas: Não se infeitem jardins de formosas Com musquetas bravias e rosas! —‘Vê o nobre, magnifico traço[14] Do regrado edificio de Homero, Do mavioso Virgilio, do Tasso! (Dizes tu, maga musa d’amor) ‘E ora terno e mavioso, ora fero, Ja sublime, ja doce—o cantor De Ignez bella, feio Adamastor. Como erguendo, campea, a alta frente Sôbre todos os vates do Pindo!’ —Vejo, oh! vejo, que ésta alma ardente Ja nos voos andou seguindo Essas aguias mais remontadas... Hoje é abelha, ahi anda zumbindo Por entre agras, singellas flores Desalinhadas: Mas são flores que nascem na serra Onde todo o seu mundo se incerra, Porque ahi tem—o seu bem—seus amores. Bemfica, 12 de maio de 1840. BERNAL-FRANCEZ I Ao mar se foi D. Ramiro, Galé formosa levava; Seu pendão terror dos Mouros N’alta poppa tremolava. Oh que adeus na despedida! De saudades vai rallado; Com tantos annos de amores, Não tem um de desposado. Nem ha dama em toda a Hespanha Tam bella como é Violante; Não a houvera egual no mundo Se ella fôra mais constante. Bate o mar na barbacan Do castello alevantado, Só a vela[15] na alta tôrre Não cede ao somno pesado. Tudo o mais repousa e dorme, Tudo é silencio ao redor; Dobra o recato nas portas Com a ausencia do senhor. Mas a certa hora da noite Se vê luz n’uma setteira, E logo cruzar por perto Leve barca aventureira. Muitas noites que passaram, Manso esteja ou bravo o mar, A mesma luz, á mesma hora, A mesma barca a passar. E isto ignora o bom Rodrigo, Que tam fiel prometteu De guardar a seu senhor Juramento que lhe deu? Sabera, não sabera: Mas a c’ravella ligeira, Que aopé da torre varada Jazia alli na ribeira. Uma noite escura e feia Na praia menos se achou... Quem n’ella foi não se sabe, Mas onde foi não tornou. E o farol que no alto luz Á mesma hora a brilhar... Só a barca aventureira Não foi vista hoje passar. E d’um lado aopé da rocha Havia um falso postigo: Só o sabem D. Ramiro, Violante e o fiel Rodrigo. Mas alta noite, horas mortas, Gente que o postigo entrava, E á porta de Violante Manso bater se escutava. —‘Quem bate á minha porta, Quem bate, oh! quem ’stá ahi? —’Sou Bernal-francez, senhora, Vossa porta a amor abri.’ Ao descer do leito d’oiro A fina hollanda rasgou, Ao abrir mansinho a porta A luz que se lhe apagou: Pela mão tremente o toma, Ao seu apposento o guia: —‘Como treme, amor querido, Esta mão, como está fria!’ E com osculos ardentes E no seio palpitante, Que lhe aquece as frias mãos A namorada Violante. —‘De longe vens?’—‘De mui longe.’ —‘Bravo estava o mar!’—‘Tremendo.’ —‘Armado vens!’—Não responde. Vai-lhe as armas desprendendo. Em pura essencia de rosas O amado corpo banhou, E em seu leito regallado A par de si o deitou. —‘Meia noite ja é dada Sem para mim te voltares, Que tens tu, querido amante, Que me incobres teus pezares! ‘Se temes de meus irmãos, Elles não virão aqui; Se de meu cunhado temes, Não é homem para ti. ‘Meus criados e vassallos Por essa tôrre a dormir, Nem de nosso amor suspeitam, Nem o podem descubrir. ‘Se de meu marido temes, A longes terras andou: Por lá o detenham Mouros, Saudades ca não deixou.’ —‘Eu não temo os teus criados, Meus criados tambem são: Irmãos nem cunhado temo, São meus cunhados e irmão. ‘De teu marido não temo Nem tenho de que temer... Aqui está aopé de ti, Tu é que deves tremer.’ II E o sol ja no oriente erguido Da tôrre ameias dourava; Violante mais bella que elle Para a morte caminhava: Alva tella aspera e dura Veste o corpo delicado, Por cintura rijo esparto Em grosseiro laço atado. Choram pagens e donzellas, Que a piedade o crime esquece; O proprio offendido espôso Com tal vista se internece. Dá signal a campa triste, O algoz o cutello affia... —‘Meu senhor mereço a morte’ A malfadada dizia, ‘De joelhos, D. Ramiro, Humilde perdão vos peço, Perdoae-me por piedade... A morte não, que a mereço: ‘Da affronta que vos hei feito Por minha triste cegueira, Dae-me quitação co’a morte N’ésta hora derradeira: ‘Mas só eu sou criminosa Do aggravo que vos fiz, Não tireis, senhor, vingança D’esse misero, infeliz...’ Talvez ia perdoar-lhe O espôso compadecido... Renovou-se-lhe o odio todo, D’aquelle rôgo offendido: O semblante roxo d’ira Para não vê-la torceu, E co’ a esquerda mão alçada O fatal accêno deu. Sôbre o collo crystallino, Desmaiado, e inda tam bello, De golpe tremendo e subito Cai o terrivel cutello. III Oh! que procissão que sai Da antiga porta da tôrre! Que gente que acode a vê-la, Que povo que triste corre! Tochas de pallida cera Nas trevas da noite escura Vão dando luz baça e triste, Luz que guia á sepultura: Cubertos com seus capuzes Rezam frades ao-redor, A dobrar desintoados Os sinos causam terror... Duas noites são passadas, Já não ha luz na setteira, Mas passando e repassando Anda a barca aventureira. Linda barca tam ligeira Que nenhum mar soçobrou, O farol que te guiava, Ja não luz, ja se apagou. A tua linda Violante, O teu incanto tam bello, Teve por ti feia morte, Crua morte de cutello. Na egreja de San’Gil Ouves a campa a dobrar? Ves essas tochas ao longe? Ella que vai a interrar. Ja se fez o interramento, Ja cahiu a louza fria, Só na egreja solitaria Um cavalleiro se via; Vestido de dó tam negro, E mais negro o coração, Sôbre a fresca sepultura De rôjo se atira ao chão: —‘Abre-te, ó campa sagrada, Abre-te a um infeliz!... Seremos na morte unidos, Ja que em vida o ceu não quiz. ‘Abre-te, ó campa sagrada Que escondes tal formosura, Esconde tambem meu crime Com a sua desventura. ‘Vida que eu viver não quero, Vida que eu só tinha n’ella, Recebe-a, ó campa sagrada, Que não posso já soffrê-la.’ E o pranto de correr, E os soluços de estallar, E a mão que leva á espada Para alli se traspassar. Mas a mão gelou no punho Voz que da campa se erguia, Voz que ainda é suave e doce, Mas tam medonha e tam fria, Do sepulchro tão cortada, Que as carnes lhe arripia E a vida deixou parada: —‘Vive, vive, cavalleiro, Vive tu, que eu ja vivi; Morte que me deu meu crime, Fui eu só que a mereci. ‘Ai n’este gêlo da campa, Onde tudo é frio horror, Só da existencia conservo Meu remorso e meu amor! ‘Braços com que te abraçava Ja não teem vigor em si; Cobre a terra humida e dura Os olhos com que te vi; ‘Bôcca com que te bejava Ja não tem sabor em si; Coração com que te amava... Ai! só n’esse não morri! ‘Vive, vive, cavalleiro, Vive, vive e sê ditoso; E apprende em meu triste fado A ser pae e a ser espôso. ‘Donzella com quem casares Chama-lhe tambem Violante; Não amará mais do que eu... Mas—que seja mais constante! ‘Filhas que d’ella tiveres Ensina-as melhor que a mim, Que se não percam por homens Como eu me perdi por ti.’ VERSÃO INGLEZA I See, Don Ramiro’s galley speeds Across the heavy seas, His pennant which the moor so dreads Now flutters in the breeze. Oh! when he went, his heart was moved With grief that would not hide... To part with her he long had loved Though lately called his bride! Spain’s loveliest maids or royal queen In charms could not compare With Violante, had she been True as her form was fair. Against the castle’s flanking tower Wild beats the surging deep, And there a watch at midnight hour Would not submit to sleep: All else lulled by the breaker’s jar In slumber calm reposed, And as its lord was distant far His castle gates were closed. But lo! a bark at dead of night Alone doth swiftly glide Beneath the tower from whence a light Shines glimmering on the tide. And many a darksome night the bark, As falls that hour, returns; Through wind and wave its path to mark The signal torch-light burns. Roderigo, rouse thee up from sleep; The oath which thou didst swear To thy good lord, how canst thou keep When strangers come so near! For knowest thou not, where softest swell[16] The waves around thy strand, With sail unstretched, a caravel Remains upon the sand? Ah! in a stormy night and dark It reckless left the shore; Who was its pilot none could mark But it came back no more. Yet at the hour, the guiding light On high began to burn, ’Twas vain—no eye observed, this night, The little bark return. Far down the rugged rock that spread Its masses round the tower, Was placed a secret gate which led To Violante’s bower. Within this postern, steps were heard At night approaching near, And on her door so firmly barred A knock aroused her ear; —‘Oh! who can thus, unknown advance And knock so boldly there?’— —’Tis Bernal, lady, thine of France: He seeks thy smile to share.’ From couch of gold she reached the floor And rent her vestment gay, And as she gently opened the door It quenched her taper’s ray. His clay cold hand she seized him by And led him to her bower! —‘Love, tremble not: within our sky No clouds of sorrow lower.’ Then on her fair and glowing breast That, heaving, throbbed the more She pressed his hands: and fondly kissed His cold lips o’er and o’er. —‘Far have you come!’—‘Yes very far.’ —‘Rough was the raging sea?’ —‘It was.’—‘Why come you armed for war? Nay tell thy thoughts to me.’ She doffed his armour, and the dew Of roses, scenting wide, In liquid drops she o’er him threw And laid him by her side. —‘Twelve hours hath rung the castle bell; To her, who loves thee, turn Thy face, as thou wert wont, and tell What gives thee cause to mourn. ‘Oh! if my brothers thou dost fear, They will not come to me; My husband’s brother, were he here, Can never cope with thee. ‘My serfs and vassals, through the halls, Will sleep till morning light; Nor can they deem that, in my walls, I welcome such a knight. ‘My husband, fond of martial fray, To distant lands is gone, And may the Moors prolong his stay, Regret here left he none.’ —‘They are my own, I need not fear Those kneeling slaves of thine, Nor brothers, for the badge they wear Above their helms is mine. ‘Nor do I dread thy husband’s wrath; Know... he reposes here, Even by his lady, void of faith, ’Tis she who well may fear.’ II The sun dispelled morn’s shadows dim, And on the castle shone, When Violante, more fair than him, To meet her doom hath gone: Her lovely form, a garment long And coarse was wrapped around, A knotted rope, like cable strong, Her graceful person bound. And gushing tear drops blind the eye Of page and maiden fair; Nor are Ramiro’s lashes dry, Fresh moisture glistens there Pealed from lhe tower the signal bell, The axe was lifted high O’er Violante... Ere it fell She saw her husband nigh. —‘My lord’ she cried ‘I merit death, Yet on my bended knee, Ere from my bosom parts my breath, I pardon crave from thee. ’Tis not through blighted years to live Lamenting o’er the past, But my offense to thee, forgive, This hour is now my last. ‘On me, for I have wronged thy bed, Alone let vengeance light, Nor wreck thy rage upon the head Of Bernal, hapless knight.’ To grant her wish, Ramiro’s breast With rising pity burned, But when she urged her last request, His former hate returned. Dark lowered his brow, fierce flashed his eye, As when his faulchion brave Repelled the foe,—his left hand high The fatal signal gave. Then on that neck of grace and love, Whose blue veins shining tell The pureness of the skin above, The headsman’s weapon fell. III Forth from the castle’s ancient gate, A dread procession slow Advanced, who mourned the happless fate That laid such beauty low. Above them many a waxen torch, In darkness of the night, Shed to the chapel’s gothic porch A dim and mournful light. And hooded closely many a friar Sung prayers the bier around, The massy bells within the spire Rung forth an awful sound. Two nights had passed, no torche’s ray Illumed the testless tide, But fleetly o’er the castle bay Again the skiff did glide. Swift bark, thy pilot braved the wrath Of ocean’s wildest war, But knows not how the damp of death Has quenched his leading star. Alas the fair whose beauty lured His path across the wave, The headsman’s stroke for him endured To fill a bloody grave. Within the chapel of Saint Gil Intombed she slumbers low; See, distant torches burning still... Hark, bells are pealing slow! All now is past—lies o’er the dead The cold sepulchral stone; And, see: a knight doth ceaseless tread The echoing aisles alone. His robes are black, but woe doth shroud His heart in darker gloom; And lo, he stretches, sobbing loud, His form upon her tomb. —‘Oh! open, grave, my heart is riven, I taste delight no more, Let death unite us now, whom heaven In life asunder tore. ‘And her who calmly sleeps beneath Again to me reveal, That by her side, I may, in death, My crime with her conceal. ‘It is not, torn with inward strife, My wish to linger on, And live, when she, the very life Of all my hopes, is gone.’ Then fell his tears; his hands were clasped, And moanings of despair Burst from his heart, his blade he grasped To still the conflict there. But why inactive did he stand? A voice unearthly rose Out of the tomb, and stayed his hand Till on the hilt it froze. Like hollow gusts in winter drear, That sound, appalling, came So deep and sudden o’er his ear, It deathlike thrilled his frame. —‘Live, cavalier, though I no more Survive, let life be thine, Since for my crime the stroke I bore The fault alone was mine. ‘Cold horror dwells beneath this stone, And all I knew above Of glowing life from me is gone, Except remorse and love. ‘The arms shall clasp thy neck no more Whose shape thou oft hast praised, The eyes with earth are covered o’er— That kindly on thee gazed. ‘The mouth whose lips did revel free On thine, is senseless now; But that fond heart which beat for thee Death cannot chill its glow. ‘Live, live, Sir Knight; a soul like thine To honour should aspire; Oh! learn to be, from fate like mine, A husband and a sire. ‘And name the maiden after me Whose heart shall thee adore: Than I, more faultless she may be, But cannot love thee more. ‘And oh! instruct her daughters young That love may never sway Their hearts to ill—think how I flung For thee my life away.’ III NOITE DE SAN’JOÃO Este romance é e não é da minha simples composição. Estavam-me na saudosa memoria as vagas reminiscencias d’aquelles cantares tam graciosos com que, na minha infancia, ouvia o povo do Minho festejar a abençoada noite de San’João; estavam-me as fogueiras e as alcachofas de Lisboa a arder tambem na imaginação; e eu era muito longe de Portugal, e muito esperançado de me ver n’elle cedo: aqui está como e quando fiz ésta cantiga. Foi em San’Miguel, as antenas dos nossos navios ja levantadas para sahir a expedição;—soltámo-las ao vento d’ahi a horas... Isto escrevia-se na quinta do meu velho amigo, o Sr. José Leite, cavalheiro dos mais distinctos, e velho o mais amavel que produziu o archipelago dos Açores. Tambem alli estavam, para inspirar o poeta, uns olhos pretos de quinze annos, que promettiam arder ainda tanta noite de San’João, fazer queimar tanta alcachofa por sua conta!... Ja os cubriu a terra. Faz hoje dez annos que aquillo foi; e ainda não invelheci bastante para o esquecer. O romance é tam feito dos ditos e cantares do povo, que nem uma idea nem talvez um verso inteiro tenha que seja bem e todo meu. Por este motivo, principalmente, lhe dei logar aqui. Lisboa, 23 de Junho 1842. * * * * * Na collecção ja citada, a LUSITANIA ILLUSTRATA, part. II, pelo Sr. J. Adamson appareceu a traducção ingleza d’este romance, que vai transcripta no appendice ao LIVRO II do presente ROMANCEIRO. Sabe-se tambem de uma versão em Italiano, e de outra em Allemão, que não chegámos a ver ainda. Abril, 16—1853. OS EDITORES. NOITE DE SAN’JOÃO Té os moiros da Moirama Festejam a San’João: San’João, San’João, San’João! Dae-me peras do vosso balcão. CANTIG. POPUL. I —‘Meia noite já é dada, San’João, meu San’João, N’esta noite abençoada Ouvi a minha oração! ‘Ouvi-me, sancto bemditto, Ouvi a minha oração, Com ser eu moira nascida E vós um sancto christão: ‘Que eu ja deixei a Mafoma E a sua lei do alkorão, E só quero a vós, meu sancto, Sancto do meu Dom João. II ‘Como eu queimo ésta alcachofa Em vossa fogueira benta, Amor queime a saudade Que no peito me rebenta. ‘Como arde esta alcachofa Na vossa fogueira benta, Assim arda a negra barba Do moiro que me atormenta. ‘Como ésta fogueira abrasa A minha alcachofa benta, Ao meu cavalleiro abrase A chamma de amor violenta. III ‘Sacudi do alto do ceo Vossa capella de flores, Que n’este ramo queimado Renasçam por meus amores. Orvalhadas milagrosas Que saram de tantas dores, N’este coração, meu sancto, Acalmem os meus ardores. San’João, meu San’João, Sancto de tantos primores, N’esta noite abençoada, Oh! trazei-me os meus amores!’ IV Ja se apagava a fogueira, Ja se acabava a oração, Ainda está de joelhos A moira no seu balcão. Os olhos tinha alongados, Batia-lhe o coração: Muita fe tem aquella alma, Grande é sua devoção! Ouviu-a o sancto bemditto: Que, por sua intercessão, D’aquelle extasi acordava Nos braços de Dom João. IV O ANJO E A PRINCEZA O célebre êrro commettido pelos Settenta na traducção do _v._ 2 do cap. VI do GENESIS deu um poema inteiro a Thomaz Moore, ‘_Os Amores dos Anjos_—The Loves of the Angels’ E d’este partiu o pallido reflexo da ‘Chute d’un Ange’ que apenas animam as bellas pinturas de paizagem feitas do vivo e natural, e como de mão que as copiou nos proprios sitios: em tudo o mais o poema de Lamartine é inferior ao do Anacreonte d’Irlanda. Hoje lêmos na Vulgata:—‘Videntes filii Dei filias hominum quod essent pulchrae, acceperunt sibi uxores ex omnibus quas elegerant. O Padre Antonio Pereira verteu:—‘Vendo os filhos de Deus, que as filhas dos homens eram fermosas, tomárão por suas mulheres as que d’entrellas lhes agradárão mais.’ O Padre João Ferreira d’Almeida assim:—‘Viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram fermosas, e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram.’ Mas os Settenta não tinham intendido assim o texto hebraico, e em vez de—_filhos de Deus_, traduziram—_anjos de Deus_ (_οἰ Αγγελοι του Θεου_); êrro, que ajudado pelos commentos poeticos de Philon, e pelas ficções do apocrypho livro de Enoch, accendeu as imaginações meio pagans de Tertuliano, de Lactancio, e até de San’Clemente-Alexandrino. Seja ditto com o devido respeito a estes Padres da Egreja: nem Hesiodo nem Ovidio estenderam fábula alguma do polytheismo por maiores desvarios do que elles poetizaram acêrca d’esta ficção. Rejeitou-a todavia a maior parte dos Sanctos Padres. Deplorou-a como absurdo San’João Chrysostomo, stigmatizou-a de loucura San’Cyrillo. Segundo elles as palavras—_filhos de Deus_—querem dizer:—os _descendentes de Seth por Enos_, porque foram os primeiros que invocaram o nome do Senhor. Assim por estoutras palavras—_as filhas dos homens_—devemos intender:—_as filhas da corrupta raça de Cain_. É opinião seguida sem disputa, na egreja catholica e em quasi todas as outras, desde Sancto Thomaz até hoje. O TARGUM DE ONKELOS, que é a mais antiga das paraphrases chaldaicas, e a versão de Symacho traduziram—_os filhos dos nobres ou grandes_; a versão samaritana diz—_os filhos dos juizes_. E parece que a palavra hebraica, _Elohim_, admitte todas éstas tam desvairadas interpretações. Seja como for, d’aquelle desvio de texto e de imaginação nasceu muita poesia para os escriptores mysticos dos judeus e dos christãos primitivos e dos gnosticos e de todas essas seitas do Oriente, e porfim, em nossos dias, para os poemas de dois vates, ambos christianissimos hoje, ambos eminentemente catholicos—o francez talvez agora um tanto menos,—o inglez muito mais, principalmente depois d’essa ultima sua obra philologo-orthodoxa. Eu porêm não quiz fazer mais do que uma ‘lenda-romance’ como a comporia um menestrel da edade-media em cujas coplas os donairosos sonhos da mythologia, assim como os severos mysterios da crença, tomavam sempre os habitos sociaes do seu tempo. Jupiter era Dom Jupiter, rei de coroa na cabeça e barbas até á cinta, rodeado de condes e de pagens, servido por nobres donzellas de espartilho e toucas altas; San’Miguel e o proprio Lucifer dois cavalleiros de lança em punho e escudo imbraçado, justando em mui leal batalha n’essas nuvens, com Legiões e Potestades por mantenedores do campo;—o Olympo era um castello feudal, e o ceo uma roca-forte. Em summa, sem princezas e cavalleiros não havia poesia para elles, nem a podia haver, porque essa era a vida que elles conheciam, o bello e sublime da vida que concebiam. Por isto o tom biblico d’esta lenda ou legenda necessariamente é modificado e predominado do ar cavalheresco ou romantico, proprio de um cultor da Gaya-Sciencia. Veja-se no Cancioneiro de Rezende como, ainda no seculo XV, o nosso João Rodrigues de-Sa-e-Menezes traduzia—não tanto do latim para portuguez, quanto do romano para romance, a epistola de Laodamia. Veja-se como o proprio Sá-de-Miranda na egloga IV reconta as classicas aventuras de Cupido e Psychis,—verdadeira fonte tambem da muito romantica e trovada historia da carochinha, _A Bella e a Fera_, que toda a gente sabe—ou soube quando era pequeno. O fio da minha legenda é muito singelo. Era uma vez a filha de um rei, môça, linda, e unica herdeira do throno. Fugia das diversões e grandezas da côrte para se intregar á meditação na soledade. Adoece mortalmente emquanto el-rei seu pae anda á guerra. Volta elle triumphante e vem-n’a achar na derradeira agonia. O seu mal não o intendem os physicos. Lembra-lhes se será alguma secreta paixão d’amor. Elrei está prompto a tomar para genro seja quem for, comtanto que lhe viva a filha. Nem assim. Morre a pobre da princeza, e morre de mal d’amores. Mas como não havia de ser, se a sua fatal paixão é por um espirito—um gnomo, um sylpho, um anjo—quem sabe o quê!—talvez outro Bertrand que se apoderou d’esta Rosalia.—Ao menos, escapámos de segundo Roberto-do-diabo, porque a boa da infanta era de consciencia, e morreu antes d’isso. E d’ahi, quem sabe? seria anjo bom o que ella amava. Segundo San’Basilio, _de vera virginitate_, não póde ser; segundo Tertuliano e San’Clemente-Alexandrino ja se viu que podia ser. Campolide, 5 d’Outubro 1842. Á ILLUSTRISSIMA E EXCELLENTISSIMA SENHORA MARQUEZA DE FRONTEIRA Ésta lenda-romance foi escripta no seu album, Minha-Senhora, para cumprir uma promessa feita ha tanto tempo, e por cujo desimpenho tam retardado V. Ex.ª teve a bondade de nunca ralhar commigo. Dedico-lh’a agora que sai impressa; e é a primeira vez na vida que offereço versos ou prosas minhas a pessoa que podesse imaginar devê-lo á sua qualidade e grandeza. Será provavelmente a última, emquanto não fizer mais proselytos e imitadores o espirito verdadeiramente nobre e as maneiras verdadeiramente fidalgas que me obrigam a quebrar n’esta occasião o meu proposito tam firme e tam necessario n’esta terra. De V. Ex.ª Criado e fiel captivo ALMEIDA-GARRETT Campolide, 20 de Outubro 1842. O ANJO E A PRINCEZA ... Waft me hence to thy own sphere, Thy heaven or—ay, even _that_ with thee. MOORE, LOVES OF THE ANGELS. Oh que choros vão no paço Oh que luttos, que tristeza! Morre, morre a cada instante A nossa linda princeza. Os physicos não se intendem, Vão-se uns e outros vêem; Mas o mal que ella padece Não lh’o descobre ninguem. Nos olhos que se lhe inturvam, Ja treme a luz derradeira. Resa o officio da agonia Negro monge á cabeceira. Se inda chegará a tempo D’essas guerras d’além-mar O bom do rei, que inda possa A sua filha abraçar! A filha que elle ama tanto, Unica filha querida, A menina dos seus olhos, Bordão da cansada vida! Pois chegou. Tanto captivo, Tanto despôjo que traz!... Com victorias o inganava Fortuna, que acinte o faz. Pelas portas de palacio O real cortêjo entrava, Olha o rei a um lado e outro, Nem uma voz o acclamava... Pela filha, que não via, Não se atreve a perguntar, Mas ao quarto da princeza Foi direito sem parar: —‘Minha filha, minha filha! Que tens tu, filha querida?’ E ella abria os olhos turvos Que ja não teem quasi vida... ‘Ametade do meu reino, Da minha c’roa real, A quem salvar a princeza, Quem acertar c’o este mal.’ A éstas palavras do pae Meneia a pallida frente, Como quem diz:—‘Não o entendem, Nem cura o meu mal consente.’ —‘São pezares... não se sabe...’ Responde o physico-mor, ‘Outro mal lhe não descubro... Só se for o mal d’amor.’ Um rubor desfallecido Assomou na face lenta Que já do suor da morte Se cobria macilenta. Os olhos, que no pae tinha Cravados desde que o viu, Com mostras de pêjo e medo Para a terra os descahiu. —‘Não tenhas, filha, receio, Levanta os olhos, querida; Seja quem for, será teu: Jurei-o por tua vida. ‘Seja elle ou ricco ou pobre, Seja fidalgo ou peão, Desde já por genro o tómo, E aqui lhe dou tua mão.’ Como quem o último esfôrço De doce mágoa fazia, Com ineffavel brandura Os olhos ao pae erguia; Suave, longo suspiro D’entre os labios lhe fugiu... Era a vida que passava, Que sem dor se despediu. Foram para a amortalhar, No peito um signal lhe achavam De letras que ninguem leu, Que estranhas fórmas tomavam. Sette sabios são chamados Para haver de as deciphrar: Cada-um sette linguas sabe, Não n’as podem soletrar. Só o mais velho dos sette, Que andára na Palestina, Disse:—‘Outras letras como éstas Eu já vi n’uma ruina, ‘Junto dos cedros do Libano, Ja meio entre a terra e os ceos, Do tempo que ás filhas do homem Fallavam anjos de Deus. ‘Mas le-las não sei nem posso: Nem que soubesse, o fizera: Segredos são d’outro mundo Que, n’este, Deus não tolera.’ No alto d’aquelle monte Um alto cedro nasceu; Ou anjos o semearam, Ou foram aves do ceo, Que ali cresceu de repente, De uma noite para um dia; E outro igual em todo o reino Como aquelle não havia: Foi a noite que a princeza Alli veio a sepultar: Era um sitio seu querido Donde sohia de estar, Aonde horas esquecidas, Sósinha, de quando em quando, Com as estrellas do ceo Parecia estar fallando; E onde, uma noite sem lua Que as estrellas mais brilhavam, Houve quem visse nos ares Umas roupas que alvejavam, E descer a pouco e pouco, E aopé da infanta parar Um vulto... visão... ou sombra... Mas sombra de luz sem par: E foi desd’aquella noite Que a não viu mais rir ninguem. Anjo era o que lhe fallava... Mas se de Deus... ou de quem?... V O CHAPIM D’ELREI OU PARRAS VERDES Foi verdadeiramente reconstruida ésta xácara dos fragmentos soltos da composição popular antiga, como hoje se reconstruiria das pedras cahidas de uma tôrre velha,—não exactamente o mesmo edificio, porque o cimento, e algum inchume novo aqui ou alli, seria mister impregar—mas quasi a mesma coisa; na fórma e nos materiaes a mesmissima. Vieram-me de Evora os fragmentos por intervenção do Sr. Rivara, o habil e zeloso bibliothecario d’aquella cidade: são parte em prosa, parte em verso, estado em que alguns d’estes fósseis se desinterram ás vezes. Verifiquei depois que pelas vizinhanças de Lisboa se incontravam na mesma fórma e quasi os mesmos. Deixei-lhe com mais seguridade o titulo de xácara que trazem muitos outros de nossos romances populares, porque effectivamente creio que quadra mais aos d’esta especie de narrativa que é feita dramaticamente pelos dizeres de um e outro dos seus personagens, emquanto o poeta pouco ou nada diz epicamente elle mesmo. Nós temos, se me não ingano, no genero narrativo popular as tres especies, romance, xácara, soláo: no romance predomina a fórma epica, conta e canta principalmente o poeta; na xácara prevalece a fórma dramatica, diz o poeta pouco, ás vezes nada—fallam os seus personagens muito: o soláo é mais plangente e mais lyrico, lamenta mais do que reconta o facto, tem menos dialogo e mais carpir: ás vezes, como no soláo da Ama em Bernardim-Ribeiro, não ha senão o lamento de uma só pessoa que vai alludindo a certos successos, mas que os não conta. Apezar do que levo ditto no princípio d’estas linhas, como não posso negar que ha bastante do meu cimento no ligar e assentar das pedras velhas, e ellas eram tam poucas e tam sôltas, escrupulisei de pôr ésta peça no II livro do ROMANCEIRO paraque me não accusassem de macaquear as imposturas de Macpherson ou de Fr. Bernardo de Brito. A anecdota, que eu deixei religiosamente como a refere o povo, parece dever ter sido algum facto que realmente acontecesse:—como, quando e aonde? Não pude encontrar vestigio. É o que diz o pobre do conde, scismando: O chapim aqui o tenho, O chapim bem n’o topei: mas cujo é, e a que pé serve, só se voltar do outro mundo o dito rei para no-lo dizer. Lisboa, 27 de Março de 1843. * * * * * No appendice ao II livro do ROMANCEIRO achará o leitor a versão ingleza d’esta xácara, publicada pelo Sr. Adamson na sua LUSITANIA ILLUSTRADA, part. II. Abril, 17—1853. OS EDITORES. O CHAPIM D’ELREI OU PARRAS VERDES I Verdes parras tem a vinha, Riccas uvas n’ella achei, Tam maduras, tão coradas... Estão dizendo ‘comei!’ —‘Quero saber quem n’as guarda; Ide, mordomo, e sabei:’ Disse o rei ao seu mordomo. Mas porque o dizia o rei? Porque viu n’aquelle monte —E como elle o viu não sei’— Essa donna imparedada, Não se sabe por que lei, Que por seu mal é condessa, Condessa de Valderey: Antes ser pobre e villan, Antes pela minha fei[17]! Verdes parras tem a vinha: Uvas que lhe víra el-rei Tam maduras, tão coradas, Estão dizendo ‘comei!’ II Veio o mordomo do monte: —‘Boas novas, senhor rei! A vinha anda bem guardada, Mas eu sempre lá entrei. ‘O dono foi-se a outras terras, Quando volverá não sei; A porta é velha, e a porteira Com chave de ouro a tentei. ‘Serve a chave á maravilha, Tudo porfim ajustei: Ésta noite á meia-noite Comvosco á vendima irei.’ —‘Valeis um reino, mordomo, Grandes mercês vos farei: Ésta noite á meia-noite Riccas uvas comerei.’ A vinha tem parras verdes, Madura a uva lhe achei; E tam madura, tam bella, Que está dizendo ‘comei!’ III Ao pino da meia-noite Foi mordomo e foi o rei: Doblas que deram á velha, Um conto que nem eu sei. —‘Mordomo ficae á porta, Á porta que eu entrarei; Não me saltem cães na vinha Em quanto eu vendimarei.’ A porteira o que lhe importa É a dá-me que te darei... No camarim da condessa Veis agora entrar o rei. Levava um candil acceso; Era de prata, sabei: Não ha senão prata e oiro Na casa de Valderey. Da vinha as parras são verdes As uvas maduras sei, São tão coradas, tão bellas... D’ellas—quando comerei! IV No camarim da condessa Tudo andava á mesma lei, Era o ceo d’aquelle anjo: Que mais vos diga não sei. Riccas sedas de Millão, Toalhas de Courteney... Tremia o rei—se era susto, Se era de gôsto não sei. Cortinas de seda verde Vai ergo não erguerei... Tal clarão lhe deu na vista, Como não cahiu não sei. Era uma tal formosura... Ora que mais vos direi? Outro primor como aquelle Não vistes nem eu verei. Verdes parras tem a vinha, Riccas uvas lhe avistei, Tam formosas, tam maduras, Estão dizendo ‘comei!’ V Dormia tam descançada Como eu no ceo dormirei Quando for tam innocente... Jesus! se eu lá chegarei! De joelhos toda a noite Alli fica o bom do rei, Pasmado a olhar para ella Sem bulir nem mão nem pei[18]. E dizia:—‘Senhor Deus! Perdoae-me o que já pequei, Mas este anjo de innocencia Não sou eu que offenderei. Tem verdes parras a vinha; Lindas uvas que eu lhe achei, Tenho medo que me travem... D’ellas, ai! não comerei. VI Ja vinha arraiando o dia, E elle, como vos contei, Ouve apitar o mordomo... —‘Jesus, senhor, me valei!’ Era o signal ajustado —Vindo o conde, apitarei— Deixou cahir as cortinas Dizendo:—‘Não vendimei!’ Lindas parras tem a vinha, Bellas uvas n’ella achei; Mas doeu-me a consciencia, Das uvas não comerei. VII Deita a correr com tal pressa Que voava o bom do rei: —‘Ai que perdi um chapim...’ —‘Tomae, que um meu vos darei: ‘Mas nem um instante mais, Que o conde ja avistei Descendo d’aquella altura; Se nos colherá não sei...’ Era o medo do mordomo: Outro era o medo do rei. Qual d’elles tinha razão Agora vo-lo direi. Parras verdes viu na vinha, Uvas maduras de lei; Foi travo da consciencia, Diz:—‘D’ellas não comerei.’ VIII Chega o conde á sua tôrre, O conde de Valderey, Topou n’um chapim bordado... Como ficou não direi. Vai-se ao quarto da condessa: —‘Morrerá, mattá-la-hei.’ Viu-a dormir tão serena: —‘Jesus! não sei que farei!’ Corre a casa ao derredor: —‘Deus me tenha em sua lei, Que ou ésta mulher é bruxa Ou eu c’o chapim sonhei! ‘O chapim aqui o tenho, O chapim bem n’o topei... Mas que durma assim tão manso Quem tal fez, não n’o crerei.’ Entrou a scismar n’aquillo: —‘Valha-me Deus! que farei? Por menos fica homem doudo; E eu como o não ficarei?’ Minha vinha tão guardada! Uvas que n’ella deixei Não é fructa que se conte... Da que me falta não sei.’ IX Foi-se fechar no mais alto Da tôrre de Valderey: —‘Não quero comer do pão, Nem do vinho beberei; ‘Minhas barbas e cabellos Tambem mais os não farei, Que ésta verdade não saiba D’aqui me não tirarei.’ Verdes parras d’essa vinha, Uvas que eu não comerei, Ficae-vos sêccas embora, Que eu já’gora—morrerei. X Por tres dias e tres noites Que se guarda aquella lei; Clama a triste da condessa: —‘Ao seu mal que lhe farei!’ De quem foi ella valer-se? Agora vo-lo direi. Foi lastimar-se a innocente... Onde iria?—ao proprio rei. —‘Ide, condessa, ide embora, Que eu remedio lhe darei; O segredo do seu mal Sei-o eu... Se o saberei? ‘Palavra de cavalleiro Em lealdade vos darei, Que ou elle hade ser quem era, Ou eu, quem sou, não serei.’ As verdes parras da vinha, As uvas que eu cubicei, Ellas a travar-me n’alma... E mais d’ellas não provei! XI Fôra d’alli a condessa, Não tardou em ir o rei: —‘Quero ouvir o que elles dizem, A ésta porta escutarei.’ Ouviu uma voz celeste Como tal nunca ouvirei, Cantando em doce toada Este triste vireley: —‘Já fui vinha bem cuidada, Bem querida, bem trattada: Como eu medrei! Ora não sou nem serei: O porquê não sei Nem n’o saberei!’ Com as lagrimas nos olhos Foi d’alli o bom do rei: —‘Oiçamos agora o outro, E o que sabe, saberei!’ —‘Minha vinha tam guardada! Quando n’ella entrei Rastos do ladrão achei; Se me elle roubou não sei: Como o saberei?’ Era o conde a lastimar-se. Surrindo dizia o rei (Se era de si ou do conde Que elle se ria não sei): —‘Eu fui que na vinha entrei, Rastos de ladrão deixei, Parras verdes levantei, Uvas bellas N’ellas—vi: E assim Deus me salve a mi Como d’ellas Não comi!’ XII A porta tinha uma fresta: Tirou o chapim do pei[19], Atirou-lh’o para dentro, Disse-lhe:—‘Vêde e sabei.’ Do mais que alli succedeu Para que vos contarei? O conde soube a verdade, E o rei soube—ser rei. Verdes parras tem a vinha, Riccas uvas lá deixei: Quem m’a guardou foi o medo... De Deus e da sua lei. VI ROSALINDA É verdadeiramente sublime, tem toda a frescura viçosa das imagens da poesia primitiva, a com que termina este romance. Tudo o que ha de asqueroso n’uma sepultura desapparece do tumulo em que amor desfolhou os seus goivos: alli não ha corrupção nem vermes: uma bella árvore, um rosal florido reproduzem em ‘novas e mudadas fórmas’ os corpos de dois amantes. A vida não acabou, mudou só; e nem mudou tanto, que a vegetal seiva d’esses ramos não ferva ainda do mesmo ardor que ja animou aquelle sangue. Tendem umas para as outras as apaixonadas vergonteas; cortam-n’as e ellas recrescem, e vão-se abraçar como duas palmeiras namoradas. Sente-se aqui o BELLO, sente-o qualquer porque é bello devéras. Assim se popularizou ésta imagem e fez a volta da Europa, que a achâmos nos romances e soláos de quantos povos entraram na grande communhão romano-celtica, romano-theutonica, ou celto-theutonica:—talvez seja o modo mais exacto de dizer, este último. O romance _Prence Robert_, publicado por Sir Walter Scott, da tradição oral das raias d’Escocia[20], remata com éstas coplas: The tane was buried in Marie’s kirk The tother in Marie’s quair; And out o’the tane there spring a birk, And out o’the tother a brier. And thae twa met, and thae twa plat, The birk but and the brier; And by that ye may very weel ken They were twa lovers dear. Cito éstas coplas escocezas por serem as que mais se parecem com as do nosso romance: ha muitos outros parallelismos, mais ou menos approximados, nos romanceiros e cancioneiros de quasi todas as linguas. Não é possivel descubrir hoje onde nasceu a idea original; no portuguez é onde ella está mais lindamente expressada e com mais ‘sentimento.’ Na famosa historia de Dom Tristam, apontada a este proposito por Sir W. Scott, occorre a mesma imagem. ‘_Ores veitil que de la tumbe de Tristam yssait une belle ronce verte et feuilleuse, qui aleoit par la chapelle, et dêscendoit le bout de la ronce sur la tumbe d’Isseult, et entroit dedans._’ Tres vezes cortaram a milagrosa planta, mas, continúa o bom do historiador, Rusticien de Puise, ‘_le lendemain estoit aussi belle comme elle avoit cydevant été, et ce miracle estoit sur Tristam et sur Ysseult à tout jamais advenir_.’ É um ponto luminoso para as indagações philologicas na historia das linguas modernas—ou da sua poesia, que é a mesma coisa. É para mais ainda; porque a historia do homem, por aqui a hade começar a estudar quem verdadeiramente a quizer saber. Eu fiz este romance de tres fragmentos diversos, tam fragmentos que nenhum d’elles per si se intendia bem. O primeiro appareceu-me inserido no de Eginaldo, Reginaldo—ou Girinaldo, como diz em muitas partes o povo. O segundo e terceiro involtos com o de Claralinda ou Clara-lindes, que os castelhanos chamam _Clara-niña_, e ao romance o do conde Claros. No logar competente do cancioneiro darei esses romances que hoje tenho restituidos pela collação de outros fragmentos e de melhores cópias que depois me vieram[21]. Campolide, 8 de Setembro 1843. * * * * * Tambem na LUSITANIA ILLUSTRATA vem a traducção ingleza d’este romance que vai copiada no appendice á II parte do LIVRO II do nosso ROMANCEIRO. Aqui damos agora o bello estudo e versão franceza de M. Edouard Fournier sôbre a Rosalinda, que se publicou em Paris em 1852. Abril, 16-1853. OS EDITORES. ROSALINDA Era por manhã de maio, Quando as aves a piar, As árvores e as flores, Tudo se anda a namorar; Era por manhã de maio, Á fresca riba de mar, Quando a infanta Rosalinda Alli se estava a toucar. Trazem das flores vermelhas, Das brancas para a infeitar; Tam lindas flores como ella Não n’as poderam achar: Que é Rosalinda mais linda Que a rosa, que o nenuphar, Mais pura que a açucena Que a manhan abre a chorar. Passava o conde almirante Na sua galé do mar; Tantos remos tem por banda Que se não podem contar; Captivos que a vão remando A Moirama os foi tomar; D’elles são grandes senhores, D’elles de sangue real: Que não ha moiro seguro Entre Ceuta e Gibraltar Mal sai o conde almirante Na sua galé do mar. Oh que tam linda galera, Que tam certo é seu remar! Mais lindo capitão leva, Mais certo no marear. —‘Dizei-me, o conde almirante Da vossa galé do mar, Se os captivos que tomais Todos los fazeis remar?’ —‘Dizei-me, a bella infanta, Linda rosa sem egual, Se os escravos que lá tendes Todos vos sabem toucar?’ —‘Cortez sois, Dom Almirante: Sem responder, perguntar!’ —‘Responder, responderei, Mas não vos heisde infadar: ‘Captivos tenho de todos, Mais bastos que um aduar; Uns que mareiam as velas, Outros no banco a remar: ‘As captivas que são lindas Na poppa vão a dançar, Tecendo alfombras de flores Para o senhor se deitar.’ —‘Respondeis, respondo eu, Que é boa lei de pagar: Tenho escravos para tudo, Que fazem o meu mandar; ‘D’elles para me vestir, D’elles para me toucar... Para um só tenho outro imprêgo, Mas está por captivar... —‘Captivo está, tam captivo Que se não quer resgatar. Rema, a terra a terra, moiros, Voga certo, e a varar!’ Ja se foi a Rosalinda Com o almirante a folgar: Fazem sombra as larangeiras, Goivos lhe dão cabeçal. Mas fortuna, que não deixa A nenhum bem sem dezar, Faz que um monteiro d’elrei Por alli venha a passar. —‘Oh monteiro, do que viste, Monteiro, não vás contar: Dou-te tantas bolsas de oiro Quantas tu possas levar.’ Tudo o que viu o monteiro A elrei o foi contar, A casa da estudaria Onde elrei stava a estudar. —‘Se á puridade o disseras, Tença te havia de dar: Quem taes novas dá tam alto, Alto hade ir... a inforcar. ‘Arma, arma, meus archeiros Sem charamellas tocar! Cavalleiros e piões, Tudo á tapada a cercar.’ Inda não é meio dia, Começa a campa a dobrar; Inda não é meia noite, Vão ambos a degollar. Ao toque de ave-marias Foram ambos a interrar: A infanta no altar mor, Elle á porta principal. Na cova da Rosalinda Nasce uma árvore real, E na cova do almirante Nasceu um lindo rosal. Elrei, assim que tal soube, Mandou-os logo cortar, E que os fizessem em lenha Para no lume queimar. Cortados e recortados, Tornavam a rebentar: E o vento que os incostava, E elles iam-se abraçar. Elrei, quando tal ouviu, Nunca mais pôde fallar; A rainha, que tal soube, Cahia logo mortal. —‘Não me chamem mais rainha, Rainha de Portugal... Apartei dous innocentes Que Deus queria juntar!’ ÉTUDES SUR LA ROSALINDA Les rapports entre la littérature française et la littérature portugaise, au moyen-âge, furent plus grands et plus directs que l’éloignement des deux pays ne le donnerait à penser. M. Raynouard a été des premiers à le remarquer; il ne s’est même pas borné à une simple constatation du fait, il l’a appuyé de toutes sortes de preuves. Afin même de montrer complètement combien la langue portugaise se rapprochait de la langue romane, il a été jusqu’à traduire dans la langue des troubadours, une petite pièce du Camoëns[22]. Épreuve triomphante! car à quelques syllabes près, les deux pièces, l’original et la traduction, se sont trouvés les mêmes. Il n’y a pas plus complète identité contre les _Noei_ en patois bourguignon et la très facile traduction française que tout le monde peut en faire. Qu’on en juge par la seconde des deux strophes: PORTUGAIS LANGUE DES TROUBADOURS Melhor deve ser Melhor deu esser N’este aventurar En est aventurar Ver e não guardar Vezer e no guardar Que guardar e ver. Que guardar e vezer. Ver e defender Vezer e defender Muito bom seria, Molt bon seria, Mas quem poderia? Mas qui poiria? Dans tout cela, je le répète, il n’y a pas une syllabe qui ne soit sœur de celle qui la traduit. Les mots qui servaient à designer les diverses sortes de pièces de poésie étaient les mêmes pour les poëtes portugais et pour les poëtes de la langue romane. Ceux-ci, par exemple, avaient le _lai_ qui correspondait directement au _leod_ allemand et au _laoi_ des Irlandais; ceux-là, Portugais et Espagnols, avaient le _loa_. La même chose sous le même mot. Une autre espèce de poëme s’appelait _dict_ chez les trouvères, et les Portugais le connaissaient aussi sous un nom presque pareil. Dans la _Carta del marquès de Santillana_, se lit cette phrase par laquelle se trouvent indiqués ces _dicts_ en langue portugaise: ‘Cantigas serranas, e _dicires_ Portugueses e Gallegos.’ Pour exprimer la rime dans toute sa primitivité native, mais mélodieuse, nous avions le mot _assonnance_ qui est resté, et le verbe _assonner_ qui n’a malheureusement pas eu le même sort. Les Espagnols et les Portugais avaient de même le verbe _asonar_ qu’ils étendaient jusqu’au sens de l’expression ‘_mettre en musique_[23].’ Enfin, il n’est pas jusqu’au mot _troubadour_ qui ne se retrouve à peine modifié dans la langue portugaise. Tantôt c’est _trobar_, tantôt c’est _trobador_. Le premier de ces mots se trouve dans ce vers des _Fragmentos de hum Cancioneiro inedito_[24]: Et por que m’ora quitey de trobar, et le second, aux fol. 91 et 101 du même recueil. Ces similitudes ne se retrouvent pas seulement dans les idiomes, mais encore dans le génie des deux nations. On voit par les œuvres qu’ont laissées leurs poëtes que toutes deux puisent aux mêmes sources et se renvoient mutuellement l’inspiration. Mais elle vient surtout des troubadours, il faut bien le dire; et quand nous avons appris que le roi de Portugal Diniz prit pour maître en l’art des vers le troubadour de Cahors, Aymeric d’Ebrard, qui lui apprit à faire même des vers provençaux, et qui reçut en récompense l’archevêché de Lisbonne où il fonda la fameuse université transportée en 1308 à Coïmbre; nous n’avons pas été surpris. À cette époque déjà, tous les bons maîtres venaient de France. Pour preuve de la communauté d’inspiration des poëtes portugais et des troubadours, nous citerons deux exemples. Une chanson portugaise que nous lisons au fol. 78 du recueil rarissime cité tout-à-l’heure sera le premier. On la trouva ainsi traduite dans les _Prolégomènes de l’Histoire de la Poésie scandinave_, par M. Edelestand Du Méril[25]. ‘Par Dieu! ô dame Léonor, notre Seigneur fut bien prodigue pour vous. ‘Vous me semblez si belle, ô dame, que jamais je n’en vis d’aussi belle et je vous dis une grande vérité, telle que je n’en sais pas de plus vraie. Par Dieu, ô dame Léonor, notre Seigneur fut bien prodigue pour vous. ‘Et Dieu, qui vous tient en sa puissance, vous combla si généreusement de ses dons, qu’il n’est rien au monde qui puisse ajouter à votre mérite. Par Dieu, ô dame Léonor, notre Seigneur fut bien prodigue pour vous. ‘En vous créant, Madame, sa puissance montra tout ce qu’il était capable de réunir en une dame de mérite, de beauté et d’esprit. Par Dieu, ô dame Léonor, notre Seigneur fut bien prodigue pour vous. ‘Comme brille le bon rubis au milieu des perles, vous brillez entre toutes celles que j’ai jamais vues, et c’est pour moi qui suis épris de tant d’amour que Dieu vous a créée. Par Dieu, dame Léonor, notre Seigneur fut bien prodigue pour vous.’ Notre second exemple será ce chant charmant de la Rosalinda. M. de Almeida-Garrett, avec ce tact exquis et cet haut goût archéologique qui le placent à la tête des poëtes les mieux inspirés et en même temps les plus érudits du Portugal, a retrouvé dans les vieilles traditions du peuple lusitain, et reconstruit d’après trois différents fragments, les meilleures variantes de ce chant depuis si longtemps populaire. Le poëte se trouve à chaque vers de cette chanson telle qu’il l’a rétablie, et l’érudit à chaque ligne de l’introduction historique dont il l’a fait précéder. Jamais en n’a mieux prouvé que dans cette préface savante, les rapports poétiques qui existèrent au moyen-âge entre les races du midi et celles du nort. Où M. Garrett trouve-t-il, en effet, le premier germe de la poétique image qui couronne la ballade portugaise? Dans les chants écossais, dans la romance du _Prince Robert_, telle que la tradition orale l’avait transmise a Walter-Scott pour son _Minstrelsy of the scottish border_ etc.[26]; ou bien encore dans cette fameuse histoire de Tristam et de la belle Iseult, par Rusticien de Puise, dont il cite, d’après Walter-Scott, de trop courts fragments... Ces détails miraculeux de l’histoire d’Iseult se retrouvent dans les dernières strophes de la _Rosalinda_[27]. On le verra, du reste, par la traduction complète que nous en avons tentée. Elle est en vers souvent inélégants et mal rimés, mais exacts, je crois, et serrant du plus près qu’il est possible la strophe portugaise, bien que dans un rhythme différent. Pour nous excuser des rimes insuffisantes et des mots vieillis, nous dirons que s’ils sont de mise quelque part, c’est dans un chant populaire, et nous alléguerons, à qui ne nous le pardonnerait pas, l’enthousiasme du morose Alceste pour cette vieille chanson du _roi Henri_, qui cependant est pleine de ces mêmes défauts. Ce qu’il dit pour les excuser devra nous justifier nous-même, et c’est l’un des vers que Molière lui prête que nous servira d’épigraphe. ROSALINDA BALLADE PORTUGAISE La rime n’est pas riche et le style en est vieux[28] MOLIÈRE, _Misanthrope_. C’était un matin de mai, Quand l’oiseau dans la nuée, L’arbre au bois, la fleur au pré, Chantent l’amour réveillée. C’était un matin de mai, Quand Rosalinda l’infante Sur le rivage embaumé Peignait sa tête charmante. Blanches fleurs on lui portait, Rouges fleurs avec leur branche: Mais en grâce elle passait Et la fleur rouge et la blanche. Mieux que celle des épis, Mieux que la rose nouvelle, Le nénuphar et le lis La belle infante était belle. Le comte amiral passait Avec sa galère sombre Mainte rame s’y pressait Tant, qu’on n’en sait pas le nombre. Les captifs ses noirs rameurs Il les prit au pays More. Tous, ils sont de grands seigneurs, Ou du sang royal encore. Depois Ceuta, pas un port Qui ne redoute la guerre Quand le comte amiral sort Avec sa noire galère. Voyez, comme elle fend l’eau, Comme on y rame em mesure! Que son capitaine est beau, Que sa main est forte et sûre! —‘Dites moi, comte amiral, Pour ces captifs, votre prise, Le labeur, est-il égal? Rament-ils tous, sous la brise? —‘Vous que je vois se mirer, Belle infante, fleur d’élite, Savent-ils, tous vous parer Ces esclaves, votre suite?’ —‘L’amiral est peu galant, Pour réponse une demande! Qu’il parle, il se peut pourtant Que sa réponse on lui rende.’ —‘Ainsi qu’un chef d’Adouar, J’ai bien des captifs, madame, Du travail tous ont leur part, L’un manœuvre et l’autre rame. ‘Les captives au beau front Dansent, effeuillant la rose, Et de fleurs jonchent le pont, Pour que leur maître y repose. —‘Vous répondez, je vous dois Comte, égale politesse: J’ai, dociles à ma voix, Esclaves de toute espèce. ‘L’un est là pour m’atourner Et cet autre me fait brave (belle). Un emploi reste à donner, Où manque encor un esclave... —‘Cet esclave il est trouvé, Il défend qu’on le libère; Il ne veut qu’être arrivé, Ramez vite, allons à terre! Et Rosalinda partit: Et le comte est avec elle, Les fleurs leur prêtent un lit, L’oranger sa verte ombelle. Mais le sort,—c’est là sa loi— Ne veut qu’un bien sans mal vienne: Là, passe un veneur du roi... C’est ce destin qui l’amène. —‘De tout ce qui tu vis là, Ne conte rien à personne, Veneur, on te donnera De l’or à payer un trône.’ Mais ce que le veneur sait, Près du roi vite il s’en vante, Qui dans son palais était, Et qui pensait à l’infante. —‘En honneur dis chaque mot Tu recevras récompense Mais qui dit haut, ira haut, C’est-à-dire à la potence.’ ‘Vite, archers, vite clairons, Sonnez, comme pour combattre, Nobles, cavaliers, piétons Vite, allons la forêt battre.’ Midi n’était pas frappé Que sonne un glas mortuaire, Minuit n’avait pas tinté Que leur tête était par terre. Quand l’Angelus vint après Dans leur fosse on les emporte, Elle au maître-autel, lui près Des marches de la grand’ porte. Voilà qu’au premier tombeau Nait un noble et puissant arbre, Quand un rosier grand et beau Pousse auprès du second marbre. —‘Ça qu’on les lie en fagot Pour en faire de la cendre,’ Cria le vieux roi, sitôt Que la chose il put apprendre. Mais on eut beau les raser, Chacun à l’envi repousse; Même, ils semblent se baiser Sous la bise qui les pousse. Au roi l’on a révélé Cette aventure inouie. Depuis, il n’a plus parlé; La reine est évanoui. D’elle on a pu retenir Ces mots: ‘Je ne suis plus reine! Dieu voulait les réunir, Nous avons rompu leur chaîne!’ VII MIRAGAIA É a terceira vez que se imprime o romance MIRAGAIA; só agora porêm vai restituido ao seu devido logar n’este primeiro livro do ROMANCEIRO. Publicou-se primeiramente no ‘Jornal das Bellas-artes[29],’ foi logo vertido em Inglez não sei por quem, e não me lembra em que publicação appareceu, nem o acho. Traduziu-o em Francez um curioso[30]; e não me metto a appreciar a que elle modestamente chama ‘imitação’ do meu romance; dou-a em appendice. Tambem sei que existe uma versão castelhana pelo Sr. Isidoro Gil, o mesmo que n’esse idioma traduzira o BERNAL-FRANCEZ. Creio que se publicou em um jornal de Madrid, mas não a vi nunca. Eu, quando dei esta bagatella aos Srs. editores do ‘Jornal das Bellas-artes’ para encherem algum vão que lhes sobrasse n’aquella sua linda e elegante publicação, escrevi, a um canto do proprio rascunho original que não tive paciencia de copiar, as seguintes palavras: ‘Este romance é a verdadeira reconstrucção de um monumento antigo. Algumas coplas são textualmente conservadas da tradição popular, e se cantam no meio da historia ‘rezada’ ainda hoje repettida por velhas e barbeiros do logar. O conde D. Pedro e os chronistas velhos tambem fabulam cada um a seu modo sôbre a legenda. O auctor, ou, mais exactamente, o recopilador, seguiu muito pontualmente a narrativa oral do povo, e sôbre tudo quiz ser fiel ao stylo, modos e tom de contar e cantar d’elle; sem o quê, é sua íntima persuasão que se não póde restituir a perdida nacionalidade á nossa litteratura.’ O postscriptum, servindo de nota ao commento, sahiu impresso no referido jornal, e foi ampliado com algumas observações por extremo lisongeiras dos Srs. editores, a quem muito desejei auxiliar como elles mereciam por sua gentil imprêza, que era a mais bella e das mais uteis que se teem commettido em Portugal. Devo ao seu favor, não só o terem adornado a minha MIRAGAIA com as lindas gravuras em madeira que todos admiraram, mas o permittirem que se fizesse com ellas a pequena edição em separado com que quiz brindar alguns amigos, apaixonados, como eu, de nossas antigualhas populares. Era uma folha avulsa do meu ROMANCEIRO, e n’elle vai reposta agora que se offerece tempo e logar conveniente. Foi das primeiras coisas d’este genero em que trabalhei: e é a mais antiga reminiscencia de poesia popular que me ficou da infancia, porque eu abri os olhos á primeira luz da razão nos proprios sitios em que se passam as principaes scenas d’este romance. Dos cinco aos dez annos de edade vivi com meus paes n’uma pequena quinta, chamada ‘O Castello’ que tinhamos áquem Doiro, e que se diz tirar esse nome das ruinas que alli jazem do castello mourisco. Na ermida da quinta se venerava uma imagem antiquissima de Nossa-Senhora com a mesma invocação ‘do Castello,’ e com a sua legenda popular tambem, segundo o costume. Com os olhos tapados eu iria ainda hoje achar todos esses sitios marcados pela tradição. Muita vez brinquei na fonte do rei Ramiro, cuja agua é deliciosa comeffeito; e tenho idea de me ter custado caro, outra vez, o imitar, com uma gaita da feira de San’Miguel, os toques da bozina de S. M. Leoneza, impoleirando-me, como elle, n’um resto de muralha velha do castello d’elrei Alboazar: o que meu pae desapprovou com tam significante energia, que ainda hoje me lembra tambem. Assim ólho para ésta pobre MIRAGAIA como para um brinco meu de criança que me apparecesse agora; e quero-lhe—que mal ha n’isso?—quero-lhe como a tal. Não a julguem tambem por mais, que o não vale. Lisboa, 24 de Janeiro 1847. MIRAGAIA CANTIGA PRIMEIRA Noite escura tam formosa, Linda noite sem luar, As tuas estrellas de oiro Quem n’as poderá contar! Quantas folhas ha no bosque, Areias quantas no mar?... Em tantas lettras se escreve O que Deus mandou guardar. Mas guai do homem que se fia N’essas lettras deciphrar! Que a ler no livro de Deus Nem anjo póde atinar. Bem ledo está Dom Ramiro Com sua dama a folgar; Um perro bruxo judio Foi causa de elle a roubar. Disse-lhe que pelos astros Bem lhe podia affirmar Que Zahara, a flor da belleza, Lhe devia de tocar. E o rei veio de cilada D’alêm do Doiro passar, E furtou a linda moira, A irman d’Alboazar. A Milhor, que é terra sua E está na beira do mar, Se acolheu com sua dama... Do mais não sabe cuidar. Chora a triste da rainha, Não se póde consolar; Deixá-la por essa moira, Deixá-la com tal dezar! E a noite é escura cerrada, Noite negra sem luar... Ella sósinha ao balcão Assim se estava a queixar: —‘Rei Ramiro, rei Ramiro, Rei de muito mau pezar, Em que te errei d’alma ou corpo, Que fiz para tal penar? ‘Diz que é formosa essa moira, Que te soube infeitiçar... Mas tu dizias-me d’antes Que eu era bella sem par. ‘Que é môça, na flor da vida... Eu, se ainda bem sei contar, Ha tres que tinha vinte annos, Fi-los depois de casar. ‘Diz que tem os olhos pretos, D’estes que sabem mandar... Os meus são azues, coitados! Não sabem senão chorar. ‘Zahara, que é flor, lhe chamam, A mim, Gaia... Que acertar! Eu fiquei sem alegria, Ella a flor não torna a achar. ‘Oh! quem podéra ser homem, Vestir armas, cavalgar, Que eu me fôra ja direita A esse moiro Alboazar...’ Palavras não eram dittas, Os olhos foi a abaixar, Muitos vultos acercados Ao palacio viu estar; —‘Peronella, Peronella, Criada do meu mandar, Que vultos serão aquelles Que por alli vejo andar?’ Peronella não responde; Que havia de ella fallar? Ricas peitas de oiro e joias A tinham feito callar. A rainha que se erguia Por sua gente a bradar, Sette moiros cavalleiros A foram logo cercar; Soltam prégas de um turbante, A bôcca lhe vão tapar: Tres a tomaram nos braços... Nem mais um ai pôde dar. Criados da sua casa Nenhum veio a seu chamar; Ou peitados ou captivos Não n’a podem resgatar. São sette os moiros que entraram Sette os estão a aguardar; Não fallam nem uns nem outros... E prestes a cavalgar! Só um, que de arção a toma, Parece aos outros mandar... Junctos junctos, certos certos, Galopa a bom galopar! Toda a noite, toda a noite Vão correndo sem cessar, Pelos montes trote largo, Por valles a desfilar. Nos ribeiros—peito n’agua, Chape, chape, a vadear! Nas defesas dos vallados Up! salto—e a galgar! Vai o dia alvorocendo, Estão á beira do mar, Que rio é este tam fundo Que n’elle vem desaguar? A bôcca ja tinha livre, Mas não acerta a fallar A pasmada da rainha... Cuida ainda de sonhar! —‘Rio Doiro, rio Doiro, Rio de mau navegar, Dize-me, essas tuas aguas Adonde as foste buscar; ‘Dir-te-hei a perola fina Aonde eu a fui roubar. Ribeiras correm ao rio O rio corre a la mar, ‘Quem me roubou minha joia, Sua joia lhe fui roubar...’ O moiro que assim cantava, Gaia que o estava a mirar... Quanto o mais mirares, Gaia, Mais formoso o hasde achar. —‘Que de barcos que alli vêem!’ —‘Barcos que nos vêem buscar.’ —‘Que lindo castello aquelle!’ —‘É o do moiro Alboazar.’ CANTIGA SEGUNDA Rei Ramiro, rei Ramiro, Rei de muito mau pezar, Ruins fadas te fadaram, Má sina te foram dar. Do que tens não fazer conta, O que não tens cubiçar!.. Zahara, a flor dos teus cuidados, Ja te não dá que pensar. A rainha, que era tua, Que não soubeste guardar, Agora morto de zelos Do moiro a queres cobrar. Oh! que barcos são aquelles Doiro acima a navegar? A noite escura cerrada, E elles mansinho a remar! Cozeram-se com a terra, Lá se foram incostar; Entre os ramos dos salgueiros Mal se podem divisar. Um homem saltou na praia: Onde irá n’aquelle andar? Leva bordão e esclavina, Nas contas vai a rezar. Inda a névoa tolda o rio, O sol ja vem a rasgar, Pela incosta do castello Vai um romeiro a cantar: —‘Sanctiago de Galliza, Longe fica o vosso altar: Peregrino que lá chegue Não sabe se ha de voltar.’ Na incosta do castello Uma fonte está a manar; Donzella que está na fonte Pôs-se o romeiro a escutar. A donzella está na fonte, A jarra cheia a deitar: —‘Bemditto sejais, romeiro, E o vosso doce cantar! ‘Por éstas terras de moiros É maravilha de azar, Ouvir cantigas tam sanctas, Cantigas do meu criar. ‘Sette padres as cantavam Á roda de um bento altar; Outros sette respondiam No côro do salmear, ‘Entre véspera e completas, E os sinos a repicar. Ai triste da minha vida Que os não oiço já tocar! ‘E as rezas d’estes moiros Ao démo as quizera eu dar.’ Ouvireis ora o romeiro Resposta que lhe foi dar: —‘Deus vos mantenha, donzella, E o vosso cortez fallar: Por éstas terras de moiros Quem tal soubera de achar! ‘Por vossa tenção, donzella, Uma reza heide rezar Aqui aopé d’esta fonte, Que não posso mais andar. ‘Oh! que fresca está a fonte, Oh! que sêde de mattar! Que Deus vos salve, donzella, Se aqui me deixais sentar.’ —‘Sente-se o bom do romeiro, Assente-se a descansar. Fresca é a fonte, doce a agua, Tem virtude singular: ‘D’outra não bebe a rainha Que aqui m’a manda buscar Por manhanzinha bem cêdo, Antes do o sol aquentar.’ —‘Doce agua deve de ser, De virtude singular: Dae-me vós uma vez d’ella, Que me quero consolar.’ —‘Beba o peregrino, beba Por ésta fonte real, Cântara de prata virgem, Tem mais valor que oiro tal.’ —‘Dona Gaia que diria, Que faria Alboazar Se visse o pobre romeiro Beber da fonte real?..’ —‘Inda era noite fechada Meu senhor foi a caçar: Maus javardos o detenham, Que é bem ruim de aturar! ‘Minha senhora, coitada, Essa não tem que fallar: Quem ja teve fontes de oiro Prata não sabe zelar.’ —‘Pois um recado, donzella, Agora lhe heisde levar; Que o romeiro christão. Lhe deseja de fallar. ‘Da parte de um que é ja morto, Que morreu por seu pezar, Que á hora de sua morte Este annel lhe quiz mandar.’ Tirou o annel do dedo E na jarra o foi deitar: —‘Quando ella beber da agua No annel hade attentar.’ Foi-se d’alli a donzella, Ia morta por fallar... —‘Anda ca, ó Peronella, Criada de mau mandar. ‘Tua ama morrendo á sêde E tu na fonte a folgar?’ —‘Folgar não folguei, senhora, Mas deixei-me adormentar, ‘Que a moira vida que eu levo Ja não n’a posso aturar. Ai terra da minha terra, Ai Milhor da beira-mar! ‘Aquella sim que era vida, Aquillo que era folgar! E em sancto temor de Deus: Não aqui n’este peccar!’ —‘Cal-te, cal-te, Peronella, Não me queiras attentar; Que eu a viver entre moiros Me não vim por meu gostar. ‘Mas ja tenho perdoado A quem lá me foi roubar; Que antes escrava contente, Do que rainha a chorar. ‘Forte christandade aquella, Bom era aquelle reinar! Viver só, desamparada, Ver a moira em meu logar!..’ Lembrava-lhe a sua offensa, Está-lhe o sangue a queimar: Na agua fria da fonte A sêde quiz apagar. A fonte de prata virgem, Á bôcca foi a levar, As riccas pedras do annel No fundo viu a brilhar. —‘Jesus seja co’a minha alma! Feitiços me querem dar... O fogo a arder dentro n’agua, E ella fria de nevar!’ —‘Senhora, co’esses feitiços Me tomara eu imbruxar! Foi um bemditto romeiro Que á fonte fui incontrar, ‘Que ahi deitou esse annel Para prova singular De um recado que vos trouxe, Com que muito heisde folgar.’ —‘Venha ja esse romeiro Que lhe quero ja fallar: Embaixador deve ser Quem traz presente real.’ CANTIGA TERCEIRA —‘Por Deus vos digo, romeiro Que vos queirais levantar; Minhas mãos não são reliquias, Basta de tanto bejar!’ O romeiro não se erguia, As mãos não lhe quer largar: Os bejos uns sôbre os outros, Que era um nunca acabar. Ia a infadar-se a rainha, Viu que entrava a soluçar, E as lagrymas, quatro e quatro, Nas mãos sentia rollar: —‘Que tem o bom do romeiro, Que lhe dá tanto pezar? Diga-me las suas penas Se lh’as posso alliviar.’ —‘Minhas penas não são minhas, Que aos mortos morre o penar; Mas a vida que eu perdi Em vós podia incontrar. ‘Minhas penas não são minhas, Senão vossas, mal pezar! Que uma rainha christan Feita moira vim achar...’ —‘Romeiro, não tomeis cuita Por quem se não quer cuitar: Do que fui ja me não lembro, O que sou não me é dezar. ‘Deus terá dó da minha alma, Que meu não foi o peccar; E a esse traidor Ramiro As contas lhe hade tomar.’ —‘Pois não espereis, senhora, Por Deus, que póde tardar: Dom Ramiro aqui o tendes, Mandae-o ja castigar.’ Em pé está Dom Ramiro, Ja não ha que disfarçar: Aquellas barbas tam brancas Cahiram de um impuxar. O bordão e a esclavina A terra foram parar; Não ha ver mais gentilezas De meneio e de trajar. Quem viu olhos como aquelles Com que o ella está a mirar! Quem passou ja transes d’alma Como ella está a passar? Um tremor que não é mêdo, Um sorriso de infiar, Vergonha que não é pejo, Faces que ardem sem corar... Tudo isso tem no semblante, Tudo lhe está a assomar Como ondas que vão e vêem Na travessia do mar. A vingança é o prazer do homem, Da mulher é o seu manjar: Assim perdoa elle e vive, Ella não—que era acabar. Vingar-se foi o primeiro E o derradeiro pensar Que entre tantos pensamentos, Em Gaia estão a pullar: Logo depois a vaidade, O gôsto de triumphar N’um coração que foi seu, Que seu lhe torna a voltar. E o rei moiro estava longe C’os seus no monte a caçar, Ella só n’aquella tôrre... Prudencia e dissimular! Abre a bôcca a um sorriso Doce e triste—de mattar! Tempéra a chamma dos olhos, Abafa-a por mais queimar. Pôs na voz aquelle incanto Que, ou minta ou não, é fatal; E com o inferno no seio, Falla o ceo no seu fallar. Ja os amargos queixumes Se imbrandecem no chorar, E em sua propria justiça Com arte finge affrouxar. Protesta a bôcca a verdade: —‘Que não hade perdoar...’ Mas a verdade dos labios Os olhos querem negar. De joelhos Dom Ramiro Alli se estava a humilhar, Supplíca, roga, promette... Ella parece hesitar. Senão quando, uma bozina Se ouviu ao longe tocar... A rainha mal podia O seu prazer disfarçar: —‘Escondei-vos, Dom Ramiro, Que é chegado Alboazar, Depressa n’este aposento... Ou ja me vereis mattar.’ Mal a chave deu tres voltas, Na manga a foi resguardar; Mal tirou a mão da cotta, Que o rei moiro vinha a entrar: —‘Tristes novas, minha Gaia, Novas de muito pezar! Primeira vez em tres annos Que me succede este azar!... ‘Toquei a minha bozina Ás portas, antes de entrar, E não correste ás ameias Para me ver e saudar! ‘Muito mal fizeste, amiga, Em tam mal me costumar; Não sei agora o que fazes Em me querer emendar...’ No coração da rainha Batalha se estão a dar Os mais estranhos affectos Que nunca se hãode incontrar: O que foi, o que é agora... E a ambição de reinar... O amor que tem ao moiro, E o gôsto de se vingar... Venceu amor e vingança: Deviam de triumphar, Que era em peito de mulher Que a batalha se foi dar. ‘Novas tenho e grandes novas, Amigo para vos dar: Tomae ésta chave e abride, Vereis se são de pezar.’ Com que ância elle abriu a porta, Vista que foi encontrar!.. Palavras que alli disseram, Não n’as saberei contar: Que foi um bramir de ventos, Um bater d’aguas no mar, Um confundir ceo e terra, Querer-se o mundo acabar. Vereis porfim o rei moiro Que sentença veio a dar: —‘Perdeste a honra, christão; Vida, quero-t’a deixar. ‘De uma vez, que me roubaste, Muito bem me fiz pagar: D’esta basta-me a vergonha Para de ti me vingar.’ Sentia-se elrei Ramiro Do despeito devorar; Com ar contricto e affligido Assim lhe foi a fallar: —‘Grandes foram meus peccados, Poderoso Alboazar; E taes que a mercê da vida De ti não posso acceitar: ‘Eu não vim a teu castello Senão só por me intregar, Para receber a morte Que tu me quizeres dar: ‘Que assim me foi ordenado Para minha alma salvar Por um sancto confessor A quem me fui confessar. ‘E mais me disse e mandou, E assim t’o quero rogar, Que, pois foi publica a offensa, Público seja o penar: ‘Que ahi n’essa praça d’armas Tua gente faças junctar; Ahi deante de todos A vida quero acabar ‘Tangendo n’esta bozina, Tangendo até rebentar; Que digam todos que isto virem, E lhes fique de alembrar: «Grande foi o seu peccado, No mundo andou a soar; Mas a sua penitencia Mais alto som veio a dar.» Quizera-lhe o bom do moiro Por força alli perdoar; Mas se a pêrra da rainha Jurou de á morte o levar!... Veis na praça do castello, Toda a moirama a ajunctar; Em pé no meio da turba Ramiro se foi alçar. Tange que lhe tangerás, Toca rijo a bom tocar; Por muitas leguas á roda Reboava o bozinar. Se o ouvirão nas galés Que deixou a beira-mar? Decerto ouviram, que um grito Tremendo se ouve soar... CANTIGA QUARTA —‘Sanctiago!.. Cerra, cerra! Sanctiago, e a mattar!’ Abertas estão as portas Da tôrre de par em par. Nem atalaias nos muros, Nem roldas para as velar... Os moiros despercebidos Sentem-se logo apertar De um tropel de leonezes Ja portas a dentro a entrar. Deixa a bozina Ramiro, Mão á espada foi lançar. E de um só golpe fendente, Sem mais pôr nem mais tirar, Parte a cabeça até aos peitos Ao rei moiro Alboazar... Ja tudo é morto ou captivo, Ja o castello está a queimar; Ás galés com seu despôjo Se foram logo a imbarcar. —‘Voga, rema! d’alêm Doiro Á pressa, á pressa a passar, Que ja oiço alli na praia Cavallos a relinchar. ‘Bandeiras são de Leão Que lá vejo tremular. Voga, voga, que alêm Doiro É terra nossa!... A remar! ‘D’aqui é moirama cerrada Até Coimbra e Thomar. Voga, rema, e d’alêm Doiro! D’aquem não ha que fiar.’ Á poppa vai Dom Ramiro De sua galé real, Leva a rainha á direita, Como quem a quer honrar: Ella, muda, os olhos baixos Leva n’agua... sem olhar, E como quem de outras vistas Se quer só desaffrontar. Ou Dom Ramiro fingia Ou não vem n’isso a attentar; Ja vão a meia corrente, Sem um para o outro fallar. Ainda arde, inda fumega O alcaçar de Alboazar; Gaia alevantou os olhos, Triste se pôs a mirar; As lagrymas, uma e uma, Lhe estavam a desfiar, Ao longo, longo das faces Correm... sem ella as chorar. Olhou elrei para Gaia, Não se pôde mais callar; Cuidava o bom do marido Que era remorso e pezar Do mau termo atraiçoado Que com elle fôra usar Quando o intregou ao moiro Tam só para se vingar. Com a voz internecida Assim lhe foi a fallar —‘Que tens, Gaia... minha Gaia? Ora pois! não mais chorar, ‘Que o feito é feito...’—‘E bem feito!’ Tornou-lhe ella a soluçar, Rompendo agora n’uns prantos Que parecia estalar; ‘E bem feito, rei Ramiro! Valente acção de pasmar! Á lei de bom cavalleiro, Para de um rei se contar! ‘Á falsa fé o mattaste... Quem a vida te quiz dar! Á traição... que d’outro modo, Não es homem para tal. ‘Mattaste o mais bello moiro, Mais gentil, mais para amar Que entre moiros e christãos Nunca mais não terá par. ‘Perguntas-me porque chóro!.. Traidor rei, que heide eu chorar? Que o não tenho nos meus braços, Que a teu podêr vim parar. ‘Perguntas-me o que miro! Traidor rei, que heide eu mirar? As tôrres d’aquelle alcaçar, Que ainda estão a fumegar. ‘Se eu fui alli tam ditosa, Se alli soube o que era amar, Se alli me fica alma e vida... Traidor rei, que heide eu mirar!’ —‘Pois _mira, Gaia!_’ E, dizendo, Da espada foi arrancar: ‘_Mira, Gaia_, que esses olhos Não terão mais que mirar.’ Foi-lhe a cabeça de um talho; E com o pé, sem olhar, Borda fóra impuxa o corpo... O Doiro que os leve ao mar. Do estranho caso inda agora Memoria está a durar: _Gaia_ é o nome do castello Que alli Gaia fez queimar; E d’alêm Doiro, essa praia Onde o barco ia a aproar Quando bradou—‘Mira, Gaia!’ O rei que a vai degollar, Ainda hoje está dizendo Na tradição popular, Que o nome tem—MIRAGAIA D’aquelle fatal mirar. VERSÃO FRANCEZA I Nuit sombre, mais si belle encor! Belle nuit, à travers ton ombre, Oh! qui de tes étoiles d’or Pourra jamais compter le nombre? Compte-t’on les feuilles du bois? Ou de la mer les grains des sables? De l’Eternel telle est la voix Écrite en lettres innombrables. Hélas! dans ce livre divin Nul ne peut espérer de lire! Un auge l’essaierait en vain; Son savoir n’y pourrait suffire. Dom Ramire, dans son palais Vivait heureux avec la reine, Un juif maudit troubla leur paix Et brisa leur tant douce chaîne. Il prédit au roi, trop flatté Du beau destin qu’on lui dévoile, Que Zahara, fleur de beauté Serait à lui!... c’est son étoile! Le roi, que l’amour tient au cœur, Va, plein du feu qui le dévore, D’Alboazar ravir la sœur Et fuit avec la belle Maure. À Milhor, lieu rempli d’attraits, Dont la mer baigne les rivages, Tous deux sans soucis, sans regrets Passaient leurs jours exempts d’orages. La reine de ce coup affreux Gémit et pleure et pleure encore: Trahir ainsi ses chastes feux! La délaisser pour une Maure! Triste et rêveuse, à son balcon, Seule, durant la nuit obscure, Victime d’un lâche abandon Elle soccombe à sa blessure: —‘Roi Ramire! perfide roi, Pourquoi me causer cette peine? Mon cœur a-t’il trahi sa foi? Je t’aimais tant!... pourquoi ta haine? ‘On dit qu’elle a quelques attraits Cette Maure, cette infidèle; Tu m’as pourtant, quand tu m’aimais, Dit cent fois que j’étais plus belle. ‘On dit qu’elle a mille agréments, Qu’elle est jeune, à la fleur de l’âge. Moi, j’ai compté vingt trois printemps Après mon triste mariage. ‘Ses yeux sont noirs! ce sont des yeux Si beaux, si fiers, si pleins de charmes! Hélas! les miens ne sont que bleus... Et puis toujours remplis de larmes! ‘On nomme Zahara la Fleur... _Gaia_ c’est le nom qu’on me donne! _Gaia_ j’étais dans mon bonheur; Plus ne le suis—l’on m’abandonne! ‘Oh! que ne suis-je un homme, hélas! Dans le transport qui me dévore, J’irais moi-même de ce pas Trouver Alboazar le more.’ Elle achevait ces mots: soudain Tournant ses regards vers la terre Elle aperçoit dans le lointain Des chevaux, des hommes de guerre. —‘Peronelle, vois-tu là-bas Ces armes qui brillent dans l’ombre? Regarde... ce sont des soldats; D’où viennent-ils? quel est leur nombre? La suivante, d’un air surpris Paraît écouter ce langage; Des joyaux, des bijoux de prix De son silence étaient le gage. Où sont ses autres serviteurs? En vain la reine les appelle Sept cavaliers, malgré ses pleurs, Bientôt se sont emparés d’elle. De leurs turbans les plis soyeux Bandent ses yeux, ferment sa bouche; Et trois dans leurs bras vigoureux La soulèvent d’un air farouche. Ils sont entrés sept au palais; Sept autres en sentinelle. Pas un mot... tous semblent muets... Et vite en selle!... ils sont en selle! Un seul paraît les commander: Sur son coursier il tient la reine... —‘Allons!’ dit-il ‘il faut marcher!’ Tous au galop fendent la plaine. Point de répit, point de repos, Chacun stimule sa monture. Ils courent par monts et par vaux, Ils courent tant que la nuit dure. Dans les torrents, poitrail dans l’eau —‘A gué,’ marchons! que l’on avance! Ailleurs, sur les flancs d’un côteau: —Houp! en avant! que l’on s’élance! Le jour se lève radieux, Ils sont près de la mer profonde, Quel est ce fleuve sinueux? Qui vient s’engouffrer dans son onde? La reine ouvre ses yeux enfin, Sa bouche est libre, elle respire: Las! elle songe à son destin Et tout bas tristement soupire. —‘Douro, fleuve aux perfides eaux, Qui de dangers sèmes ta course, Ne veux-tu donc pas de tes flots, Me révéler quelle est la source? ‘Je te dirai par quel moyen Cette perle est en ma puissance: À qui m’a dérobé mon bien J’ai dérobé son espérance. ‘C’est le sort qui le veut ainsi; Tout suit cette pente sécrète. Par les eaux du torrent grossi, Le fleuve dans la mer se jette. Ainsi chantait le ravisseur, Et Gaia l’écoutait sans haîne. Bientôt de ton heureux vainqueur, Gaia, tu porteras la chaîne. —‘Mais que font ces barques sur l’eau?’ —‘Elles viennent chercher la reine.’ —‘Quel est ce superbe château?’ —‘D’Alboazar c’est le domaine.’ II Roi Ramire, roi malheureux, À ta naissance un noir génie T’a jetté quelque sort fâcheux Qui devait tourmenter ta vie. Peu satisfait de ce qu’il a, À d’autres biens ton cœur aspire. Ta fleur de beauté, Zahara, Sur toi n’exerce plus d’empire, La reine qu’on t’a vu chérir Et qui par toi fut délassée... Tu veux au more la ravir; C’est là maintenant ta pensée. Quelle est cette barque qui fuit, Et du Douro va fendant l’onde? Le bruit des rames, de la nuit Trouble à peine la paix profonde. Elle glisse sur les roseaux, Elle est déjà prés du rivage; Les saules penchés sur les eaux La cachent sous leur vert feuillage. Un homme s’élance soudain; D’un bond il a touché la terre. Il tient un bourdon d’une main, Et de l’autre porte un rosaire. Bientôt le soleil du matin Répand sa clarté sur la rive. Près du castel un pélerin Fait entendre sa voix plaintive. —‘Saint de Galice, qu’à genoux Le pauvre pélerin implore, Pour arriver au rendez-vous. Que ton autel est loin encore! Au pied de la tour du palais Coule une source claire et vive: Une jeune fille est auprès, Elle est là, debout et pensive. Elle écoutait d’un air rêveur L’eau tombant de sa coupe pleine; —‘Oh! votre voix, bon voyageur, M’a causé la plus douce peine. ‘Sur cette terre de maudits, C’est pour moi bien grande merveille D’entendre ces chants du pays, Qui jadis frappaient mon oreille. ‘Sept prêtres, autour de l’autel, Chantaient alors cette prière, Sept autres au chant solemnel Répondaient d’une voix austère. ‘Le chœur entier psalmodiait, Tous priaient d’une âme fervente; Et la cloche retentissait Portant au ciel sa voix bruyante. ‘Ce son qui vibrait dans les airs, Que ne puis-je l’entendre encore? Que ne puis-je au fond des enfers Étouffer tous les chants du more! —‘Que le bon Dieu veille sur vous! Qu’il vous bénisse, jouvencelle! Une telle langage semble doux Où règne en maître l’infidèle, ‘Je veux prier pour vous, hélas! Je souffre et me soutiens à peine, Il faut que s’arrêtent mes pas Près de cette claire fontaine. ‘Ah! qu’on est bien! quelle fraîcheur! Comme cette eau me semble belle! Laissez asseoir le voyageur; Dieu vous le rendra, jouvencelle.’ —‘Asseyez-vous, bon pélerin, —‘Asseyez-vous sur cette pierre; L’eau qui coule dans ce bassin Est douce et fraîche, et désaltère. ‘La reine en boit à son réveil; J’en viens chercher avant l’aurore; Je viens, avant que le soleil Ne l’ait pu réchauffer encore.’ —‘Cette eau si pure doit avoir Une vertu particulière. Ah! pour juger de son pouvoir, Donnez m’en, je vous prie, un verre.’ —‘Buvez, buvez, bon pélerin, À la fontaine du roi more. Tenez; ce vase d’argent fin Vaut de l’or... il vaut mieux encore.’ —‘Mais que dirait votre seigneur? Que dirait Gaia, votre reine; S’ils voyaient l’humble voyageur Boire à la royale fontaine?’ —‘Alboazar, avant le jour, A quitté ce lieu solitaire. Il est dans les bois d’alentour, Aux sangliers faisant la guerre. ‘Ma maîtresse de ce trésor Ne peut se montrer soucieuse: Pour qui posséda vases d’or, Cette coupe est peu précieuse.’ —‘De grace! Encore une faveur! Dites-lui, bonne jouvencelle, Qu’un pauvre chrétien voyageur Désire être conduit près d’elle. ‘Dites-lui bien qu’un malheureux, Mort de chagrin et de misère, L’a de cet anneau précieux Fait pour elle, dépositaire.’ Il tire de son doigt l’anneau, Dans le fond du vase il le jette: —‘Quand elle boira de cette eau Sa surprise sera complète! Mais la jeune fille a bientôt, En courant, quitté la fontaine. —‘Pourquoi ne pas venir plus tôt?’ Dit, d’un ton sévère, la reine, ‘Joyeusement tu folâtrais, Quand de soif mourrait ta maîtresse? —‘Oh! non, tristement je songeais, Car je songeais à ma jeunesse. ‘Que mon destin me semble amer! Ici, pour moi quelle existence! Ó Milhor que baigne la mer, Milhor, pays de mon enfance! ‘Là, chaque jour est un plaisir, Gaîment se passe le bel âge; C’est là qu’à Dieu l’on peut offrir D’un saint amour le pur hommage! —‘Tais-toi, Peronelle, tais-toi, Ne réveille pas ma souffrance: Tu sais bien que ce n’est pas moi Qui désirais cette existence. ‘Mais à mon ravisseur enfin J’ai pardonné, rendu les armes. Esclave, je vis sans chagrin; Reine, je vivais dans les larmes. ‘Ce vain titre était peu pour moi, Trop peu pour tromper ma disgrâce. Voir, auprès d’un époux sans foi, Une more occuper ma place!’ À ce souvenir, de rougeur Soudain son beau front se colore Puisse cette eau, par sa fraîcheur, Calmer la soif que la dévore! Elle prend le vase d’argent, Le porte à ses lèvres brûlantes, Et voit luire au même moment De l’anneau les pierres brillantes. —‘C’est un sort, Jésus, mon sauveur! Que l’on veut jetter sur mon âme: Cette eau glace par sa fraîcheur, Et dans le fond c’est de la flamme.’ —‘Voilà ce charme merveilleux Qui me tenait loin de la reine. C’est au pélerin malheureux Que j’ai vu près de la fontaine; ‘C’est lui que dans le fond de l’eau A voulu déposer ce gage: De ses souhaits ce riche anneau Devait servir de témoignage.’ —‘Oh qu’il vienne ce voyageur, Qu’il vienne ici! que je l’entende! Car je veux voir l’ambassadeur Qui m’apporte une telle offrande.’ III —‘Ne baisez point ainsi ma main; De grâce, je vous en conjure: Cessez, cessez, bon pélerin, Et quittez cette humble posture.’ Mais le pélerin à ses vœux Résiste... il devient téméraire, Et ses baisers vont, deux à deux, Tomber sur cette main qu’il serre. La reine a pâlit cette fois, Dans son cœur le courroux fermente. Soudain, elle sent sur ces doigts Couler une larme brûlante... —‘Qui peut causer, bon pélerin, La douleur que je vois paraître? Là, contez-moi votre chagrin; Je puis vous soulager peut-être.’ —‘Oh! non, ce n’est pas mon chagrin; La mort fait cesser la souffrance: Mais en vous j’espérais enfin Retrouver ma douce existence. ‘Oh! non; ce n’est pas mon destin, C’est la vôtre que je déplore: La compagne d’un roi chrétien Devenir celle d’un roi more!’ —‘Ah! ne me parlez pas ainsi! La pitié peut être indiscrète. Du présent je n’ai nul souci, Et du passé rien ne regrette. ‘Dieu m’accordera son pardon; Ce n’est pas moi qui fus coupable. De cette lâche trahison Ramire doit être comptable. —‘Le ciel, jusqu’ici trop clément, Doit en effet punir ce traître. Ordonnez donc son châtiment, Ramire à vos yeux va paraître.’ Ramire se lève soudain, Et laissant là toute imposture, De sa barbe de pélerin Il a dépouillé sa figure. Le bourdon qu’il tient dans sa main Près de là va rouler à terre; Et d’un geste plein de dédain, Il jette à ses pieds son rosaire. Qui pourrait dire de quels yeux Le regardait la noble dame, Quels sentiments impétueux Troublaient en ce moment son âme? Elle tremble, mais non de peur; Sans gaîté, sa bouche est riante: Elle est honteuse, sans pudeur; Elle pâlit... elle est brûlante. On voit ces sentiments divers Se succéder sur son visage, Comme les flots, au sein des mers, Se heurter dans un jour d’orage. À l’homme la vengeance plait; Pour la femme c’est un délice; L’un pardonne, il est satisfait; L’autre veut qu’elle s’accomplisse. Sous le poids de ce souvenir, Dont la reine a l’âme oppressée, Ce fut là son premier désir, Ce fut sa dernière pensée. Et puis, pour elle quel honneur! Combien elle doit être vaine, De pouvoir triompher d’un cœur Qui revient reprendre sa chaîne! Mais dans les forêts d’alentour Chasse en ce moment le roi more, Elle est seule dans cette tour... Il faut se taire et feindre encore. Elle sourit, mais tristement, De ce sourire qui fend l’âme, Et voile son regard charmant Pour mieux en tempérer la flamme. De sa voix le son enchanteur Séduit par son pouvoir funeste; Et si l’enfer est dans son cœur, Sa parole est toute céleste. Elle paraît près de fléchir, Ses pleurs ont calmé sa colère; Son âme feint de s’attendrir Et sa douleur est moins amère. Elle répète, en sanglottant: —‘Pour pardonner, je suis trop fière.’ Mais ses yeux, dans le même instant, Semble dire tout le contraire. Dom Ramiro est à ses genoux; D’une voix émue, il l’implore; Il veut désarmer son courroux; Il supplie... elle hésite encore. Soudain, on entend retentir Le bruit du cor, là dans la plaine; La reine se sent tressaillir Bien plus de plaisir que de peine. —‘C’est Alboazar, c’est le roi!’ Dit-elle: ‘cachez-vous, Ramire: S’il vous voit, c’en est fait de moi; Fuyez, ou, sous vos yeux, j’expire.’ A peine elle a, d’un air troublé, Fermé la porte, et par prudence, Dans son sein déposé la clé, Que vers elle le roi s’avance. —‘Tristes nouvelles, je le vois, Nouvelles de mauvais augure! C’est du moins, la première fois Que m’arrive cette aventure. ‘Avant d’entrer dans cette cour, J’ai sonné du cor dans la plaine, Et sur les créneaux de la tour Je n’ai pas vu venir la reine. ‘C’est mal à vous, ma chère enfant, D’avoir manqué d’exactitude. Me faudra-t-il donc maintenant Renoncer à cette habitude?’ Une horrible perplexité A troublé l’esprit de la reine; Son triste cœur flotte agité Entre l’indulgence et la haine. Le souvenir de ses beaux jours, De l’ambition l’influence, Ici, de nouvelles amours, Là, le désir de la vengeance... Bientôt la vengeance et l’amour L’auront emporté dans son âme. Ne devaient-ils pas, sans retour, Triompher dans un cœur de femme? —‘J’ai des nouvelles, en effet, Et d’étranges à vous apprendre. Entrez là, dans ce cabinet; Vous verrez de quoi vous surprendre.’ Alboazar ouvre en tremblant, Et recule, en voyant Ramire. Ce qui se dit dans cet instant, Point ne saurais vous le redire. Ce fut comme un vent orageux, Comme une tempête sur l’onde, Comme si la terre et les cieux Luttaient pour abîmer le monde. À la raison enfin rendu, Le roi prononce la sentence: —‘Chrétien, ton honneur est perdu; Je veux te laisser l’existence. ‘J’ai pû me payer largement Du mal dont tu m’as fait victime; Ta honte suffit maintenant Pour expier ton nouveau crime.’ Dom Ramire sentait son cœur Gonflé de dépit et de rage; D’un air contrit, plein de candeur, Il fait entendre ce langage! —‘Bien grand, hélas! fut mon forfait! Envers toi je fus trop coupable; Je ne veux pas d’un tel bienfait; La mort me semble préférable. ‘C’est pour me mettre à ta merci, Pour me livrer à ta vengeance Que je suis venu seul ici; Non pour implorer ta clémence. ‘C’est pour racheter mon erreur, Sauver mon âme de l’abîme: C’est l’ordre d’un saint confesseur À qui j’ai confessé mon crime. ‘Il faut, m’a-t-il dit justement, Et c’est mon vœu, je te le jure, Que public soit le châtiment, Puisque publique fut l’injure. ‘Ordonne ici de tes soldats Que la troupe se réunisse, Et que sous leurs yeux, mon trépas Satisfasse enfin ta justice. ‘Vite! qu’ils entendent au loin Le son du cor qui les appelle; Que chacun, de ma mort témoin, En garde un souvenir fidèle. ‘Qu’on dise, en me voyant mourir: —«Quelque bruit qu’ait fait son offense, Un bruit plus fort va retentir, Et c’est celui de la vengeance!» Le roi touché de son remords, Lui veut conserver l’existence; Mais la reine a juré sa mort; Elle s’oppose à la clémence. On voit les soldats accourir; Le château prend un air de fête; Ramire debout, sans pâlir, Regarde la morte qui s’apprète. —‘Sonnez, trompettes et clairons, Et qu’au loin ce bruit retentisse!’ Et l’écho, répétant ces sons, Annonçait l’heure du supplice: On entendit près de la mer Ce bruit, d’un sinistre présage; Et soudain s’éléva dans l’air Un long cri, parti du rivage. IV —‘De par tous les saints, en avant! En avant, allons, du courage! Et bientôt la porte, en tombant, Aux assaillants ouvre passage. Sur les créneaux point de soldats, Près des murs point de sentinelles; Rien ne peut arrêter leurs pas, Ils sont maîtres des infidèles. Sur eux ils s’élancent soudain, Comme des lions, pleins de rage. Ramire prend un glaive en main, Et par ses cris, les encourage. D’un seul coup, d’un coup sûr et prompt, Que rend terrible sa colère, Du More il coupe en deux le front, Et le jette sur la poussière. Déjà tous sont morts ou captifs; Du feu terrible est le ravage; Et les vainqueurs sur les esquifs Ont abandonné le rivage. —‘Alerte! il faut quitter ces bords! Allons, rameurs, plus de courage! Alerte! et redoublez d’efforts; J’entends des chevaux sur la plage. ‘Ce drapeau, qui flotte là-bas, De Léon c’est bien la bannière; Allons rameurs, force de bras; Voguons, voguons vers notre terre! ‘Ce pays au More est soumis; Jusqu’à Coimbre il règne en maître. Loin du Douro voguons, amis; Je dois craindre ici quelque traître. On voit Ramire s’avancer Vers la poupe où se tient la reine, À sa droite il la fait placer, Comme marque d’honneur certaine Sans même détourner les yeux D’un air pensif elle se lève, Son front est resté soucieux, Elle semble sortir d’un rêve. Ramire parut n’en rien voir: C’était peut-être par prudence. À ses côtés il va s’asseoir, Et tous deux gardent le silence. Du malheureux Alboazar Le château brûle et fume encore. Gaia jette un dernier regard Et voit le feu qui le dévore. À ce spectacle douloureux Son cœur est brisé de souffrance. Des larmes coulent de ses yeux; Elle pleure, mais en silence, Ramire, d’un air attendri, La contemple et ne peut se taire; Il croyait, le pauvre mari, Que son remords était sincère. Que c’était le seul souvenir De sa honteuse perfidie; Qu’elle pleurait de repentir D’avoir au roi livré sa vie. D’une voix pleine de douceur, Où se peint sa vive tendresse, Il dit:—‘Gaia, pourquoi ton cœur Garde-t-il encor sa tristesse? ‘Calme, ma Gaia, ta douleur; Notre vengeance est satisfaite.’ Mais elle, redoublant ses pleurs: —‘Oh! oui la vengeance est parfaite. ‘De ce grand coup applaudis-toi; Il mérite bien qu’on l’admire. Il est vraiment digne d’un roi, D’un cavalier tel que Ramire. ‘Tu viens de frapper un rival, Qui t’avait offert l’existence: N’est-ce pas un trait bien loyal, Une noble et belle vengeance? ‘Ta main a frappé, sans regret, Le More le mieux fait pour plaire, Des cavaliers le plus parfait Que jamais ait porté la terre. ‘Tu demandes, perfide roi, D’où me vient ma vive souffrance? Oh! que n’est-il auprès de moi Pour me soustraire à ta puissance! ‘Tu veux savoir où mes regards Cherchent à s’arrêter encore? Contemple d’ici ces remparts, Vois la flamme qui les dévore. ‘Là tout entière à mon bonheur, De l’amour j’ai connu l’empire; C’est là que j’ai laissé mon cœur... Comprends-tu bien ce que je _mire_? —‘Contente donc alors tes yeux; _Mire_, Gaia, _mire_, infidèle. Et soudain d’un bras furieux, Il lève son glaive sur elle. Cédant à d’horribles transports, D’un seul coup, il tranche sa tête, Et du pied repousse le corps... Dans la mer le Douro le jette. De cet évènement cruel Le souvenir se garde encore: Gaia, c’est le nom du castel Qui fut l’asile du roi more. À ce cri que jette bien haut Le batelier sur cette plage, _Mira Gaia_! tout aussitôt Se dresse une sanglante image. Le peuple, dit-on, conserva De ce fait la trace fidèle; Et la place où Gaia _mira_ MIRA-GAIA depuis s’appelle. Lisbonne, 10 janvier 1847. VIII POR BEM AS PÊGAS DE CINTRA Dou aqui logar a ésta composição que, moderna, como é, e minha, toda é feita de coisas populares e antigas. A anecdota devêra ter sido celebrada pelos menestreis do tempo: não o foi, e eu procurei supprir o seu descuido. Não apparece pois em meu nome, senão no d’elles, embora de longe os rastreie. Quando a primeira vez sahiu de minha carteira a presente ballada foi para se imprimir na ILLUSTRAÇÃO[31], jornal que se publicava em Lisboa em 1845-46. Reimprimirei com ella aqui tambem a carta que então escrevi ao redactor d’aquelle jornal, porque devéras contêm a historia de sua composição. Eis aqui a carta: ’—Queria escrever-lhe um artigo, meu caro redactor, para a sua ILLUSTRAÇÃO, que realmente faz milagres no meio d’esta escacez de tudo, e d’estes impedimentos para tudo que characterizam a nossa boa terra. É promessa velha e que eu devia ter cumprido ha muito. Mas como, mas quando? E que hade um homem escrever que se leia—que se leia por damas bellas e elegantes cavalheiros—quando lhe anda intallado nos bicos da penna o fatal fio da politica, que a faz espirrar e esgravatear em tudo o mais? ‘Com as leis das eleições, e as questões da fazenda, e as organisações ministeriaes, e não sei que mais coisas taes, foi-se-me detodo a derradeira reminiscencia litteraria que ainda por cá havia. Tenho saudade d’ella, mas foi-se, ‘morreu pela patria!’ ‘Não sei se morreu bem ou mal, se fez bem ou mal em morrer; mas é certo que morreu. ‘Eu porêm nunca prometti, que faltasse, a homem nenhum—nem a mulher, que mais é! O ponto está que me acceitem em pagamento aquillo que eu posso dar. Que, ás vezes, o máu pagador não é máu senão pelas absurdas e excessivas exigencias do crédor. Axioma de eterna verdade, especialmente quando applicado a tudo o que passa entre os representantes de nosso pae Adão e as representantas de nossa mãe Eva... ‘Passemos adeante. Quer, senhor redactor, acceitar-me, em pagamento da lettra de minha promessa, este papel que achei embrulhado entre mil rabiscos de projectos de lei, tenções de autos, notas ao orçamento e outras coisas galantes do mesmo genero? ‘Se quer aqui o tem, e disponha d’elle. ‘Deixe-me só dizer-lhe o que é, e como foi feito. ‘Estava eu em Cintra, foi em... Que importa lá quando foi? Basta saber que não era n’essa estação _fashionavel_ em que a elegancia de Lisboa se vai infastiar classicamente para o mais romantico sítio da terra. Era na primavera; passeavamos dois sós, ou quasi sós, n’aquelle Eden delicioso. Fomos ver o palacio; chegámos á sala das pêgas. Pêgas são chocalheiras e linguarudas: eu detesto o bicho... e n’este tempo, estava-lhe com zanga de morte... ‘Abominavel bicho! Isto ja lá vai ha muito tempo, meu caro redactor, e ainda me faz ferver o sangue... ‘Passemos adeante! ‘Perguntaram-me a explicação d’aquellas pêgas da sala. Contei a historia popular que é tam sabida. Acharam-lhe graça, pediram-me que a posesse em verso: fiz isto. ‘E isto que é? Não sei. É romance ou é apologo? É fabula ou é cantiga? Nunca fui grande classificador d’essas coisas; que fará agora! ‘O que lhe sei dizer é que no seculo XVI a XVII, segundo consta do ‘Fidalgo aprendiz’ do nosso Francisco Manuel de Mello, se cantava em Portugal uma cantiga que começava assim como ésta: «Gavião, gavião branco, Vai ferido e vai voando.» ‘Nunca pude encontrar o resto, nem procurei muito por elle; mas ingracei com este princípio, e servi-me d’elle aqui. Acha mal feito? Eu não. ‘Se soubesse, meu caro senhor, todas as circumstancias d’esta composição! Se soubesse de certa pêga ou pêgas que me perseguiram com seu malditto palrear, e me queriam, ainda em cima, assacar, a mim gavião, ellas pêgas, as manhas que só ellas têem! ‘Mas ficou lograda a pêga e... ‘Adeus, meu amigo, outra vez, adeante! O gavião, e sobretudo o gavião branco—note—é animal nobre, de especie, genero e até de familia differente da pêga. ‘Passe muito bem. Aqui estão os versos; eu vou salvar a patria.’ ‘Julho, 22—1846.’ POR BEM AS PÊGAS DE CINTRA Gavião, gavião branco Vai ferido e vai voando; Mas não diz quem n’o feriu, Gavião, gavião branco! O gavião é callado, Vai ferido e vai voando; Assim fôra a negra pêga Que hade sempre andar palrando. A pêga é negra e palreira, O que sabe vai contando... Muito palra, palra a pêga Que sempre hade estar palrando. Mas quer Deus que os chocalheiros Guardem ás vezes, fallando, O segredo dos sisudos Que elles não guardam callando. Era uma pêga no paço Que el-rei tomára caçando; Trazem-n’a as damas mimosa Com a estar sempre afagando. Nos paços era de Cintra Onde estava el-rei poisando: A rainha e as suas damas No jardim andam folgando, Entre assucenas e rosas, Entre os goivos trebelhando; Umas regavam as flores, Outras as vão apanhando; E a minha pêga com ellas Sempre, sempre palreando. Vinha el-rei atraz de todos Com Dona Mécia fallando. Era a mais formosa dama Que andava n’aquelle bando: No hombro de Dona Mécia, A pêga vinha poisando, E zelosa parecia Que os andava espreitando... Colhêra el-rei uma rosa, A Dona Mécia a ia dando, Com um requêbro nos olhos Tam namorado e tam brando... Inda bem, minha rainha, Que adiante te vais andando! Pegou na rosa a donzella, Disfarçada a está cheirando... Senão quando a negra pêga Que lh’a tira e vai voando. Deu um grito Dona Mécia... E a rainha, voltando, Deu com os olhos em ambos... Ambos se estão delatando. —‘Foi por bem!’ lhe disse o rei, Seu accôrdo recobrando: —‘Foi por bem!’—‘Por bem’ repete A pêga emtôrno voando. —‘Por bem, por bem!’ grasna a tonta, De má malicia cuidando Co’a chocalheira da lingua Andar o caso inredando. Mas quer Deus que os chocalheiros Guardem ás vezes fallando O segredo dos sisudos Que elles não guardam callando Riu-se a rainha da pêga, E ficou acreditando Que a innocencia do caso N’ella se estava provando. Da pêga mexeriqueira, Do bem que fez, mal pensando, Nos reaes paços de Cintra A memoria está durando. E eis-aqui, senhora, a historia Da pêga que ahi ves palrando, Da rosa que tem no bico, Da lettra que a está cercando. A pêga é negra e palreira, O que sabe vai contando: Mas quer Deus que os chocalheiros Guardem segredo fallando. O gavião, esse é outro; Vai ferido e vai voando: Mas não diz quem n’o feriu... Gavião, gavião branco! NOTAS [1] Alterou-se este plano; só se tracta por agora do _Romanceiro_. [2] Dez annos são passados e a promessa nem commeçou a cumprir-se (1853). Suppomos o A. receioso de arrostar com a audaciosa responsabilidade de historiador contemporaneo. [3] Serviu de prefacio á primeira ed. de Londres no anno de 1828. [4] O Sr. Duque de Ribas, bem conhecido na Europa hoje, tomou para epigraphe do seu _Moro-esposito_ este paragrapho da presente carta: não me desvanece por mim, mas dá-me gôsto que precedessemos os nossos vizinhos na restauração da poesia popular das Hespanhas. _Ed. de 1843._ [5] É o do Bernal Francez, n’este vol.—Vid. tambem o vol. II, pag. 121. [6] É o pensamento que agora se realiza. [7] O auctor esteve por espaço de tres mezes preso sem mais pretexto que o de ter tido parte em uma publicação censurada e impressa com todas as licenças necessarias. Não foi preso o censor, nem prohibida a publicação, nem no fim de tres mezes se achou materia de culpa! _Ed. de 1828._—O jornal era o Portuguez, cuja moderação em doutrina, e urbanidade em estylo ainda não foram imitadas. _Ed. de 1843._ [8] Está a pag. 101 do II vol. do ROMANCEIRO, liv. II, part. I, rom. 8. [9] Corrigiu-se comtudo agora ésta carta para a presente reimpressão, porque escripta muito á pressa em Londres logo ao chegar de Portugal, não tinha agora essa desculpa, que então podia valer. _Ed. de 1843._ [10] Ruinas de fortificações antigas em Campolide. Vid. notas no fim. [11] Aqueducto das aguas livres.—Vid. notas no fim. [12] Vid. ROMANCEIRO, liv. II, part. I, no tom. II, pag. 135. [13] Vid. loc cit. a nova traducção por M. Adamson, LUSITANIA ILLUSTRAT., part II. Newcastle 1846. Ésta segunda versão ingleza vem a pag. 142 do referido II vol. no ROMANCEIRO. E a pag. 151 ibid. a traducção castelhana do Sr. Isidoro Gil, já tam conhecida e appreciada entre nós. [14] Vid. a introducção ante, pag. 94. [15] Vigia. [16] Vid. nota no fim. [17] Fe, fee, fei. Vid. nota no fim. [18] Pé, pee, pei. Vid. nota no fim. [19] Vid. nota no fim. [20] Minstrelsy of the Scottish border etc. by Sir Walter Scott, mihi, ed. de Paris 1838—2 vol. pag. 125. [21] Vej. no livro II, part. I, o romance XIII, _Claralinda_, pag. 219 do 2.º vol.; e na part. II, o romance XVIII, _Conde Nillo_, pag. 19 do 3.º vol.; ibid. o romance XX a _Peregrina_, pag. 35, etc. [22] _Poèsie des Troubadours_, tom. VI, pag. 385. [23] Ap. Sanchez, tom I, pag. LVIII. [24] Le manuscrit du _Cancioneiro_ date du XIII siècle et les pièces qu’il contient semblent plus anciennes. Il a été publié à Paris en 1823 par Sir Ch. Stuart of Rothsay et tiré seulement à 23 exemplaires, dont aucun n’a été mis dans le commerce. Vid. a nova ed. do Sr. Varnhagen, Madrid 1851. [25] Pag. 339, note 1. [26] Vid. ante, pag. 164 d’este I do tomo do ROMANCEIRO. [27] Vid, ibid.; e tomo II do MINSTRELSY etc. de Sir. W. Scott. [28] Note pour la traduction [29] Jornal das Bellas-artes, Lisboa 1845, vol. I. [30] Mr. Zanole que foi depois, em 1848-1849, addido á legação franceza na China. [31] ILLUSTRAÇÃO, vol. II, n.º 5, 1 de Agosto 1846. NOTAS A ADOZINDA NOTA A O romance em que lhe fallei n’uma das minhas últimas cartas de Portugal pag. 3. A Adozinda foi começada em Campolide, ao-pé de Lisboa, no verão de 1827, concluida na cadeia do Limoeiro no fim d’esse mesmo anno, e publicada em Londres no outomno de 1828, em 1 vol., 12.º sem nome do auctor, e com a seguinte breve advertencia precedendo a carta ao sr. Duarte Lessa que era o verdadeiro prefacio: ‘ADVERTENCIA.—O auctor d’este romance, animado pelo lisongeiro favor que outras publicações suas teem merecido ao público portuguez e a distinctos litteratos extrangeiros, imprehende ésta nova publicação, cujo assumpto é tirado da antiquissima tradição popular e se refere aos mais remotos tempos e costumes de nossas epochas heroicas e maravilhosas. Espera elle que não desagradará aos amantes de um genero que fez a colossal reputação de Sir Walter Scott, e restituiu á antiga Escocia—na republica das lettras—o nome e independencia que ha tanto perdêra na ordem politica. ‘Aindaque em pouco habeis mãos, a lingua portugueza sahirá mais uma vez a próva singular de bisarria com as mais cultas e gabadas linguas da Europa: e será culpa do cavalleiro, não sua, se o premio da belleza e valentia lhe não for adjudicado por todo o juiz imparcial.’ (_Nota da segunda edição._) NOTA B Resummo da historia da lingua e da poesia portuguesa, que vem no I vol. do PARNASO-LUSITANO pag. 4. Foi o meu primeiro ensaio de critica litteraria, e muito ha que devo ao público reimprimi-lo emendando-o e additando-o, como tanto precisa. É trabalho que demanda porêm o vagar de outros cuidados e uma serenidade de espirito que não tenho tido. Heide fazê-lo e breve. (_Nota da terceira edição._) NOTA C Boscan gaba-se de haver introduzido na Peninsula os metros toscanos pag. 4. A expressão é inexacta: os Toscanos houveram os metros hendecasyllabos dos mesmos de quem nós os houvemos, dos trovadores. Vej. o Cancioneiro do Collegio dos Nobres. (_Nota da segunda edição._) NOTA D A lingua provençal, primeira culta da Europa pag. 6. Generalizaram ésta opinião no mundo os eruditos trabalhos de Mr. Raynouard: eu duvido hoje muito d’ella, isto é, formulada d’este modo. Estou inclinado a crer que houve uma lingua romance, que teve por base o Romano-rustico fallado, e que geralmente predominou nos paizes de dominação wisigothica desde a extrema Aquitania até o que hoje é Algarve; e que ésta lingua quasi-latina é o commum tronco do Provençal que morreu á nascença, do Aragonez que não passou da infancia, do Portuguez e do Castelhano que chegaram a perfeita maturidade, e de outros mais obscuros dialectos cujo desenvolvimento as circumstancias politicas e topographicas annullaram. Nem julgo difficil demonstrá-lo; mas não é aqui o logar, nem caberia no curto espaço de uma nota. (_Nota da segunda edição._) NOTA E Logo vieram esses trovadores de Provença... pag. 6. A simples leitura dos nossos cancioneiros mostra que aquella não era a poesia popular: os seus requebros, todos cortezãos e palacianos, desdizem da ruda singeleza e energica originalidade do trovar do povo. E comparados aquelles cantares de saraus com os fragmentos das xácaras e soláos que a tradição oral tem conservado, aindaque pervertidos e viciados como elles andam, ve-se que estes é que são a primitiva e legitima poesia nacional. (_Nota da segunda edição._) NOTA F As balladas de Bürger, os romances de Sir W. Scott pag. 7. Vej. na collecção intitulada _Minstrelsy of the Scottish border_ (cancioneiro das fronteiras da Scocia) a historia da renascença do genero popular na Gran’Bretanha contada pelo mesmo W. Scott. (_Nota da segunda edição._) NOTA G Cancioneiro do Collegio dos Nobres pag. 10. Ha tempos que se designa com este nome o Cancioneiro do tempo d’elrei D. Diniz que se guarda na livraria do que hoje é Escola Polytechnica, e era então Collegio dos Nobres. Copiou-o quando esteve ministro em Lisboa Sir Charles (depois Lord) Stuart, e em Paris o imprimiu, 25 exemplares creio eu, quando alli foi embaixador. Descubriram-se, ha poucos annos, na Bibliotheca de Evora algumas folhas que faltavam no manuscripto de Lisboa, e com este additamento se reimprimiu em Madrid ultimamente pelo zeloso cuidado do Sr. Varnhagem, ministro do Brasil n’aquella côrte. (_Nota da terceira edição._) NOTA H Canções que não serão talvez de Gonçalo Hermigues, etc. pag. 11. Éstas e todas as reliquias duvidosas do nosso romance irão todavia no logar e livro competente da actual collecção. (_Nota da terceira edição._) NOTA I Aquelle romancesinho de Gaia e do rei Ramiro pag. 12. É um curioso e rarissimo exemplar, documento notavel da litteratura portugueza do seculo dezesette. Intitula-se Gaia, e é impresso no Porto em um folheto de 4.º, com 15 ou 20 paginas. Tenho hoje grande pena de não ter tirado cópia inteira d’elle antes de o restituir ao meu amigo o Sr. Lessa, em cujo espólio deverá estar: mas não pude obter mais noticias d’elle; e outro exemplar não o vi nem sei de quem o visse. Começa com éstas duas oitavas que agora incontro, incompletas, entre os meus apontamentos. Todo o poema é na mesma rhyma. I Cantemos de Ramiro rei d’Hespanha E de el-rei Almançor de Berberia, Quando por desventura tam estranha, No mais de Hespanha então mouros havia, Com ânimo cruel, com cruel sanha Cadaqual ao outro pretendia Privar de sua fama, honra e estado, Com todas suas fôrças e cuidado. II D’esse Ramiro, digo, o esforçado, Que d’este nome tres com elle hão sido, D’âquelle que com Gaya foi casado Por quem tantos trabalhos ha soffrido... (_Nota da segunda edição._) Possuo hoje um exemplar completo que devo ao obsequioso cuidado do Sr. N. M. de Sousa Moura, distincto e letrado official do nosso exercito, que, talvez por isso, não occupa n’elle o logar que lhe pertence. (_Terceira edição._) NOTA K Adeante copio um dos mais curiosos (o do Bernal-francez) pag. 17 e 18. O romance d’este nome na primeira edição da ‘Adozinda’ em Londres ia inserto na presente carta: por melhor classificação vai agora separado. E o texto original, segundo o conservou a tradição dos povos, irá no logar competente do ‘Romanceiro’, mas muito mais correcto e melhorado agora pela collação das diversas versões que tenho obtido. (_Nota da segunda edição._) NOTA L Este terreno é sancto: inda estás vendo Alli aquelles restos mal poupados pag. 23 e 24. Em Campolide e nas alturas que avizinham o célebre aqueducto das _Aguas livres_ se incontram muitos restos de fortificações antigas e que parecem de diversas datas. O proprio nome de Campolide, abreviação de campo da-lide, ficou a este sitio da batalha que alli se deu nas guerras da acclamação de D. João I. Vej. Próvas genealogic., Duarte Nun. e quasi todos os nossos historiadores. (_Nota da primeira edição._) NOTA M ... Essas arcadas, Suberbas, elevadas pag. 24. O aqueducto das _Aguas-livres_ é o mais nobre e util monumento de Lisboa: edificou-o D. João V, que nem sempre impregou tam bem os immensos cabedaes dos thesouros do estado, que então regurgitavam com o ouro das minas do Brazil e de outras possessões portuguezas. D. João V todavia amou, ao menos protegeu, as artes e as lettras; foi culpa não sua mas do seculo, se de tam mau gôsto eram as lettras que protegeu. O crepusculo de nossa rehabilitação litteraria luziu em seu reinado. A isto alludem os versos: Um rei que amou as artes, rei pacífico A quem amor fadou Que seu fôsse e das musas, etc. Assim como alludem tambem a seus bem sabidos amores e espirito galanteador. D. João V tinha a ambição de querer imitar Luiz XIV, seu contemporaneo—até nas fraquezas. (_Nota da primeira edição._) NOTA N Lembra-te aquella historia Que ingenuo o povo nos seus trabalhos canta. pag. 29. É a xácara ou lenda da ‘Silvaninha’, cujo texto original vai no logar competente do ‘Romanceiro.’ (_Nota da segunda edição._) NOTA O É singela legenda de uma santa, Que por brutal amor sacrificada, Desvalida virtude, Só de crime escapou no seio á morte pag. 29. A tradição popular attribue ésta nefanda aventura a um rei que se namorou da sua propria filha, como a antiga Myrrha se namorára de seu pae.—Provavelmente ambas as duas anecdotas teem seu fundamento historico na chronica escandalosa das familias de alguns regulos ou senhores das diversas epochas. O observador curioso notará o differente character de duas historias tam similhantes, e colherá o essencial ponto em que o nosso _maravilhoso_ moderno differe da antiga mythologia, não tanto nos nomes de deuses e deusas e outros agentes sôbrenaturaes, mas principalmente no tom, na moral, na sensibilidade, e n’um certo não sei quê de ternura e melancholia que nos mais rudes e imperfeitos ensaios da poesia nacional se acha sempre como principal e dominante côr do quadro. A differença não está em chamar ao sol Apollo, ao amor Cupido, á guerra Marte; sim na maneira de conceber, de pensar, de pintar, de moralisar as mesmas ideas, as mesmas coisas por differente modo. (_Nota da primeira edição._) NOTA P Cantiga primeira pag. 33. Na primeira edição chamavam-se cantos as quatro partes d’este romance. Era dar-lhe uma pretenção de epopea que o pobre não tinha. Demais, cantiga é o nome popular verdadeiro, e por isso lh’o mudei para elle. Os antigos menestreis inglezes chamavam _fitts_—como quem diria _accesos_—os francezes _lays_—como quem diz _ramos_—às diversas secções em que partiam os seus romances mais longos. A partição fazia-se por causa do canto: e _cantiga_, ‘o que se póde cantar de uma vez’ parece portanto o mais proprio nome. O Cancioneiro do Collegio-dos-Nobres diz _cantares_. (_Nota da segunda edição._) NOTA Q Como os picos do Gerez Quando em Janeiro lhe neva pag. 34. O Gerez é serra altissima na provincia do Minho, de alpestres alcantis, coberta de plantas alpinas de curiosissima _flora_; as summidades conservam quasi todo o anno resplandecentes massas de gêlo. Ha nas faldas da serra as famosas aguas mineraes conhecidas pelo nome de caldas do Gerez. (_Nota da primeira edição._) NOTA R Mas pede Adozinda bella, Tal virtude e formosura, Quem lh’o hade negar a ella? Não póde o pae nem ninguem pag. 34 e 35. É uma occurrencia muito commum nos romances populares, e de sincera belleza homerica, ésta de negar o senhor do castello a poisada ao peregrino, mas ceder depois ás intercessões da filha compadecida, donzella innocente e malfadada, que quasi sempre vem a ser victima de sua propria bondade. Assim na lenda tam sabida e tam nacional de Sancta Iria: Pedia poisada, Meu pae lh’a negava; Mas eu tanto fiz Que porfim entrava. (_Nota da segunda edição._) NOTA S E guiaram seu pendão Para terras de Moirama pag. 37. Moirama, na phrase do povo, quer dizer terra de moiros. N’outro genero de poesia é certo que não ficaria bem o vocabulo, mas n’este quadra. (_Nota da primeira edição._) NOTA T Que tropel que vai nos paços De Landim aopé dos rios pag. 39. Em minha imaginação puz a scena d’este romance em um dos sitios mais pittorescos da mais formosa provincia de Portugal, o Minho. Landim (haverá mais terras do mesmo nome; ésta é a que eu conheço) é uma povoação pequena em que houve, outro tempo, uma famosa casa e pingue possessão de Jesuitas: fica perto dos rios Ave e Vizella, que não longe d’ahi se juntam para correr unidos a desimbocar em Villa-do-Conde e perder-se no mar. (_Nota da primeira edição._) NOTA U Que ou são sombras de finados, Ou de negras bruxas más Alli ha nocturna dança pag. 50. Éstas bôccas de cavernas, e outros recéssos—assim de bosques, montanhas e que taes, são em todos os paizes, pela imaginação do vulgo, povoados de entes mysteriosos e ás vezes malfazejos. Sombras de finados cantando seus hymnos terriveis, bruxas celebrando os torpes mysterios do seu _sabbado_, são cosmopolitas. A nossa mythologia popular tem mais outra especie de entes sobrenaturaes, que é privativa nossa.—São as _moiras incantadas_, que nem são bruxas, duendes nem fadas, mas lindas e amaveis creaturas que se divertem a incantar, a excitar os desejos dos pobres mortaes—e ás vezes, tam boas são! a satisfazê-los. Não é d’este logar o exame, que sería bem curioso, da mythologia nacional portugueza. Basta dizer, como o A. de D. Branca, que devemos explorar ésta mina tam ricca, e tam pouco lavrada, de bellezas poeticas originaes e novas que, sem imprestimo nem favor alheio, podêmos haver do nosso e de casa. (_Nota da primeira edição._) NOTA V Se a ha, não lhe acudiu Deus, Venceram peccados seus pag. 54. O povo é geralmente fatalista; e o nosso portuguez o mais fatalista que eu conheço. _Tinha de succeder, ra coisa que o perseguia_, e outras que taes razões, são a explicação de todo o phenomeno estranho que os surprehende. Aqui a cegueira da ignorancia leva pelo mesmo caminho que os desvarios da sciencia. A coisa é a mesma ao cabo: vaidade e presumpção humana. (_Nota da primeira edição._) NOTA X Mas diz que não ha condão Peior que o da maldicção pag. 59. A maldicção do pae desacatado, ou do pobre maltrattado, passam entre o povo por ser as mais terriveis e inevitaveis. Atéqui a moral de accôrdo com a crença vulgar. Mas a maldicção, hereditaria em seus effeitos, é outra parte d’este dogma popular que em verdade repugna.—É certo porêm que se é acaso, o acaso tem servido muito bem os fautores d’aquella crença. (_Nota da primeira edição._) NOTA Y Ah! essa alma corrompida Mais do que teu corpo estava pag. 67. O leitor verá n’esta passagem, no conselho de Auzenda á filha, em muitos logares d’esta e da cantiga IV principalmente, quanto fiz por me conservar perto do romance primitivo, assim no pensamento como até na phrase e stylo, tanto quanto o permittia a decencia, e outras vezes a correcção da phrase, e ja tambem a indole do meu romance. (_Nota da primeira edição._) NOTA Z Sette annos e um dia Foi a sentença cruel Que Adozinda cumpriria pag. 72. Sette annos e um dia é o periodo mysterioso de quasi todos os nossos contos de fadas, incantamentos e coisas similhantes. No mui galante romance do _Caçador_, que é um dos mais queridos do povo, se diz: Sette fadas me fadaram Nos braços de mi’ madrinha, Que estivesse aqui sette annos, Sette annos e mais um dia. O numero sette é mysterioso em todos os povos, mas ésta expressão algebrico-negromantica de 7 + 1 creio que é só portugueza. (_Nota da primeira edição._) É de toda a peninsula. Vej. os romanceros castelhanos. (_Nota da segunda edição._) NOTA AA Arreda, arreda, infanções, Cavalleiros, dae logar pag. 78. Veja o glossario de S.ta Rosa para ampla explicação do que eram _infanções_ entre nós. Para intelligencia d’esta passagem basta saber-se que era uma especie de vassallos mais distinctos. (_Nota da primeira edição._) NOTA BB E por senhor reconhecem Ao ricco-homem de Landim pag. 80. Sôbre _ricco-homem_, veja o mesmo glossario. A dignidade de ricco-homem perfeitamente obsoleta em Portugal, ainda a mencionam os fidalgos castelhanos em seus titulos. Ricco-homem, naturalmente, quer dizer magnata, da primeira aristocracia, _procer_, grande senhor. (_Nota da primeira edição._) NOTA CC E essa voz diziam todos Que era a voz de Dom Sisnando pag. 85. Ésta especie de _vindicta-pública_, com que o povo stigmatisa a memoria dos malvados e grandes criminosos, é muito provavelmente a origem das almas-do-outro-mundo, dos _revenants_, vampiros, etc., etc. Se se procurar bem a fonte primitiva de todas as fábulas, ver-se-ha que não ha credulidade mythologica que não tenha por base o instincto da moral e da justiça, commum a todos os povos. (_Nota da primeira edição._) AO BERNAL-FRANCEZ NOTA A ‘Quem bate á minha porta, Quem bate, oh! quem ’stá ahi?’ pag. 97. Por estes versos começa o romance original, tradicionalmente conservado na memoria do povo, e sómente impresso a primeira vez em Londres na primeira edição da Adozinda em 1828. Ja n’outra parte se deram as razões por que irá agora esse texto no logar competente do Romanceiro, no segundo livro e segundo volume d’elle. (_Nota da segunda edição._) NOTA B For knowest thou not, where softest swell pag. 107. A versão ingleza, quasi sempre litteral, afasta-se aqui do texto sensivelmente, mas sem alterar as proprias ideas, sómente a fórma d’ellas. (_Nota da segunda edição._) Á NOITE DE SAN’JOÃO NOTA A Té os moiros na Moirama Festejam a San’João pag. 119. É uma cantiga popular do Minho ainda hoje cantada por toda essa noite de San’João, que n’aquellas terras ninguem dorme, como é sabido. A superstição da alcachofa é toda do Sul, toda lisboeta, talvez coirman d’aquellas de dia de Maio que o catholico senado municipal votou e prometteu a Nossa Senhora da Escada de acabar para sempre. Mas San’João fez-se um santo de exemplar tolerancia desde que lhe tiraram a cabeça por elle não podêr ver, sem ralhar, as desinvoltas pernas da baiadera Herodias. Não quero folgar com o que é serio: mas é notavel que a devoção quasi universal dos christãos tomasse para patrono e orago de seus mais livres folgares e festanças, e lhe consagrasse a mais risonha e lasciva estação do anno, ao austero percursor do Christo, o jejuador penitente do deserto, o severo censor da soltura cortezan, o protomartyr da moralidade evangelica. Sería que a timida singelleza de nossos passados fôsse de proposito buscar aquelle austero e invisivel inspector de seus ainda então innocentes brinquedos? (_Nota da segunda edição._) AO CHAPIM D’ELREI NOTA A Nós temos, se me não ingano, no genero narrativo popular as tres especies, romance, xácara, soláo pag. 142. Ésta classificação é em parte conjectural, ou para fallar com mais propriedade, sim ésta é a regra, mas com tantas excepções que chegam a fazer duvidar d’ella. Os que escreviam e compunham n’aquelles tempos primitivos curavam pouco de cingir-se a regras ou classificações. D’ahi veio uma certa anarchia, constituida e fundada no exemplo, ou na falta d’elle, que se prolongou por muitos seculos depois. A respeito de soláos, por exemplo, temos para abonar a definição que d’elles se dá no logar annotado, a auctoridade immensa de Bernardim Ribeiro na _Menina e Môça_: ahi cap. 21. Pondo-se a ama a pençar a menina sua criada como sohia, como pessoa agastada de algua noua dor, se quiz tornar ás cantigas, e começou ella entam contra a menina que estaua pençando, a cantar-lhe um cantar á maneira de soláo, que era o que nas coisas tristes se acostumava nestas partes: e dizia assi: etc. Mas por outra parte, temos o não menos grave pêso de Sá-de-Miranda na egloga 4: Que se os velhos soláos fallam verdade, Bem sabe ella por próva como Amor Magôa, e averá de mi piedade. Da primeira citação parece concluir-se que o soláo é, como deixo ditto, um cantar todo lyrico, de tristeza e lamentos: na segunda considera-se como narrativo e usurpando propriamente a provincia do romance. (_Nota da segunda edição._) Vej. o que a este respeito se escreve no liv. II do ROMANCEIRO. (_Nota da terceira edição._) NOTA B Antes ser pobre e villan, Antes, pela minha fei pag. 146. Nas provincias transtaganas e em muitas das ilhas adjacentes pronunciam-se as palavras _fé_, _pé_ e similhantes—_fei_, _pei_, etc. Talvez seja devido á antiga orthographia que nas vogaes longas, _a_, _e_, dobrava as lettras em vez de as carregar com assento grave ou agudo. O povo, que sempre foge dos hyatos, preferiu mudar a última lettra, fazendo o som mais suave. (_Nota da segunda edição._) NOTA C Sem bulir nem mão nem pei pag. 149. Vej. a nota antecedente. (_Idem._) Á ROSALINDA NOTA A Era por manhan de maio Quando as aves a piar pag. 163. O mez de maio foi sempre o valido dos poetas populares de todas as nações: um sem-número de cantigas dos trovadores provençaes, dos menestreis normandos e saxonios, dos _minnesingers_ allemães começam com éstas alegrias do mez de maio. Citarei dos minnesingers de que aqui incontro apontamentos, por serem os menos conhecidos entre nós. Uma bella canção do tyrolez Steinmar começa: Ich will gruen mit der sat Dú so wunneklichen stat; Ich wil mit dien bluomen bluen, Und mit den voheling singen: Ich wil louben so der walt, Sam dú heide sin gestalt: etc. Outra do margrave Othon de Brandeburgo: Uns kumt aber ein liehter meie Der machet manig herze fruat, etc. Estoutra do duque de Breslan é uma especie de drama lyrico entre o poeta, Maio, as flores, o bosque e o prado: Ich clage dir, meie, ich elage dir, sumer wunne! etc. Herzog Heinrich von Pressela, IV do nome, reinou de 1266 a 1299, e foi o objecto dos elogios de todos os poetas do seu tempo. A cantiga citada é uma das mais bellas e extraordinarias composições d’aquelles seculos. (_Nota da segunda edição._) FIM DO VOLUME PRIMEIRO INDICE Pag. INTRODUCÇÃO dos Editores na terceira edição V do A. na segunda edição VII ROMANCEIRO, LIVRO I 1 I Adozinda 33 II Bernal-francez 87 III Noite de San’João 115 IV O Anjo e a Princeza 123 V O chapim d’elrei 139 VI Rosalinda 157 VII Miragaia 179 VIII As Pêgas de Cintra 235 NOTAS 247 *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK ROMANCEIRO I: ROMANCES DA RENASCENÇA *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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