The Project Gutenberg eBook of O Guarany: romance brazileiro, Vol. 1 (of 2)

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Title: O Guarany: romance brazileiro, Vol. 1 (of 2)

Author: José Martiniano de Alencar

Release date: March 28, 2022 [eBook #67724]

Language: Portuguese

Original publication: Brazil: B. L. Garnier

Credits: Laura Natal Rodrigues and Kristen Carmean (Images generously made available by Hathi Trust Digital Library.)

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK O GUARANY: ROMANCE BRAZILEIRO, VOL. 1 (OF 2) ***


J. DE ALENCAR


O
GUARANY

ROMANCE BRAZILEIRO


QUINTA EDIÇÃO


TOMO PRIMEIRO


RIO DE JANEIRO

B.-L. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR
71, RUA DO OUVIDOR, 71
PARIS.—E. MELLIER, 17, RUA SÉGUIER.


Ficão reservados os direitos de propriedade.


1883


AO LEITOR


Publicando este livro em 1857, se disse ser aquella primeira edição uma prova typographica, que algum dia talvez o autor se dispuzesse a rever.

Esta nova edição devia dar satisfação do empenho, que a extrema benevolencia do publico ledor, tão minguado ainda, mudou em bem para divida de reconhecimento.

Mais do que podia fiou de si o autor. Relendo a obra depois de annos, achou elle tão mau e incorrecto quando escrevera, que para bem corrigir, fora mister escrever de novo. Para tanto lhe carece o tempo e sobra o tedio de um labor ingrato.

Cingio-se pois ás pequenas emendas que toleravão o plano da obra e o desalinho de um estylo não castigado.


INDICE

PRIMEIRA PARTE
OS AVENTUREIROS

SEGUNDA PARTE
PERY


PRIMEIRA PARTE
OS AVENTUREIROS


I
SCENARIO

De um dos cabeços da Serra dos Órgãos deslisa um fio d'agua que se dirige para norte, e engrossado com os mananciaes, que recebe no seu curso de dez leguas, torna-se rio caudal.

É o Paquequer: soltando de cascata em cascata, enroscando-se como uma serpente, vai depois se espreguiçar na varzea e embeber no Parahyba, que rola magestosamente em seu vasto leito.

Dir-se-hia que vassallo e tributario desse rei das aguas, o pequeno rio, altivo e sobranceiro contra os rochedos, curva-se humildemente aos pés do suzerano. Perde então a belleza selvatica; suas ondas são calmas e serenas como as de um lago, e não se revoltão contra os barcos e as canôas que resvalão sobre ellas: escravo submisso, soffre o latego do senhor.

Não é neste lugar que elle deve ser visto; sim tres ou quatro leguas acima de sua foz, onde é livre ainda, como o filho indomito desta patria da liberdade.

Ahi, o Paquequer lança-se rapido sobre o seu leito, e atravessa as florestas como o tapir, espumando, deixando o pello esparso pelas pontas de rochedo, e enchendo a solidão com o estampido de sua carreira. De repente, falta-lhe o espaço, foge-lhe a terra; o soberbo rio recúa um momento para concentrar as suas forças e precipita-se de um só arremesso, como o tigre sobre a presa.

Depois, fatigado do esforço supremo, se estende sobre a terra, e adormece n'uma linda bacia que a natureza formou, e onde o recebe como em um leito de noiva, sob as cortinas de trepadeiras e flores agrestes.

A vegetação nessas paragens ostentava outr'ora todo o seu luxo e vigor; florestas virgens se estendião ao longo das margens do rio, que corria no meio das arcarias de verdura e dos capiteis formados pelos leques das palmeiras.

Tudo era grande e pomposo no scenario que a natureza, sublime artista, tinha decorado para os dramas magestosos dos elementos, em que o homem é apenas um simples comparsa.

No anno do graça de 1604, o lugar que acabamos de descrever estava deserto e inculto; a cidade do Rio de Janeiro tinha-se fundado havia menos de meio seculo, e a civilisação não tivera tempo de penetrar o interior.

Entretanto, via-se á margem direita do rio uma casa larga e espaçosa, construida sobre uma eminencia, e protegida de todos os lados por uma muralha de rocha cortada a pique.

A esplanada, sobre que estava assentado o edificio, formava um semicirculo irregular que teria quando muito cincoenta braças quadradas: do lado do norte havia uma especie de escada de lagedo feita metade pela natureza e metade pela arte.

Descendo dous ou tres dos largos degráos de pedra da escada, encontrava-se uma ponte de madeira solidamente construida sobre uma fenda larga e profunda que se abria na rocha. Continuando a descer, chegava-se á beira do rio, que se curvava em seio gracioso; sombreado pelas grandes gameleiras e angelins que crescião ao longo das margens.

Ahi, ainda a industria do homem tinha aproveitado habilmente a natureza para crear meios de segurança e defeza.

De um e outro lado da escada seguião dous renques de arvores, que, alargando gradualmente, ião fechar como dous braços o seio do rio; entre o tronco dessas arvores, uma alta cerca de espinheiros tornava aquelle pequeno valle impenetravel.

A casa era edificada com a architectura simples e grosseira, que ainda apresentão as nossas primitivas habitações; tinha cinco janellas de frente, baixas, largas, quasi quadradas.

Do lado direito estava a porta principal do edificio, que dava sobre um pateo cercado por uma estacada, coberta de melões agrestes. Do lado esquerdo estendia-se até á borda da esplanada uma aza do edificio, que abria duas janellas sobre o desfiladeiro da rocha.

No angulo que esta aza fazia com o resto da casa, havia uma cousa que chamaremos jardim, e de facto era uma imitação graciosa de toda a natureza rica, vigorosa e esplendida, que a vista abraçava do alto do rochedo.

Flores agrestes das nossas mattas, pequenas arvores copadas, um estandal de relvas, um fio d'agua, fingindo um rio e formando uma pequena cascata tudo isto a mão do homem tinha creado no peqneno espaço com uma arte e graça admiravel.

Á primeira vista, olhando esse rochedo da altura de duas braças, donde se precipitava um arroio da largura de um copo d'agua, e o monte de gramma, que tinha quando muito o tamanho de um divan, parecia que a natureza se havia feito menina, e se esmerara em crear por capricho uma miniatura.

O fundo da casa, inteiramente separado do resto da habitação por uma cerca, era tomado por dous grandes armazens ou senzalas, que servião de morada a aventureiros e acostados.

Finalmente, na extrema do pequeno jardim, á beira do precipicio, via-se uma cabana de sapé, cujos esteios erão duas palmeiras que havião nascido entre as fendas das pedras. As abas do tecto descião até o chão: um ligeiro sulco privava as aguas da chuva de entrar nesta habitação selvagem.

Agora que temos descripto o aspecto da localidade, onde se deve passar a maior parte dos acontecimentos desta historia, podemos abrir a pesada porta de jacarandá que serve de entrada, e penetrar no interior do edificio.

A sala principal, o que chamamos ordinariamente sala da frente, respirava um certo luxo que parecia impossivel existir nessa época em um deserto, como era então aquelle sitio.

As paredes e o tecto erão caiados, mas cingidos por um largo florão de pintura a fresco; nos espaços das janellas pendião dous retratos que representavão um fidalgo velho e uma dama tambem idosa.

Sobre a porta do centro desenhava-se um brasão d'armas em campo de cinco vieiras de ouro, riscadas em cruz entre quatro rosas de prata sobre pallas e faixas. No escudo, formado por uma brica de prata, orlada de vermelho, via-se um elmo tambem de prata paquife de ouro e de azul, e por timbre um meio leão de azul com uma vieira de ouro sobre a cabeça.

Um largo reposteiro de damasco vermelho, onde se reproduzia o mesmo brasão, occultava esta porta, que raras vezes se abria, e dava para um oratorio. Defronte, entre as duas janellas do meio, havia um pequeno docel fechado por cortinas brancas com apanhados azues.

Cadeiras de couro de alto espaldar, uma mesa de jacarandá de pés torneados, uma lampada de praia suspensa ao tecto, constituião a mobilia da sala, que respirava um ar severo e triste.

Os aposentos interiores erão do mesmo gosto, menos as decorações heraldicas; na aza do edificio, porém, esse aspecto mudava de repente, e era substituido por um quer que seja de caprichoso e delicado que revelava a presença de uma mulher.

Com effeito, nada mais loução do que essa alcova, em que os brocateis de seda se confundião com as lindas pennas de nossas aves, enlaçadas em grinaldas e festões pela orla do tecto e pela cupola do cortinado de um leito collocado sobre um tapete de pelles de animaes selvagens.

A um canto, pendia da parede um crucifixo em alabastro, aos pés do qual havia um escabello de madeira dourada.

Pouco distante, sobre uma commoda, via-se uma dessas guitarras hespanholas que os ciganos introduzirão no Brasil quando expulsos de Portugal, e uma collecção de curiosidades mineraes de côres mimosas e formas exquisitas.

Junto á janella, havia um traste que á primeira vista não se podia definir; era uma especie de leito ou sofá de palha matisada de varias côres e entremeiada de pennas negras e escarlates.

Uma garça real empalada, prestes a desatar o vôo, segurava com o bico a cortina de tafetá azul que ella abria com a ponta de suas azas brancas e cahindo sobre a porta, vendava esse ninho da innocencia aos olhos profanos.

Tudo isto respirava um suave aroma de beijoim, que se tinha impregnado nos objectos como o seu perfume natural, ou como a atmosphera do paraiso que uma fada habitava.


II
LEALDADE

A habitação que descrevemos, pertencia a D. Antonio de Mariz, fidalgo portuguez cota d'armas e um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro.

Era dos cavalheiros que mais se havião distinguido nas guerras da conquista, contra a invasão dos francezes e os ataques dos selvagens.

Em 1567 acompanhou Mem de Sá ao Rio de Janeiro, e depois da victoria alcançada pelos portuguezes, auxiliou o governador nos trabalhos da fundação da cidade e consolidação do dominio de Portugal nessa capitania.

Fez parte em 1578 da celebre expedição do Dr.Antonio de Salema contra os francezes, que havião estabelecido uma feitoria en Cabo Frio para fazerem o contrabando de páo-brasil.

Servio por este mesmo tempo de provedor da real fazenda, e depois da alfandega do Rio de Janeiro; mostrou sempre nesses empregos o seu zelo pela republica e a sua dedicação ao rei.

Homem de valor, experimentado na guerra, activo, affeito a combater os indios, prestou grandes serviços nas descobertas e explorações do interior de Minas e Espirito Santo. Em recompensa do seu merecimento, o governador Mem de Sá lhe havia dado uma sesmaria de uma legua com fundo sobre o sertão, a qual depois de haver explorado, deixou por muito tempo devoluta.

A derrota de Alcacerquibir, e o dominio hespanhol que se lhe seguio, vierão modificar a vida de D. Antonio de Mariz.

Portuguez de antiga tempera, fidalgo leal, entendia que estava preso ao rei de Portugal pelo juramento da nobreza, e que só a elle devia preito e menagem. Quando pois, em 1582, foi acclamado no Brasil D. Filippe II como o successor da monarchia portugueza, o velho fidalgo embainhou a espada e retirou-se do serviço.

Por algum tempo esperou a projectada expedição de D. Pedro da Cunha, que pretendeo transportar ao Brasil a coroa portugueza, collocada então sobre a cabeça do seu legitimo herdeiro, D. Antonio, prior do Crato.

Depois, vendo que esta expedição não se realisava, e que seu braço e sua coragem de nada valião ao rei de Portugal, jurou que ao menos lhe guardaria fidelidade até a morte. Tomou os seus penates, o seu brasão, as suas armas, a sua familia, e foi estabelecer-se naquella sesmaria que lhe concedera Mem de Sá. Ahi, de pé sobre a eminencia em que ia assentar o seu novo solar, D. Antonio de Mariz erguendo o vulto direito, e lançando um olhar sobranceiro pelos vastos horizontes que abrião em torno, exclamou:

—Aqui sou portuguez! Aqui pode respirar á vontade um coração leal, que nunca desmentio a fé do juramento. Nesta terra que me foi dada pelo meu rei, e conquistada pelo meu braço, nesta terra livre, tu reinarás, Portugal, como viverás n'alma de teus filhos. Eu o juro!

Descobrindo-se, curvou o joelho em terra, e estendeo a mão direita sobre o abysmo, cujos échos adormecidos repetirão ao longe a ultima phrase do juramento prestado sobre o altar da natureza, em face do sol que transmontava.

Isto se passara em abril de 1593; no dia seguinte, começárão os trabalhos da edificação de uma pequena habitação que servia de residencia provisoria, até que os artesãos vindos do reino construirão e decorárão a casa que já conhecemos.

D. Antonio tinha ajuntado fortuna durante os primeiros annos de sua vida aventureira; e não só por capricho de fidalguia, mas em attenção á sua familia, procurava dar a essa habitação construida no meio de um sertão, todo o luxo e commodidade possiveis.

Além das expedições que fazia periodicamente á cidade do Rio de Janeiro, para comprar fazendas e generos de Portugal, que trocava pelos productos da terra, mandara vir do reino alguns officiaes mecanicos e hortelãos, que aproveitavão os recursos dessa natureza tão rica, para proverem os seus habitantes de todo o necessario.

Assim, a casa era um verdadeiro solar de fidalgo portuguez, menos as ameias e a barbacan, as quaes havião sido substituidas por essa muralha de rochedos inaccessiveis, que offerecião uma defeza natural e uma resistencia inexpugnavel.

Na posição em que se achava, isto era necessario por causa das tribus selvagens, que, embora se retirassem sempre das visinhanças dos lugares habitados pelos colonos, e se entranhassem pelas florestas, costumavão comtudo fazer correrias e atacar os brancos á traição.

Em um circulo de uma legua da casa, não havia senão algumas cabanas em que moravão aventureiros pobres, desejosos de fazer fortuna rapida, e que tinhão-se animado a se estabelecer neste lugar, em parcerias de dez e vinte, para mais facilmente praticarem o contrabando do ouro e pedras preciosas, que ião vender na costa.

Estes, apezar das precauções que tomavão contra os ataques dos indios, fazendo palissadas e reunindo-se uns aos outros para defeza commum, em occasião de perigo vinhão sempre abrigar-se na casa de D. Antonio de Mariz, a qual fazia as vezes de um castello feudal na idade media.

O fidalgo os recebia como um rico-homem que devia protecção e asylo aos seus vassallos; soccorria-os em todas as suas necessidades, e era estimado e respeitado por todos que vinhão, confiados na sua visinhança, estabelecer-se por esses lugares.

Deste modo, em caso de ataques dos indios, os moradores da casa do Paquequer não podião contar senão com os seus proprios recursos; e por isso D. Antonio, como homem pratico e avisado que era, havia-se premunido para qualquer occurrencia.

Elle mantinha, como todos os capitães de descobertas daquelles tempos coloniaes, uma banda de aventureiros que lhe servião nas suas explorações e correrias pelo interior; erão homens ousados, destemidos, reunindo ao mesmo tempo aos recursos do homem civilisado a astucia e agilidade do indio de quem havião aprendido; erão uma especie de guerrilheiros, soldados e selvagens ao mesmo tempo.

D. Antonio de Mariz, que os conhecia, havia estabelecido entre elles uma disciplina militar rigorosa, mas justa; a sua lei era a vontade do chefe; o seu dever a obediencia passiva, o seu direito uma parte igual na metade dos lucros. Nos casos extremos, a decisão era proferida por um conselho de quatro, presidido pelo chefe; e cumpria-se sem appello, como sem demora e hesitação.

Pela força da necessidade, pois, o fidalgo se havia constituido senhor de baraço e cutello, de alta e baixa justiça dentro dos seus dominios; devemos porém declarar que rara vez se tornara precisa a applicação dessa lei rigorosa; a severidade tinha apenas o effeito salutar de conservara ordem, a disciplina e a harmonia.

Quando chegava a epocha da venda dos productos, que era sempre anterior á sahida da armada de Lisboa, metade da banda dos aventureiros ia á cidade do Rio de Janeiro, apurava o ganho, fazia a troca dos objectos necessarios, e na volta prestava suas contas. Uma parte dos lucros pertencia ao fidalgo, como chefe; a outra era distribuida igualmente pelos quarenta aventureiros, que a recebião em dinheiro ou em objectos de consumo.

Assim vivia, quasi nomeio do sertão, desconhecida e ignorada essa pequena communhão de homens, governando-se com as suas leis, os seus usos e costumes; unidos entre si pela ambição da riqueza, e ligados ao seu chefe pelo respeito, pelo habito da obediencia e por essa superioridade moral que a intelligencia e a coragem exercem sobre as massas.

Para D. Antonio e para seus companheiros a quem elle havia imposto a sua fidelidade, esse torrão brazileiro, esse pedaço de sertão, não era senão um fragmento de Portugal livre, de sua patria primitiva; ahi só se reconhecia como rei ao duque de Bragança, legitimo herdeiro da corôa; e quando se corrião as cortinas do docel da sala, as armas que se vião, erão as cinco quinas portuguezas, diante das quaes todas as frontes inclinavão.

D. Antonio tinha cumprido o seu juramento de vassallo leal; e, com a consciência tranquilla por ter feito o seu dever, com a satisfação que dá ao homem o mando absoluto, ainda mesmo em um deserto, rodeado de seus companheiros que elle considerava amigos, vivia feliz no seio de sua pequena familia.

Esta se compunha de quatro pessoas:

Sua mulher, D. Lauriana, dama paulista, imbuida de todos os prejuizos de fidalguia e de todas os abusões religiosas daquelle tempo; no mais, um bom coração, um pouco egoista, mas não tanto que não fosse capaz de um acto de dedicação:

Seu filho, D. Diogo de Mariz, que devia mais tarde proseguir na carreira de seu pai, e que lhe succedeo em todas as honras e foraes; ainda moço na flor da idade, gastava o tempo em correrias e caçadas:

Sua filha, D. Cecilia, que tinha dezoito annos, e que era a deusa desse pequeno mundo que ella illuminava com o seu sorriso, e alegrava com o seu genio travesso e a sua mimosa faceirice:

D. Isabel, sua sobrinha, que os companheiros de D. Antonio, embora nada dissessem, suspeitavão ser o fructo dos amores do velho fidalgo por uma india que havia captivado em uma das suas explorações.

Demorei-me em descrever a scena e fallar de algumas das principaes personagens deste drama porque assim era preciso para que bem se comprehendão os acontecimentos que depois se passárão.

Deixarei porém que os outros perfis se desenhem por si mesmos.


III
A BANDEIRA

Era meio dia.

Um troço de cavalleiros, que constaria quando muito de quinze pessoas, costeava a margem direita do Parahyba.

Estavão todos armados da cabeça até aos pés; além da grande espada de guerra que batia as ancas do animal, cada um delles trazia á cinta dous pistoletes, um punhal na ilharga do calção, e o arcabuz passado a tiracollo pelo hombro esquerdo.

Pouco adiante, dous homens a pé tocavão alguns animaes carregados de caixas e outros volumes cobertos com uma sarapilheira alcatroada, que os abrigava da chuva.

Quando os cavalleiros, que seguião a trote largo, vencião a pequena distancia que os separava da tropa, os dous caminheiros, para não atrazarem a marcha, montavão na garupa dos animaes e ganhavão de novo a dianteira.

Naquelle tempo dava-se o nome de bandeiras a essas caravanas de aventureiros que se entranhavão pelos sertões do Brasil, á busca de ouro, de brilhantes e esmeraldas, ou á descoberta de rios e terras ainda desconhecidos. A que nesse momento costeava a margem do Parahyba, era da mesma natureza; voltava do Rio de Janeiro, onde fora vender os productos de sua expedição pelos terrenos auriferos.

Uma das occasiões, em que os cavalleiros se aproximarão da tropa que seguia á alguns passos, um moço de vinte e oito annos, bem parecido, e que marchava á frente do troço, governando o seu cavallo com muito garbo e gentileza, quebrou o silencio geral.

—Vamos, rapazes! disse elle alegremente aos caminheiros; um pouco de diligencia, e chegaremos com cedo. Restão-nos apenas umas quatro leguas!

Um dos bandeiristas, ao ouvir estas palavras, chegou as esporas á cavalgadura e avançando algumas braças collocou-se ao lado do moço.

—Ao que parece, tendes pressa de chegar, Sr. Alvaro de Sá? disse elle com um ligeiro accenio italiano, e um meio sorriso cuja expressão de ironia era disfarçada por uma benevolencia suspeita.

—De certo, Sr. Loredano; nada é mais natural a quem viaja, do que o desejo de chegar.

—Não digo o contrario; mas confessareis que nada tambem é mais natural a quem viaja, do que poupar os seus animaes.

—Que quereis dizer com isto, Sr. Loredano? perguntou Alvaro com um movimento de enfado.

—Quero dizer, Sr. cavalheiro, respondeo o italiano em tom de mofa e medindo com os olhos a altura do sol, que chegaremos hoje pouco antes das seis horas.

Alvaro corou.

—Não vejo em que isto vos causa reparo; á alguma hora haviamos chegar; e melhor é que seja de dia, do que de noite.

—Assim como melhor é que seja em um sabbado do que em outro qualquer dia! replicou o italiano no mesmo tom.

Um novo rubor assomou ás faces de Alvaro, que não pôde disfarçar o seu enleio: mas, recobrando o desembaraço, soltou uma risada, e respondeo:

—Ora, Deus, Sr. Loredano: estais ahi a fallar-me na ponta dos beiços e com meias palavras; á fé de cavalheiro que não vos entendo.

—Assim deve ser. Diz a escriptura que não ha peior surdo do que aquelle que não quer ouvir.

—Oh! temos anexim! Aposto que aprendestes isto agora em S. Sebastião: foi alguma velha beata, ou algum licenciado em cânones que vol-o ensinou? disse o cavalheiro gracejando.

—Nem um nem outro, Sr. cavalheiro; foi um fanqueiro da rua dos Mercadores, que por signal tambem me mostrou custosos brocados e lindas arrecadas de perolas, bem proprias para o mimo de um gentil cavalheiro á sua dama.

Alvaro enrubeceo pela terceira vez.

Decididamente o sarcastico italiano, com o seu espirito mordaz, achava meio de ligar a todas as perguntas do moço uma allusão que o incommodava; e isto no tom o mais natural do mundo.

Alvaro quiz cortar a conversação neste ponto; mas o seu companheiro proseguio com extrema amabilidade:

—Não entrastes por acaso na loja desse fanqueiro de que vos fallei, Sr. cavalheiro?

—Não me lembro; é de crer que não, pois apenas tive tempo de arranjar os nossos negocios, e nem um me restou para vêr essas galantarias de damas e fidalgas; disse o moço com frieza.

—É verdade! acudio Loredano com uma ingenuidade simulada; isto me faz lembrar que só nos demorámos no Rio de Janeiro cinco dias, quando das outras vezes erão nunca menos de dez e quinze.

—Tive ordem para haver-me com toda a rapidez; e creio, continuou fitando no italiano um olhar severo, que não devo contas de minhas acções senão áquelles a quem dei o direito de pedi-las.

Per Bacco, cavalheiro! Tomais as cousas ao revez. Ninguem vos pergunta por que motivo fazeis aquillo que vos praz: mas tambem achareis justo que cada um pense á sua maneira.

—Pensai o que quizerdes! disse Alvaro levantando os hombros e avançando o passo da sua cavalgadura.

A conversa interrompeo-se.

Os dous cavalleiros, um pouco adiantados ao resto do troço, caminhavão silenciosos uma par do outro.

Alvaro ás vezes enfiava o olhar pelo caminho como para medir a distancia que ainda tinhão de percorrer, e outras vezes parecia pensativo e preoccupado.

Nestas occasiões, o italiano lançava sobre elle um olhar á furto, cheio de malicia e ironia; depois continuava a assobiar entre dentes uma cansoneta de condottiere, de quem elle apresentava o verdadeiro typo.

Um rosto moreno, coberto por uma longa barba negra, entre a qual o sorriso desdenhoso fazia brilhara alvura de seus dentes; olhos vivos, a fronte larga, descoberta pelo chapéo desabado que cahia sobre o hombro; alta estatura, e uma constituição forte, agil e musculosa; erão os principaes traços deste aventureiro.

A pequena cavalgata tinha deixado a margem do rio, que não offerecia mais caminho, e tomára por uma estreita picada aberta na matta.

Apezar de ser pouco mais de duas horas, o crepusculo reinava nas profundas e sombrias abobadas de verdura: a luz, coando entre a espessa folhagem, se decompunha inteiramente; nem uma restea de sol penetrava nesse templo da creação, ao qual servião de columnas os troncos seculares dos acaris e araribás.

O silencio da noite, com os seus rumores vagos e indecisos e os seus échos amortecidos, dormia no fundo dessa solidão, e era apenas interrompido um momento pelo passo dos animaes, que fazião estalar as folhas seccas.

Parecia que devião ser seis horas da tarde, e que o dia cahindo envolvia a terra nas sombras pardacentas do occaso.

Alvaro de Sá, embora habituado a esta illusão, não pôde deixar de sobresaltar-se um instante, em que, sahindo da sua meditação, vio-se de repente nomeio do claro-escuro da floresta.

Involuntariamente ergueo a cabeça para vêr se atravez da cupola de verdura descobria o sol, ou pelo menos alguma scentelha de luz que lhe indicasse a hora.

Loredano não pôde reprimir a risada sardonica que lhe veio aos labios.

—Não vos dê cuidado, Sr. cavalheiro, antes de seis horas lá estaremos; sou eu que vo-lo digo.

O moço voltou-se para o italiano, rugando o sobrolho.

Sr. Loredano, é a segunda vez que dizeis esta palavra em um tom que me desagrada; pareceis querer dar a entender alguma cousa, mas falta-vos o animo de a proferir. Uma vez por todas, fallai abertamente, e Deus vos guarde de tocar em objectos que são sagrados.

Os olhos do italiano lançárão uma faisca; mas o seu rosto conservou-se calmo e sereno.

—Bem sabeis que vos devo obediência, Sr. cavalheiro, e não faltarei della. Desejais que falle claramente; e a mim me parece que nada do que tenho dito póde ser mais claro do que é.

—Para vós, não duvido; mas isto não é razão de que o seja para outros.

Ora dizei-me, Sr. cavalheiro, não vos parece claro, á vista do que me ouvistes, que adevinhei o vosso desejo de chegar o mais depressa possivel?

—Quanto a isto, já vos confessei eu; não ha pois grande merito em adevinhar.

—Não vos parece claro tambem que observei haverdes feito esta expedição com a maior rapidez, de modo que em menos de vinte dias eis-nos ao cabo della?

—Já vos disse que tive ordem, e creio que nada tendes a oppôr.

—Não de certo; uma ordem é um dever, e um dever cumpre-se com satisfação, quando o coração nelle se interessa.

Sr. Loredano! disse o moço levando a mão ao punho da espada e colhendo as redeas.

O italiano fez que não tinha visto o gesto de ameaça; continou:

—Assim tudo se explica. Recebestes uma ordem? foi de D. Antonio de Mariz, sem duvida?

—Não sei que nenhum outro tenha direito de dar-me; replicou o moço com arrogancia.

—Naturalmente por virtude desta ordem, continuou o italiano cortezmente, partistes do Paquequer em uma segunda feira, quando o dia designado era um domingo.

—Ah! tambem reparastes nisto? perguntou o moço mordendo os beiços de despeito.

Reparo em tudo, Sr. cavalheiro; assim, não deixei de observar ainda, que sempre em virtude da ordem, fizestes tudo para chegar justamente antes do domingo.

—E não observastes mais nada? perguntou Alvaro com a voz tremula e fazendo um esforço para conter-se.

—Não me escapou tambem uma pequena circumstancia de que já vos fallei.

—E qual é ella, se vos praz?

—Oh! não vale a pena repetir: é cousa de somenos.

—Dizei sempre, Sr. Loredano: nada é perdido entre dous homens que se entendem; replicou Alvaro com um olhar de ameaça.

—Já que o quereis, força é satisfazer-vos. Noto que a ordem de D. Antonio, e o italiano carregou nesta palavra, manda-vos estar no Paquequer um pouco antes de seis horas, a tempo de ouvir a prece.

—Tendes um dom admiravel, Sr. Loredano; o que é de lamentar, é que o empregueis em futilidades.

—Em que quereis que um homem gaste seu tempo neste sertão, senão a olhar para seus semelhantes, e ver o que elles fazem?

—Com effeito é uma boa distracção.

—Excellente. Vede vós, tenho visto cousas que se passão diante dos outros, e que ninguem percebe, porque não se quer dar ao trabalho de olhar como eu; disse o italiano com o seu ar de simplicidade fingida.

—Contai-nos isto, ha de ser curioso.

—Ao contrario, é o mais natural possivel; um moço que apanha uma flor ou um homem que passeia de noite á luz das estrellas... Póde haver cousa mais simples?

Alvaro empallideceo desta vez.

—Sabeis uma cousa, Sr. Loredano?

—Saberei, cavalheiro, se me fizerdes a honra de dizer.

—Está me parecendo que a vossa habilidade de observador levou-vos muito longe, e que fazeis nem mais nem menos do que o officio de espião.

O aventureiro ergueo a cabeça com um gesto altivo, levando a mão ao cabo de uma larga adaga que trazia á ilharga: no mesmo instante porém dominou este movimento, e voltou á bonhomia habitual.

—Quereis gracejar, senhor cavalheiro?...

—Enganais-vos, disse o moço picando o seu cavallo e encostando-se ao italiano, fallo-vos seriamente; sois um infame espião! Mas juro, por Deus, que á primeira palavra que proferirdes, esmago-vos a cabeça como a uma cobra venenosa.

A physionomia de Loredano não se alterou; conservou a mesma impassibilidade; apenas o seu ar de indifferencia e sarcasmo desappareceo sob a expressão de energia e maldade que lhe accentuou os traços vigorosos.

Fitando um olhar duro no cavalheiro, respondeo:

—Visto que tomais a cousa neste tom, Sr. Alvaro de Sá, cumpre que vos diga que não é a vós que cabe ameaçar; entre nós dous deveis saber qual é o que tem a temer!...

—Esqueceis a quem fallais? disse o moço com altivez.

—Não, senhor, lembro tudo; lembro que sois meu superior, e tambem, accrescentou com voz surda, que tenho o vosso segredo.

E parando o animal, o aventureiro deixou Alvaro seguir só na frente, e misturou-se com os seus companheiros.

A pequena cavalgata continuou a marcha atravez da picada, e aproximou-se de uma dessas clareiras das mattas virgens, que se assemelhão a grandes zimborios de verdura.

Neste momento um rugido espantoso fez estremecer a floresta, e encheo a solidão com os échos estridentes.

Os caminheiros empallidecêrão e olhárão um para o outro; os cavalleiros engatilhárão os arcabuzes e seguirão lentamente, lançando um olhar cauteloso pelos ramos das arvores.


IV
A LUTA

Quando a cavalgata chegou á margem da clareira, ahi se passava uma scena curiosa.

Em pé, no meio do espaço que formava a grande abobada de arvores, encostado a um velho tronco decepado pelo raio, via-se um indio na flor da idade.

Uma simples tunica de algodão a que os indigenas chamavão aimará, apertada á cintura por uma faxa de pennas escarlates, cahia-lhe dos hombros até ao meio da perna, e desenhava o talhe delgado e esbelto como um junco selvagem.

Sobre a alvura diaphana do algodão, a sua pelle, côr do cobre, brilhava com reflexos dourados; os cabellos pretos cortados rentes, a tez lisa, os olhos grandes com os cantos exteriores erguidos para a fronte: a pupilla negra, mobil, scintillante; a boca forte mas bem modelada e guarnecida de dentes alvos, davão ao rosto pouco oval a belleza inculta da graça, da força e da intelligencia.

Tinha a cabeça cingida por uma fita de couro, á qual se prendião do lado esquerdo duas plumas matizadas, que descrevendo uma longa espiral, vinhão roçar com as pontas negras o pescoço flexivel.

Era de alta estatura, tinha as mãos delicadas; a perna agil e nervosa, ornada com uma axorca de fructos amarellos, apoiava-se sobre um pé pequeno, mas firme no andar e veloz na corrida. Segurava o arco e as flexas com a mão direita cahida, e com a esquerda mantinha verticalmente diante de si um longo forcado de páo ennegrecido pelo fogo.

Perto delle estava atirada ao chão uma clavina tauxiada, uma pequena bolsa de couro que devia conter munições, e uma rica faca flamenga, cujo uso foi depois prohibido em Portugal e no Brasil.

Nesse instante erguia a cabeça e fitava os olhos n'uma sebe de folhas que se elevava a vinte passos de distancia, e se agitava imperceptivelmente.

Alli, por entre a folhagem, distinguião-se as ondulações felinas de um dorso negro, brilhante, marchetado de pardo; ás vezes vião-se brilhar na sombra dous raios vitreos e pallidos, que semelhavão os reflexos de alguma crystalisação de rocha, ferida pela luz do sol.

Era uma onça enorme; de garras apoiadas sobre um grosso ramo de arvore, e pés suspensos no galho superior, encolhia o corpo, preparando o salto gigantesco.

Batia os flancos com a larga cauda, e movia a cabeça monstruosa, como procurando uma aberta entre a folhagem para arremessar o pulo: uma especie de riso sardonico e feroz contrahia-lhe as negras mandibulas, e mostrava a linha de dentes amarellos; as ventas dilatadas aspiravão fortemente, e parecião deleitar-se já com o odor do sangue da victima.

O indio, sorrindo e indolentemente encostado ao tronco secco, não perdia um só desses movimentos, e esperava o inimigo com a calma e serenidade do homem que contempla uma scena agradavel: apenas a fixidade do olhar revelava um pensamento de defeza.

Assim, durante um curto instante, a fera e o selvagem medîrão-se mutuamente, com os olhos nos olhos um do outro; depois o tigre agachou-se, e ia formar o salto, quando a cavalgata appareceo na entrada da clareira.

Então o animal, lançando ao redor um olhar injectado de sangue, eriçou o pello, e ficou immovel no mesmo lugar, hesitando se devia arriscar o ataque.

O indio que ao movimento da onça acurvára ligeiramente os joelhos e apertára o forcado, indireitou-se de novo; sem deixar a sua posição, nem tirar os olhos do animal, vio a banda que parára á sua direita.

Estendeu o braço e fez com a mão um gesto de rei, que rei das florestas elle era, intimando aos cavalleiros que continuassem a sua marcha.

Como porém o italiano, com o arcabuz em face procurasse fazer a pontaria entre as folhas, o indio bateu com o pé no chão em signal de impaciencia, e exclamou apontando para o tigre, e levando a mão ao peito:

—É meu!... meu só!

Estas palavras forão ditas em portuguez, com uma pronuncia doce e sonora, mas em tom de energia e resolução.

O italiano rio.

—Por Deus! Eis um direito original! Não quereis que se offenda a vossa amiga?... Está bem, dom cacique, continuou lançando o arcabuz a tiracollo; ella vo-lo agradecerá.

Em resposta a esta ameaça, o indio empurrou desdenhosamente com a ponta do pé a clavina que estava atirada ao chão, como para exprimir que, se elle o quitasse, já teria abatido o tigre de um tiro. Os cavalleiros comprehendêrão o gesto, porque, além da precaução necessaria para o caso de algum ataque directo, não fizerão a menor demonstração offensiva.

Tudo isto se passou rapidamente, em um segundo, sem que o indio deixasse um só instante com os olhos o inimigo.

Á um signal de Alvaro de Sá, os cavalleiros proseguirão a sua marcha, e entranhárão-se de novo na floresta.

O tigre, que observava os cavalleiros immovel, com o pello eriçado, não ousára investir nem retirar-se, temendo expor-se aos tiros dos arcabuzes: mas apenas viu a tropa distanciar-se e sumir-se no fundo da matta, soltou um novo rugido de alegria e contentamento.

Ouvio-se um rumor de galhos que se espedaçavão como se uma arvore houvesse tombado na floresta, e o vulto negro da fera passou no ar; d'um pulo tinha ganho outro tronco, e mettido entre ella e o seu adversario uma distancia de trinta palmos.

O selvagem comprehendeu immediatamente a razão disto: a onça, com os seus instinctos carniceiros e a sede voraz de sangue, tinha visto os cavallos e desdenhava o homem, fraca presa para sacia-la.

Com a mesma rapidez com que formulou este pensamento, tomou na cinta uma flecha pequena e delgada como um espinho de ouriço, e esticou a corda do grande arco, que excedia de um terço á sua altura.

Ouvio-se um forte sibilo, que foi acompanhado por um bramido da fera; a pequena setta despedida pelo indio se cravára na orelha, e uma segunda, açoutando o ar, ia ferir-lhe a mandibula inferior.

O tigre tinha-se voltado ameaçador e terrivel, aguçando os dentes uns nos outros, rugindo de furia e vingança: de dous saltos approximou-se novamente.

Era uma luta de morte a que ia se travar; o indio o sabia, e esperou tranquillamente, como da primeira vez; a inquietação que sentira um momento de que a presa lhe escapasse, desapparecera: estava satisfeito.

Assim, estes dous selvagens das mattas do Brasil, cada um com as suas armas, cada um com a consciencia de sua força e de sua coragem, consideravão-se mutuamente como uma victima que ia ser immolada.

O tigre desta vez não se demorou; apenas se achou á cousa de quinze passos do inimigo, retrahio-se com uma força de elasticidade extraordinaria, e atirou-se como um estilhaço de rocha, cortada pelo raio.

Foi cahir sobre o indio, apoiado nas largas patas de traz, com o corpo direito, as garras estendidas para degolar a sua victima, e os dentes promptos a cortarlhe a jugullar.

A velocidade deste salto monstruoso foi tal que, no mesmo instante em que se vira brilhar entre as folhas os reflexos negros de sua pelle azevichada, já a fera tocava o chão com as patas.

Mas tinha em frente um inimigo digno della, pela força e agilidade.

Como a principio, o indio havia dobrado um pouco os joelhos, e segurava na esquerda a longa forquilha, sua unica defeza; os olhos sempre fixos magnetisavão o animal. No momento em que o tigre se lançava, curvou-se ainda mais; e fugindo com o corpo apresentou o gancho. A fera, cahindo com a força do peso e a ligeireza do pulo, sentio o forcado cerrar-lhe o collo, e vacillou.

Então, o selvagem, distendeu-se com a flexibilidade da cascavel ao lançar o bote; fincando os pés e as costas no tronco, arremessou-se e foi cahir sobre o ventre da onça, que, subjugada, prostrada de costas, com a cabeça presa ao chão pelo gancho, debatia-se contra o seu vencedor, procurando debalde alcança-lo com as garras.

Esta luta durou minutos; o indio, com os pés apoiados fortemente nas pernas da onça, e o corpo inclinado sobre a forquilha, mantinha assim immovel a fera que ha pouco corria a mata não encontrando obstaculos á sua passagem.

Quando o animal, quasi asphixiado pela estrangulação, já não fazia senão uma fraca resistencia, o selvagem, segurando sempre a forquilha, metteu a mão debaixo da tunica e tirou uma corda de ticum que tinha enrolada á cintura em muitas voltas.

Nas pontas desta corda havia dous laços que elle abrio com os dentes e passou nas patas dianteira ligando-as fortemente uma a outra; depois fez o mesmo ás pernas, e acabou por amarrar as duas mandibulas, de modo que a onça não podesse abrir a bocca.

Feito isto, correu a um pequeno arroio que passava perto; e enchendo de agua uma folha de cajueiro bravo, que tornou côva, veio borrifara cabeça da fera. Pouco a pouco o animal ia tornando a si; e o seu vencedor aproveitava este tempo para reforçar os laços que o prendião, e contra os quaes toda a força e agilidade do tigre serião impotentes.

Neste momento uma cotia timida e arisca appareceu na leiseira da matta, e adiantando o focinho, escondeu-se arrepiando o seu pello vermelho e afogueado.

O indio saltou sobre o arco, e abateu-a dahi a alguns passos no meio da carreira; depois, apanhando o corpo do animal que ainda palpitava, arrancou a flexa, e veio deixar cahir nos dentes da onça as gotas do sangue quente e fumegante.

Apenas o tigre moribundo sentio o odor da carniça, e o sabor do sangue que filtrando entre as presas cahira na boca, fez uma contorsão violenta, e quiz soltar um urro que apenas exhalou-se n'um gemido surdo e abafado.

O indio sorria, vendo os esforços da fera para arrebentar as cordas que a atavão de maneira que não podia fazer um movimento, a não serem essas retorções do corpo, em que debalde se agitava. Por cautela tinha-lhe ligado até os dedos uns aos outros para privar-lhe que podesse usar das unhas longas e retorcidas, que são a sua arma mais terrivel.

Quando o indio satisfez o prazer de contemplar o seu captivo, quebrou na matta dous galhos soccos de biribá, e roçando rapidamente um contra o outro, tirou fogo pelo attrito e tratou de preparar a sua caça para jantar.

Em pouco tempo tinha acabado a selvagem refeição, que elle acompanhou com alguns favos de mel de uma pequena abelha que fabrica as suas colmêas no chão. Foi ao regato, bebeo alguns góles d'agua, lavou as mãos, o rosto e os pés, e cuidou em pôr-se a caminho.

Passando pelas patas do tigre o seu longo arco que suspendeo ao hombro, e vergando ao peso do animal que se debatia em contorsões, tomou a picada por onde tinha seguido a cavalgata.

Momentos depois, no lugar desta scena já deserto, entre-abrio-se uma moita espessa, e surgio um indio completamente nú, ornado apenas com uma trofa de pennas amarellas.

Lançou ao redor um olhar espantado, examinou cautelosamente o fogo que ardia ainda e o resto da caça; deitou-se encostando o ouvido em terra, e assim ficou algum tempo.

Depois se ergueu e entranhou de novo pela floresta, na mesma direcção que o outro tomára pouco tempo antes.


V
LOURA E MORENA

Cahia a tarde.

No pequeno jardim da casado Paquequer, uma linda moça se embalançava indolentemente n'uma rede de palha presa aos ramos de uma acacia silvestre, que estremecendo deixava cahir algumas de suas flores miudas e perfumadas.

Os grandes olhos azues, meio cerrados, ás vezes se abrião languidamente como para se embeberem de luz, e abaixavão de novo as palpebras rosadas.

Os labios vermelhos e humidos parecião uma flor da gardenia dos nossos campos, orvalhada pelo sereno da noite; o halito doce e ligeiro exhalava-se formando um sorriso. Sua tez alva e pura como um froco de algodão, tingia-se nas faces de uns longes côr de rosa, que ião, desmaiando, morrer no collo de linhas suaves e delicadas.

O seu trajo era do gosto mais mimoso e mais original que é possivel conceber; mistura de luxo e de simplicidade.

Tinha sobre o vestido branco de cassa um ligeiro saiote de risso azul apanhado á cintura por um broche; uma especie de arminho côr de perola, feito com a pennugem macia de certas aves, orlava o talho e as mangas, fazendo realçar a alvura de seus hombros e o harmonioso contorno do seu braço arqueado sobre o seio.

Os longos cabellos louros, enrolados negligentemente em ricas tranças, descobrião a fronte alva, e cahião em volta do pescoço presos por uma resilha finissima de fios de palha côr de ouro, feita com uma arte e perfeição admiravel.

A mãozinha afilada, brincava com um ramo de acacia que se curvava carregado de flores; e ao qual de vez em quando segurava-se para imprimir á rede uma doce oscillação.

Esta moça era Cecilia.

O que passava nesse momento em seu espirito infantil é impossivel descrever; o corpo cedendo á languidez que produz uma tarde calmosa, deixava que a imaginação corresse livre.

Os sopros tepidos da brisa que vinhão impregnados dos perfumes das madre-silvas e das açucenas agrestes, ainda excitavão mais esse enlevo e bafejavão talvez nessa alma innocente algum pensamento indefinido, algum desses mythos de um coração de moça aos dezoito annos.

Ella sonhava que uma das nuvens brancas que passavão pelo céo anilado, roçando a ponta dos rochedos se abria de repente; e um homem vinha cahir a seus pés timido e supplicante.

Sonhava que córava; e um rubor vivo accendia o rosado de suas faces; mas a pouco e pouco esse casto enleio ia se desvanecendo, e acabava n'um gracioso sorriso que sua alma vinha pousar nos labios.

Com o seio palpitante, toda tremula e ao mesmo tempo contente e feliz, abria os olhos; mas voltava-os com desgosto, porque, em vez do lindo cavalheiro que ella sonhara, via a seus pés um selvagem.

Tinha então, sempre em sonho, um desses assomos de colera de rainha offendida, que fazia arquear as sobrancelhas louras, e bater sobre a relva a ponta de um pézinho de menina.

Mas o escravo supplicante erguia os olhos tão magoados, tão cheios de preces mudas e de resignação, que ella sentia um quer que seja de inexprimivel, e ficava triste, triste, até que fugia e ia chorar.

Vinha porém o seu lindo cavalheiro, enxugava-lhe as lagrimas, e ella sentia-se consolada, e sorria de novo; mas conservava sempre uma sombra de melancolia, que só a pouco e pouco o seu genio alegre conseguia desvanecer.

Neste ponto do seu sonho, a por tinha interior do jardim abrio-se, e outra moça, roçando apenas a gramma com o seu passo ligeiro, aproximou-se da rede.

Era um typo inteiramente differente do de Cecilia; era o typo brazileiro em toda a sua graça e formosura, com o encantador contraste de languidez e malicia, de indolencia e vivacidade.

Os olhos grandes e negros, o rosto moreno e rosado, cabellos pretos, labios desdenhosos, sorriso provacador, davão a este rosto um poder de seducção irresistivel.

Ella parou em face de Cecilia meio deitada sobre a rede, e não pôde furtar-se á admiração que lhe inspirava essa belleza delicada, de contornos tão suaves; e uma sombra imperceptivel, talvez de um despeito, passou pelo seu rosto; mas esvaeceo-se logo.

Sentou-se n'uma das bandas da rede, reclinando sobre a moça para beija-la ou ver se estava dormindo.

Cecilia, sentindo um estremecimento, abrio os olhos e fitou-os em sua prima.

—Preguiçosa!... disse Isabel sorrindo.

—É verdade! respondeo a moça, vendo as grandes sombras que projectavão as arvores; está quasi noite.

—E desde o sol alto que dormes, não é assim? perguntou a outra gracejando.

—Não, não dormi nem um instante; mas não sei o que tenho hoje que me sinto triste.

—Triste! tu Cecilia! não creio; era mais facil não cantarem as aves ao nascer do sol.

—Está bem! não queres acreditar!

—Mas vem cá! Porque razão has de estar triste, tu que durante todo o anno só tens um sorriso, tu que és alegre e travessa como um passarinho?

—É para vêres! Tudo cança neste mundo.

—Ah! comprehendo! Estás enfastiada de viver aqui nestes ermos.

—Já me habituei tanto a ver essas arvores, esse rio, esses montes, que quero-lhes como se me tivessem visto nascer.

—Então o que é que te faz triste?

—Não sei; falta-me alguma cousa.

—Não vejo o que possa ser. Sim?... já adevinho!

—Adevinhas o que? perguntou Cecilia admirada.

—Ora! o que te falta.

—Si eu mesma não sei! disse a moça sorrindo.

—Olha, respondeo Isabel; alli está a tua rola esperando que a chames, e o teu veadinho que te olha com os seus olhos doces; só falta o outro animal selvagem.

Pery! exclamou Cecilia rindo-se da idéa de sua prima.

—Elle mesmo! Só tens dous captivos para fazeres as tuas travessuras; e como não vês o mais feio, e o mais desengraçado, estás aborrecida.

—Mas agora me lembro, disse Cecilia, tu já o viste hoje?

—Não; nem sei o que é feito delle.

—Sahio antes de hontem á tarde; não vá ter-lhe succedido alguma desgraça! disse a moça estremecendo.

—Que desgraça queres tu que lhe possa succeder? Não anda elle todo o dia batendo o matto, e correndo como uma fera bravia?

—Sim; mas nunca lhe succedeu ficar tanto tempo fora, sem voltar á casa.

—O mais que póde acontecer, é terem-lhe apertado as saudades da sua vida antiga e livre.

—Não! exclamou a moça com vivacidade; não é possivel que nos abandonasse assim!

—Mas então que pensas que andará fazendo por este sertão?

—É verdade!... disse a moça preoccupada.

Cecilia ficou um momento com a cabeça baixa, quasi triste; nesta posição, a vista cahio sobre o veado, que fitava nella a sua pupilla negra com toda a languidez e suavidade, que a natureza puzera em seus olhos.

A moça estendeu a mão, e deo com a ponta dos dedos um estalinho, que fez o lindo animal saltar de alegria e vir pousar a cabeça no seu regaço.

—Tu não abandonarás tua senhora, não é? disse ella passando a mão sobre o seu pello assetinado.

—Não faças caso, Cecilia, replicou Isabel reparando na melancolia da moça; pedirás a meu tio para caçar-te outro que farás domesticar, e ficará mais manso do que o teu Pery.

—Prima, disse a moça com um ligeiro tom de reprehensão, tratas muito injustamente esse pobre indio que não te fez mal algum.

—Ora, Cecilia, como queres que se trate um selvagem que tem a pelle escura e o sangue vermelho? Tua mãi não diz que um indio é um animal como um cavallo, ou um cão?

Estas ultimas palavras forão ditas com uma ironia amarga, que a filha de Antonio Mariz comprehendeu perfeitamente.

—Isabel!... exclamou ella resentida.

—Sei que tu não pensas assim, Cecilia; e que o teu bom coração não olha a côr do rosto para conhecer a alma. Mas os outros?... Cuidas que não percebo o desdem com que me tratão?

—Já te disse por vezes que é uma desconfiança tua; todos te querem, e te respeitão como devem.

Isabel abanou tristemente a cabeça.

—Vai-te bem o consolar-me; mas tu mesmas tens visto, si eu tenho razão.

—Ora, um momento de zanga de minha mãi...

—É um momento bem longo, Cecilia! respondeo a moça com um sorriso amargo.

—Mas escuta, disse Cecilia passando o braço pela cintura de sua prima e chamando-a a si, tu bem sabes que minha mãi é uma senhora muito severa mesmo para comigo.

—Não te cances, prima; isto só serve para provar-me ainda mais o que já te confessei: nesta casa só tu me amas, os mais me desprezão.

—Pois bem, replicou Cecilia, eu te amarei por todos; não te pedi já que me tratasses como irmã?

—Sim! e isto me causou um prazer, que tu não imaginas. Si eu fosse tua irmã!...

—E porque não has de se-lo? Quero que o sejas!

—Para ti, que para elle...

Este elle foi murmurado dentro d'alma.

—Mas olha que exijo uma cousa.

—O que é? perguntou Isabel.

—É que eu serei a irmã mais velha.

—Apezar de seres mais moça?...

—Não importa! Como irmã mais velha, tu me deves obedecer?

—De certo, respondeu a prima sem poder deixar de sorrir.

—Pois bem! exclamou Cecilia beijando-a na face, não te quero ver triste, ouviste? Senão fico zangada.

—E tu não estavas triste ha pouco?

—Oh! já passou! disse a moça saltando ligeiramente da rede.

Com effeito, aquella doce languidez com que se embalançava ha pouco, scismando em mil cousas, tinha desapparecido completamente: seu genio de menina alegre e feiticeira havia cedido um momento ao enlevo, mas voltava de novo.

Era agora como sempre uma moça risonha e faceira, respirando toda a graciosa gentileza, misturada de innocencia e estouvamento, que dão o ar livre e a vida passada no campo.

Erguendo-se, apinhou em botão de rosa os labios vermelhos e imitou com uma graça encantadora os arrulhos doces da jurity; immediatamente a rola saltou dos galhos da acacia, e veio aninhar-se no seu seio, estremecendo de prazer ao contacto da mãozinha que alisava a sua penugem macia.

—Vamos dormir, disse ella á rola com a garridice com que as mãis fallão aos filhinhos recem-nascidos: a rolinha está com somno, não é?

E deixando sua prima um momento só no jardim, foi agasalhar os seus dous companheiros de solidão, com tanto carinho e sollicitude que bem revelava a riqueza de sentimento que havia no fundo desse coração, envolta pela graça infantil de seu espirito.

Nesta occasião ouvio-se um tropel de animaes perto da casa; Isabel lançou os olhos sobre as margens do rio, e vio uma banda de cavalleiros que entravão a cerca.

Soltou um grito de surpreza, de alegria e susto ao mesmo tempo.

—Que é? perguntou Cecilia correndo para sua prima.

—São elles que chegão.

Elles quem?

—O Sr. Alvaro e os outros.

—Ah!... exclamou a moça corando.

—Não achas que voltarão muito depressa? perguntou Isabel sem reparar na perturbação de sua prima.

—Muito; quem sabe se houve alguma cousa!

—Dezenove dias apenas... disse Isabel maquinalmente.

—Contaste os dias?

—É facil! respondeo a moça corando por sua vez; depois de amanhã fazem tres semanas.

—Vamos a ver que lindas cousas elles nos trazem!

—Nos trazem? repetio Isabel carregando sobre a palavra com um tom de melancolia.

—Nos trazem, sim; porque eu encommendei um fio de perolas para ti. Devem ir-te bem as perolas, com tuas faces côr de jambo! Sabes que eu tenho inveja do teu moreninho, prima?

—E eu daria a minha vida para ter a tua alvura, Cecilia.

—Ai! o sol está quasi a se pôr! vamos.

E as duas moças tomárão pelo interior da casa, dirigindo-se ao lado da entrada.


VI
A VOLTA

Ao mesmo tempo que esta scena se passava no jardim, dous homens passeavão do outro lado da esplanada, na sombra que projectava o edificio.

Um delles, de alto porte, conhecia-se immediatamente que era um fidalgo pela altivez do gesto e pelo trajo de cavalheiro.

Vestia um gibão do velludo preto com alamares de seda côr de café no peito e nas aberturas das mangas; os calções do mesmo estofo, e tambem pretos, cahião sobre as botas longas de couro branco com esporas de ouro.

Uma simples preguilha de linho alvissimo cercava o talho do seu gibão, e deixava a descoberto o pescoço, que sustentava com graça uma bella e nobre cabeça de velho.

De seu chapéo de feltro pardo sem pluma escapavão-se os anneis de cabellos brancos, que cahião sobre os hombros; atravez da longa barba alva como a espuma da cascata, brilhavão suas faces rosadas, sua bocca ainda expressiva, e seus olhos pequenos mas vivos.

Este fidalgo era D. Antonio de Mariz que, apezar dos seus sessenta annos, mostrava um vigor devido talvez á vida activa; trazia ainda o porte direito, e tinha o passo firme e seguro como se estivesse na força da idade.

O outro velho, que caminhava a seu lado com o chapéo na mão, era Ayres Gomes, seu escudeiro e antigo companheiro de sua vida aventureira; o fidalgo depositava a maior confiança na sua discrição e zelo.

A physionomia deste homem tinha, quer pela sagacidade inquieta que era a sua expressão ordinaria, quer pelos seus traços allongados, uma certa semelhança com o focinho da raposa, semelhança que era ainda mais augmentada pelo seu trajo bizarro. Trazia sobre o gibão de belbutina côr de pinhão uma especie de vestia do pello daquelle animal, do qual erão tambem as botas compridas, que lhe servião quasi de calções.

—Em que o negues, Ayres Gomes, dizia o fidalgo ao seu escudeiro, medindo a passos lentos o terreno; estou certo que és do meu parecer.

—Não digo de todo que não, Sr. cavalheiro; confesso que D. Diogo commetteo uma imprudencia matando essa india.

—Dize uma barbaria, uma loucura!... Não penses que com ser meu filho, o desculpo!

—Julgais com demasiada severidade.

—E o devo, porque um fidalgo que mata uma creatura fraca e inoffensiva, commette uma acção baixa e indigna. Durante trinta annos que me acompanhas, sabes como trato os meus inimigos; pois bem, a minha espada, que tem abatido tantos homens na guerra, cahir-me-ia da mão se, n'um momento de desvario, a erguesse contra uma mulher.

—Mas é preciso ver que casta de mulher é esta, uma selvagem...

—Sei o que queres dizer; não partilho essas idéas que vogão entre os meus companheiros; para mim, os indios quando nos atacão, são inimigos que devemos combater, quando nos respeitão são vassallos de uma terra que conquistamos, mas são homens!

—Vosso filho não pensa assim, e bem sabeis que os principios que lhe deo a Sra. D. Lauriana.

—Minha mulher! . . . replicou o fidalgo com algum azedume. Mas não é disto que discorriamos.

—Sim; fallaveis dos receios que vos inspirava a imprudencia de D. Diogo.

—E que pensas tu?

—Já vos disse que não vejo as cousas tão negras como vós, Sr. D. Antonio. Os indios vos respeitão, vos temem, e não se animarão a atacar-vos.

—Digo-te que te enganas, ou antes que procuras enganar-me.

—Não sou capaz de tal, Sr. cavalheiro!

—Conheces tão bem como eu, Ayres, o caracter desses selvagens; sabes que a sua paixão dominante é a vingança, e que por ella sacrificão tudo, a vida e a liberdade.

—Não desconheço isto, respondeo o escudeiro.

—Elles me temem, dizes tu; mas desde o momento em que se julgarem offendidos por mim soffrerão tudo para vingar-se.

—Tendes mais experiencia do que eu, Sr. cavalheiro; mas queira Deus que vos enganeis.

Voltando-se na beira da esplanada para continuarem o seu passeio, D. Antonio de Mariz e o seu escudeiro virão um moço cavalleíro que atravessava pela frente da casa.

—Deixa-me, disse o fidalgo a Ayres Gomes; e pensa no que te disse; em todo o caso que estejamos preparados para recebe-los.

—Se vierem! retrucou o teimoso escudeiro afastando-se.

D. Antonio dirigio-se lentamente para o moço fidalgo que se havia sentado a alguns passos.

Vendo aproximar-se seu pai, D. Diogo de Mariz ergueu-se e descobrindo-se esperou-o n'uma attitude respeitosa.

Sr. cavalheiro, disse o velho com um ar severo, infringistes hontem as ordens que vos dei.

—Senhor...

—Apezar das minhas recommendações expressas, offendestes um desses selvagens, e excitastes contra nós a sua vingança. Pozestes em risco a vida de vosso pai, de vossa mãi e de homens dedicados. Deveis estar satisfeito de vossa obra.

—Meu pai!...

—Commettestes uma acção má assassinando uma mulher, uma acção indigna do nome que vos dei; isto mostra que ainda não sabeis fazer uso da espada que trazeis á cinta.

—Não mereço esta injuria, senhor! Castigai-me, mas não rebaixeis vosso filho.

—Não é vosso pai que vos rebaixa, Sr. cavalheiro, e sim a acção que praticastes. Não vos quero envergonhar, tirando essa arma que vos dei para combater pelo vosso rei; mas como ainda não vos sabeis servir d'ella, prohibo-vos que a tireis da bainha ainda que seja para defender a vossa vida.

D. Diogo inclinou-se em signal de obediencia.

—Partireis brevemente, apenas chegar a expedição do Rio de Janeiro; e ireis pedir a Diogo Botelho que vos dê serviços nas descobertas. Sois portuguez, e deveis guardar fidelidade ao vosso rei legitimo; mas combatereis como fidalgo e christão em prol da religião, conquistando ao gentio esta terra que um dia voltará ao dominio de Portugal livre.

—Cumprirei as vossas ordens, meu pai.

—Daqui até então, continuou o velho fidalgo, não arredareis pé desta casa sem minha ordem. Ide, Sr. cavalheiro; lembrai-vos que tenho sessenta annos, e que vossa mãi e vossa irmã breve carecerão de um braço valente para defende-las, e de um conselho avisado para protege-las.

O moço sentio as lagrimas borbulharem nos olhos; mas não balbuciou uma palavra; curvou-se e beijou respeitosamente a mão de seu pai.

D. Antonio de Mariz, depois de olha-lo um momento com uma severidade sob a qual transparecião os assomos do amor de pai, voltou pelo mesmo caminho e ia continuar o seu passeio quando sua mulher appareceu no soleira da porta.

D. Lauriana era uma senhora de cincoenta e cinco annos; magra, mas forte e conservada como seu marido; tinha ainda os cabellos pretos matizados por alguns fios brancos que escondia o seu alto penteado, coroado por um desses antigos pentes tão largos que cingião toda a cabeça, e fingião uma especie de diadema.

Seu vestido de lapim côr de fumo de cintura comprida, um pouco curto na frente, tinha uma cauda respeitavel, que ella arrastava com um certo donaire de fidalga, resto de sua belleza, ha muito perdida. Longas arrecadas de ouro com pingentes de esmeralda, que lhe roçavão quasi os hombros, e um collar com uma cruz de ouro ao pescoço, erão todos os seus ornatos.

Quanto ao moral, já dissemos que era uma mistura de fidalguia e devoção; o espirito de nobreza que em D. Antonio de Mariz era um realce, nella tornava-se uma ridicula exageração.

No ermo em que se achava, em lugar de procurar desvanecer um pouco a distincção social que podia haver entre ella e os homens no meio dos quaes vivia, ao contrario, aproveitava o facto de ser a unica dama fidalga daquelle lugar, para esmagar os outros com a sua superioridade, e reinar do alto de sua cadeira de espaldar, que para ella era quasi um throno.

Em religião o mesmo succedia; e um dos maiores desgostos que ella sentia na sua existencia, era não se ver cercada de todo esse apparato do culto, que D. Antonio, como os homens de uma fé robusta e de um espirito direito, tinha sabido substituir perfeitamente.

Apezar desta differença de caracteres, D. Antonio de Mariz, ou por concessões ou por severidade, vivia em perfeita harmonia com sua mulher; procurava satisfaze-la em tudo, e quando não era possivel, exprimia a sua vontade de um certo modo, que a dama conhecia immediatamente que era escusado insistir.

Só em um ponto a sua firmeza tinha sido baldada; e fôra em vencer a repugnancia que D. Lauriana tinha por sua sobrinha; mas como o velho fidalgo sentia talvez doer-lhe a consciência nesse objecto, deixou sua mulher livre de proceder como lhe parecesse, e respeitou os seus sentimentos.

—Fallaveis a D. Diogo com um ar tão severo! disse D. Lauriana descendo os degráos da porta, e vindo ao encontro de seu marido.

—Dava-lhe uma ordem, e um castigo que elle mereceu, respondeo o fidalgo.

—Tratais esse filho sempre com excessivo rigor, Sr. D. Antonio!

—E vós com extrema benevolencia, D. Lauriana. Assim como não quero que o vosso amor o perca, vejo-me obrigado a privar-vos da sua companhia.

—Jesus! Que dizeis, Sr. D. Antonio?

D. Diogo partirá nesses dias para a cidade de S. Salvador, onde vai viver como fidalgo, servindo a causa da religião e não perdendo o tempo em extravagancias.

—Vós não fareis isto, Sr. Mariz, exclamou sua mulher; desterrar vosso filho da casa paterna!

—Quem vos falla em desterro, senhora? Quereis que D. Diogo passe toda a sua vida agarrado ao vosso avental e á vossa roca?

—Mas, senhor; eu sou mãi, e não posso viver assim longe de meu filho, cheia de inquietações pela sua sorte.

—Entretanto, assim ha de ser, porque assim o decidi.

—Sois cruel, senhor.

—Sou justo apenas.

Foi nesta occasião que se ouvio o tropel de animaes, e que Isabel distinguio a banda de cavalleiros que se aproximava da casa.

—Oh! exclamou D. Antonio de Mariz; eis Alvaro de Sá.

O moço que já conhecemos, o italiano e seus companheiros apeárão-se, subirão a ladeira que conduzia á esplanada, e aproximárão-se do cavalheiro e de sua mulher, a quem cortejárão respeitosamente.

O velho fidalgo estendeu a mão a Alvaro de Sá; e respondeo á saudação dos outros com uma certa amabilidade. Quanto a D. Lauriana, a inclinação da cabeça foi tão imperceptivel, que seus olhos nem se abaixarão sobre o rosto dos aventureiros.

Depois de trocada essa saudação, o Fidalgo fez um signal a Alvaro, e os dous se separárão, e forão conversar a um canto do terreiro, sentados sobre dous grossos troncos de arvore lavrados toscamente, que servião de bancos.

D. Antonio desejava saber noticias do Rio de Janeiro e de Portugal, onde se havião perdido todas as esperanças de uma restauração que só teve lugar quarenta annos depois com a acclamação do duque de Bragança.

O resto dos aventureiros ganhou o outro lado da esplanada e foi misturar-se cornos seus companheiros que sahião ao seu encontro.

Ahi forão recebidos por um tiroteio de perguntas, de risadas e ditos chistosos, em que tomarão parte; depois, uns, curiosos de novidades, outros, avidos de contar o que virão, começárão a fallar ao mesmo tempo, de modo que ninguem se entendia.

Nesse instante, as duas moças apparecêrão na porta: Isabel parou tremula e confusa; Cecilia descendo ligeiramente os degráos, correu para sua mãi.

Em quanto ella atravessava o espaço que a separava de D. Lauriana, Alvaro tendo obtido a permissão do fidalgo adiantou-se e com o chapéo na mão foi inclinar-se corando diante da moça.

—Eis-vos de volta, Sr. Alvaro! disse Cecilia com um certo repente, para disfarçar o enleio que tambem sentia: depressa tornastes!

—Menos do que desejava, respondeo o moço balbuciando; quando o pensamento fica, o corpo tem pressa de voltar-se.

Cecilia corou, e fugio para junto de sua mãi.

Durante que esta breve scena se passava no meio da esplanada, tres olhares bem differentes accompanhavão, e partindo de pontos diversos cruzavão-se sobre essas duas cabeças que brilhavão de belleza e mocidade.

D. Antonio de Mariz, sentado a alguma distancia, considerava aquelle lindo par, e um sorriso intimo de felicidade expandia o seu rosto veneravel.

Ao longe, Loredano, um pouco retirado dos grupos dos seus companheiros, cravava nos moços um olhar ardente, duro, incisivo; emquanto as narinas dilatadas aspiravão o ar com a delicia da fera que fareja a victima.

Isabel, a pobre menina, fitava sobre Alvaro os seus grandes olhos negros, cheios de amargura e de tristeza; sua alma parecia coar-se naquelle raio luminoso e ir curvar-se aos pés do moço.

Nem uma das testemunhas mudas desta scena percebeo o que se passava além do ponto para onde convergião os seus olhares; á excepção do Italiano que vio o sorriso de D. Antonio de Mariz e o comprehendeo.

Em quanto isto succedia, D. Diogo que se havia retirado, voltou a saudar Alvaro, e seus companheiros recem-chegados: o moço tinha ainda no rosto a expressão de tristeza que lhe havião deixado as palavras severas de seu pai.


VII
A PRECE

A tarde ia morrendo.

O sol declinava no horizonte e deitava-se sobre as grandes florestas, que illuminava com os seus ultimos raios.

A luz frouxa e suave do occaso, deslisando pela verde alcatifa, enrolava-se como ondas de ouro e de purpura sobre a folhagem das arvores.

Os espinheiros silvestres desatavão as flores alvas e delicadas; e o ouricory abria as suas palmas mais novas, para receber no seu calice o orvalho da noite. Os animaes retardados procuravão a pousada; emquanto a jurity, chamando a companheira, soltava os arrulhos doces e saudosos com que se despede do dia.

Um concerto de notas graves saudava o pôr do sol, e confundia-se com o rumor da cascata, que parecia quebrara aspereza de sua quéda, e ceder á doce influencia da tarde.

Era Ave-Maria.

Como é solemne e grave no meio das nossas mattas a hora mysteriosa do crepusculo, em que a natureza se ajoelha aos pés do Creador para murmurar a prece da noite!

Essas grandes sombras das arvores que se estendem pela planicie; essas gradações infinitas da luz pelas quebradas da montanha; esses raios perdidos, que, esvasando-se pelo rendado da folhagem, vão brincar um momento sobre a arêa; tudo respira uma poesia immensa que enche a alma.

O urutão no fundo da matta sólta as suas notas graves e sonoras, que, reboando pelas longas crastas de verdura, vão echoar ao longe como o toque lento e pausado do angelus.

A brisa, roçando as grimpas da floresta, traz um debil susurro, que parece o ultimo echo dos rumores do dia, ou o derradeiro suspiro da tarde que morre.

Todas as pessoas reunidas na esplanada sentião mais ou menos a impressão poderosa desta hora solemne, e cedião involuntariamente a esse sentimento vago, que não é bem tristeza, mas respeito misturado de um certo temor.

De repente, os sons melancolicos de um clarim prolongárão-se pelo ar quebrando o concerto da tarde; era um dos aventureiros que tocava Ave-Maria.

Todos se descobrirão.

D. Antonio de Mariz, adiantando-se até á beira da esplanada para o lado do occaso, tirou o chapéo e ajoelhou.

Ao redor delle vierão grupar-se sua mulher, as duas moças, Alvaro e D. Diogo; os aventureiros, formando um grande arco de circulo, ajoelharáo-se a alguns passos de distancia.

O sol com o seu ultimo reflexo esclarecia a barba e os cabellos brancos do velho fidalgo, e realçava a belleza daquelle busto de antigo cavalheiro.

Era uma scena ao mesmo tempo simples e magestosa a que apresentava essa prece meio christã, meio selvagem; em todos aquelles rostos, illuminados pelos raios de occaso, respirava um santo respeito.

Loredano foi o unico que conservou o seu sorriso desdenhoso, e seguia como mesmo olhar torvo os menores movimentos de Alvaro, ajoelhado perto de Cecilia e embebido em contempla-la, como se ella fosse a divindade a quem dirigia a sua prece.

Durante o momento em que o rei da luz, suspenso no horizonte, lançava ainda um olhar sobre a terra, todos se concentra vão em um fundo recolhimento, e dizião uma oração muda, que apenas agitava imperceptivelmente os labios.

Por fim o sol escondeu-se; Ayres Gomes estendeu o mosquete sobre o precipio, e um tiro saudou o occaso.

Era noite.

Todos se erguêrão; os aventureiros cortejárão e forão-se retirando a pouco e pouco.

Cecilia offereceu a fronte ao beijo de seu pai e de sua mãi, e fez uma graciosa mesura a seu irmão e a Alvaro.

Isabel tocou com os labios a mão de seu tio, e curvou-se em face de D. Lauriana para receber uma benção lançada com a dignidade e altivez de um abbade.

Depois, a familia chegando-se para junto da porta, dispoz-se a passar um desses curtos serões que outr'ora precedião á simples mas succulenta ceia.

Alvaro, em attenção a ser o seu primeiro dia de chegada, fôra emprazado pelo velho fidalgo para tomar parte nessa collação da familia, o que havia recebido como um favor immenso.

O que explicava esse apreço e grande valor dado por elle a um tão simples convite, era o regimen caseiro que D. Lauriana havia estabelecido na sua habitação.

Os aventureiros e seus chefes vivião n'um lado da casa inteiramente separados da familia; durante o dia corrião os mattos e occupavão-se com a caça ou com diversos trabalhos de cordoagem e marcenaria.

Era unicamente na hora da prece que se reunião um momento na esplanada, onde, quando o tempo estava bom, as damas vinhão tambem fazer a sua oração da tarde.

Quanto á familia, esta conservava-se sempre retirada no interior da casa durante a semana: o domingo era consagrado ao repouso, á distracção e á alegria; então dava-se ás vezes um acontecimento extraordinario como um passeio, uma caçada, ou uma volta em canoa pelo rio.

Já se vê pois a razão por que Alvaro tinha tantos desejos, como dizia o italiano, de chegar ao Paquequer em um sabbado, e antes das seis horas; o moço sonhava com a ventura desses curtos instantes de contemplação e com a liberdade do domingo, que lhe offereceria talvez occasião de arriscar uma palavra.

Formado o grupo da familia, a conversa travou-se entre D. Antonio de Mariz, Alvaro e D. Lauriana; Diogo ficara um pouco retirado; as moças, timidas, escutavão, e quasi nunca se animavão a dizer uma palavra sem que se dirigissem directamente á ellas, o que rara vez succedia.

Alvaro, desejoso de ouvir a voz doce e argentina de Cecilia, da qual elle tinha saudade pelo muito tempo que não a escutava, procurou um pretexto que a chamasse á conversa.

—Esquecia-me contar-vos, Sr. D. Antonio, disse elle aproveitando-se de uma pausa, um dos incidentes da nossa viagem.

—Qual? Vejamos; respondeo o fidalgo.

—Á cousa de quatro leguas d'aqui, encontrámos Pery.

—Inda bem! disse Cecilia: ha dous dias que não sabemos noticias delle.

—Nada mais simples, replicou o fidalgo; elle corre todo este sertão.

—Sim! tornou Alvaro, mas o modo por que o encontrámos é que não vos parecerá tão simples.

—O que fazia então?

—Brincava com uma onça como vós com o vosso veadinho, D. Cecilia.

—Meu Deus! exclamou a moça soltando um grito.

—Que tens, menina? perguntou D. Lauriana.

—É que elle deve estar morto á esta hora, minha mãi.

—Não se perde grande cousa, respondeo a senhora.

—Mas eu serei a causa de sua morte!

—Como assim, minha filha? disse D. Antonio.

—Vede-vos, meu pai, respondeo Cecilia enxugando as lagrimas que lhe saltavão dos olhos; conversava quinta feira com Isabel, que tem grande medo de onças, e brincando, disse-lhe que desejava vêr uma viva!...

—E Pery a foi buscar para satisfazer o teu desejo; replicou o fidalgo rindo. Não ha que admirar. Outras tem elle feito.

—Porém, meu pai, isto é cousa que se faça! A onça deve têl-o morto.

—Não vos assusteis, D. Cecilia; elle saberá defender-se.

—E vós, Sr. Alvaro, porque não o ajudastes a defender-se? disse a moça sentida.

—Oh! se visseis a raiva com que ficou por queremos atirar sobre o animal!

E o moço contou parte da scena passada na floresta.

—Não ha duvida, disse D. Antonio de Mariz, na sua cega dedicação por Cecilia quiz fazer-lhe a vontade com risco de sua vida. É para mim uma das cousas mais admiraveis que tenho visto nesta terra, o caracter desse indio. Desde o primeiro dia que aqui entrou, salvando minha filha, a sua vida tem sido um só acto de abnegação e heroismo. Crêde-me, Alvaro, é um cavalheiro portuguez no corpo de um selvagem!

A conversa continuou; mas Cecilia tinha ficado triste, e não tomou mais parte nella.

D. Lauriana retirou-se para dar as suas ordens; o velho fidalgo e o moço conversárão até oito horas, em que o toque de uma campa no terreiro da casa veio annunciar a ceia.

Emquanto os outros subião os degráos da porta e entravão na habitação, Alvaro achou occasião de trocar algumas palavras com Cecilia.

—Não me perguntais pelo que me ordenastes, D. Cecilia? disse elle á meia voz.

—Ah! sim! trouxestes todas as cousas que vos pedi?

—Todas e mais... disse o moço balbuciando.

—E mais o que? perguntou Cecilia.

—E mais uma cousa que não pedistes.

—Esta não quero! respondeu a moça com um ligeiro enfado.

—Nem por vos pertencer já? replicou elle timidamente.

—Não entendo. É uma cousa que já me pertence, dizeis?

—Sim; porque é uma lembrança vossa.

—Nesse caso guardai-a, Sr. Alvaro, disse ella sorrindo, e guardai-a bem.

E fugindo, foi ter com seu pai, que chegava á varanda, e em presença delle recebeo de Alvaro um pequeno cofre, que o moço fez conduzir, e que continha as suas encommendas. Estas consistião em joias, sedas, espiguilhas de linho, fitas, galacês, hollandas, e um lindo par de pistolas primorosamente embutidas.

Vendo essas armas, a moça saltou um suspiro abafado e murmurou comsigo:

—Meu pobre Pery! Talvez já não te sirvão nem para te defenderes.

A ceia foi longa e pausada, como costumava ser naquelles tempos em que a refeição era uma occupação seria, e a mesa um altar que se respeitava.

Durante a collação, Alvaro esteve descontente pela recusa que a moça fizera do modesto presente que elle havia acariciado com tanto amor e tanta esperança.

Logo que seu pai ergueu-se, Cecilia recolheu ao seu quarto, e ajoelhando diante do crucifixo, fez a sua oração. Depois, erguendo-se, foi levantar um canto da cortina da janella e olhar a cabana que se erguia na ponta do rochedo, e meu estava deserta e solitaria.

Sentia apertar-se o coração com a idéa de que, por um gracejo, tivesse sido a causa da morte desse amigo dedicado que lhe salvára a vida, e arriscava todos os dias a sua sómente para faze-la sorrir.

Tudo nesta recamara lhe fallava delle: suas aves, seus dous amiguinhos que dormião, um no seu ninho e outro sobre o tapete, as pennas que servião de ornato ao aposento, as pelles dos animaes que seus pés roçavão, o perfume suave de beijoim que ella respirava; tudo tinha vindo do indio que, como um poeta ou um artista, parecia crear em torno della um pequeno templo dos primores da natureza brasileira.

Ficou assim a olhar pela janella muito tempo; nessa occasião nem se lembrava de Alvaro, o joven cavalheiro elegante, tão delicado, tão timido, que córava diante della, como ella diante delle.

De repente a moça estremeceo.

Tinha visto á luz das estrellas passar um vulto que ella reconheceu pela alvura de sua tunica de algodão, e pelas formas esbeltas e flexiveis; quando o vulto entrou na cabana, não lhe restou a menor duvida.

Era Pery.

Sentio-se alliviada de um grande peso: e pode então entregar-se ao prazer de examinar um por um, com toda a attenção, os lindos objectos que recebera, e que lhe causavão um vivo prazer.

Nisto gastou seguramente meia hora; depois deitou-se, e como já não tinha inquietação nem tristeza, adormeceu sorrindo á imagem de Alvaro, e pensando na magoa que lhe fizera, recusando o seu mimo.


VIII
TRES LINHAS

Tudo estava em socego: apenas quando o vento escasseava, ouvia-se do lado do edificio habitado pelos aventureiros um rumor de vozes abafadas.

Á esta hora, havia naquelle lugar tres homens bem differentes pelo seu caracter, pela sua posição e pela sua origem, que entretanto tinhão uma mesma idéa.

Separados pelos costumes e pela distancia, os seus espiritos quebravão essa barreira moral e physica, e se reunião n'um só pensamento, convergindo para um mesmo ponto como os raios de um circulo.

Sigamos pois cada uma das linhas traçadas por essas existencias, que mais cedo ou mais tarde hão de cruzar-se no seu vertice.

N'uma das alpendradas que corrião no fundo da casa, trinta e seis aventureiros cercavão uma longa mesa, no meio da qual trascalavão em escudellas de páo algumas peças de caça, já estreadas de uma maneira que fazia honra ao appetite dos convivas.

O catalão não corria nos cangirões de louça e de metal com tanta fartura quanta era de desejar; mas em compensação, vião-se aos cantos do alpendre grossas talhas cheias de vinho de cajú e ananaz, onde os aventureiros podião beber á larga.

O vicio tinha supprido os licores europeos pelas bebidas selvagens; afóra uma pequena differença de sabor, havia no fundo de todas ellas o alcool que excita o espirito, e produz a embriaguez.

A collação começara á meia hora; nos primeiros momentos não se ouvio senão o mastigar dos dentes, os beijos dados aos cangirões, e o ranger da faca na escudella.

Depois, um dos aventureiros proferio uma palavra, cuja replica correu immediatamente á roda da mesa; a conversa tornou-se uma especie de choro confuso e discordante.

Foi no meio desta algazarra que um dos convivas, erguendo a voz, lançou estas palavras:

—E vós, Loredano, nada dizeis? Estais ahi que não ha modo de vos ouvir uma palavra!

—Certo, acudio outro, Bento Simões diz verdade; se não é a fome que vos traz mudo, algo tendes, misser italiano.

—Voto a Deus, Martim Vaz, disse um terceiro, que são penares por alguma moçoila que andou requestando em S. Sebastião.

—Tirai-vos lá com os vossos penares, Ruy Soeiro; achais que Loredano seja homem de se amofinar por cousas de tal jaez?

—E porque não, Vasco Affonso? Todos calçamos pelo mesmo sapato, em que o aperte mais a uns do que a outros.

—Não julgueis os mais por vós, dom namorado; homens ha que trazem seu pensamento, empregado em cousa de mór valia do que requebros e galanteios.

O italiano conservava-se taciturno, e deixava que os outros o trouxessem á baila, sem dar-se por achado: era facil de ver que elle seguia com affinco uma idéa que lhe trabalhava no espirito.

—Mas, por Deus, continuou Bento Simões, fallai-nos do que vistes na vossa viagem, Loredano; apostaria que alguma vos succedeu!

—Ide com o que vos digo, retrucou Ruy Soeiro, misser italiano está penado da amores.

—E por quem, se vos parece? perguntárão alguns.

—Ora! não custa sabe-lo; por aquelle cangirão de vinho que ahi lhe está fronteiro; não vedes que olhos que lhe deita?

Os aventureiros largárão-se a rir, applaudindo a lembrança.

Ayres Gomes appareceu á porta do saguão.

—Eia, rapazes? disse elle com uma voz que se esforçava por tornar severa. Leva rumor!

—É um dia de chegada, Sr. escudeiro; e deveis leva-lo em conta: acudio Ruy Soeiro.

Ayres sentou-se, e começou a fazer as honras a um resto de veado que estava em frente delle.

—Olá! vós outros, gritou elle, com a bocca cheia, para dous aventureiros que se havião levantado, ide encher vosso quarto, que já refizestes, e os mais esperão sua vez.

Os dous aventureiros sahirão para ir revesar os outros que era costume ficarem de sentinella á noite; medida esta necessaria naquelle tempo.

—Estais hoje muito severo, Sr. Ayres Gomes, disse Martim Vaz,

—Aquelle que dá as ordens, sabe o que faz; a nós cumpre obedecer, respondeu o escudeiro.

—Ah! porque não dizieis isto logo!

—Pois ficareis agora entendidos; boa guarda, que talvez breve tenhamos que ver.

—Venha isso, acudio Bento Simões, que já me enfastio de atirar ás pacas e porcos do matto.

—E em honra de quem pensais vós que queimaremos breve algumas libras de polvora? perguntou Vasco Affonso.

—Tem que saber isso? Quem, senão os indios, nos dão esta folia?

Loredano ergueu a cabeça.

—Que historias contais ahi? Suppondes que os indios nos atacarão? perguntou elle.

—Oh! eis misser italiano que acorda; foi preciso cheirar-lhe a chamusco, exclamou Martim Vaz.

A presença de Ayres Gomes, reprimindo a franca hilaridade dos aventureiros, fez com que fossem uns após outros desemparando a mesa, e deixassem o escudeiro na companhia dos cangirões e escudellas.

Loredano, levantando-se, fez um gesto a Ruy Soeiro e a Bento Simões; e os tres seguirão juntos até ao meio do terreiro; o italiano murmurou-lhes ao ouvido uma simples palavra:

—Amanhã!

Depois, como si nada se tivesse passado entre elles, os dous aventureiros seguirão cada um de seu lado, e deixarão Loredano continuar o seu caminho até a beira do precipicio.

Do lado opposto, o italiano viu reflectir-se sobre as arvores o tenue reflexo da luz que esclarecia o quarto de Cecilia, cujas janellas não podia distinguir por causa do angulo que formava a esplanada.

Ahi esperou.

Alvaro deixando Cecilia, voltára triste e sentido da recusa que soffrêra, embora o consolasse a sua ultima palavra, e sobretudo o sorriso que a acompanhou.

Não se podia resignar á perda desse prazer infinito com que havia contado, de vêr nos ornatos da moça uma prenda sua, uma lembrança que lhe dissesse que pensava nelle. Tinha afagado tanto essa idéa, tinha vivido tanto tempo della, que arranca-la de seu espirito seria um soffrimento cruel.

Emquanto atravessava o espaço que o separava do seu aposento, formulou um projecto e tomou uma resolução. Metteu n'uma pequena bolsa de seda uma caixinha de joias; e, envolvendo-se no seu manto, costeou a casa e aproximou-se do pequeno jardim que entestava com o gabinete de Cecilia.

Tambem elle viu a luz das janellas se reflectir de fronte; e esperou que a noite se adiantasse, e toda a casa dormisse.

Ao tempo que isto se passava, Pery, o indio que já conhecemos, tinha chegado com o seu fardo, tão precioso que não o trocaria por um thesouro.

No vallado que se estendia á beira do rio, deixou o seu prisioneiro, depois de o ter mettido n'uma especie de tronco que arranjou, curvando um galho de arvore. Subio então á esplanada, e foi nesta occasião que a moça o viu entrar na sua cabana; o que porém não pôde distinguir, foi a maneira por que sahira quasi logo.

Havia dous dias que não via sua senhora, que não recebia della uma ordem; que não adivinhava um desejo seu para satisfaze-lo immediatamente.

O primeiro pensamento do indio, foi pois ver Cecilia, ou ao menos a sua sombra; entrando na cabana, percebeu, como os outros, a restea de luz que coava entre as cortinas da janella.

Suspendeu-se a uma das palmeiras que servia de esteio á choça e por um desses movimentos ageis que lhe erão tão naturaes, de um salto segurou-se ao galho de um oleo gigante que, elevando-se sobre a encosta fronteira, deitava alguns ramos do lado da casa.

Durante um momento o indio pairou sobre o abysmo, balançando-se no galho fraco que o sustinha: depois equilibrou-se e continuou essa viagem aérea com a mesma segurança e a mesma firmeza com que um velho marinheiro caminha sobre as gavias e sobre as enxarcias.

Com uma ligeireza extraordinária ganhou o outro lado da arvore, e, escondido pela folhagem, aproximou-se até um galho que ficava fronteiro das janellas de Cecilia cerca de uma braça. Era nesse mesmo momento que Loredano chegava de um lado e Alvaro de outro, e se collocavão igualmente á alguns passos.

A principio, Pery, só teve olhos para ver o que se passava dentro do aposento: Cecilia examinava ainda por uma ultima vez as encommendas que lhe havião chegado do Rio de Janeiro.

Nessa muda contemplação, o indio esqueceu tudo; que lhe importava o precipicio que se abria a seus pés para traga-lo ao menor movimento, e sobre o qual plainava n'um ramo fraco que vergava e se podia partir a todo o instante!

Era feliz; tinha visto sua senhora; ella estava alegre, contente, satisfeita; podia ir dormir e repousar.

Uma lembrança triste porém o assaltou; vendo os lindos objectos que a moça recebêra, pensou que podia dar-lhe a sua vida, mas que não tinha primores como aquelles para offertar-lhe.

O pobre selvagem ergueu os olhos ao céo n'um assomo de desespero, como para ver se, collocado duzentos palmos acima da terra, sobre as grimpas da arvore, poderia estender a mão e colher estrellas que deitasse aos pés de Cecilia.

Assim, era esse o ponto onde se irradiavão aquellas tres linhas partidas de pontos tão differentes. De maneira porque estavão collocados, formavão um verdadeiro triangulo, cujo centro era a janella frouxamente illuminada.

Todos elles arriscavão ou ião arriscar sua vida, unicamente para tocarem com a mão o umbral da gelosia: e entretanto nem um pesava o perigo que ia correr; nem um julgava que sua vida valesse a pena de mercadejar por ella um prazer.

É que as paixões no deserto, e sobretudo no seio desta natureza grande e magestosa, são verdadeiras epopéas do coração.


IX
AMOR

As cortinas da janella cerrarão-se; Cecilia tinha-se deitado.

Junto da innocente menina adormecida na insenção de sua alma pura e virgem, velavão tres sentimentos profundos, palpitavão tres corações bem differentes.

Em Loredano, o aventureiro de baixa extracção, esse sentimento era um desejo ardente, uma sede de gozo, uma febre que lhe requeimava o sangue; o instincto brutal dessa natureza vigorosa era ainda augmentado pela impossibilidade moral que a sua condição creava, pela barreira que se elevava entre elle, pobre colono, e a filha de D. Antonio de Mariz, rico fidalgo de solar e brazão.

Para destruir esta barreira e igualar as posições, seria necessario um acontecimento extraordinário, um facto que alterasse completamente as leis da sociedade naquelle tempo mais rigorosas do que hoje; era preciso uma dessas situações em face das quaes os individuos, qualquer que seja a sua hierarchia, nobres e pariás, nivelão-se; e descem ou sobem á condição de homens.

O aventureiro comprehendia isto; talvez que o seu espirito italiano já tivesse sondado o alçance dessa idéa; em todo o caso o que affirmamos é que elle esperava, e esperando vigiava o seu thesouro com um zelo e uma constancia á toda a prova; os vinte dias que passára no Rio de Janeiro tinhão sido verdadeiro supplicio.

Em Alvaro, cavalheiro delicado e cortez, o sentimento era uma affeição nobre e pura, cheia da graciosa timidez que perfuma as primeiras flores do coração, e do enthusiasmo cavalheiresco que tanta poesia dava aos amores daquelle tempo de crença e lealdade.

Sentir-se perto de Cecilia, vê-la e trocar alguma palavra á custo balbuciada; corarem ambos sem saberem porque, e fugirem desejando encontrar-se; era toda a historia desse affecto innocente, que se entregava descuidosamente ao futuro, librando-se nas azas da esperança.

Nesta noite Alvaro ia dar um passo que na sua habitual timidez, elle comparava quasi com um pedido formal de casamento; tinha resolvido fazer a moça aceitar máo grado seu o mimo que recusara, deitando-o na sua janella; esperava que encontrando-o no dia seguinte, Cecilia lhe perdoaria o seu ardimento, e conservaria a sua prenda.

Em Pery o sentimento era um culto, especie de idolatria fanatica, na qual não entrava um só pensamento de egoismo; amava Cecilia não para sentir um prazer ou ter uma satisfação, mas para dedicar-se inteiramente a ella, para cumprir o menor dos seus desejos, para evitar que a moça tivesse um pensamento que não fosse immediatamente uma realidade.

Ao contrario dos outros elle não estava alli, nem por um ciume inquieto, nem por uma esperança risonha; arrostava a morte unicamente para ver se Cecilia estava contente, feliz e alegre: se não desejava alguma cousa que elle adevinharia no seu rosto, e iria buscar nessa mesma noite, nesse mesmo instante.

Assim o amor se transformava tão completamente nessas organisações, que apresentava tres sentimentos bem distinctos; um era uma loucura, o outro uma paixão, o ultimo uma religião.

Loredano desejava; Alvaro amava: Pery adorava. O aventureiro daria a vida para gozar: o cavalheiro arrostaria a morte para merecer um olhar: o selvagem se mataria, se preciso fosse, só para fazer Cecilia sorrir.

Entretanto nenhum desses tres homens podia tocar a janella da moça, sem correr um risco eminente; e isto pela posição em que se achava o quarto de Cecilia.

Embora o alicerce e a parede corressem a uma braça de distancia da ribanceira, D. Antonio de Mariz para defender esta parte do edificio tinha feito construir um respaldo que se abaixava da presinta das janellas até á beira da esplanada: era impossivel pois caminhar sobre esse plano inclinado, cuja face lisa e polida não offerecia nenhuma adhesão ao pé mais firme e mais seguro.

Abaixo da janella abria-se a rocha cortada a pique e formava um vallado profundo, coberto por um docel verde de trepadeiras e cipós que servia de habitação a todos esses reptis de mil fórmas que pullulão na sombra e na humidade.

Assim o homem que se precipitasse do alto da esplanada nessa fenda larga e funda, se por um milagre não se espedaçasse nas pontas da rocha, seria devorado em um momento pelas cobras e insectos venenosos que enchião essas grotas e alcantis.

Havia alguns instantes que a cortina da janella se tinha cerrado; apenas uma luz vaga e mortiça desenhava na folhagem verde-negra do oleo o quadro da janella.

O italiano que tinha os olhos fitos nesse reflexo como em um espelho, onde revia todas as imagens de sua louca paixão, estremeceu de repente. Na claridade debuxava-se uma sombra mobil; um homem se aproximava da janella.

Pallido, com os olhos ardentes e os dentes cerrados, pendido sobre o precipicio seguia as menores evoluções da sombra.

Vio um braço que se estendia para a janella, e a mão que deixava no parapeito um objecto qualquer, mas tão pequeno que não se percebia a forma. Pela manga larga do gibão, ou antes pelo instincto, o italiano adevinhou que este braço pertencia a Alvaro; e comprehendeu o que esta mão havia deitado na janella.

E não se enganava.

Alvaro, segurando-se a uma estaca do jardim e pondo um pé sobre o respaldo, coseu o corpo á parede; inclinando conseguio realisar o seu intento.

Depois voltou partilhado entre o tempo da acção que praticára, e a esperança de que Cecilia lhe perdoaria.

Loredano apenas viu desapparecer a sombra, e ouvio os echos dos passos do moço, que se repercutião surdamente no fundo do precipicio, sorrio. Sua pupilla fulva brilhou na treva, como os olhos da hirára.

Tirou a sua adaga e cravou-a na parede tão longe quanto lhe permittio a curva que o braço era obrigado a fazer para abarcar o angulo.

Suspendendo-se então a este fraco apoio pôde galgar o respaldo e aproximar-se da janella; á menor indecisão, ao menor movimento, bastava que o pé lhe faltasse, ou que o punhal vacillasse no cimento para precipitar-se com a cabeça sobre as pedras.

Emquanto isto se passava, Pery sentado tranquillamente no galho do oleo, e escondido pela folhagem, assistia immovel a toda esta scena.

Logo que Cecilia cerrou as cortinas da janella, o indio vira os dous homens que collocados á direita e á esquerda parecião esperar.

Esperou tambem, curioso de saber o que se ia passar; mas resolvido se fosse preciso a lançar-se de um pulo sobre aquelle que ousasse fazer a menor violencia, e a cahirem ambos do alto da esplanada. Tinha reconhecido Alvaro e Loredano; desde muito tempo que conhecia o amor do cavalheiro por Cecilia; mas sobre o italiano nunca tivera a menor suspeita.

O que podião querer estes dous homens? Que vinhão elles fazer alli naquella hora silenciosa da noite?

O movimento de Alvaro explicou-lhe parte do enigma; o de Loredano ia fazer-lhe comprehender o resto.

Com effeito, o Italiano que se aproximára da janella conseguio com um esforço fazer cahir o objecto que Alvaro ahi tinha deixado no fundo do precipicio. Feito isto voltou do mesmo modo, e retirou-se saboreando o prazer dessa vingança simples; mas cujo alcance elle previa.

Pery não se moveu.

Tinha comprehendido com a sua sagacidade natural o amor de um e o ciume do outro; e formulou na sua intelligencia selvagem e na sua adoração fanatica um pensamento, que para elle era muito simples.

Si Cecilia julgasse que isto devia ser assim, pouco lhe importava o mais; porém, se o que tinha visto lhe causasse uma sombra de tristeza, e empanasse um momento o brilho de seus olhos azues, então era differente. O indio sacrificaria tudo, antes do que consentir que um pezar annuviasse o rostinho faceiro de sua bella senhora.

Assim tranquillisado por esta idéa, ganhou a cabana e dormio sonhando que a lua lhe mandava um raio de sua luz branca e assetinada para dizer-lhe que protegesse sua filha na terra.

E com effeito, a lua se elevava sobre a cupola das arvores, e illuminava a fachada do edificio.

Então quem se aproximasse de uma das janellas que ficavão na extrema do jardim, veria na penumbra do portal um vulto immovel.

Era Isabel que vellava pensativa, enxugando de vez em quando uma lagrima que desfiava-lhe pela face.

Pensava no seu amor infeliz, na solidão de sua alma, tão erma de recordações doces, de esperanças queridas. Toda essa tarde fôra um martyrio para ella; vira Alvaro fallar a Cecilia, adevinhára quasi as suas palavras. Á poucos momentos tinha percebido a sombra do moço que atravessara a esplanada, e sabia que não era por sua causa que elle passava.

De vez em quando seus labios tremião e deixavão escaparem-se algumas palavras imperceptiveis:

—Si eu quizesse!

Tirava do seio uma redoma de ouro, sob cuja tampa de crystal se via um annel de cabellos que se enroscava no estreito aro de metal.

O que havia dentro desta redoma, de tão poderoso, de tão forte, que justificasses aquella exclamação, e o olhar brilhante que illuminava a pupilla negra de Isabel?

Seria um segredo, um desses segredos terriveis que mudão de repente a face das causas, e fazem surgir o passado para esmagar o presente?

Seria algum thesouro inestimavel e fabuloso, á cuja seducção a natureza humana não devia resistir?

Seria uma arma poderosa e invencivel, contra a qual não houvesse defeza possivel senão em um milagre da Providencia.

Era o pó subtil do curari, o veneno terrivel dos selvagens.

Isabel collou os labios no crystal com uma especie de delirio.

—Minha mãi?... minha mãi!...

Um soluço rompeu-lhe o seio.


X
AO ALVORECER

No dia seguinte, ao raiar da manhã, Cecilia abrio a portinha do jardim e aproximou-se da cerca.

—Pery! disse ella.

O indio appareceu á entrada da cabana; correu alegre, mas timido e submisso.

Cecilia sentou-se n'um banco de relva; e a muito custo conseguio tomar um arzinho de severidade, que de vez em quando quasi trahia-se por um sorriso teimoso que lhe queria fugir dos labios.

Fitou um momento no indio os seus grandes olhos azues com uma expressão de doce reprehensão; depois disse-lhe em um tom mais de queixa do que de rigor:

—Estou muito zangada com Pery!

O semblante do selvagem annuviou-se.

—Tu, senhora, zangada com Pery! Porque?

—Porque Pery é máo e ingrato; em vez de ficar perto de sua senhora, vai caçar em risco de morrer! disse a moça resentida.

Cecy desejou ver uma onça viva!

—Então não posso gracejar? Basta que eu deseje uma cousa para que tu corras atraz della como um louco?

—Quando Cecy acha bonita uma flôr, Pery não vai buscar? perguntou o indio.

—Vai, sim.

—Quando Cecy ouve cantar o soffrer, Pery não o vai procurar?

—Que tem isso?

—Pois Cecy desejou ver uma onça, Pery a foi buscar.

Cecilia não pôde reprimir um sorriso ouvindo esse sillogismo rude, a que a linguagem singela e concisa do indio dava uma certa poesia e originalidade.

Mas estava resolvida a conservar a sua severidade, e ralhar com Pery por causa do susto que lhe havia feito na vespera.

—Isto não é razão, continuou ella; por ventura um animal feroz é a mesma cousa que um passaro, e apanha-se como uma flôr?

—Tudo é o mesmo, desde que te causa prazer, senhora.

—Mas então, exclamou a menina com um assomo de impaciencia, se eu te pedisse aquella nuvem?...

E apontou para os brancos vapores que passavão ainda envolvidos nas sombras pallidas da noite.

—Pery ia buscar.

—A nuvem? perguntou a moça admirada.

—Sim a nuvem.

Cecilia pensou que o indio tinha perdido a cabeça; elle continuou:

Sómente como a nuvem não é da terra e homem não pode toca-la, Pery morria e ia pedir ao Senhor do céo a nuvem para dar a Cecy.

Estas palavras forão ditas com a simplicidade com que falla o coração.

A menina que um momento duvidara da razão de Pery, comprehendeu toda a sublime abnegação, toda a delicadeza de sentimento dessa alma inculta.

A sua fingida severidade não pôde mais resistir; deixou pairamos seus labios um sorriso divino.

—Obrigada, meu bom Pery! Tu és um amigo dedicado; mas não quero que arrisques tua vida para satisfazer um capricho meu; e sim que a conserves para me defenderes como já fizeste uma vez.

—Senhora, não está mais zangada com Pery?

—Não; apezar de que devia estar, porque Pery hontem fez sua senhora affligir-se cuidando que elle ia morrer.

—E Cecy ficou triste? exclamou o Indio.

—Cecy chorou! respondeo a menina com uma graciosa ingenuidade.

—Perdôa, senhora!

—Não só te perdôo, mas quero tambem fazer-te o meu presente.

Cecilia correu ao seu quarto e trouxe o rico par de pistolas que havia encommendado a Alvaro.

—Olha! Pery não desejava ter umas?

—Muito!

—Pois aqui tens! Tu não as deixarás nunca porque são uma lembrança de Cecilia, não é verdade?

—Oh! o sol deixará primeiro a Pery, do que Pery a ellas.

—Quando correres algum perigo, lembra-te que Cecilia as deu para defenderem e salvarem a tua vida.

—Porque é tua, não é, senhora?

—Sim, porque é minha, e quero que a conserves para mim.

O rosto de Pery irradiava com o sentimento de um gozo immenso, de uma felicidade infinita; metteu as pistolas na cinta de pennas e ergueo a cabeça orgulhoso, como um rei que acabasse de receber a uncção de Deus.

Para elle essa menina, esse anjo louro, de olhos azues, representava a divindade na terra; admira-la, faze-la sorrir, vê-la feliz, era o seu culto; culto santo e respeitoso em que o seu coração vertia os thesouros de sentimento e poesia que transbordavão dessa natureza virgem.

Isabel entrou no jardim; a pobre menina tinha velado toda a noite, e seu rosto parecia conservar ainda os traços de algumas dessas lagrimas ardentes que escaldão o seio e requeimão as faces.

A moça e o indio nem se olhárão; odiavão-se mutuamente; era uma antipathia que começára desde o momento em que se virão, e que cada dia augmentava.

Agora, Pery, Isabel e eu vamos ao banho.

—Pery te acompanha, senhora?

—Sim; mas com a condição de que Pery ha de estar muito quieto o socegado.

A razão por que Cecilia impunha esta condição, só podia hem comprehender quem tivesse assistido á uma das scenas que se passavão quando as duas moças ião banhar-se, o que succedia quasi sempre ao domingo.

Pery, com o seu arco, companheiro inseparavel, e arma terrivel na sua mão dextra, sentava-se longe á beira do rio n'uma das pontas mais altas do rochedo ou no galho de alguma arvore, e não deixava ninguem aproximar-se n'um raio de vinte passos do lugar onde as moças se banhavão.

Quando algum aventureiro por acaso transpunha esse circulo que o indio traçava com o olhar em redor de si, Pery na posição sobranceira em que se collocára o percebia immediatamente.

Então se o descuidado caçador sentia o seu chapéo ornar-se de repente com uma penna vermelha que voava pelos ares sibilando; se via uma setta arrebatar-lhe o fructo que elle estendia a mão para colher; se parava assustado diante de uma longa flexa emplumada que despedida por elevação vinha cahir-lhe a dous passos da frente como para embargar-lhe o caminho e servir de balisa; não se admirava.

Comprehendia immediatamente o que isto queria dizer; e pelo respeito que todos votavão a D. Antonio de Mariz e á sua familia, arripiava caminho; e voltava lançando uma jura contra Pery que lhe crivára o chapéo, e o obrigara a encolher a mão de susto.

E fazia bem em voltar, porque o indio com o seu zelo ardente não duvidaria vasar-lhe os olhos para evitar que chegando-se á beira do rio, visse a moça a banhar-se nas aguas.

Entretanto Cecilia e sua prima tinhão o costume de banhar-se vestidas com um trajo feito de ligeira estamenha que occultava inteiramente sob a côr escura as formas do corpo, deixando-lhes os movimentos livres para nadarem.

Mas Pery entendia que apezar disto seria uma profanação consentir que um olhar de quem quer que fosse visse a senhora no seu trajo de banho; nem mesmo o delle que era seu escravo, e por conseguinte não podia offende-la, a ella que era o seu unico Deus.

Emquanto porém o indio mantinha assim pela certeza de sua vista rapida, e pela projecção das suas flexas esse circulo impenetravel para quem que quer que fosse, não deixava de olhar com uma attenção escrupulosa a corrente e as margens do rio.

O peixe que beijava a flor da agua, e que podia ir offender a moça; uma cobra verde innocente que se enroscava pelas folhas dos aguapés; um cameleão que se aquecia ao sol fazendo scintillar o seu prisma de côres brilhantes; um sagui branco e felpudo que se divertia a fazer caretas maliciosas suspendendo-se pela cauda ao galho de uma arvore; tudo quanto podia ir causar um susto á moça, o indio fazia fugir se estava longe e se estava perto pregava o animal immovel sobre o tronco ou sobre o chão.

Se um ramo arrastado pela corrente passava, se um pouco do limo das aguas despegava-se da margem pedregosa do rio, se o fructo de uma sapucaia pendida sobre o Paquequer estalava prestes a cahir, o indio, veloz como o tiro do seu arco lançava-se e retinha o coco no meio da sua quéda, ou precipitava-se n'agua e apanhava os objectos que boiavão.

Cecilia podia ser offendida pelo tronco que a correnteza carregava, pela fructa que cahia; podia assustar-se com o contacto do limo julgando ser uma cobra; e Pery não perdoaria a si mesmo a mais leve magoa que a moça soffresse por falta de cuidado seu.

Emfim elle estendia ao redor della uma vigilancia tão constante e infatigavel, uma protecção tão intelligente e delicada, que a moça podia descançar, certa de que se soffresse alguma cousa seria porque todo o poder do homem fóra impotente para evitar.

Eis pois a razão porque Cecilia recommendava a Pery que estivesse quieto e socegado; é verdade que ella sabia que essa recommendação era sempre inutil, e que o indio faria tudo para que uma abelha sequer não viesse beijar os seus labios vermelhos confundindo-os com uma flôr de pequiá.

Quando as duas moças atravessarão a esplanada, Alvaro passeava junto da escada.

Cecilia saudou de passagem com um sorriso ao joven cavalheiro; e desceu ligeiramente seguida por sua prima.

Alvaro que tinha procurado ler-lhe nos olhos e no rosto o perdão de sua loucura da vespera, e nada havia percebido que acabasse com o seu receio, quiz seguir a moça, e fallar-lhe.

Voltou-se para ver se alguem estava alli que reparasse no que ia fazer, e deo com o italiano que a dous passos delle o olhava com um dos seus sorrisos sarcasticos.

—Bom dia, Sr. cavalheiro.

Os dous inimigos trocarão um olhar que se cruzara como laminas de aço que roçassem uma na outra.

Nesse momento Pery se aproximava lentamente delles, carregando uma das pistolas que Cecilia lhe havia dado a alguns minutos.

O indio parou, e com um ligeiro sorriso de uma expressão indefinivel tomou as pistolas pelo cano, e apresentou-as uma a Avaro e outra a Loredano.

Ambos comprehendêrão o gesto e o sorriso; ambos sentirão que tinhão commettido uma imprudencia, e que o espirito perspicaz do selvagem havia lido nos seus olhos um odio profundo, e talvez que a causa desse odio.

Voltárão-se fingindo não ter visto o movimento.

Pery levantou os hombros e mettendo as pistolas na cinta passou entre elles com a cabeça alta, o olhar sobrançeiro, e acompanhou sua senhora.


XI
NO BANHO

Descendo a escada de pedra da esplanada Cecilia perguntava á sua prima:

—Diz-me uma cousa, Isabel; porque é que tu não fallas ao Sr. Alvaro?

Isabel estremeceu.

—Tenho reparado, continuou a menina, que nem mesmo respondes á cortezia que elle nos faz.

—Que elle te faz, Cecilia, replicou a moça docemente.

—Confessa que não gostas delle. Tens-lhe antipathia?

A moça calou-se.

—Não fallas?... olha que então vou pensar outra cousa! continou Cecilia galanteando.

Isabel empallideceu; e levando a mão ao coração para comprimir as pulsações violentas, fez um esforço supremo e arrancou algumas palavras que parecião queimar-lhe os labios:

—Bem sabes que o aborreço!...

Cecilia não viu a alteração da physionomia de sua prima, porque tendo chegado á baixa nesse momento, esquecera a a conversa, e começára a brincar com uma alegria infantil sobre a relva.

Mas ainda que visse a pertubação da moça, e o choque que ella tinha sentido, de certo attribuira isto a qualquer outro motivo, menos ao verdadeiro.

A affeição que tinha a Alvaro lhe parecia tão innocente, tão natural, que nunca se lembrára que devia um dia passar daquillo que era; isto é, de um prazer que fazia sorrir, e de um enleio que fazia córar.

Esse amor pois, era amor, não podia conhecer o que se passavava n'alma de Isabel; não podia comprehender a sublime mentira que os labios da moça acabavão de proferir.

Quando a Isabel, temendo trahir o seu segredo, tinha arrancado do seu coração cheio de amor, essa palavra de odio, que para ella era quasi uma blasphemia.

Mas antes isso do que revelar o que se passava em sua alma; esse mysterio, essa ignorancia que envolvia o seu amor, e o escondia a todos os olhos, tinha para ella uma voluptuosidade inexprimivel.

Podia assim fitar horas e horas o moço, sem que elle o percebesse, sem o incommodar talvez com a prece muda do olhar supplicante; podia rever-se em sua alma sem que um sorriso de desdem ou de zombaria a fizesse soffrer.

O sol vinha nascendo.

O seu primeiro raio espreguiçava-se ainda pelo céo anilado, e ia beijar as brancas nuvemzinhas que corrião ao seu encontro.

Apenas a luz branda e suave da manhã esclarecia a terra e sorprehendia as sombras indolentes que dormião sob as copas das arvores.

Era a hora em que o cactus, a flôr da noite, fechava o seu calice cheio das gotas do orvalho com que distilla o seu perfume, temendo que o sol crestasse a alvura diaphana de suas petalas.

Cecilia com a sua graça de menina travessa corria sobre a relva ainda humida colhendo uma graciola azul que se embalançava sobre a haste, ou um malvalisco que abria os lindos botões escarlates.

Tudo para ella tinha um encanto inexprimivel; as lagrimas da noite que tremião como brilhantes das folhas das palmeiras; a borboleta que ainda com as azas entorpecidas esperava o calor do sol para reanimar-se; a viuvinha que escondida na ramagem avisava o companheiro que o dia vinha raiando; tudo lhe fazia soltar um grito de sorpreza e de prazer.

Emquanto a menina brincava assim pela varzea, Pery, que a seguia de longe parou de repente tomado por uma idéa que lhe fez correr pelo corpo um calafrio: lembrára-se do tigre.

De um pulo sumio-se n'uma grande moita de arvoredo que se elevava á alguns passos; ouvio-se um rugido abafado, um grande farfalhar de folhas que se espedaçavão, e o indio appareceu.

Cecilia tinha-se voltado um pouco tremula:

—Que é isto, Pery?

—Nada, senhora.

—É assim que prometteste estar quieto?

—Cecy não se ha de zangar mais.

—Que queres tu dizer?

—Pery sabe! respondeu o indio sorrindo.

Na vespera tinha provocado uma luta espantosa para domar e vencer um animal feroz, e deita-lo submisso e inoffensivo aos pés da moça, julgando que isso lhe causava um prazer.

Agora estremecendo com o susto que sua senhora podia soffrer, destruira, em um instante essa acção de heroismo, sem proferir uma palavra que a revelasse. Bastava que elle soubesse o que tinha feito, e o que todos devião ignorar, bastava que sua alma sentisse o orgulho da nobre dedicação que se expandia no sorriso de seus labios.

As moças que esta vão bem longe de saber até que ponto tinha chegado a loucura de Pery, e que não julgavão possivel que um homem podesse fazer o que elle tinha feito, não comprehendêrão nem a phrase, nem o sorriso.

Cecilia tinha chegado a uma latada de jasmineiros que havia á borda d'agua, e que lhe servia de casa de banho; era um dos trabalhos do indio, que o havia arranjado com aquelle cuidado e esmero que punha em satisfazer as vontades da menina.

Pery já tinha ganho a margem do rio, e estava longe; Isabel sentou-se na relva.

Então afastando as ramas dos jasmineiros que occultavão inteiramente a entrada, Cecilia penetrou naquelle pequeno pavilhão de verdura, e examinou se as folhas estavão bem embastidas, se não havia alguma fresta por onde o olhar do dia penetrasse.

A innocente menina tinha vergonha até do raio de luz que podia vir espiar os thesouros de belleza que occultava a cambraia de suas roupagens.

Assim, foi depois desse exame escrupuloso, e ainda córando de si mesma, que começou o seu vestuario de banho. Mas quando o corpinho da anagoa cahindo descobrio suas alvas espaduas e seu collo puro e suave, a menina quasi morreu de pejo e de susto. Um passarinho escondido entre as folhas, um garrulo travesso e malicioso, gritára distinctamente:—Bem te vi!

Cecilia rio-se do susto que tivera, e acabou o seu vestuario de banho que a cobria toda, deixando apenas nús os braços e o pézinho de menina.

Atirou-se á agua como um passarinho: Isabel que a acompanhara por com prazer ficou sentada á beira do rio.

Como Cecilia estava bella nadando sobre as aguas limpidas da corrente, com seus cabellos louros soltos, e os braços alvos que se curvavão graciosamente para imprimir ao corpo um doce movimento! Parecia uma dessas garças brancas, ou colhereiras de rosea côr que deslisão mansamente á flôr do lago, nas tardes serenas, espelhando-se no crystal das aguas.

Ás vezes a linda menina se deitava de bruços e sorrindo ao céo azul ia levada pela corrente; ou perseguia os jassanans e marrecas que fugião diante della. Outras vezes Pery que estava distante do lado superior do rio, colhia alguma flôr parasita que deitava sobre um barquinho feito de uma casca de páo e que vinha trazido pela correnteza.

A menina perseguia o barquinho á nado, apanhava a flôr, e ia offerece-la na pontinha dos dedos á Isabel, que desfolhando-a tristemente murmurava as palavras cabalisticas com que o coração procura illudir-se.

Em vez porém de consultar o presente, perguntava o futuro, porque sabia que o presente não tinha esperanças para ella, e se a flôr dissesse o contrario mentia.

Havia meia hora que Cecilia estava no banho, quando Pery, que collocado sobre uma arvore não deixava de lançar o olhar ao redor de si vio na margem opposta as guaximas se agitarem.

A ondulação produzida nos arbustos foi-se estendendo como um caracol, e aproximando-se do lugar onde a moça se banhava, até que parou detraz de umas grandes pedras que havia á beira do rio.

Do primeiro lanço d'olhos o indio conheceu que o largo sulco traçado entre as hastes verdes do arvoredo não podia deixar de ser produzido por um animal de grande corpulencia.

Seguio rapidamente pelos ramos das arvores, atravessou o rio sobre essa ponte aerea, e conseguio escondido pelas folhas collocar-se perpendicularmente ao lugar onde ainda se fazia sentir a oscillação dos arbustos.

Viu então sentados entre as guaximas dous selvagens, mal cobertos por uma tanga de pennas amarellas, que com o arco esticado e a flexa a partir, esperavão que Cecilia passasse diante da fresta que formavão as pedras para despedirem o tiro.

E a menina descuidada e tranquilla já tinha estendido o braço, e ferindo a agua passava sorrindo por diante da morte que a ameaçava.

Se se tratasse de sua vida, Pery teria sangue frio; mas Cecilia corria um perigo, e portanto não reflectio, não calculou.

Deixou-se cahir como uma pedra do alto da arvore: as duas flexas que partião, uma cravou-se-lhe no hombro, a outra roçando-lhe pelos cabellos mudou de direcção.

Ergueu-se então, e sem mesmo dar-se ao trabalho de arrancar a seta, de um só movimento tomou á cinta as pistolas que tinha recebido de sua senhora, e despedaçou a cabeça dos selvagens.

Ouvirão-se dous gritos de susto que partião da margem opposta, e quasi logo a voz tremula e colerica de Cecilia que chamava:

—Pery!...

Elle beijou as pistolas ainda fumegantes e ia responder, quando á dous passos surgio de entre a touça o vulto de uma india que sumio-se ligeiramente no matto.

Enfiou um olhar pela fresta, e julgando Cecilia já fora do banho e em lugar seguro, lançou-se atraz da india que já lhe levava um grande avanço.

Uma larga fita vermelha que escapava da ferida tingia a sua alva tunica de algodão; Pery sentio-se vacillar de repente e apertou com desespero o coração como para reter o sangue que espadanava.

Foi um momento de luta terrivel entre o espirito e a materia, entre a força da vontade e o poder da natureza.

O corpo desfallecia, os joelhos se dobravão, e Pery erguendo os braços como para agarrar-se á cupola das arvores, estorcendo os musculos para manter-se em pé, lutava debalde com a fraqueza que se apoderava delle.

Debateu-se um momento contra a poderosa gravitação que o vergava para a terra; mas era homem, e tinha de ceder á lei da creação. Entretanto succumbindo o valente indio resistia sempre: e vencido parecia querer lutar ainda.

Não cahio, não; quando a força lhe faltou de todo, foi-se lentamente retrahindo e tocou a terra com os joelhos.

Mas então lembrou-se de Cecilia, de sua senhora a quem tinha de vingar, e para quem devia viver afim de salva-la, e de velar sobre ella. Fez um esforço supremo: contrahindo-se conseguio reerguer-se: deo dous passos vacillantes, gyrou no ar e foi bater de encontra a uma arvore com a qual se abraçou convulsivamente.

Era uma cabuiba de alta grandeza que se elevava pelo cimo da floresta, e de cujo tronco cinzento borbulhava um oleo côr de opala que desfiava em lagrimas.

O suave aroma que rescendia dessas gotas fez o indio abrir os olhos amortecidos, que se illuminárão de uma brilhante irradiação de felicidade. Collou ardentemente os labios no tronco, e sorveu o oleo, que entrou no seu seio como um balsamo poderoso.

Sentio-se renascer.

Estendeu o oleo sobre a ferida, estancou o sangue e respirou.

Estava salvo.


XII
A ONÇA

Voltemos á casa.

Loredano, depois do movimento de Pery, tinha acompanhado com os olhos a Alvaro, o qual seguio pela borda da esplanada para ver Cecilia que dirigia-se ao rio.

Apenas o moço dobrou o angulo que formava o rochedo, o italiano desceu a ladeira rapidamente, e metteu-se pelo matto.

Poucos instantes se tinhão passado quando Ruy Soeiro appareceu na esplanada, ganhou abaixa, e entranhou-se por sua vez na floresta.

Bento Simões imitou-o com pequeno intervallo, e guiando-se por alguns talhos frescos que vio nas arvores, tomou na mesma direcção.

O pateo ficou deserto.

Decorreu cerca de meia hora: a casa tinha aberto todas as suas janellas para receber o ar puro da manhã, e as emanações saudaveis dos campos; um ligeiro pennacho de fumo alvadio coroava o tubo da chaminé, annunciando que os trabalhos caseiros havião começado.

De repente ouvio-se um grito no interior da habitação; todas as portas e janellas do edificio fechárão-se com um estrepito e uma rapidez, como se um inimigo cahisse de assalto.

Pela fresta de uma janella entre-aberta appareceu o rosto de D. Lauriana, pallida e com os cabellos sem estarem riçados, o que era uma cousa extraordinária.

—Ayres Gomes!... O escudeiro!... Chamem Ayres Gomes! Que venha já! gritou a dama.

A janella fechou-se de novo com o ferrolho.

A personagem que já conhecemos pouco tardou, e atravessando a esplanada dirigio-se á casa, sem comprehender a razão porque áquella hora com sol alto ainda toda a habitação parecia dormir.

—Fizestes-me chamar! disse elle chegando-se á janella.

—Sim; estais armado? perguntou D. Lauriana por detraz da porta.

—Tenho a minha espada; mas que novidade ha?

A physionomia decomposta de D. Lauriana appareceu de novo na fresta da janella.

—A onça! Ayres Gomes!... A onça!...

O escudeiro deo um salto prodigioso julgando que o animal de que se fallava ia saltar-lhe ao cangote, e sacou da espada pondo-se em guarda.

A dama vendo o movimento do escudeiro suppoz que a onça atirava-se á janella, e cahio de joelhos murmurando uma oração ao santo advogado contra as féras.

Alguns minutos se passárão assim; D. Lauriana rezando; e Ayres Gomes rodando no pateo como um corropio, com receio de que a onça não o atacasse pelas costas, o que além de ser uma vergonha para um homem de armas da sua tempera, seria um pouco desagradavel para sua saude.

Por fim, de pulo em pulo o escudeiro conseguio ganhar de novo a parede do edificio e encostar-se nella, o que o tranquillisou completa mente; pela frente não havia inimigo que o fizesse pestanejar.

Então batendo com a folha da espada na hombreira da janella disse em voz alta:

—Explicar-me-heis que onça é essa de que fallais, Sra. D. Lauriana; ou estou cego, ou não vejo aqui sombra de semelhante animal.

—Estais bem certo disso, Ayres Gomes? disse a dama reerguendo-se.

—Se estou certo! Assegurai-vos com os vossos proprios olhos.

—É verdade! Mas em alguma parte ha de estar!

—E porque quereis vós á fina força que aqui esteja uma onça, Sra. D. Lauriana? disse o escudeiro um tanto impacientado.

—Pois não sabeis? exclamou a dama.

—O que, senhora?

—Aquelle bugre endemoninhado não se lembrou de trazer hontem uma onça viva para a casa!

—Quem, o perro do cacique?

—E quem mais senão aquelle cão tinhoso!

—É das que elle costuma fazer!

—Viu-se já uma cousa semelhante, Ayres Gomes!

—Mas a culpa não tem elle!

—Quero ver se o Sr. Mariz ainda teima em guardar essa boa joia.

—E que é feito da féra, Sra. D. Lauriana?

—Algures deve estar. Procurai-a, Ayres; corrão tudo, matem-n'a, e tragão-me aqui.

—É dito e feito, respondeu o escudeiro correndo tanto quando lhe permittião as suas botas de couro de raposa.

Com pouca demora, cerca de vinte aventureiros armados descêrão da esplanada.

Ayres Gomes marchava na frente com um enorme chuço na mão direita, a espada na mão esquerda, e uma faca atravessada nos dentes.

Depois de percorrerem quasi todo o valle e baterem o arvoredo, voltavão, quando o escudeiro estacou de repente e gritou:

—Eil-a, rapazes! Fogo antes que faça o pulo!

Com effeito, por entre a ramagem das arvores via-se a pelle negra e marchetada do tigre, e os olhos felinos que brilha vão com o seu reflexo pallido.

Os aventureiros levarão o mosquete á face, mas no momento de puxarem o gatilho, largárão todos uma risada homerica, e abaixarão as armas.

—Que é lá isso? Tem medo?

E o destemido escudeiro sem se importar com os outros mergulhou por sob as arvores e apresentou-se arrogante em face do tigre.

Ahi porém cahio-lhe o queixo de pasmo e de sorpreza.

A onça embalava-se a um galho suspensa pelo pescoço e enforcada pelo laço que apertando-se com o seu proprio peso, a estrangulára.

Emquanto viva, um só homem bastára para trazê-la desde o Parayba até á floresta, onde tinha sido caçada; e da floresta até áquelle lugar onde havia expirado.

Era depois de morta que fazia todo aquelle espalhafato; que punha em armas vinte homens valentes e corajosos; e produzia uma revolução na casa de D. Lauriana.

Passado o primeiro momento de admiração, Ayres Gomes cortou acorda e arrastando o animal foi apresenta-lo á dama.

Depois que de fora lhe assegurarão que o tigre estava bem morto, entre-abrio-se a porta, e D. Lauriana ainda toda arripiada, olhou estremecendo o corpo da féra.

—Deixe-o ahi mesmo. O Sr. D. Antonio ha da vê-lo com seus olhos!

Era o corpo de delicto, sobre o qual pretendia basear o libello accusatorio que ia fulminar contra Pery.

Por differentes vezes a dama tinha procurado persuadir seu marido a expulsar o indio que ella não podia soffrer, e cuja presença bastava para causar-lhe um faniquito.

Mas todos os seus esforços tinhão sido baldados; o fidalgo com a sua lealdade e cavalheirismo apreciava o caracter de Pery, e via nelle embora selvagem, um homem de sentimentos nobres e de alma grande. Como pai de familia estimava o Indio pela circumstancia a que já alludimos de ter salvado sua filha, circumstancia que mais tarde se explicará.

Desta vez porém D. Lauriana esperava vencer; e julgava impossivel que seu marido não punisse severamente esse crime abominavel de um homem que ia ao matto amarrar uma onça e trazê-la viva para a casa. Que importava que elle tivesse salvado a vida de uma pessoa, se punha em risco a existencia de toda a familia, e sobretudo a della?

Terminava esta reflexão justamente no momento em que D. Antonio de Mariz assomava á porta.

—Dir-me-heis, senhora, que rumor é este, e qual a causa?

—Ahi a tendes! exclamou D. Lauriana apontando para a onça comum gesto soberbo.

—Lindo animal! disse o fidalgo adiantando-se e tocando com o pé as presas do tigre.

—Ah! achais lindo! Inda mais achareis quando souberdes quem o trouxe!...

—Deve ter sido um habil caçador, disse D. Antonio contemplando a féra com esse prazer de monteria que era um dom dos fidalgos daquelle tempo: não tem o signal de uma só ferida!

—É obra daquelle excommungado caboclo, Sr. Mariz! respondeu D. Lauriana preparando-se para o ataque.

—Ah! exclamou o fidalgo rindo; é a caça que Pery hontem perseguia, e de que nos fallou Alvaro!

—Sim; e que trouxe viva como se fosse alguma paca!

—A trouxe viva! Mas não vêdes que é impossivel?

—Como impossivel, se Ayres Gomes vem de acaba-la agora mesmo!

Ayres Gomes quiz retrucar; mas a dama impoz-lhe silencio com um gesto.

O fidalgo curvou-se e segurando o animal pelas orelhas ergueu-o; ao passo que examinava o corpo para ver se lhe descobria alguma bala, notou que tinha as patas e as mandibulas ligadas.

—É verdade! murmurou elle; devia estar viva ha cousa de uma hora; ainda conserva o calor.

D. Lauriana deixou que seu marido se fartasse de contemplar o animal, certa de que as reflexões que esta vista produziria não podião deixar de ser favoraveis ao seu plano.

Quando julgou que tinha chegado o momento, deo dous passos, arranjou a cauda do seu vestido, e dando um certo descabido ao corpo, dirigio-se a D. Antonio:

—Bom é que vejais, Sr. Mariz, que nunca me illudo! Que de vezes vos hei dito que fazieis mal em conservar esse bugre? Não quereis acreditar: tinheis um fraco inexplicavel pelo pagão. Pois bem...

A dama tomou um tom oratorio, e accentuou a palavra com um gesto energico apontando para o animal morto:

—Ahi tendes o pago. Toda a vossa familia ameaçada! Vós mesmo que podieis sahir desapercebido; vossa filha que ignorando o perigo que corria foi banhar-se, e podia a está hora estar pasto de féras.

O fidalgo estremeceu á idéa do perigo que corrêra sua filha e ia precipitar-se; mas ouvio um doce murmurio de vozes que parecia um chilrear de sahis: erão as duas moças que subião a ladeira.

D. Lauriana sorria-se do seu triumpho.

—E se fosse só isto? continuou ella. Porém não pára aqui: amanhã vereis que nos traz algum jacaré, depois uma cascavel ou uma giboia; encher-nos-ha a casa de cobras e lacráos. Seremos aqui devorados vivos, porque a um bugre arrenegado deo-lhe na cabeça fazer as suas bruxarias!

—Exagerais muito tambem, D. Lauriana. É certo que Pery fez uma selvajaria; mas não ha razão para que receiemos tanto. Merece uma reprimenda: lh'a darei e forte. Não continuará.

—Se o conhecesseis como eu, Sr. Mariz! É bugre e basta! Podeis ralhar-lhe quanto quizerdes; elle o fará mesmo por pirraça!

—Prevenções vossas, que não partilho.

A dama conheceu que ia perdendo terreno; e resolveu dar o golpe decisivo; amaciou a voz, e tomou um tom choroso.

—Fazei o que vos aprouver! Sois homem, e não tendes medo de nada! Mas eu, continuou arrepiando-se, não poderei mais dormir, só com a idéa de que uma jararaca sobe-me á cama; de dia a todo o momento julgarei que algum gato montez vai saltar-me pela janella; que a minha roupa está cheia de lagartas de fogo! Não ha forças que resistão a semelhante martyrio!

D. Antonio começou a reflectir seriamente sobre o que dizia sua mulher, e a pensar no sem numero de faniquitos, desmaios e arrufos que ia produzir o terror panico justificado pelo facto do indio; comtudo conservava ainda a esperança de conseguir acalma-la e dissuadi-la.

D. Lauriana espiava o effeito do seu ultimo ataque. Contava vencer.


XIII
REVELAÇÃO

Isabel e Cecilia que voltavão do banho conversando, aproximárão-se da porta, não sem algum susto do animal; susto que se desfez com o sorriso do velho fidalgo, revendo-se na belleza de sua filha.

Com effeito, Cecilia estava nesse momento de uma formosura que fascinava.

Tinha os cabellos ainda humidos, dos quaes se escapava de vez em quando um aljôfar que ia perder-se na covinha dos seios cobertos pelo linho do roupão; a pelle fresca como se ondas de leite corressem pelos seus hombros; as faces brilhantes como dous cardos rosas que se abrem ao pôr do sol.

As duas meninas fallavão com alguma vivacidade; mas ao aproximarem-se da porta, Cecilia que ia um pouco adiante voltou-se para sua prima na pontinha dos pés, e comum arzinho petulante levou o dedo aos labios recommendando silencio.

—Sabes, Celilia, que tua mãi está muito zangada com Pery! disse D. Antonio tomando o rostinho mimoso de sua filha e beijando-a na fronte.

—Porque, meu pai? Fez elle alguma cousa?

—Umas das suas, e de que já sabes parte.

—E eu vou contar-te o resto! atalhou D. Lauriana, tocando com a mão o braço de sua filha.

E de facto apresentou com as côres mais negras, e com a emphase mais dramatica, não só o risco imminente que na sua opinião tinha corrido a casa inteira, mas os perigos que ameaçavão ainda a paz e o socego da familia.

Referio que, se por um milagre a sua caseira não tivesse ha cousa de uma hora chegado á esplanada e visto o indio fazendo partes diabolicas com o tigre ao qual naturalmente ensinava a maneira de penetrar na casa, todos áquella hora estarião defuntos.

Cecilia empallideceu, lembrando-se do descuido e alegria com que atravessára o valle e se banhára; Isabel conservou-se calma, mas seus olhos brilharão.

—Assim, concluio peremptoriamente D. Lauriana, não é concebivel que continuemos com semelhante praga em casa.

—Que dizeis, minha mãi? exclamou Cecilia assustada: pretendeis manda-lo embora?

—Sem duvida: essa casta de gente, que nem gente é, só póde viver bem nos mattos.

—Mas elle nos ama tanto! Tem feito tanto por nós não é verdade, meu pai? disse a menina voltando-se para o fidalgo:

D. Antonio respondeu a sua filha por um sorriso que a socegou:

—Vós ralhareis com elle, meu pai: eu ficarei agastada, continuou Cecilia, e elle se emendará e não fará mais outra.

—E a de ha pouco? replicou Isabel dirigindo-se a Cecilia.

D. Lauriana, que via a sua causa mal parada depois da chegada das moças, apezar da repugnancia que sentia por Isabel, conheceu que tinha nella um alliado; e dirigio-lhe a palavra, o que succedia uma vez por semana.

—Chega-te, menina; o que é que dizes ter acontecido ha pouco?

—E tambem um perigo que correu Cecilia.

—Qual! minha mãi; foi mais susto de Isabel do que outra cousa.

—Susto, sim; mas pelo que vi...

—Conta me isto; e tu Cecilia, fica ahi socegada.

A menina pelo respeito que tinha a sua mãi não se animou a dizer mais uma palavra; porém aproveitando-se do movimento que fez D. Lauriana ao voltar-se para ouvir a Isabel, abanou a cabeça a sua prima pedindo-lhe que nada dissesse.

A moça fez que não via o gesto, e respondeu a sua tia:

—Cecilia estava se banhando e eu tinha ficado á beira do rio: dahi a algum tempo vejo Pery que passava ao longe pelo galho de uma arvore. Elle sumio-se; e de repente uma setta partida daquelle lugar veio cahir a dous passos de minha prima!

—Ouça cá, Sr. Mariz! exclamou D. Lauriana; ouça as estrepolias do capeta!

—No mesmo instante, continuou Isabel, ouvimos dous tiros de pistola, que ainda mais nos assustárão, porque de certo forão apontados tambem para nosso lado.

—Senhor Deus! É peior do que uma judearia! Mas quem deo pistolas a esse bugio?

—Fui eu, minha mãi; respondeu timidamente Cecilia.

—Melhor seria que rezasses as tuas contas. Era bem feito que com ellas mesmo... Senhor Deus! perdoai-me!

D. Antonio tinha ouvido as palavras de Isabel apezar de conservar-se a alguma distancia; o rosto do fidalgo tomara uma expressão grave.

Fez um ligeiro aceno a Cecilia, e afastou-se com ella em ar de quem passeava pela esplanada:

—O que diz tua prima é verdade?

—É, meu pai; mas estou certa que Pery não o fez por maldade.

—Comtudo, replicou o fidalgo, isto pode renovar-se, por outro lado tua mãi está atemorisada; assim, o melhor é afasta-lo.

—Elle vai sentir muito!!

—E eu e tu tambem porque o estimamos; mas não seremos ingratos; eu pagarei a tua e a minha divida de gratidão; deixa isto ao meu cuidado.

—Sim, meu pai! exclamou a menina com um olhar humido de reconhecimento e de admiração: Sim! Vós que sabeis comprehender tudo que é nobre!

—Como tu, minha Cecilia! respondeu o fidalgo acariciando-a.

—Oh! eu aprendi no vosso coração, e nas vossas menores acções.

D. Antonio abraçou-a.

—Ah! tenho uma cousa a pedir-vos!

—Dize: ha muito que não me pedes nada, e eu já tenho queixa disto.

—Mandareis conservar este animal? Sim!

—Desde que o desejas...

—Será uma lembrança que teremos de Pery.

—Para ti, que para mim a melhor lembrança és tu. Se não fosse elle, podia eu agora apertar-te nos meus braços?

—Sabeis que tenho vontade de chorar só de pensar que elle se vai?

—É natural, minha filha, as lagrimas são um balsamo que Deus deo á fraqueza da mulher, e que negou á força do homem.

O fidalgo separou-se de sua filha, e chegou-se á porta onde se achavão ainda sua mulher, Isabel e Ayres Gomes.

—Que decidistes, Sr. D. Antonio? perguntou a dama.

—Decidi fazer-vos a vontade, para socego vosso e descanço meu. Hoje mesmo ou amanhã Pery deixará esta casa; mas emquanto elle aqui estiver, eu não quero, disse carregando ligeiramente sobre aquelle monosyllabo, que se lhe diga uma palavra sequer de desagrado. Pery sahe desta casa porque lh'o peço, e não porque isto seja-lhe ordenado por alguem. Entendeis, minha mulher?

D. Lauriana, que comprehendia o que havia de energia e resolução naquelle imperceptivel entoação dada pelo fidalgo a uma simples phrase, inclinou a cabeça.

—Incumbo-me de fallar eu mesmo a Pery! Dir-lhe-has de minha parte, Ayres Gomes, que venha ter comigo.

O escudeiro inclinou-se; o fidalgo que se ia retirando, voltou-se:

—Ah! esquecia-me. Mandaras encher este lindo animal que desejo conservar; será uma curiosidade para o meu gabinete d'armas.

D. Lauriana fez á sorrelfa uma careta de nojo.

—E servirá para que minha mulher se habitue com sua vista, e tenha menos medo de onças.

D. Antonio afastou-se.

A dama pôde então ir riçar os seus cabellos, e preparar o seu toucado domingueiro; tinha alcançado uma importante victoria.

Pery ia finalmente ser expulso desta casa, onde na sua opinião nunca devêra ter entrado.

Emquanto isto passava, Cecilia, ao separar-se de seu pai, voltára o canto da casa para entrar no jardim, e encontrára Alvaro que passeava inquieto e pensativo.

D. Cecilia! disse o moço.

—Oh! deixai-me, Sr. Alvaro! respondeu Cecilia sem parar.

—Em que vos offendi eu para que me trateis assim?

—Desculpai-me, estou triste; em nada me offendestes.

—É que quando se commetteu uma falta...

—Uma falta? perguntou a menina admirada.

—Sim! respondeu o moço abaixando os olhos.

—E que falta commettestes vós, Sr. Alvaro?

—Desobedeci-vos.

—Ah! é grave! disse a moça com um meio sorriso.

—Não zombeis, D. Cecilia! Se soubesseis que inquietações isto me tem feito passar! Arrependo-me mil vezes do que pratiquei, e comtudo parece-me que era capaz de pratica-lo de novo.

—Mas, Sr. Alvaro, esqueceis que fallais de uma cousa que ignoro; sei apenas que se trata de uma desobediencia!

—Lembrais-vos que hontem me mandastes guardar um objecto, que...

—Sim! atalhou a moça corando; um objecto que...

—Que vos pertencia, e que eu contra vontade vossa restitui.

—Como! que dizeis!

—Oh! perdoai! foi uma ousadia! mas...

—Mas emfim eu não entendo nem uma palavra de tudo isto! exclamou a moça com um movimento de impaciencia.

Alvaro vencendo emfim o seu acanhamento contou rapidamente o que linha feito na vespera á noite.

Cecilia ouvindo-o, ia se tornando séria.

Sr. Alvaro, disse ella n'um tom de exprobração, fizestes mal em praticar semelhante acção, muito mal. Que ninguem o saiba ao menos.

—Eu juro pela minha honra!

—Não basta; vós mesmo desfareis o que fizestes. Não abrirei aquella janella emquanto houver alli um objecto que não me veio de meu pai, e em que não posso tocar.

—Senhora!... balbuciou o moço pallido e abatido.

Cecilia levantou os olhos, e viu no rosto de Alvaro tanta amargura e desespero, que sentio-se commovida.

—Não me accuseis de que succede, disse ella com a voz meiga, a culpa é vossa.

—Eu o sinto; e não me queixo.

—Bem vistes que não podendo acceitar, pedi que conservasseis como uma lembrança.

—Oh! eu a conservarei ainda; ella me ensinará a expiar a minha falta, e m'a recordará sempre.

—Será agora uma triste recordação...

—E posso-as eu ter alegres!

—Quem sabe! disse Cecilia desentrançando dos seus cabellos louros um jasmim; é tão doce esperar!

Voltando-se para esconder o rubor de suas faces, Cecilia viu perto a Isabel que devorava esta scena com um olhar ardente.

A menina soltou um grito de susto e entrou rapidamente no jardim. Alvaro apanhou no ar a pequena flôr que se escapára dos dedos de Cecilia e beijou-a julgando que ninguem alli estava. Quando o cavalheiro deo com os olhos na moça, ficou tão perturbado que deixou cahir o jasmim sem sentir.

Isabel apanhou-o; e apresentando a Alvaro, disse com um accento de voz inimitavel:

—É tambem uma restituição!

Alvaro empallideceu.

A moça tremula passou diante delle, e entrou no quarto de sua prima.

Cecilia vendo chegar Isabel corou, e não se animou a levantar os olhos, lembrando-se do que ella tinha visto e ouvido: pela primeira vez a innocente menina conhecia que havia na sua pura affeição alguma cousa que se escondia aos olhos dos outros.

Isabel, entrando no aposento da prima ao qual fôra arrastada por um sentimento irresistivel, arrependera-se immediatamente; a perturbação que sentia era tão grande, que temeu trahir-se; encostou-se no leito defronte de Cecilia, muda e com os olhos cravados no chão.

Assim passou-se um longo intervallo; depois as duas moças quasi ao mesmo tempo erguêrão a cabeça e lançárão um olhar para a janella; seus olhos se encontrárão, e ambas corárão ainda mais.

Cecilia revoltou-se; a menina alegre e travessa que conservava n'um cantinho do coração, sob os risos e as graças, o germem da firmeza de caracter que distinguia seu pai, sentio-se offendida por se ver obrigada a córar de vergonha diante de outrem, como se tivesse commettido uma falta.

Revestio-se de coragem, e tomou uma resolução cuja energia se desenhava em um movimento imperceptivel das sobrancelhas.

—Isabel, abre esta janella.

A moça estremeceu como se uma faisca electrica tivesse abalado o seu corpo; hesitou, mas por fim atravessou o aposento.

Dous olhares avidos, ardentes, cahirão sobre a janella no momento em que se abrio.

Nada havia alli.

A emoção que teve Isabel foi tão forte, que involuntariamente voltou-se para sua prima soltando uma exclamação de prazer; sua physionomia illuminou-se com um desses reflexos divinos, que parecem descer do céo sobre a cabeça da mulher que ama.

Cecilia olhava sua prima sem comprehendê-la; mas a pouco e pouco a admiração e o espanto desenháráo-se no semblante da menina.

—Isabel!...

A moça cahio de joelhos aos pés de Cecilia.

Tinha-se trahido.


XIV
A INDIA

Pery apenas sentio voltarem-lhe as forças, continuou a sua marcha atravez da floresta.

Por muito tempo seguio as pegadas da india pelo meio do matto com uma rapidez e uma certeza incrivel para quem não conhecer a facilidade com que os selvagens percebem os mais fracos vestigios que deixão as pisadas de um animal qualquer.

Um ramo quebrado, o capim abatido, as folhas seccas espalhadas e partidas, um galho que ainda se agita, as perolas do orvalho desfeitas, são aos seus olhos exercidos o mesmo que uma linha traçada na floresta, e que elles seguem sem hesitação.

Uma razão havia para que Pery se encarniçasse assim em perseguir aquella india inoffensiva, e a fazer esforços inauditos afim de agarra-la.

Para hem comprehender esta razão, é necessario conhecer alguns acontecimentos que se havião passado nos ultimos dias pelas vizinhanças do Paquequer.

No fim da lua das aguas, uma tribu de Aymorés descera das eminencias da Serra dos Orgãos para fazer a colheita dos fructos e preparar os vinhos, bebidas e diversos alimentos de que costumava fazer provisão.

Uma familia dessa tribu trazida pela caça apparecêra ha dias nas margens do Parahyba; compunha-se de um selvagem, sua mulher, um filho e uma filha.

Esta ultima era uma bella india, cuja posse se disputavão todos os guerreiros aymorés; seu pai, o chefe da tribu, sentia o orgulho de ter uma filha tão formosa, como a mais linda setta do seu arco, ou a mais vistosa penna do seu cocar.

Estamos no domingo.

Na sexta-feira, erão dez horas da manhã, Pery atravessava a matta imitando alegremente o canto do sahixé, cujas notas sibiladas elle traduzia pelo doce nome de Cecy.

Ia então em procura desse animal que tão importante papel representa nesta historia, especialmente depois de morto; como não o satisfazia qualquer pequeno jaguar, assentara buscar nos seus proprios dominios um dos reis das grandes florestas que corrião ao longo do Parabyba.

Cecilia havia dito uma palavra, e elle que não discutia os desejos de sua senhora, tomára o seu arco e sua clavina e se tinha posto a caminho. Chegava a um pequeno regato, quando um cãozinho felpudo sahio do matto, e logo depois uma india que deo dous passos e cahio ferida por uma bala.

Pery voltou-se para ver donde partia o tiro, e reconheceu D. Diogo de Mariz que se aproximava lentamente acompanhado por dous aventureiros.

O moço ia atirar a um passaro, e a india que passava neste momento, recebêra a carga da espingarda e cahira morta.

O cãozinho lançou-se para sua senhora uivando, lambendo-lhe as mãos frias, e roçando a cabeça pelo corpo ensanguentado como procurando reanima-la. D. Diogo, apoiado sobre o arcabuz, volvia um olhar de piedade sobre essa moça victima de um capricho de caçador, que não desejava perder a sua pontaria.

Quanto a seus companheiros, rião-se do acontecimento, e divertião-se a fazer commentarios sobre a qualidade de caça que o cavalheiro tinha escolhido.

De repente o cãozinho que acariciava sua senhora morta, ergueo a cabeça, farejou o ar, e partio como uma flexa.

Pery que tinha sido testemunha muda desta scena, aconselhou a D. Diogo que se recolhesse á casa por prudencia, e continuou a sua caminhada.

O espectaculo que acabava de presenciar o entristecêra; lembrou-se de sua tribu, de seus irmãos que elle havia abandonado ha tanto tempo, e que talvez naquella hora erão tambem victimas dos conquistadores de sua terra, onde outr'ora vivião livres e felizes.

Tendo andado cerca de meia legua, avistou ao longe um fogo na matta; ao redor estavão sentados dous selvagens e uma india.

O mais velho, de estatura gigantesca, engastava as presas longas e aguçadas da capivara nas pontas de cannas silvestres, e afiava n'uma pedra essa arma terrivel. O mais moço enchia de pequenas sementes pretas e vermelhas um fructo ouco, ornado de pennas e preso a um cabo de dous palmos de comprimento.

A mulher, que ainda era moça, cardava uma porção de algodão cujos frocos alvos e puros cahião sobre uma grande folha que tinha no regaço.

Junto do fogo havia um pequeno vaso vidrado com brazas no qual a india de vez em quando deitava umas grandes folhas seccas, que levantavão grossos novellos de fumo. Então os dous indios por meio de uma taboca aspiravão as baforadas deste fumo, até que os olhos lhes choravão; depois continuavão o seu trabalho.

No momento em que Pery examinava de longe esta scena, o cãozinho saltava no meio do grupo: o animal apenas respirou da corrida em que vinha, puxou com os dentes a trofa de pennas do indio mais moço, que o atirou a quatro passos com um empurrão.

Aproximou-se então da india, repetio o mesmo movimento; e como fosse mal acolhido ainda, saltou sobre o algodão, e mordeu-o: a mulher tomou-o pela colleira de fructos que trazia ao pescoço, sacudio-o pelas costas, e arranjou as suas pastas; mas estavão tintas de sangue.

Examinou com inquietação o animal; e não o vendo ferido, lançou os olhos ao redor de si e soltou um grito rouco e guttural; os dous indios erguêrão a cabeça interrogando com os olhos a causa dessa exclamação.

Por toda a resposta, a india mostrou o sangue que cobria o animal, e pronunciou com a voz cheia de afflicção uma palavra de uma lingua desconhecida, e que Pery não entendeu.

O indio mais moço saltou pela floresta como um campeiro atraz do cãozinho que lhe servia de guia: o velho e a mulher o seguirão de perto.

Pery comprehendeu perfeitamente o que se passava, e seguio seu caminho pensando que os colonos já devião áquella hora estar fora do alcance dos selvagens.

Era isto o que o indio tinha visto; o que elle ignorava, o acontecimento do banho lhe revelára claramente.

Os selvagens havião encontrado o corpo de sua filha, e reconhecido o signal da bala; por muito tempo procurárão debalde as pisadas dos caçadores, até que no dia seguinte a cavalgata que passava servio-lhes de guia.

Toda a noite rondárão em torno da habitação, e nessa manhã vendo sahir as duas moças resolverão vingar-se com a applicação dessa lei de talião que era o unico principio de direito e justiça que reconhecião.

Tinhão morto sua filha; era justo que matassem tambem a filha do seu inimigo; vida por vida, lagrima por lagrima, desgraça por desgraça.

Como pretendêrão realisar a sua vingança e o fim que tiverão, já sabemos; os dous selvagens dormião para sempre nas margens do Paquequer, sem que uma mão amiga lhes viesse dar sepultura.

Agora é facil conhecer a razão por que Pery perseguia a india, resto da infeliz familia; sabia que ella ia direito ter com seus irmãos, e que á primeira palavra que proferisse, toda a tribu se levantaria como um só homem para vingar a morte do seu cacique, e a perda da mais bella filha dos Aymorés.

Ora, o indio conhecia a ferocidade desse povo sem patria e sem religião, que se alimentava de carne humana e vivia como féras no chão c pelas grutas e cavernas; estremecia só com a idéa de que podesse vir assaltar a casa de D. Antonio de Mariz.

Era preciso pois exterminar toda a familia, e não deixar nem um vestigio de sua passagem.

Fazendo estas reflexões, Pery tinha gasto perto de uma hora a percorrera floresta inutilmente; a india ganhara um grande avanço durante o tempo em que elle lutava contra o desfallecimento pruduzido pela ferida. Por fim julgou que o mais prudente era avisar a D. Antonio immediatamente, afim de que tomasse todas as medidas de prevenção que exigia a imminencia de perigo.

Tinha chegado a um campo coberto por algumas moitas de carrascos, que se destacavão aqui e alli sobre um capim aspero e queimado pelo sol.

Apenas o indio deo alguns passos para atravessar o campo, parou fazendo um gesto de sorpreza; diante delle arquejava um cãozinho, que reconheceu pela colleira de fructos escarlates que tinha ao pescoço.

Era o mesmo que ha dous dias encontrára na floresta, e que naturalmente seguia a india no momento em que ella fugia; o indio não o tinha visto por causa das guaximas.

O animal mostrava ter sido estrangulado por uma torsão tão violenta, que lhe partira a columna vertebral; entretanto ainda agonisava.

Do primeiro lanço d'olhos Pery tinha visto tudo isto, e calculado o que se havia passado.

Aquella morte, pensava elle, não podia ter sido feita senão por uma creatura humana; qualquer outro animal usaria dos dentes ou das garras, e deixaria traços de ferimento.

O cão pertencia á india; fôra ella pois quem o havia estrangulado ha bem poucos momentos, porque a fractura do pescoço era de natureza a produzira morte quasi immediatamente.

Mas por que motivo tinha feito essa barbaridade?—Porque, respondia o espirito do indio, ella sabia que era perseguida, e o cão que a não podia acompanhar serviria para denuncia-la.

Apenas formulou este pensamento, Pery deitou-se e auscultou o seio da terra por muito tempo; duas vezes ergueu a cabeça julgando illudir-se, e encostou de novo o ouvido ao chão.

Quando levantou-se, o seu rosto exprimia grande sorpreza e admiração; tinha ouvido alguma cousa de que parecia duvidar ainda, como se os seus sentidos o illudissem.

Caminhou para o lado do nascente, auscultando a terra a cada momento, e assim chegou a alguns passos de uma grande touça de cardos que se elevava n'uma baixa do terreno.

Então, collocando-se de encontro ao vento, aproximou-se com toda a cautela, e ouvio um murmurio de vozes confusas, e o som de um instrumento que cavava a terra.

Pery applicou o ouvido, e procurou ver o que se passava além, mas era impossivel; nem uma aberta, nem uma fresta davão passagem ao som, ou ao olhar.

Só quem tem viajado nos sertões e visto esses cardos gigantes, cujas largas palmas crivadas de espinhos se entrelação estreitamente formando uma alta muralha de alguns pés de grossura, poderá fazer idéa da barreira impenetravel que cercava por todos os lados as pessoas cuja voz Pery ouvia sem distinguir as palavras.

Entretanto esses homens devião ter ahi entrado por alguma parte; e não podia ser senão pelo galho de uma arvore secca que se estendia sobre os cardos, e ao qual se enroscava um cipó nodoso e forte como uma vide.

Pery estudava a posição, e tratava de descobrir o meio de saber o que se passava a traz daquellas arvores, quando uma voz que julgou reconhecer exclamou.

Per Dio! eil-a!

O indio estremeceu ouvindo esta voz, e resolveu a todo o custo conhecer o que fazião aquelles homens; presentio que havia alli um perigo a conjurar, e um inimigo a combater. Inimigo talvez mais terrivel do que os Aymorés, porque se estes erão féras, aquelle podia ser a serpente escondida entre as flôres e a relva.

Assim esqueceu tudo, e o seu pensamento concentrou-se n'uma unica idea, ouvir o que aquelles homens dizião.

Mas por que meio?

Era o que Pery procurava; tinha rodeado a touca applicando o ouvido, e pareceu-lhe que em um lugar o ruido das vozes e do ferro que continuava a cavar, lhe chegava mais distincto.

O indio abaixou os olhos, que brilhárão de contentamento.

O que produzira essa agradavel impressão fôra um simples monticulo de barro gretado, que se elevava como um pão de assucar dous palmos acima da terra, e que estava encoberto por folhas de tanchagem.

Era a entrada de um formigueiro, de uma dessas casas subterraneas construidas pelos pequenos architectos que á força de paciencia e trabalho minão um campo inteiro, e formão verdadeiras abodadas debaixo da terra.

Aquelle que Pery descobrira tinha sido abandonado pelos seus habitantes em virtude da enxurrada que penetrara no pequeno subterraneo.

O indio tirou a sua faca, e cerceando a cupola dessa torre em miniatura, deixou a descoberto um buraco que penetrava pelo interior da terra, e de certo ia ter á baixa onde estavão reunidas as pessoas que conversavão.

Este buraco tornou-se para elle uma especie de tubo acustico, que lhe trazia as palavras claras e distinctas.

Sentou-se e ouvio.


XV
OS TRES

Loredano que nessa mesma manhã sahira de casa tão cedo, apenas se entranhou na matta esperou.

Um quarto de hora depois vierão ter com elle Bento Simões e Ruy Soeiro.

Os tres seguîrão juntos sem dar uma palavra; o italiano caminhava adiante, e os dous aventureiros o acompanhavão trocando de vez em quando um olhar significativo.

Por fim Ruy Soeiro rompeu o silencio:

—Não foi de certo para espairecer pelos mattos ao romper da alva, que nos fizestes vir aqui, misser Loredano?

—Não, respondeu o italiano laconicamente.

—Mas então desembuchai de uma vez, e não percamos tempo.

—Esperai!

—Que espereis, vos digo eu; atalhou Bento Simões, ides n'uma batida... Onde nos pretendeis levar nesta marcha?

—Vereis.

—Já que não ha meio de vos sacar mais palavra, segui com Deus, misser Loredano.

—Sim, acudio Ruy Soeiro, segui; que nós tornamos por onde viemos.

—Quando estiverdes de vez para fallar, nos avisareis.

E os dous aventureiros pararão dispostos a retroceder; o italiano voltou-se com um gesto de desprezo.

—Parvos que sois! disse elle. Se vos parece, revoltai-vos agora que estais em meu poder, e que não tendes outro remedio senão seguir a minha fortuna! Voltai!... tambem eu voltarei; mas para denunciar-nos a todos.

Os dous aventureiros empallidecêrão.

—Não me façais lembrar, Loredano, disse Ruy Soeiro abaixando um olhar rapido para o punhal, que ha um meio de fechar para sempre as boccas que se obstinão a fallar.

—Isto quer dizer, replicou o italiano desdenhosamente, que me matarieis no caso de que eu vos quizesse denunciar?

—A fé que sim! respondeu Ruy Soeiro com um tom que mostrava a sua resolução.

—E eu pela minha parte faria o mesmo! Primeiro está a nossa vida que as vossas venetas, misser italiano.

—E que ganharieis vós em matar-me? perguntou Loredano sorrindo.

—Essa é melhor! Que ganharíamos? Achais que é cousa de pequena valia assegurar a sua existencia e o seu descanço?

—Néscios!... disse o italiano cobrindo-os com um olhar de desprezo e de piedade ao mesmo tempo. Não vedes que quando um homem traz um segredo como o meu, a menos que esse homem não seja um truão da vossa laia, elle deve ter tomado as suas precauções contra estes pequenos incidentes!

—Bem vejo que estais armado, e mais vale assim, respondeu Ruy Soeiro; será morte antes que homizio.

—Direis melhor execução, Ruy Soeiro! retrucou Bento Simões.

O italiano continuou:

—Não são essas armas que me servirão contra vós; outras tenho eu que mais podem; sabei unicamente que vivo ou morto, a minha voz virá de longe, até mesmo da campa, denunciar-vos e vingar-me.

—Quereis gracejar, misser italiano? A occasião não é asada.

—A seu tempo vereis se gracejo. Tenho na mão de D. Antonio de Mariz o meu testamento, que elle deve abrir quando me saiba ou me julgue morto. Nesse testamento conto as relações que existem entre nós, e o fim para que trabalhamos.

Os dous aventureiros tornárão-se lividos como espectros.

—Comprehendeis agora, disse Loredano sorrindo, que se me assassinardes, se um accidente qualquer me privar da vida, se me der na cabeça mesmo fugir e fazer suppor que morri, estais perdidos irremediavelmente.

Bento Simões ficou paralysado como se uma catalepsia o tivesse fulminado. Ruy Soeiro, apezar do violento abalo que sentia, conseguio com um esforço recobrar a palavra.

—É impossivel!... gritou elle. Isso que dizeis é falso. Não ha homem que o fizesse.

—Ponde á prova! respondeu o italiano calmo e impassivel.

—Elle o fez... estou certo... balbuciou Bento Simões em voz sumida.

—Não, retrucou Ruy Soeiro; Satanaz não o faria. Vamos, Loredano; confessai que nos enganastes, que quizestes atemorisar-nos?

—Disse a verdade.

—Mentes! gritou o aventureiro desesperado.

O italiano sorrio: tirando a sua espada, estendeu a mão sobre a cruz do punho, e disse lentamente deixando cahir as palavras uma a uma:

—Por esta cruz e pelo Christo que nella soffreu; por minha honra neste mundo, e minha alma no outro, juro.

Bento Simões cahio de joelhos esmagado por este juramento, que não deixava de ter alguma solemnidade no meio da floresta sombria e silenciosa.

Ruy Soeiro pallido, com os olhos a saltarem-lhe das orbitas, os labios tremulos, os cabellos eriçados e os dedos hirtos, parecia a mumia do desespero.

Estendeu os braços para Loredano, e exclamou com a voz tremula e suffocada:

—Pois vós, Loredano, confiastes a D. Antonio de Mariz um papel onde existe a machinação infernal que tramastes contra sua familia?

—Confiei-o!

—E nesse papel escrevestes que o pretendeis assassinar a elle e a sua mulher, e lançar fogo á casa se preciso fôr para a realisação de vossos intentos?

—Escrevi tudo!

—Tivestes o arrojo de confessar que tencionais roubar sua filha e fazer della, nobre moça, a barregã de um aventureiro e reprobo como vós?

—Sim!

—E dissestes tambem, continuou Ruy no auge da desesperação, que a outra sua filha nos pertencerá, a nós que jogaremos á sorte para decidir a qual deverá tocar?

—Não me esqueci de nada, e menos desse ponto importante, respondeu o italiano com um sorriso; tudo isto está escripto em um pergaminho, nas mãos de D. Antonio de Mariz. Para sabê-lo, basta que o fidalgo rompa os pingos de cera preta com que mestre Garcia Ferreira, tabellião do Rio de Janeiro, o cerrou na minha penultima viagem.

Loredano pronunciou essas palavras com a maior calma, contemplando os dous aventureiros pallidos e humilhados diante delle.

Passou-se algum tempo em silencio.

—Já vedes, disse o italiano, que estais na minha mão; sirva-vos isto de exemplo. Quando uma vez se pôz o pé sobre o precipicio, amigos, é preciso caminhar por cima delle, para não rolar e ir ao fundo. Caminhemos pois. Só de uma cousa vos advirto; de hoje em diante—obediência cega e passiva!

Os dous aventureiros não dissêrão palavra; porém a sua attitude respondia melhor do que mil protestos.

—Agora deixai essa cara triste e consternada. Estou vivo: e D. Antonio é um verdadeiro fidalgo incapaz de abrir um testamento. Creai esperança, confiai em mim, que breve alcançaremos a meta.

A physionomia de Bento Simões reanimou-se.

—Fallai claro uma vez ao menos, retrucou Ruy Soeiro.

—Não aqui; segui-me, que vos levarei a um lugar onde conversaremos á vontade.

—Esperai, acudio Bento Simões; antes de tudo, reparação vos é devida. Ha pouco vos ameaçámos; aqui tendes as nossas armas.

—Sim, depois do que se passou, é justo que desconfieis de nós; tomai.

Os dous tirárão os punhaes e as espadas.

—Guardai as vossas armas, disse Loredano encarnecendo, servirão para me defenderdes. Eu sei quanto vos é preciosa e cara a minha existencia!

Ambos os aventureiros empallidecêrão, e seguirão o italiano, que depois de uma meia hora de caminho chegou á touca de cardos que já descrevêmos.

Á um signal de Loredano, os seus companheiros subirão á arvore, e descêrão pelo cipó ao centro dessa área cercada de espinhos, que tinha quando muito tres braças de comprimento sobre duas de largura.

De um lado, na quebrada que fazia o terreno, via-se uma especie de gruta ou abobada, restos desses grandes formigueiros que se encontrão pelos nossos campos, já meio aluidos pela chuva. Neste lugar, á sombra de um pequeno arbusto que nascêra entre os cardos, sentárão-se os tres aventureiros.

—Oh! disse o italiano immediatamente; ha algum tempo já que não venho dessas bandas; mas parece-me que ainda deve haver aqui o quer que seja que vos dará no gôto.

Reclinou-se, e estendendo o braço pela cava retirou uma botija que alli estava deitada, e que collocou no meio do grupo.

—É de Caparica, mas do bom. Deste cá não vem!

—Diabo! tendes uma adega exclamou Bento Simões a quem avista da botija tinha restituido todo o bom humor.

—A fallar a verdade, disse Ruy, esperaria tudo, menos ver sahir deste buraco uma botija de vinho.

—É para vêrdes! como costumo vir a este lugar, onde ás vezes passo bem boas soalheiras, precisava ter um companheiro com quem espairecesse.

—E não podieis achar melhor! disse Bento Simões dando uma empinadella á botija e estalando a lingua. Já lhe tinha saudades!

Cada um dos tres tomou a sua vez de vinho e a botija voltou ao seu lugar.

—Bom, disse o italiano, agora tratemos do que serve. Prometti, quando vos convidei a seguir-me, que vos faria ricos, muito ricos.

Os dous inclinárão a cabeça.

—A promessa que vos fiz vai-se realisar: a riqueza está aqui perto de nós, podemos toca-la.

—Onde? perguntárão os aventureiros lançando um olhar avido em roda.

—Não vai assim tambem, falla-se figuradamente.

Digo que a riqueza está diante de nós, mas para nos apoderarmos della é preciso...

—O que? Dizei!

—A seu tempo: agora quero contar-vos uma historia.

—Uma historia! replicou Ruy Soeiro.

—Da carocha? perguntou Bento Simões.

—Não, uma historia veridica como uma bulla do nosso santo padre. Ouvistes fallar algum dia, em um certo Roberio Dias?

—Roberio Dias... Ah! sei! um tal de S. Salvador? disse Ruy Soeiro.

—O mesmo, sem tirar nem pôr.

—Vi-o ha cousa de oito annos em S. Sebastião, donde se passou ás Hespanhas.

—E sabeis o que ia fazer ás Hespanhas esse digno descendente do Caramurú, amigo Bento Simões? perguntou o italiano.

—Ouvi rosnar que se tratava de um thesouro fabuloso, que contava offerecer a Felippe II, o qual em volta o faria marquez, e grande fidalgo de sua casa.

—E o resto, não vos chegou á noticia?

—Não; nunca mais ouvi fallar do tal Roberio Dias.

—Pois ouvi lá; chegando a Madrid, o homem fez a sua offerta mui lampeiro, e foi recebido na palma das mãos por el-rei Felippe II que, como sabeis, tinha as unhas demasiado longas.

—E cinzou-o como uma raposa que era? acudio Ruy Soeiro.

—Enganais-vos; dessa vez a raposa tornara-se macaco; quiz ver o côco ante de paga-lo.

—E então?

—Então, disse o italiano sorrindo maliciosamente, o côco estava ouco.

—Como ouco?

—Sim, amigo Ruy, tinhão-lhe deixado apenas as cascas; felizmente para nós, que vamos lograr o miôlo.

—Sois um homem de caixas encouradas, Loredano!

—Dá-se agente a tratos, e não é possivel entender-vos.

—Tenho culpa eu, que não sejais lido na historia das cousas de vossa terra?

—Nem todos são mitrados como vós, dom italiano.

—Bom, acabemos de uma vez; o que Roberio Dias julgava offerecer em Madrid a Felippe II, amigos, está aqui!

E Loredano dizendo esta palavra assentou a mão sobre um seixo que havia ao lado.

Os dous aventureiros olhárão-se sem comprehender, e duvidando da razão de seu companheiro. Quanto a este, sem se importar com o que elles pensavão, tirou a espada, e depois de desenterrar a pedra começou a cavar. Emquanto proseguia neste trabalho, os dous observando-o passavão alternadamente a botija de vinho, e fazião conjecturas e supposições.

O italiano já cavava ha tempo, quando o ferro tocou num objecto duro, que o fez tinir.

Per Dio, exclamou, eil-a!

Dahi a alguns momentos retirava do buraco um desses vasos de barro vidrado, a que os indios chamavão camuci; este era pequeno e fechado por todos os lados.

Loredano tomando-o pelas duas mãos abalou-o e sentio o imperceptivel vascolejar que fazia dentro um objecto qualquer.

—Aqui tendes, disse elle lentamente, o thesouro de Roberio Dias; pertence-nos. Um pouco de tento, e seremos mais ricos que o sultão de Bagdad, e mais poderosos que o doge de Veneza.

O italiano bateu sobre a pedra com o vaso que se partio em pedaços.

Os aventureiros, com os olhares incendidos de cobiça, esperando ver correr ondas de ouro, de diamantes e esmeraldas, ficárão estupefactos. Do bojo do vaso saltára apenas um pequeno rolo de pergaminho coberto por um couro avermelhado, e atado em cruz por um fio pardo.

Loredano com a ponta do punhal rompeu o laço, e, abrindo rapidamente o pergaminho, mostrou aos aventureiros um rotulo escripto em grandes letras vermelhas.

Ruy Soeiro soltou um grito: Bento Simões começou a tremer de prazer, de pasmo e admiração.

Passado um momento, o italiano estendeu a mão para o papel collocado no meio do grupo, seus olhos tomarão uma expressão dura.

—Agora, disse elle com a sua voz vibrante, agora que tendes a riqueza e o poder ao alcance da mão, jurai que o vosso braço não tremerá quando chegar a occasião; que obedecereis ao meu gesto, á minha palavra, como á lei do destino.

—Juramos!

—Estou cançado de esperar, e resolvido a aproveitar o primeiro ensejo. A mim como chefe, disse o italiano com um sorriso diabolico, devia pertencer D. Antonio de Mariz; eu vo-lo cedo, Ruy Soeiro. Bento Simões terá o escudeiro. Eu reclamo para mim Alvaro de Sá, o nobre cavalheiro.

Ayres Gomes vai se ver n'uma dansa! disse Bento Simões com um aspecto marcial.

—Os mais, se nos incommodarem, irão depois; se nos acompanharem serão bem vindos. Unicamente vos aviso que aquelle que tocar a soleira da porta da filha de D. Antonio de Mariz, é um homem morto; esta é a minha parte de presa! É a parte do leão.

Neste momento ouvio-se um rumor como se as folhas se tivessem agitado.

Os aventureiros não fizerão reparo, e attribuirão naturalmente ao vento.

—Mais alguns dias, amigos, continuou Loredano, e seremos ricos, nobres, poderosos como um rei. Tu, Bento Simões, serás marquez do Paquequer; tu, Ruy Soeiro, duque das Minas; eu... Que serei eu, disse Loredano com um sorriso que illuminou a sua physionomia intelligente. Eu serei...

Uma palavra partio do seio da terra surda e cavernosa, como se uma voz sepulcral a houvesse pronunciado.

—Traidores!...

Os tres aventureiros erguêrão-se de um só movimento, hirtos e lividos: parecião cadaveres surgindo da campa.

Os dous persignárão-se. O italiano suspendeu-se ao ramo da arvore, e lançou um olhar rapido.

Tudo estava em socego.

O sol a pino derramava um oceano de luz: nenhuma folha se agitava ao sopro da brisa; nenhum insecto saltitava sobre a relva.

O dia no seu esplendor dominava a natureza.


FIM DA PRIMEIRA PARTE.


SEGUNDA PARTE
PERY


I
O CARMELITA

Corria o mez de março de 1603.

Era portanto um anno antes do dia em que se abrio esta historia.

Havia á beira do caminho que então servia ás raras expedições entre o Rio de Janeiro e o Espirito Santo, um vasto pouso onde habita vão alguns colonos e indios cathequisados.

Estava quasi a anoitecer.

Uma tempestade secca, terrivel e medonha, como as ha frequentemente nas faldas das serranias, desabava sobre a terra. O vento mugindo açoutava as grossas arvores que vergavão os troncos seculares; o trovão ribombava no bojo das grossas nuvens desgarradas pelo céo; o relampago amiudava com tanta velocidade, que as florestas, os montes, toda a natureza nadava n'um oceano de fogo.

No vasto copiár do pouso havia tres pessoas contemplando com um certo prazer a luta espantosa dos elementos, que para homens habituados com elles, não deixava de ter alguma belleza.

Um desses homens, gordo e baixo, deitado em uma rede no meio do alpendre, com as pernas cruzadas e os braços sobre o peito, soltava uma exclamação a cada novo estrago produzido pela tempestade.

O segundo, encostado n'um dos esteios de jacarandá que sustentavão o tecto da alpendrada, era homem trigueiro, de perto de quarenta annos; a sua physionomia apresentava uns longes do typo da raça judaica; tinha os olhos fitos em uma vereda que serpejava pela frente da casa até perder-se no matto.

Defronte delle, tambem apoiado sobre a outra columna, estava um frade carmelita, que acompanhava com um sorriso de satisfação intima o progresso da borrasca; animava-lhe o rosto bello e de traços accentuados um raio de intelligencia e uma expressão de energia que revelava o seu caracter.

Ao ver esse homem sorrindo á tempestade e affrontando com o olhar a luz do relampago, conhecia-se que sua alma tinha a força de resolução e a vontade indomavel capaz de querer o impossivel, e de lutar contra o céo e a terra para obtê-lo.

Fr. Angelo di Luca achava-se então no pouso como missionario, incumbido da cathequese e cura das almas entre o gentio daquelle lugar; em seis mezes que apostolava conseguira aldear algumas familias que esperava breve trazer ao gremio da igreja.

Um anno havia que obtivera do prior geral da ordem do Carmo a graça de passar do seu convento de Santa Maria Transpontina, em Roma, para a casa que a sua ordem tinha fundado em 1590 no Rio de Janeiro, afim de empregar-se no trabalho das missões.

Tanto o geral como o provincial de Lisboa, tocados por esse ardente enthusiasmo apostolico, o havião recommendado expressamente a Fr. Diogo do Rosario, então prior do convento do Carmo no Rio de Janeiro, pedindo-lhe que empregasse no serviço do Senhor e na gloria da ordem da Beatissima Virgem do Monte Carmelo, o zelo e o santo fervor do irmão Fr. Angelo di Luca.

Eis a razão por que o filho de um pescador, sahido das lagunas de Veneza, achava-se no sertão do Rio de Janeiro, encostado ao esteio de um pouso, contemplando a tempestade que redobrava de furor.

—Sempre partireis esta noite, Fernão Aines? disse o homem que estava deitado na rede.

—Ao quarto d'alva, respondeu o outro sem voltar-se.

—E o tempo que vai fazer?

—Não é isso que me estorva, hem o sabeis, mestre Nunes. Esta maldita caçada!... Receiais que vossos homens não tornem della a tempo?

—Receio que não os leve á todos a bréca por esses mattos com semelhante borrasca.

O frade voltou-se:

—Aquelles que seguem a lei de Deus estão bem em toda a parte, irmão, em andurriaes como neste pouso; os máos é que devem tremer o fogo do céo, e a estes não ha abrigo que os salve.

Fernão Aines sorrio ironicamente.

—Crêdes isso, Fr. Angelo?

—Creio em Deus, irmão.

—Pois embora; prefiro estar onde estou do que por ahi mettido n'algum despenhadeiro.

—Comtudo, acudio Nunes, o que diz o nosso reverendo missionario...

—Ora deixa fallar Fr. Angelo. Aqui sou eu que zombo da tempestade; lá seria a tempestade que zombaria de mim.

—Fernão Aines!... exclamou Nunes.

—Maldita lembrança de caçada! murmurou o outro sem attendê-lo.

O silencio se restabeleceu.

De repente uma nuvem abrio-se; a corrente electrica enroscando-se pelo ar, como uma serpente de fogo, abateu-se sobre um tronco de cedro que havia defronte do pouso.

A arvore fendeu-se desde o olho até á raiz em duas metades; uma permaneceu em pé, esguia e mutilada; a outra, tombando sobre o terreiro, bateu nos peitos de Fernão Aines, e o atirou esmagado no fundo do alpendre.

Seu companheiro ficou immovel por muito tempo; depois começou a tremer como se tiritasse com o frio de terçãs; o pollegar estendido para fazer o signal da cruz, os dentes chocando uns contra os outros, o rosto contrahido, davão-lhe aspecto terrivel e ao mesmo tempo grotesco.

O frade se tinha voltado livido como se elle fosse a victima da catastrophe; o terror decompoz um momento a sua physionomia; porém logo um sorriso sardonico fugio-lhe dos labios ainda descorados pelo choque violento que soffrêra.

Passado o primeiro momento de susto, os dous chegárão-se para o ferido, e quizerão prestar-lhe soccorros; este fez um grande esforço, e erguendo sobre um dos braços soltou n'uma golphada de sangue estas palavras:

—Castigo do céo!

Reconhecendo que não havia mais cura para o corpo, o moribundo exigio o remedio espiritual; com a voz fraca pedio a Fr. Angelo que o ouvisse de confissão.

Nunes fez recolher o seu companheiro a um aposento cuja porta dava para o alpendre, e deitou-o sobre uma cama de couro.

Já havia anoitecido, o aposento estava na maior escuridão, apenas por instantes o relampago brilhava lançando o clarão azulado sobre o confessor meio reclinado para o moribundo, afim de escutar-lhe a voz que ia gradualmente enfraquecendo.

—Ouvi-me sem me interromper, meu padre; sinto que poucos momentos me restão; e embora não haja perdão para mim, quero ao menos reparar o meu crime.

—Fallai, irmão; eu vos escuto.

—Em novembro passado cheguei ao Rio de Janeiro; fui hospedado por um parente meu; tanto elle como sua mulher me fizêrão o melhor acolhimento.

«Elle, que havia muito viajado pelo sertão e se dera á vida de aventureiro, fallou-me um dia de tentarmos uma expedição, cujo resultado seria grande riqueza para nós ambos.

«Por diversas vezes nos entretivemos sobre esse objecto, até que abrio-se inteiramente comigo.

«O pai de um Roberio Dias, colono da Bahia, guiado por um indio, havia descoberto nos sertões daquella provinda minas de prata tão abundantes que se poderião calçar desse metal as ruas de Lisboa.

«Como atravessasse sertões invios e inhospitos, Dias escrevêra um roteiro com as indicações necessarias para em qualquer tempo poder-se achar o lugar onde estão situadas as ditas minas.

«Este roteiro fôra subtrahido a seu dono sem que elle o percebesse; e por uma longa successão de factos, que faltão-me as forças para contar-vos, viera cahir nas mãos do meu parente.

«De quantos crimes já não tinha sido causa esse papel, e de quantos não seria ainda, meu padre, se Deus não houvesse finalmente punido em mim o ultimo herdeiro desse legado de sangue!...»

O moribundo parou um momento extenuado; depois continuou com a voz debil:

«Já então com a chegada do governador D. Francisco de Souza se sabia que Roberio offerecêra em Madrid a Philippe II a descoberta das minas, e que não o tendo el-rei premiado como esperou, obstinava-se em guardar silencio.

«A razão deste silencio, que se attribuia geralmente ao despeito, só a sabia meu parente em cujas mãos parava o roteiro; Roberio chegado ás Hespanhas se apercebêra do roubo que lhe havião feito, e quizera ao menos lograr o premio.

«O segredo das minas, a chave dessa riqueza immensa que excedia todos os thesouros do Miramolim, estava nas mãos do meu parente que, necessitando de um homem dedicado que o auxiliasse na empreza, julgou que a ninguem melhor do que a mim podia escolher para partilhar os seus riscos e esperanças.

«Aceitei essa meação do crime, esse pacto de roubo, meu padre... Foi o meu primeiro erro!...»

A voz do aventureiro tornou-se ainda mais sumida. O frade, inclinado sobre elle, parecia devorar com os labios entre-abertos as palavras balbuciadas pelo moribundo.

—Coragem, filho!

—Sim! Devo dizer tudo!...Fascinado pela descripção desse thesouro fabuloso, tive uma lembrança uniqua... essa lembrança tornou-se desejo......depois idéa, e.... projecto por fim realisou-se.... foi um crime! Assassinei meu parente; e sua mulher...

—E... exclamou o frade com a voz surda.

E roubei o segredo!

O frade sorrio nas trevas.

—Agora só me resta a misericordia de Deus, e a reparação do mal que fiz... Roberio é morto, sua mulher vive desgraçada na Bahia... Quero que este papel lhe seja entregue... Prometteis, Fr. Angelo?...

—Prometto! O papel?...

—Está... occulto...

—Aonde?

—Nes... ta...

O moribundo agonisava.

Fr. Angelo, debruçado inteiramente sobre elle, com o ouvido collado á sua boca onde borbulhava uma espuma vermelha, com a mão sobre o coração para ver se ainda palpitava, parecia querer reter o ultimo sopro da vida, afim de tirar delle uma palavra ainda.

—Aonde?... murmurava de vez em quando o frade com a voz cava.

O enfermo agonisava sempre; os soluços extremos da vida que se apaga como a lampada que bruxoleia, agitavão apenas o corpo enregelado.

Por fim o frade viu-o levantar o braço hirto, apontando para a parede, e sentio os seus labios gelados e convulsos que tremêrão, lançando no seu ouvido uma palavra que o fez saltar sobre o leito.

—Cruz!...

Fr. Angelo ergueu-se circulando o aposento com a vista allucinada; na cabeceira da cama havia um Christo de ferro sobre uma grande cruz de páo tosca e mal lavrada.

Com um movimento de raiva o frade apoderou-se da cruz, e quebrou-a de encontro ao joelho; a imagem rolou pelo chão; entre os estilhaços da madeira appareceu um rolo de pergaminho achatado pela pressão em que estivera.

Quebrou com os dentes o sello do papel; chegando á janella leu á claridade vacillante do relampago as primeiras palavras de um rotulo de letras vermelhas, que rezava nestes termos:

«Roteiro verídico e exacto em que se trata da rota que fez Roberio Dias, o pai, em o anno da graça de 1587 ás paragens de Jacobina, onde descobrio com o favor de Deus as mais ricas minas de prataria que existão no mundo; com a summa de todas as indicardes de marcos, balisas e linha equinocial onde demorão aquellas ditas minas; começado em 20 de janeiro, dia do martyr S. Sebastião, e terminado na primeira dominga de Paschoa em que chegámos com a mercê da Providencia nesta cidade de S. Salvador.»

Emquanto o frade esforçava para ler, o moribundo agonisava na ultima afflição, esperando talvez a absolvição final e a extrema uncção do penitente.

Mas o religioso não via nesse momento senão o papel que tinha nas mãos; deixou-se cahir em um banco, e com a cabeça pendida sobre o braço, entregou-se á funda meditação.

Que pensava elle?...

Não pensava; delirava. Diante de seus olhos, a imaginação exaltada lhe apresentava um mar argenteo, um oceano de metal fundido, alvo e resplandecente, que ia se perder no infinito. As vagas desse mar de prata, ora achamalotavão-se, ora rolavão formando frocos de espuma, que parecião flores de diamantes, de esmeraldas e rubins scintillando á luz do sol.

Ás vezes tambem nessa face lisa e polida desenhavão-se como em um espelho palacios encantados, mulheres bellas como as buris do propheta, virgens graciosas como os anjos de Nossa Senhora do Monte Carmelo.

Assim decorreu meia hora, em que o silencio era apenas interrompido pelo estertor do moribundo e pelo trovão que rugia: depois houve uma calma sinistra; o peccador expirava impenitente.

Fr. Angelo levantou-se, arrancou o habito com um gesto desesperado, e pisou-o aos pés; sobre o recosto do leito havia uma muda de roupa com que trajou-se; tirou as armas do cadaver, apanhou o chapéo de feltro, e apertando ao peito o manuscripto, dirigio-se á porta.

Ouvião-se os passos de Nunes, que passeava fóra no alpendre.

O frade estacou; a presença inesperada desse homem diante da porta, deo-lhe uma inspiração. Tomou o habito, vestio-o sobre o seu novo trajo, e escondendo na manga o chapéo do aventureiro, cobrio-se com o largo capello; então abrio a porta e dirigio-se a Nunes.

Consumatum est, irmão! disse elle com um tom compungido.

—Deus tenha sua alma!

—Assim o espero, se não me faltarem as forças para cumprir o seu ultimo voto, que é uma reparação...

—De um grave peccado?

—De um crime, irmão. Dai-me luz; vou escrever a Fr. Diogo do Rosario, nosso prior, porque de onde vou talvez não volte, nem tenhais mais novas de mim.

O frade escreveu á claridade de uma acha de páo candeia algumas linhas ao prior do convento do Carmo no Rio de Janeiro, e despedindo-se de Nunes partio.

Quando dobrava o canto do pouso o céo abrio-se, e a terra incendiou-se com a luz de um relampago tão forte que o deslumbrou. Dous raios, descrevendo listras de fogos, tinhão cabido sobre a floresta e espalhado em torno um cheiro de sulphur que asphyxiava.

O carmelita teve uma vertigem; lembrou-se da scena da tarde, do tremendo castigo que elle proprio havia evocado na sua hypocrisia, e se realisára tão promptamente. Mas o deslumbramento passou; estremecendo ainda e pallido de terror, o reprobo levantou o braço como desafiando a colera do céo, e soltou uma blasphemia horrivel:

—Podeis matar-me; mas se me deixardes a vida, hei de ser rico e poderoso, contra a vontade do mundo inteiro!

Havia nestas palavras um quer que seja da sanha e raiva impotente de Satanaz precipitado no abysmo pela sentença irrevogavel do Creador.

Continuando o seu caminho pelas trevas, costeou a cerca e chegou a uma grande choça, que havia no fundo do pouso, e onde o missionario conseguira aldear algumas familias de indios; entrou e acordou um dos selvagens, a quem ordenou se preparasse para acompanha-lo apenas rompesse o dia.

A chuva cahia em torrentes; o vento açoutava as paredes de sapé, esfusiando por entre a palha.

O frade passou a noite em claro, reflectindo e traçando no seu espirito um plano infernal, para cuja realisação não trepidaria diante de nem um obstaculo; de vez em quando levantava-se para ver se o horizonte já se illuminava.

Finalmente veio o dia; a tempestade se tinha desfeito durante a noite; o tempo estava sereno.

O carmelita acompanhado pelo selvagem partio: vagou pela floresta e pelo campo em todas as direcções; alguma cousa procurava. Elle avistou depois de duas horas a touca de cardos junto da qual se passou a ultima scena que narrámos; examinou-a por todos os lados e sorrio de satisfeito. Trepando á arvore escorregando pelo cipó, entrárão elle e o selvagem na área que já conhecemos; o sol tinha nascido ha pouco.

No dia seguinte, por volta de duas horas da tarde, saihio deste lugar um só homem; não era elle, nem o frade, nem o selvagem. Era um aventureiro destemido audaz, em cuja physionomia se reconhecião ainda os traços do carmelita Fr. Angelo di Luca.

Este aventureiro chamou-se Loredano.

Deixava naquelle lugar e sepultado no seio da terra um terrivel segredo; isto é, um rolo de pergaminho, um burel de frade e um cadaver.

Cinco mezes passados, o vigario da ordem participava ao geral em Roma que o irmão Fr. Angelo di Luca morrêra como santo e martyr no zelo de sua fé apostolica.


II
YARA!

Dous dias depois da scena do pouso, por uma bella tarde de verão, a familia de D. Antonio de Mariz estava reunida na margem do Paquequer.

O lugar em que se achava era uma pequena baixa cavada entre dous outeiros pedregosos que se elevavão naquellas paragens. A relva que tapeçava essas fragoas, as arvores que havião nascido nas fendas das pedras, e reclinando sobre o valle tecião um lindo docel de verdura, tornavão aquelle retiro pittoresco.

Não podia haver sitio mais agradavel para se passar uma sesta de estio, do que esse caramanchão cheio de sombra e de frescura, onde o canto das aves concertava com o trepido murmurio das aguas.

Por isso, apezar de ficar elle a alguma distancia da casa, a familia vinha ás vezes quando o tempo estava sereno gozar algumas horas da frescura deliciosa que alli se respirava.

D. Antonio de Mariz, sentado junto de sua mulher, contemplava por entre uma aberta das folhas o céo azul e avelludado de nossa terra, que os filhos da Europa não se canção de admirar. Isabel, encostada a uma palmeira nova, olhava a correnteza do rio, murmurando baixinho uma trova de Bernardim Ribeiro.

Cecilia corria pelo valle perseguindo um lindo colibri, que no vôo rapido iriava-se de mil côres, scintillando como o prisma de um raio solar. A linda menina, com o rosto animado, rindo-se dos volteios que a avezinha lhe fazia dar, como se brincasse com ella, achava nesse folguedo um vivo prazer.

Mas afinal, sentindo-se fatigada, foi recostar-se em um comoro de relva, que elevando-se no sopé do rochedo formava uma especie de divan natural. Descançou a cabeça no declive, e assim ficou com os pézinhos estendidos sobre a gramma que os escondia como a lã de um rico tapete: e o seio mimoso a arfar com o anhelito da respiração.

Algum tempo se passou sem que o menor incidente perturbasse o suave painel que formava esse grupo de familia.

De repente, entre o docel de verdura que cobria esta scena, ouvio-se um grito vibrante e uma palavra de lingua estranha:

Yara!

E um vocabulo guarany: significa a senhora.

D. Antonio levantou-se: volvendo olhos rapidos, vio sobre a eminencia que ficava sobranceira ao lugar em que estava Cecilia, um quadro original.

De pé, fortemente apoiado sobre a base estreita a que formava a rocha, um selvagem coberto com um ligeiro saio de algodão, mettia o hombro a uma lasca de pedra que se desencravára do seu alveolo, e ia rolar pela encosta.

O indio fazia um esforço supremo para suster o peso da lage prestes a esmaga-lo; e com o braço estendido de encontro a um galho de arvore mantinha por uma tensão violenta dos musculos o equilibrio do corpo.

A arvore tremia; por momentos parecia que pedra e homem se enrolavão n'uma mesma volta, e precipitavão-se sobre a menina sentada na aba da collina.

Cecilia ouvindo o grito erguera a cabeça, e olhava seu pai com alguma sorpreza, sem adivinhar o perigo que a ameaçava.

Ver, lançar-se para sua filha, toma-la nos braços, arranca-la á morte, foi para D. Antonio de Mariz uma só idéa e um só movimento, que realisou com a força e a impetuosidade do sublime amor de pai, que era toda a sua vida.

No momento em que o fidalgo deitava Cecilia quasi desmaiada sobre o regaço materno, o indio saltava no meio do valle; a pedra gyrando sobre si, precipitada do alto da collina, enterrava-se profundamente no chão.

Foi então que os outros espectadores desta scena, paralysados pelo choque que havião soffrido, lançarão um grito de terror, pensando no perigo que já estava passado.

Uma larga esteira que descia da eminencia até o lugar onde Cecilia estivera recostada, mostrava a linha que descrevera a pedra na passagem, arrancando a relva e ferindo o chão. D. Antonio, ainda pallido e tremulo do perigo que correra Cecilia, volvia os olhos daquella terra que se lhe afigurava uma campa, para o selvagem que surgira, como um genio bemfazejo das florestas do Brazil.

O fidalgo não sabia o que mais admirar, se a força e heroísmo com que elle salvára sua filha, se o milagre de agilidade com que se livrára a si proprio da morte.

Quanto ao sentimento que dictára esse proceder, D. Antonio não se admirava; conhecia o caracter dos nossos selvagens, tão injustamente calumniados pelos historiadores; sabia que fora da guerra e da vingança erão generosos, capazes de uma acção grande, e de um estimulo nobre.

Por muito tempo reinou silencio expressivo nesse grupo, que se acabava de transformar de modo tão imprevisto.

D. Lauriana e Isabel de joelhos oravão a Deus, rendendo-lhe graças; Cecilia ainda assustada apoiava-se ao peito de seu pai e beijava-lhe a mão com ternura; o indio humilde e submisso fitava um olhar profundo de admiração sobre a moça que tinha salvado.

Por fim D. Antonio passando o braço esquerdo pela cintura de sua filha, caminhou para o selvagem, e estendeu-lhe a mão com gesto nobre e affavel: o indio curvou-se e beijou a mão do fidalgo.

—De que nação és? perguntou-lhe o cavalheiro em guarany.

—Goytacaz, respondeo o selvagem erguendo a cabeça com altivez.

—Como te chamas?

—Pery, filho de Ararê, primeiro de sua tribu.

—Eu, sou um fidalgo portuguez, um branco inimigo de tua raça, conquistador de tua terra; mas tu salvaste minha filha; offereço-te a minha amizade.

—Pery aceita; tu já eras amigo.

—Como assim? perguntou D. Antonio admirado.

—Ouve.

O indio começou, na sua linguagem tão rica e poetica, com a doce pronuncia que parecia ter aprendido das auras da sua terra ou das aves das florestas virgens, esta simples narração:

«Era o tempo das arvores de ouro.

«A terra cobrio o corpo de Ararê, e as suas armas; menos o seu arco de guerra.

«Pery chamou os guerreiros de sua nação, e disse:

«—Pai morreu; aquelle que fôr o mais forte entre todos, terá o arco de Ararê. Guerra!»

«Assim fallou Pery; os guerreiros respondêrão Guerra!

«Emquanto o sol allumiou a terra, caminhámos; quando a lua subio ao céo, chegámos. Combatêmos como Goytacazes. Toda a noite foi uma guerra. Houve sangue, houve fogo.

«Quando Pery abaixou o arco de Ararê não havia na taba dos brancos uma cabana em pé, um homem vivo; tudo era cinza.

«Veio o dia e allumiou o campo; veio o vento e levou a cinza.

Pery tinha vencido; era o primeiro da sua tribu, e o mais forte de todos os guerreiros.

Sua mãi chegou e disse:

«Pery, chefe dos Goytacazes, filho de Ararê, tu és grande, tu és forte como teu pai; tua mãi te ama.

«Os guerreiros chegárão e disserão:

«Pery, chefe de Goytacazes, filho de Ararê, tu és o mais valente da tribu, e o mais temido do inimigo; os guerreiros te obedecem.

«As mulheres chegárão e disserão:

«Pery, primeiro de todos, tu és bello como o sol, e flexivel como a canna selvagem que te deo o nome; as mulheres são tuas escravas.

«Pery ouvio e não respondeu; nem a voz de sua mãi, nem o canto dos guerreiros, nem o amor das mulheres, o fez sorrir.

«Na casa da cruz, no meio do fogo, Pery tinha visto a senhora dos brancos; era alva como a filha da lua; era bella como a garça do rio.

«Tinha a cor do céo nos olhos; a cor do sol nos cabellos; estava vestida de nuvens, com um cinto de estrellas e uma pluma de luz.

«O fogo passou; a casa da cruz cahio.

«De noite Pery teve um sonho; a senhora appareceu; estava triste e fallou assim:

«Pery, guerreiro livre, tu és meu escravo; tu me seguirás por toda a parte, como a estrella grande acompanha o dia.

«A lua tinha voltado o seu arco vermelho, quando tornámos da guerra; todas as noites Pery via a senhora na sua nuvem; ella não tocava a terra, e Pery não podia subir ao céo.

«O cajueiro quando perde a sua folha parece morto; não tem flôr, nem sombra; chora umas lagrimas doces como o mel dos seus fructos.

«Assim Pery ficou triste.

«A senhora não appareceu mais; e Pery via sempre a senhora nos seus olhos.

«As arvores ficárão verdes; os passarinhos fizerão seus ninhos; o sabiá cantou; tudo ria: o filho de Ararê lembrou-se de seu pai.

«Veio o tempo da guerra.

«Partimos; andámos; chegámos ao grande rio. Os guerreiros armárão as redes; as mulheres fizerão fogo; Pery olhou o sol.

«Vio passar o gavião.

«Se Pery fosse o gavião, ia ver a senhora no céo.

«Vio passar o vento.

«Se Pery fosse o vento, carregava a senhora no ar.

Vio passar a sombra.

«Se Pery fosse a sombra, acompanhava a senhora de noite.

«Os passarinhos dormirão tres vezes.

«Sua mãi veio e disse:

«Pery, filho de Ararê, guerreiro branco salvou tua mãi; virgem branca tambem.

«Pery tomou sua armas e partio; ia ver o guerreiro branco para ser amigo; e a filha da senhora para ser escravo.

«O sol chegava ao meio do céo e Pery chegava tambem ao rio; avistou longe a tua casa grande.

«A virgem branca appareceu.

«Era a senhora que Pery tinha visto; não estava triste como da primeira vez; estava alegre; tinha deixado lá a nuvem e as estrellas.

«Pery disse:

«A senhora desceu do céo, porque a lua sua mãi deixou; Pery, filho do sol, acompanhará a senhora na terra.

«Os olhos esta vão na senhora; e o ouvido no coração de Pery. A pedra estalou e quiz fazer mal á senhora.

«A senhora tinha salvado a mãi de Pery, Pery não quiz que a senhora ficasse triste, e voltasse ao céo.

«Guerreiro branco, Pery, primeiro de sua tribu, filho de Ararê, da nação Goytacaz, forte na guerra, te offerece o seu arco; tu és amigo.»

O indio terminou aqui a sua narração.

Emquanto fallava, um assomo do orgulho selvagem da força e da coragem lhe brilhava nos olhos negros, e dava certa nobreza ao seu gesto. Embora ignorante, filho das florestas, era um rei; tinha a realeza da força.

Apenas concluio, a altivez do guerreiro desappareceu; ficou timido e modesto; já não era mais do que um barbaro em face de creaturas civilisadas, cuja superioridade de educação o seu instincto reconhecia.

D. Antonio o ouvia sorrindo-se do seu estylo ora figurado, ora tão singelo como as primeiras phrases que balbucia a criança aos peitos maternos. O fidalgo traduzia da melhor maneira que podia essa linguagem poetica a Cecilia, a qual já livre do susto queria por força, apezar do medo que lhe causava o selvagem, saber o que elle dizia.

Comprehendêrão da historia de Pery, que uma india salva havia dous dias por D. Antonio das mãos dos aventureiros e a quem Cecilia enchêra de presentes de velorios azues e escarlates, era a mãi do selvagem.

—Pery, disse o fidalgo, quando dous homens se encontrão e ficão amigos, o que está na casa do outro recebe a hospitalidade.

—E o costume que os velhos transmittirão aos moços da tribu e os pais aos filhos.

—Tu cearás comnosco.

—Pery te obedece.

A tarde declinava; as primeiras estrellas luzião. A familia, acompanhada por Pery, dirigio-se á casa, e subio a esplanada.

D. Antonio entrou um momento e voltou trazendo uma linda clavina tauxiada com o brazão de armas do fidalgo, a mesma que já vimos nas mãos do indio.

—É a minha companheira fiel, a minha arma de guerra: nunca mentio fogo, nunca errou o alvo: a sua bala é como a setta do teu arco. Pery tu me déste minha filha; minha filha te dá a arma de guerra de seu pai.

O indio recebeu o presente com uma effusão de profundo reconhecimento.

—Esta arma que vem da senhora e Pery farão um só corpo.

A campa do terreiro tocou annunciando a ceia.

O indio, vexado no meio dos usos estranhos, tomado de um santo respeito, não sabia como se ter.

Apezar de todos os esforços do fidalgo, que sentia um prazer indizivel em mostrar-lhe quanto apreciava a sua acção e remoçara com a alegria de ver sua filha viva, o selvagem não tocou em um só manjar.

Por fim D. Antonio de Mariz conhecendo que toda a insistencia era inutil, encheu duas taças de vinho das Canarias.

—Pery, disse o fidalgo, ha um costume entre os brancos, de um homem beber por aquelle que é amigo. O vinho é o licor que dá a força, a coragem, a alegria. Beber por um amigo é uma maneira de dizer que o amigo é e será forte, corajoso e feliz. Eu bebo pelo filho de Ararê.

—E Pery bebe por ti, porque és pai da senhora; bebe por ti, porque salvaste sua mãi; bebe por ti, porque és guerreiro.

A cada palavra o indio tocou a taça e bebeu um trago de vinho, sem fazer o menor gesto de desgosto; elle beberia veneno á saude do pai de Cecilia.


III
GENIO DO MAL

Pery voltou por differentes vezes á casa de D. Antonio de Mariz.

O velho fidalgo o recebia cordialmente e o tratava como amigo; seu caracter nobre sympathisava com aquella natureza inculta.

Cecilia porém, apezar do reconhecimento que lhe inspirava a sua dedicação por ella, não podia vencer o receio que sentia vendo um desses selvagens de quem sua mãi lhe fazia tão feia descripção, e de cujo nome se servia para metter-lhe medo quando criança.

Em Isabel o indio fizera a mesma impressão que lhe causava sempre a presença de um homem daquella côr; lcmbrára-se de sua mãi infeliz, da raça de que provinha, e da causa do desdem com que era geralmente tratada.

Quanto a D. Lauriana, via em Pery um cão fiel que tinha um momento prestado um serviço á familia, e a quem se pagava com um naco de pão. Devemos porém dizer que não era por mão coração que ella pensava assim, mas por prejuizos de educação.

Quinze dias depois que Cecilia fôra salva por Pery, uma manhã Ayres Gomes atravessou a esplanada e foi ter com D. Antonio que estava no seu gabinete.

Sr. D. Antonio, esse estrangeiro a quem déstes hospedagem ha duas semanas, pede-vos audiencia.

—Manda-o vir.

Ayres Gomes introduzio o estrangeiro. Era esse mesmo Loredano em que se havia transformado o carmelita Fr. Angelo di Luca.

—Que desejais, amigo, faltárão-vos em alguma cousa?

—Ao contrario, Sr. cavalheiro; acho-me tão bem, que o meu desejo seria ficar.

—E quem vos impede? A nossa hospitalidade assim como não pergunta o nome do que chega, tambem não lhe inquire o tempo da partida.

—A vossa hospitalidade é de um verdadeiro fidalgo, Sr. cavalheiro; mas não é della que desejo fallar.

—Explicai-vos então.

—Um homem da vossa banda vai ao Rio de Janeiro, onde tem mulher e filhos que lhe chegarão do Reino.

—Sim; já hontem me fallou disso.

—Falta-vos pois um homem; eu posso ser este homem, se não achais nisso inconveniente.

—Nem um absolutamente.

—Nesse caso posso considerar-me como admittido?

—Attendei; Ayres Gomes vai dizer-vos as condições a que vos sujeitais; se estiverdes por ellas é negocio decidido.

—Creio que já conheço essas condições, disse o italiano sorrindo.

—Ide sempre.

O fidalgo chamou o seu escudeiro, e incumbio-o de pôr o italiano ao facto das condições do bando de aventureiros que tinha ao seu serviço. Era este um dos privilegios de Ayres Gomes, que o desempenhava com toda a gravidade de que era susceptivel a sua personagem um tanto grotesca.

Chegados á esplanada, o escudeiro perfilou-se, e proferio o seguinte introito:

—Lei, estatuto, regimento, disciplina ou como melhor nome haja, a que se sujeita todo aquelle que entrar á soldada na banda do Sr. cavalheiro D. Antonio de Mariz, fidalgo cota d'armas, do tronco dos Marizes em linha recta.

Aqui o escudeiro molhou a palavra e proseguio.

Primo: Obedecer sem repinicar. Quem o contrario fizer pereça morte natural.

O italiano fez um gesto de approvação.

—Isto quer dizer, misser Italiano, que se um dia o Sr. D. Antonio vos mandar saltar deste rochedo em baixo, fazei a vossa oração e saltai; porque de uma ou outra maneira, pelos pés ou pela cabeça, fé de Ayres Gomes, lá ireis.

Loredano sorrio.

Segundo: Contentar-se com o que ha. Quem o contrario...

—Com o vosso respeito, Sr. Ayres Gomes, não vos deis a um trabalho inutil; sei tudo o que ides rezar-me, e por isso dispenso-vos de continuar.

—Que quereis dizer?

—Quero dizer que todos os camaradas, cada um por sua vez, já me descreverão a ceremonia que ora pondes em pratica.

—Não obstante...

—Escusado é. Sei tudo, aceito tudo, juro tudo que quizerdes.

E dizendo isto o italiano fez uma viravolta, e dirigio-se para o gabinete de D. Antonio, emquanto o escudeiro, zangado por não ter levado ao fim a scena de iniciação a que dava tão grande valor, resmungava:

—Não póde ser boa casta de gente?

Loredano apresentou-se a D. Antonio.

—Então? disse o fidalgo.

—Aceito.

—Bem; agora só falta uma cousa, que Ayres Gomes não vos disse naturalmente.

—Qual, Sr. cavalheiro?

—É que D. Antonio de Mariz, disse o fidalgo pousando a mão sobre o hombro do italiano, é um chefe rigoroso para seus homens, porém um amigo leal para seus companheiros. Sou aqui o senhor da casa e o pai de toda a familia a que actualmente pertenceis.

O italiano curvou-se para agradecer, mas sobretudo para esconder a alteração da physionomia.

Ouvindo as palavras nobres do fidalgo, sentio-se perturbado; porque já então lhe fermentava no cerebro o plano da trama que ia urdir, e que vimos revelar-se um anno depois.

Sahindo do lugar cm que deixara occulto o seu thesouro, o aventureiro caminhou direito á casa de D. Antonio de Mariz e pedio a hospitalidade que a ninguem se recusava: sua intenção era passar-se ao Rio de Janeiro, onde concertaria os meios de aproveitar a fortuna.

Duas idéas se tinhão apresentado ao seu espirito no momento em que se vira possuidor do roteiro de Roberio Dias.

Iria á Europa vender o seu segredo a Felippe III ou a qualquer outro soberano de uma nação poderosa e inimiga da Hespanha?

Exploraria por sua conta com alguns aventureiros que tomasse ao seu serviço esse thesouro fabuloso que devia eleva-lo ao fastigio da grandeza?

Esta ultima idéa lhe sorria mais; entretanto não tomou nem uma resolução definitiva; posto o seu segredo em lugar seguro, alliviado desse peso que o fazia estremecer a cada momento, o italiano resolveu, como dissemos, ir pedir hospitalidade a D. Antonio de Mariz.

Ahi formularia o seu plano, traçaria o caminho que devia seguir, e então voltaria a procurar o papel que dormia no seio da terra, e com elle marcharia á riqueza, á fortuna, ao poder.

Chegado á casa do fidalgo, o ex-carmelita com o seu espirito de observação estudou o terreno e achou-o favoravel á realisação de uma idéa que começou logo a germinar no seu espirito até que tomou as proporções de um projecto.

Homens mercenarios que vendem a sua liberdade, consciencia e vida por um salario, não tem dedicação verdadeira senão a um objecto, o dinheiro; seu senhor, seu chefe e seu amigo é o que mais lhes paga. Fr. Angelo conhecia o coração humano, e por isso apenas iniciado no regimento da banda, avaliou do caracter dos aventureiros.

—Esses homens me servirião perfeitamente, disse elle comsigo.

No meio dessas reflexões um facto veio produzir completa revolução nas suas idéas.

Viu Cecilia.

A imagem dessa bella menina, casta e innocente, produzio naquella organisação ardente e por muito tempo comprimida o mesmo effeito da faisca sobre a polvora.

Toda a continencia da sua vida monastica, todos os desejos violentos que o habito tinha sellado como uma crosta de gelo, todo esse sangue vigoroso e forte da mocidade, passada em vigilias e abstinencias, refluirão ao coração e o suffocárão um momento.

Depois um extasis de voluptuosidade immensa embebeu essa alma velha pela corrupção e pelo crime, mas virgem para o amor. O seu coração revelava-se com toda a vehemencia da vontade audaz, que era o movel de sua vida.

Sentio que essa mulher era tão necessaria á sua existencia, como o thesouro que sonhava; ser rico para ella, possui-la para gozar a riqueza, foi desde então o seu unico pensamento, a sua idéa dominante.

Um dos aventureiros deixava a casa; Loredano solicitou o seu lugar e o obteve como acabamos de ver; o seu plano estava traçado.

Qual era, já o sabemos pelas scenas passadas; o italiano contava tornar-se senhor da banda, apoderar-se de Cecilia, ir ás minas encantadas, carregar tanta prata quanta podesse levar, dirigir-se á Bahia, assaltar uma náo hespanhola, toma-la de abordagem, e fazer-se de vela para a Europa.

Ahi armava navios de corso, voltava ao Brazil, explorava o seu thesouro, tirava delle riquezas immensas e... E o mundo abria-se diante de seus olhos cheio de esperança, de futuro e felicidade.

Durante um anno trabalhou nessa empreza com uma sagacidade e intelligencia superior; ganhara os dous homens influentes da banda. Ruy Soeiro e Bento Simões; por meio delles preparava o desenlace final.

Ignorado pelos outros elle dirigia essa conspiração que lavrava surdamente; só havia em toda a banda duas pessoas que o podião perder. Ora, Loredano não era homem que deixasse de prever a eventualidade de uma traição, e que entregasse aos seus dous complices uma arma com que podessem feri-lo; dahi a lembrança desse testamento que entregára a D. Antonio de Mariz.

Sómente nesse papel, em vez de ter revelado o seu plano, como o italiano dissera a Ruy Soeiro, elle havia apenas indicado a traição dos dous aventureiros, declarando-se seduzido por elles; o frade mentia pois até na hora extrema em que o papel devia fallar.

A confiança que tinha, e com razão, no caracter de D. Antonio tranquillisava-o completamente; sabia que em caso algum o fidalgo abriria um testamento que lhe fôra dado em deposito.

Eis como Fr. Angelo di Luca achava-se sob o seu novo nome de Loredano, pertencendo á casa de D. Antonio de Mariz e preparando-se para realisar a final o seu pensamento de todos os instantes.

Um anno havia que esperava, e como elle dizia estava cançado: resolvera dar emfim o golpo e para isso, depois de haver esmagado os dous complices com a sua ameaça, depois de os haver reduzido a automatos obedecendo ao seu gesto; entendeu que seria conveniente ao mesmo tempo animar esses manequins com algum sentimento que lhes désse o atrevimento, a audacia e a força necessaria para se lançarem na voragem, e não trepidarem diante de nenhum obstaculo.

Este sentimento foi a ambição.

Á vista do roteiro era impossivel que não sentissem a febre da riqueza, a auri sacra fames que se havia apoderado delle proprio, no momento em que vira abrir-se diante de seus olhos um mar de prata fundida em que os seus labios podido matar a sede ardente que o devorava.

O effeito não desmentio a sua previsão; lendo o rotulo, cada um dos aventureiros ficára electrisado; para tocar aquelle abysmo insondavel de riquezas, nem um delles hesitaria em passar sobre o corpo de seu amigo, ou mesmo sobre as cinzas de uma casa ou a ruina de uma familia.

Infelizmente aquella voz inesperada, sahida do seio da terra, viera modificar a situação.

Mas não anticipemos; por ora ainda estamos em 1603, um anno antes daquella scena, e ainda nos faltão contar certas circumstancias que servirão para o seguimento desta veridica historia.


IV
CECY

Poucas horas depois que Loredano fôra admittido na casa de D. Antonio de Mariz, Cecilia, chegando á janella do seu quarto, viu do lado opposto do rochedo Pery que a olhava com uma admiração ardente.

O pobre indio, timido e esquivo, não se animava a chegar-se á casa, senão quando via de longe a D. Antonio de Mariz passeando sobre a esplanada; adivinhava que naquella habitação só o coração nobre do velho fidalgo sentia por elle alguma estima.

Havia quatro dias que o selvagem não apparecia; D. Antonio suppunha já que elle tivesse voltado com sua tribu para os lugares onde vivia, e que só deixára para fazer a guerra aos Indios e Portuguezes.

A nação goytacaz dominava todo o territorio entre o Cabo de S. Thomé e o Cabo Frio; era um povo guerreiro, valente e destemido, que por diversas vezes fizera sentir aos conquistadores a força de suas armas.

Tinha arrasado completamente a colonia da Parahyba fundada por Pedro de Góes; e depois de um assedio de seis mezes conseguira destruir igualmente a colonia da Victoria fundada no Espirito Santo por Vasco Fernandes Coutinho.

Voltemos dessa pequena digressão historica ao nosso heróe.

O primeiro movimento de Cecilia, vendo o indio, fôra de susto; fugira insensivelmente da janella. Mas o seu bom coração irritou-se contra esse receio, e disse-lhe que ella não tinha que temer do homem que lhe salvára a vida. Lembrou-se que era ser má e ingrata pagar a dedicação que o indio lhe mostrava deixando-lhe ver a repugnancia que lhe inspirava.

Venceu pois a timidez, e assentou de fazer um sacrificio ao reconhecimento e gratidão que devia ao selvagem. Chegou á janella; fez com a mão alva e graciosa um gesto dizendo a Pery que se aproximasse.

O indio, não se contendo de alegria, correu para a casa, emquanto Cecilia ia ter com seu pai, e dizia-lhe:

—Vinde ver Pery, que chega, meu pai.

—Ah! inda bem, respondeu o fidalgo.

E acompanhando sua filha, D. Antonio foi ao encontro do indio que já subia a esplanada.

Pery trazia um pequeno cofo, tecido com extraordinaria delicadeza, feito de palha muito alva, todo rendado; por entre o crivo que formavão os fios, ouvião-se uns chilidos fracos e um rumor ligeiro que fazião os pequenos habitantes desse ninho gracioso.

O indio ajoelhou aos pés de Cecilia; sem animar-se a levantar os olhos para ella apresentou-lhe o cabaz de palha: abrindo a tampa, a menina assustou-se, mas sorrio; um enxame de beija-flôres esvoaçava dentro; alguns conseguirão escapar-se.

Destes um veio aninhar-se no seu seio, o outro começou a voltejar em torno de sua cabeça loura, como se tomasse a sua boquinha rosada por um fructo.

A menina admirava essas avezinhas brilhantes, umas escarlates, outras azues e verdes; mas todas de reflexos dourados, e fórmas mimosas e delicadas!

Vendo-se esses iris animados acredita-se que a natureza os creou com um sorriso, para viverem de pollen e de mel, e para brilharem no ar como as flôres na terra e as estrellas no céo.

Quando Cecilia se cansou de admira-los, tomou-os um por um, beijou-os, aqueceu-os no seio, e sentio não ser uma flôr bella e perfumada para que elles a beijassem tambem, e esvoaçassem constantemente em torno della.

Pery olhava e era feliz; pela primeira vez depois que a salvára, tinha sabido fazer uma cousa, que trouxera um sorriso de prazer aos labios da senhora. Entretanto, apezar dessa felicidade que sentia interiormente, era facil de vêr que o indio estava triste; elle chegou-se para D. Antonio de Mariz e disse-lhe:

—Pery vai partir.

—Ah! disse o fidalgo, voltas aos teus campos?

—Sim: Pery volta á terra que cobre os ossos de Ararê.

D. Antonio encheu o indio de presentes dados em seu nome e em nome de sua filha.

—Perguntai a elle por que razão parte e nos deixa, meu pai, disse Cecilia.

O fidalgo traduzio a pergunta.

—Porque a senhora não precisa de Pery, e Pery deve acompanhar sua mãi e seus irmãos.

—E se a pedra quizer fazer mal á senhora quem a defenderá? perguntou a menina sorrindo e fazendo allusão á narração do indio.

Ouvindo dos labios de D. Antonio a pergunta, o selvagem não soube o que responder, porque lhe lembrava um pensamento que já tinha passado por seu espirito; temia que na sua ausencia a menina corresse um perigo e elle não estivesse junto della para salva-la.

—Se a senhora manda, disse emfim, Pery fica.

Cecilia, apenas seu pai lhe traduzio a resposta do indio, rio-se daquella cega obediencia; mas era mulher; um atomo de vaidade dormia no fundo do seu coração de moça.

Yer aquella alma selvagem, livre como as aves que plainavão no ar, ou como os rios que corrião na varzea; aquella natureza forte e vigorosa que fazia prodigios de força e coragem; aquella vontade indomavel como a torrente que se precipita do alto da serra; prostrar-se aos seus pés submissa, vencida, escrava!...

Era preciso que não fosse mulher para não sentir o orgulho de dominar essa organisação e brincar com a força, obrigando-a a curvar-se diante do seu olhar.

As mulheres têm isso de particular; reconhecendo-se fracas, a sua maior ambição é reinar pelo iman dessa mesma fraqueza, sobre tudo o que é forte, grande e superior a ellas: não amão a intelligencia, a coragem, o genio, o poder, senão para vencê-los e subjuga-los.

Entretanto a mulher deixa-se bastante vezes dominar; mas é sempre pelo homem que não lhe excitando a admiração, não irrita a sua vaidade e não provoca por conseguinte essa luta da fraqueza contra a força.

Cecilia era uma menina ingenua e innocente, que nem sequer tinha consciência do seu poder, e do encanto de sua casta belleza; mas era filha de Eva, e não podia se eximir de um quasi nada de vaidade.

—A senhora não quer que Pery parta, disse ella com um arzinho de rainha, e fazendo um gesto com a cabeça.

O indio comprehendeu perfeitamente o gesto.

—Pery fica.

—Vêde, Cecilia, replicou D. Antonio rindo: elle te obedece!

Cecilia sorrio.

—Minha filha te agradece o sacrificio, Pery, continuou o fidalgo; mas nem ella nem eu queremos que abandones a tua tribu.

—A senhora mandou, respondeu o indio.

—Ella queria ver se tu lhe obedecias: conheceu a tua dedicação, está satisfeita; consente que partas.

—Não!

—Mas os teus irmãos, tua mãi, tua vida livre?

—Pery é escravo da senhora.

—Mas Pery é um guerreiro e um chefe.

—A nação goytacaz tem cem guerreiros fortes como Pery; mil arcos ligeiros como o vôo do gavião.

—Assim, decididamente queres ficar?

—Sim; e como tu não queres dar a Pery a tua hospitalidade, uma arvore da floresta lhe servirá de abrigo.

—Tu me offendes, Pery! exclamou o fidalgo; a minha casa está aberta para todos, e sobretudo para ti que és amigo, e salvaste minha filha.

—Não, Pery não te offende; mas sabe que tem a pelle côr de terra.

—E o coração de ouro.

Emquanto D. Antonio continuava a insistir com o indio para que partisse, ouvio-se um canto monotono que sahia da floresta.

Pery applicou o ouvido; descendo á esplanada correu na direcção donde partia a voz, que cantava com a cadencia triste e melancolica particular aos indios, a seguinte endeixa na lingua dos Guaranys:

«A estrella brilhou; partimos com a tarde. A brisa soprou; nos leva nas azas.

«A guerra nos trouxe; vencemos. A guerra acabou; voltamos.

«Na guerra os guerreiros combatem; ha sangue. Na paz as mulheres trabalhão; ha vinho.

«A estrella brilhou; é hora de partir. A brisa soprou; é tempo de andar.»

A pessoa que modulava esta canção selvagem era uma india já idosa; encostada a uma arvore da floresta ella vira por entre a folhagem a scena que passava na esplanada.

Chegando-se a ella, Pery ficou triste e vexado.

—Mãi!... exclamou elle.

—Vem! disse a india seguindo pela matta.

—Não!

—Nós partimos.

—Pery fica.

A india fitou em seu filho um olhar de profunda admiração.

—Teus irmãos partem!

O selvagem não respondeu.

—Tua mãi parte!

O mesmo silencio.

—Teu campo te espera!

—Pery fica, mãi! disse elle com a voz commovida.

—Porque?

—A senhora mandou.

A pobre mãi recebeu esta palavra como uma sentença irrevogavel; sabia do imperio que exercia sobre a alma de Pery a imagem de Nossa Senhora, que elle tinha visto no meio de um combate e havia personificado em Cecilia.

Sentio que ia perder o filho, orgulho de sua velhice, como Ararê tinha sido o orgulho de sua mocidade. Uma lagrima deslisou pela sua face côr de cobre.

—Mãi, toma o arco de Pery; enterra junto dos ossos de seu pai: e queima a cabana de Ararê.

—Não; se algum dia Pery voltar, achará a cabana de seu pai, e sua mãi para ama-lo: tudo vai ficar triste até que a lua das flôres leve o filho de Ararê ao campo onde nasceu.

Pery abanou a cabeça com tristeza;

—Pery não voltará!

Sua mãi fez um gesto de espanto e desespero.

—O fructo que cabe da arvore não torna mais a ella; a folha que se despega do ramo, murcha, secca e morre; o vento a leva. Pery é a folha; tu és a arvore, mãi. Pery não voltará ao teu seio.

—A Virgem branca salvou tua mãi; devia deixa-la morrer, para não lhe roubar seu filho. Uma mãi sem seu filho é uma terra sem agua; queima e mata tudo que se chega a ella.

Estas palavras forão acompanhadas de um olhar de ameaça, em que se revelava a ferocidade do tigre que defende os seus cachorrinhos.

—Mãi, não offende a senhora; Pery morreria, e na ultima hora não se lembraria de ti.

Os dous ficárão algum tempo em silencio.

—Tua mãi fica! disse a india com um accento de resolução.

—E quem será a mãi da tribu? Quem guardará a cabana de Pery? Quem contará aos pequenos as guerras de Ararê, forte entre os mais fortes? Quem dirá: quantas vezes a nação goytacaz levou o fogo á taba dos brancos, e venceu os homens do raio? Quem ha de preparar os vinhos e as bebidas para os guerreiros, e ensinar aos filhos os costumes dos velhos?

Pery proferio estas palavras com a exaltação, que despertavão nelle as reminiscencias de sua vida selvagem; a india ficou pensativa e respondeu:

—Tua mãi volta; vai te esperar na porta da cabana, á sombra do jambeiro; se a flor do jambo vier sem Pery, tua mãi não verá os fructos da arvore.

A india pousou a mãos sobre os hombros de seu filho, e encostou a fronte na fronte delle; durante um momento as lagrimas que salta vão dos olhos de ambos se confundirão.

Depois ella afastou-se lentamente; Pery seguio-a com os olhos até que desappareceu na floresta: esteve a correr, chama-la e partir com ella. Mas o vento lhe trazia a voz argentina de Cecilia que fallava com seu pai; ficou.

Nessa mesma noite construirá aquella pequena cabana que se via na ponta do rochedo, e que ia ser o seu mundo.

Passárão tres mezes.

Cecilia que um momento conseguira vencer a repugnancia que sentia pelo selvagem, quando lhe ordenára que ficasse, não se lembrou da ingratidão que commettia e não disfarçou mais a sua antipathia.

Quando o indio chegava-se a ella, soltava um grito de susto; ou fugia, ou ordenava-lhe que se retirasse; Pery que já fallava e entendia o portuguez, afastava-se triste e humilde.

Entretanto a sua dedicação não se desmentia; elle acompanhava a D. Antonio de Mariz nas suas excursões, ajudava-o com a sua experiencia, guiava-o aos logares onde havião terrenos auriferos ou pedras preciosas. De volta destas expedições corria todo o dia os campos para procurar um perfume, uma flôr, um passaro, que entregava ao fidalgo e pedia-lhe désse a Cecy, pois já não se animava a chegar-se para ella, com receio de desgota-la.

Cecy era o nome que o indio dava á sua senhora, depois que lhe tinhão ensinado que ella se chamava Cecilia.

Um dia a menina ouvindo chamar-se assim por elle, e achando um pretexto para zangar-se contra o escravo humilde que obedecia ao seu menor gesto, reprehendeu-o com aspereza:

—Porque me chamas tu Cecy?

—Não sabes dizer Cecilia?

Pery pronunciou claramente o nome da moça com todas as syllabas; isto era tanto mais admiravel quando a sua lingua não conhecia quatro letras, das quaes uma era o L.

—Mas então, disse a menina com alguma curiosidade, se tu sabes o meu nome, porque não o dizes sempre?

—Porque Cecy é o nome que Pery tem dentro da alma.

—Ah! é um nome de tua lingua?

—Sim.

—O que quer dizer?

—O que Pery sente.

—Mas em portuguez?

—Senhora não deve saber.

A menina bateu com a ponta do pé no chão e fez um gesto de impaciencia.

D. Antonio passava: Cecilia correu ao seu encontro:

—Meu pãi, dizei-me o que significa Cecy nessa lingua selvagem que fallais.

Cecy!... disse o fidalgo procurando lembrar-se. Sim! É um verbo que significa doer, magoar.

A menina sentio um remorso; reconheceu a sua ingratidão, e lembrando-se do que devia ao selvagem e da maneira por que o tratava, achou-se má, egoista e cruel.

—Que doce palavra! disse ella a seu pai; parece um canto de passaro.

Desde este dia foi boa para Pery; pouco a pouco perdeu o susto; começou a comprehender essa alma inculta; viu nelle um escravo, depois um amigo fiel e dedicado.

—Chama-me Cecy, dizia ás vezes ao indio sorrindo-se; este doce nome me lembrará que fui má para ti; e me ensinará a ser boa.


V
VILANIA

É tempo de continuar esta narração interrompida pela necessidade de contar alguns factos anteriores.

Voltemos pois ao lugar em que se achava Loredano e seus companheiros tomados de medo pela exclamação inesperada que soára no meio delles.

Os dous complices, supersticiosos, como erão as pessoas de baixa classe naquelle tempo, attribuião o facto a uma causa sobrenatural, e vião nelle um aviso do céo. Loredano porém não era homem que cedesse a semelhante fraqueza; tinha ouvido uma voz; e essa voz embora surda e cava devia ser de um homem.

Quem elle era? Seria D. Antonio de Mariz? Seria algum dos aventureiros? Não podia saber; o seu espirito perdia-se n'um cahos de duvidas e incertezas.

Fez um gesto a Ruy Soeiro e a Bento Simões para que o seguissem; e apertando ao seio o fatal pergaminho, causa de tantos crimes, lançou-se pelo campo. Terião feito umas cincoenta braças de caminho, quando virão cortar pela vereda que elles seguião um cavalheiro que o italiano reconheceu immediatamente; era Alvaro.

O moço procurava a solidão para pensar em Cecilia, mas sobretudo para reflectir n'um facto que se tinha dado essa manhã e que elle não podia comprehender.

Vira de longe a janella de Cecilia abrir-se, as duas moças apparecerem, trocarem um olhar; depois Isabel cahir de joelhos aos pés de sua prima. Se elle tivesse ouvido o que já sabemos, teria perfeitamente comprehendido, mas longe como estava, apenas podia ver sem ser visto das duas moças.

Loredano, vendo o cavalheiro passar, voltou-se para os seus companheiros:

—Ei-lo!... disse com um olhar que brilhou de alegria. Imbeceis! que attribuis ao céo aquillo que não sabeis explicar!...

E acompanhou estas palavras com um sorriso de profundo desprezo.

—Esperai-me aqui.

—O que ides fazer? perguntou Ruy Soeiro.

O italiano se voltou sorprezo: depois levantou os hombros, como se a pergunta do seu companheiro não merecesse reposta.

Ruy Soeiro, que conhecia o caracter desse homem, entendeu o gesto; um resquicio de generosidade que ainda havia no seu coração corrompido, o fez segurar o braço do seu companheiro para rete-lo.

—Quereis que falle?... disse Loredano.

—É mais um crime inutil! acudio Bento Simões.

O italiano fitou nelle os olhos frios como o contacto do aço polido:

—Ha um mais util, amigo Simões; cuidaremos delle a seu tempo.

E sem esperar a replica, metteu-se pelas moitas que cobrião o campo nesse lugar, e seguio Alvaro que continuava lentamente o seu caminho.

O moço, apezar de preoccupado, tinha o habito da vida arriscada dos nossos caçadores do interior, obrigados a romper as mattas virgens.

Ahi o homem vê-se cercado de perigos por todos os lados; da frente, das costas, á esquerda, á direita, do ar, da terra, póde surgir de repente um inimigo occulto pela folhagem, que se aproxima sem ser visto.

A unica defeza é a subtileza do ouvido que sabe distinguir entre os rumores vagos da floresta aquelle que é produzido por uma acção mais forte do que a do vento; assim como a rapidez e certeza da vista que vai perscrutar as sombras das moitas, e devassar a folhagem espessa das arvores.

Alvaro tinha esse dom dos caçadores habeis; apenas o vento lhe trouxe um estalido de folhas seccas pisadas levantou a cabeça, e circulou o campo com os olhos: depois por prudencia encostou-se ao grosso tronco de uma arvore isolada, e cruzando os braços sobre a clavina esperou.

Nessa posição o inimigo, qualquer que elle fosse, féra, reptil ou homem, não o podia atacar senão de face; elle o veria aproximar-se e o receberia.

Loredano agachado entre as folhas tinha notado este movimento e hesitára; mas o seu segredo estava compromettido; a suspeita que concebêra de que Alvaro fôra quem ha pouco o ameaçára com a palavra traidores, acabava de confirmar-se no seu espirito, vendo a prudencia com que o moço evitava uma sorpreza.

O cavalheiro era um inimigo terrivel, e jogava todas as armas com uma destreza admiravel.

A lamina de sua espada como uma cobra elastica, flexivel, rapida, volteava sibilando e atirava o bote com a velocidade e a certeza do cascavel. O arremesso do seu punhal, vibrado pelo braço ligeiro e auxiliado pela agilidade do corpo, era como raio; listrava no ar uma cruz de fogo, e cahia sobre o peito do inimigo e o fulminava.

A bala de sua clavina era uma mensageira fiel que ia buscar a ave que parava no ar, ou a folha que o vento agitava. Muitas vezes na esplanada da casa, o italiano vira Alvaro, depois de ter feito milagres de pontaria, quebrar no ar as settas que Pery atirava de proposito para lhe servirem de alvo.

Cecilia applaudia batendo as mãos; Pery ficava contente por vêr a senhora alegre; e embora para elle que fazia muito mais, aquillo fosse uma cousa vulgar, deixava que o moço conservasse a superioridade, e fosse por todos admirado.

Mas Alvaro sabia que só um homem podia lutar com elle, elevar-lhe vantagem em qualquer arma, e esse era Pery; porque juntava á arte a superioridade do selvagem habituado desde o berço á guerra constante que é a sua vida.

Loredano tinha pois razão de hesitar em atacar de frente um inimigo desta força; mas a necessidade urgia, e o italiano era corajoso e agil tambem. Endireitou para o cavalheiro, resolvido a morrer ou a salvar a sua vida e a sua fortuna.

Alvaro vendo-o aproximar-se rugou o sobr'olho; depois do que se tinha passado na vespera e nessa manhã, odiava aquelle homem ou antes desprezava-o.

—Aposto que tivestes o mesmo pensamento que eu, Sr. cavalheiro? disse o aventureiro, quando chegou a tres passos de distancia.

—Não sei o que pretendeis dizer, replicou o moço seccamente.

—Pretendo, Sr. cavalheiro, que dous homens que se odeião achão-se melhor n'um lugar solitario, do que no meio dos companheiros.

—Não é odio que me inspirais, é desprezo; é mais do que desprezo, é asco. O reptil que se roja pelo chão causa-me menos repugnancia do que o vosso aspecto.

—Não disputemos sobre palavras, Sr. cavalheiro; tudo vem dar no mesmo; eu vos odeio, vos me desprezais; podia dizer-vos outro tanto.

—Miseravel!... exclamou o cavalheiro levando a mão á guarda da espada.

O movimento foi tão rapido, que a palavra soou ao mesmo tempo que a ponta da lamina de aço batendo na face do italiano.

Loredano quiz evitar o insulto, mas não era tempo: seus olhos injectárão-se de sangue:

Sr. cavalheiro, deveis-me satisfação do insulto que me acabais de fazer.

—É justo, respondeu Alvaro com dignidade; mas não á espada que é a arma do cavalheiro; tirai o vosso punhal de bandido, e defendei-vos.

Proferindo estas palavras, o moço embainhou a espada com toda a calma, segurou-a á cinta para não embaraçar-lhe os movimentos e sacou o seu punhal, excellente folha de Damasco.

Os dous inimigos marchárão um para o outro, e lançárão-se; o italiano era agil e forte, e defendia-se com summa dextreza; por duas vezes já, o punhal de Alvaro, roçando-lhe o pescoço, tinha cortado o talho de seu gibão de belbute.

De repente Loredano, fincando os pés, deo um pulo para tráz, e ergueu a mão esquerda em signal de tregoa.

—Estais satisfeito? perguntou Alvaro.

—Não, Sr. cavalheiro; mas penso que em vez de nos estarmos aqui a fatigar inutilmente, melhor seria tomarmos um meio mais expedito.

—Escolhei o que quizerdes, menos a espada; o mais me é indifferente.

—Outra cousa ainda; se nos batermos aqui, podemos incommodar-nos reciprocamente; porque pretendo matar-vos, e creio que o mesmo desejo tendes a meu respeito. Ora é preciso que desappareça o que ficar, e o outro não leve um vestigio que o possa denunciar.

—Que quereis fazer neste caso?

—O rio está aqui perto, tendes a vossa clavina; collocar-nos-hemos cada um sobre uma ponta de rochedo, aquelle que cahir morto ou simplesmente ferido, pertencerá ao rio e á cachoeira; não incommodará o outro.

—Tendes razão, é melhor assim; eu me envergonharia se D. Antonio de Mariz soubesse que me bati com um homem da vossa qualidade.

—Sigamos, Sr. cavalheiro; nós nos odiamos bastante para não gastarmos tempo em palavras.

Ambos tomárão na direcção do rio, cujo estrepito ouvia-se distinctamente.

Alvaro, valente e corajoso, desprezava muito o seu inimigo para ter o menor receio delle; demais a sua alma nobre e leal, incapaz da mais pequena vilania, não pensava na traição. Nunca podia lembrar-lhe que um homem que o viera provocar e ia medir-se com elle n'um combate franco, levasse a infamia a ponto de querer feri-lo pelas costas.

Assim, continuou a caminhar, quando o italiano, deixando cahir de proposito a cinta da espada, parou um instante para apanha-la e prende-la de novo.

O que se passava então no seu espirito não estava de acordo com as idéas nobres do cavalheiro; vendo o moço adiantar-se, disse comsigo?

—Preciso da vida deste homem, eu a tenho! Seria uma loucura deixa-la escapar, e pôr a minha em risco. Um duello neste deserto, sem testemunhas, é um combate em que a victoria pertence ao mais esperto.

Dizendo isto o italiano ia armando a sua clavina com toda a cautela, e seguia de longe a Alvaro, afim de que o ranger do ferro ou o silencio de suas pisadas não excitassem a attenção do moça.

Alvaro caminhava tranquillamente; seu pensamento estava bem longe d'elle, e esvoaçava em torno da imagem de Cecilia, junto da qual via os grandes olhos negros e avelludados de Isabel embebidos n'uma languidez melancolica: era a primeira vez que aquelle rosto moreno e aquella belleza ardente e voluptuosa se viera confundir em sonhos com o anjo louro de seus amores.

Donde provinha isto? O moço não sabia explicar; mas um quer que seja, como um presentimento, lhe dizia que naquella scena da janella havia entre as duas moças um segredo, uma confidencia, uma revelação, e que esse segredo era elle.

Assim, quando a morte se aproximava, quando já o bafejava e ia toca-lo, elle descuidoso e pensativo repassava no pensamento idéas de amor, e alimentava-se de esperanças. Não se lembrava de morrer; tinha consciencia de si e fé em Deus; mas se por acaso uma fatalidade cahisse sobre elle, consolava-o a idéa de que Cecilia, offendida, lhe perdoaria um resto de resentimento que talvez conservasse.

Nisto metteu a mão no seio do gibão e tirou o jasmim que a moça lhe dera, e que já tinha murchado ao contacto dos seus labios ardentes; ia beija-lo ainda uma vez, quando lembrou-se que o italiano podia vê-lo.

Mas não ouvio os passos do aventureiro; a primeira idéa que lhe veio foi que elle tinha fugido; e como a cobardia para as almas grandes se associa á baixeza, lembrou-se de uma traição.

Quiz voltar-se, e entretanto não o fez. Mostrar que tinha medo daquelle miseravel revoltava os seus brios de cavalheiro; ergueu a cabeça com altivez e seguio.

Mal sabia elle que nesse momento o fecho da clavina movido por um dedo seguro cahia, e que a bala ia partir guiada pelo olhar certeiro do italiano.


VI
NOBREZA

Alvaro ouvio um sibillo agudo.

A bala roçando pela aba rebatida de seu chapéo de feltro cortou a ponta da pluma escarlate que se enroscava sobre o hombro.

O moço voltou-se calmo, sereno, impassivel; nem um musculo do seu rosto agitou-se; apenas um sorriso de soberano desprezo arqueava o labio superior, sombreado pelo bigode negro.

O espectaculo que se offereceu aos seus olhos causou-lhe uma sorpreza extraordinária; não esperava de certo ver o que se passava a dez passos delle.

Pery mostrando nos movimentos toda a força muscular de sua organisação de aço, com a mão esquerda segura á nuca de Loredano, curvava-o sob a pressão violenta, e obrigava-o a ajoelhar.

O italiano livido, com o rosto contrahido e os olhos immensamente dilatados, tinha ainda entre as mãos hirtas a clavina fumegante.

O indio arrancou-a e sacando a longa faca, levantou o braço para crava-la no alto da cabeça do italiano.

Mas Alvaro tinha-se adiantado e aparou o golpe: depois estendeu a mão ao indio.

—Solta este miseravel, Pery!

—Não!

—A vida deste homem me pertence; atirou sobre mim; é a minha vez de atirar sobre elle.

Alvaro ao mesmo tempo que dizia estas palavras, armava a clavina, e apoiava a bocca na fronte do italiano.

—Ides morrer. Fazei a vossa oração.

Pery abaixou a faca; recuou um passo, e esperou.

O italiano não respondeu; a sua oração foi uma blasphemia horrivel e satanica; as palpitações violentas do coração batião de encontro ao pergaminho que tinha no seio, e lembravão-lhe o seu thesouro que ia talvez cahir nas mãos de Alvaro e dar-lhe a riqueza de que não podêra gozar.

Entretanto, na baixeza dessa alma havia ainda alguma altivez, o orgulho do crime; não supplicou, não disse uma palavra, sentindo o contacto frio do ferro sobre a fronte, fechou os olhos e julgou-se morto.

Alvaro olhou-o um instante, e abaixou a clavina:

—Tu és indigno de morrer á mão de um homem, e por uma arma de guerra; pertences ao pelourinho e ao carrasco. Seria um roubo feito á justiça de Deus.

Loredano abrio os olhos; seu rosto illuminou-se com um raio de esperança.

—Vais jurar que amanhã deixarás a casa de D. Antonio de Mariz, e nunca mais porás o pé neste sertão; por tal preço tens a vida salva.

—Juro! exclamou o italiano.

O moço tirou o collar que dava tres voltas sobre os hombros, e apresentou a Loredano a cruz vermelha do Christo que lhe pendia do peito: o aventureiro estendeu a mão, e repetio o juramento.

—Ergue-te; e tira-te dos meus olhos.

E com o mesmo desprezo e a mesma nobreza, o cavalheiro desarmou a sua clavina; voltou-se para continuar o seu caminho fazendo um signal a Pery para que o acompanhasse.

O indio, emquanto se passava a rapida scena que descrevemos, reflectia profundamente.

Quando ouvira o que dizião ha pouco Loredano e seus dous companheiros, quando pelo resto da conversa comprehendêra que se tratava de fazer mal á sua senhora e a D. Antonio de Mariz, a sua primeira idéa tinha sido lançar-se aos tres inimigos e mata-los.

Foi por isso que soltou aquella palavra que revelava a sua indignação; mas immediatamente lembrou-se que elle podia morrer, e que nesse caso Cecilia não teria quem a defendesse. Pela primeira vez na sua vida teve medo; teve medo por sua senhora, e sentio não possuir mil vidas para sacrifica-las todas á sua salvação.

Fugio então com bastante rapidez para não ser visto pelo italiano que subia á arvore: afastou-se delles; chegando á beira do rio, lavou a sua tunica de algodão, que ficára manchada de sangue; não queria que soubessem que estava ferido.

Emquanto se entregava a este trabalho, combinava um plano de acção.

Resolveu não dizer nada a quem quer que fosse, nem mesmo a D. Antonio de Mariz: duas razões o levavão a proceder assim; a primeira era o receio de não ser acreditado, pois não tinha provas com que podesse justificar a accusação, que elle, indio ia fazer contra homens brancos; a segunda era a confiança que tinha de que elle só bastava para desfazer todas as tramas dos aventureiros, e lutar contra o italiano.

Assentado este primeiro ponto, passou á execução do plano; esta reduzia-se para elle em uma punição; aquelles tres homens querião matar, portanto devião morrer, mas devião morrer ao mesmo tempo, do mesmo golpe. Pery receava que, combinados como estavão, se um escapasse vendo succumhir seus companheiros, se deixaria levar pelo desespero e anticiparia a realisação do crime antes que elle o podesse prevenir.

A sua intelligencia sem cultura, mas brilhante como o sol de nossa terra, vigorosa como a vegetação deste solo, guiava-o nesse raciocinio com uma logica e uma prudencia, dignas do homem civilisado; previa todas as hypotheses, combinava todas as probabilidades, e preparava-se para realisar o seu plano com a certeza e a energia de acção que ninguem possuia em grão tão elevado.

Assim dirigindo-se para a casa onde o chamava um outro dever, o de avisar a D. Antonio da eventualidade de um ataque dos Aymorés, elle tinha passado junto de Bento Simões e Ruy Soeiro, e guiado pelos olhares destes viu ao longe Loredano no momento em que apontava sobre o cavalheiro.

Correr, cahir sobre o italiano, desviar a pontaria, e dobra-lo sobre os joelhos, foi um movimento tão rapido que os dous aventureiros apenas o virão passar, virão ao mesmo tempo o seu companheiro subjugado.

A realisação do projecto de Pery apresentava-se naturalmente, sem ser procurada. Tinha o italiano na sua mão; depois delle caminhava aos dous aventureiros, para os quaes bastava a sua faca; e quando tudo estivesse consumado iria ter com D. Antonio de Mariz e lhe diria:

—Esses tres homens vos trahião, matei-os; se fiz mal, puni-me.

A intervenção de Alvaro, cuja generosidade salvou a vida de Loredano, transtornou completamente esse plano; ignorando o motivo por que Pery ameaçava o aventureiro, julgando que era unicamente para puni-lo da tentativa que acabava de commetter perfidamente contra elle, o cavalheiro a quem repugnava tirar a vida a um homem sem necessidade, satisfez-se com o juramento, e a certeza de que deixaria a casa.

Emquanto isto se dava, Pery reflectia na possibilidade de fazer as cousas voltarem á mesma posição; ruas conheceu que não o conseguiria.

Alvaro tinha recebido de D. Antonio de Mariz todos os principios daquella antiga lealdade cavalheiresca do seculo XV, os quaes o velho fidalgo conservava como o melhor legado de seus avós; o moço moldava todas as suas acções, todas as suas idéas, por aquelle typo dos barões portuguezes que havião combatido em Aljubarrota ao lado do Mestre de Aviz, o rei cavalheiro.

Pery conhecia o caracter do moço; e sabia que depois de ter dado a vida a Loredano, embora o desprezasse, não consentiria que em presença delle lhe tocassem n'um cabello; e se preciso fosse tiraria a sua espada para defender este homem, que acabava de tentar contra sua existencia.

E o indio respeitava a Alvaro, não por sua causa, mas por Cecilia a quem elle amava; qualquer desgraça que succedesse ao cavalheiro tornaria a senhora triste; isto bastava para que a pessoa do moço fosse sagrada, como tudo o que pertencia á menina, ou que era necessario ao seu descanço, ao seu socego e felicidade.

O resultado desta reflexão foi Pery metter a sua faca á cinta; e sem importar-se mais com o italiano, acompanhar o cavalheiro.

Ambos seguirão em direcção da casa, caminhando ao longo da margem do rio.

—Obrigado ainda uma vez, Pery; não pela vida que me salvaste, mas pela estima que me tens.

E o moço apertou a mão do selvagem:

—Não agradece; Pery nada te fez; quem te salvou foi a senhora.

Alvaro sorrio-se da franqueza do indio, e córou da allusão que havia em suas palavras.

—Se tu morresses, a senhora havia de chorar; e Pery quer vêr a senhora contente.

—Tu te enganas; Cecilia é boa, e sentiria da mesma maneira o mal que succedesse a mim, como a ti, ou a qualquer dos que está acostumada a ver.

—Pery sabe porque falla assim; tem olhos que vêem, e ouvidos que ouvem; tu és para a senhora o sol que faz o jambo corado, e o sereno que abre a flôr da noite.

—Pery!... exclamou Alvaro.

—Não te zangues, disse o indio com doçura; Pery te ama, porque tu fazes a senhora sorrir. A canna quando está á beira d'agua, fica verde e alegre; quando o vento passa, as folhas dizem Ce-Cy. Tu és o rio; Pery é o vento que passa docemente, para não abafar o murmurio da corrente; é o vento que curva as folhas até tocarem n'agua.

Alvaro fitou no indio um olhar admirado. Onde é que este selvagem sem cultura aprendêra a poesia simples, mas graciosa; onde bebêra a delicadeza de sensibilidade que difficilmente se encontra n'um coração gasto pelo attrito da sociedade?

A scena que se desenrolava a seus olhos respondeu-lhe; a natureza brazileira, tão rica e brilhante, era a imagem que reproduzia aquelle espirito virgem, como o espelho das aguas reflecte o azul do céo.

Quem conhece a vegetação de nossa terra desde a parasita mimosa até o cedro gigante; quem no reino animal desce do tigre e do tapir, symbolos da ferocidade e da força, até o lindo beija-flôr e o insecto dourado; quem olha este céo que passa do mais puro anil aos reflexos bronzeados que annuncião as grandes borrascas; quem viu sob a verde pellucia da relva esmaltada de flôres que cobre as nossas varzeas deslisar mil reptis que levão a morte n'um atomo de veneno, comprehende o que Alvaro sentio.

Com effeito, o que exprime essa cadêa que liga os dous extremos de tudo o que constitue a vida? Que quer dizer a força no apice do poder alliada á fraqueza em todo o seu mimo; a belleza e a graça succedendo aos dramas terriveis e aos monstros repulsivos; a morte horrivel a par da vida brilhante?

Não é isso a poesia? O homem que nasceu, embalou-se e cresceu nesse berço perfumado; no meio de scenas tão diversas, entre o eterno contraste do sorriso e da lagrima, da flôr e do espinho, do mel e do veneno, não é um poeta?

Poeta primitivo, canta a natureza na mesma linguagem da natureza; ignorante do que se passa nelle, vai procurar nas imagens que tem diante dos olhos, a expressão do sentimento vago e confuso que lhe agita a alma.

Sua palavra é a que Deus escreveu com as letras que formão o livro da creação; é a flôr, o céo, a luz, a côr, o ar, o sol; sublimes cousas que a natureza fez sorrindo.

A sua phrase corre como o regato que serpeja, ou salta como o rio que se despenha da cascata; ás vezes se eleva ao cimo da montanha, outras desce e rasteja como o insecto, subtil, delicada e mimosa.

Eis o que a decoração da scena magestosa, no meio da qual se achava á beira do Paquequer, disse a Alvaro; mas rapidamente, por uma dessas impressões que se projectão no espirito como a luz no espaço.

O moço recebeu a confissão ingenua do indio sem o minimo sentimento hostil; ao contrario apreciava a dedicação que o selvagem tinha por Cecilia, e ia ao ponto de amar a tudo quanto sua senhora estimava.

Assim, disse Alvaro sorrindo, tu só me amas porque pensas que Cecilia me quer? disse o moço.

—Pery só ama o que a senhora ama: porque só ama a senhora neste mundo: por ella deixou sua mãi, seus irmãos e a terra onde nasceu.

—Mas se Cecilia não me quizesse como julgas?

—Pery faria o mesmo que o dia com a noite; passaria sem te vêr.

—E se eu não amasse a Cecilia?

—Impossivel!

—Quem sabe? disse o moço sorrindo.

—Se a senhora ficasse triste por ti!... exclamou o indio, cuja pupilla negra irradiou.

—Sim? o que farias?

—Pery te mataria.

A firmeza com que erão ditas estas palavras não deixava a menor duvida sobre a sua realidade; entretanto Alvaro apertou a mão do indio com effusão.

Pery temeu offender o moço; para desculpar a sua franqueza, disse-lhe com um tom commovido:

—Escuta. Pery é filho do sol; e renegava o sol se elle queimasse a pelle alva de Cecy. Pery ama o vento; e odiava o vento se elle arrancasse um cabello de ouro de Cecy. Pery gosta de vêr o céo; e não levantava a vista, se elle fosse mais azul do que os olhos de Cecy.

—Comprehendo-te, amigo; votaste a tua vida inteira á felicidade dessa menina. Não receies que te offenda nunca na pessoa della. Sabes se eu a amo; e não te zangues, Pery, se disser que a tua dedicação não é maior do que a minha. Antes que me matasses, creio que me mataria a mim mesmo se tivera a desgraça de fazer Cecilia infeliz.

—Tu és bom; Pery quer que a senhora te ame.

O indio contou então a Alvaro o que se tinha passado na noite antecedente; o moço empallideceu de colera, e quiz voltar em busca do italiano; desta vez não lhe perdoára.

—Deixa! disse o indio; Cecy teria medo; Pery vai endireitar isto.

Os dous tinhão chegado perto da casa e ião entrar a cerca do valle, quando Pery segurou o braço de Alvaro:

—O inimigo da casa quer fazer mal; defende a senhora; se Pery morrer, manda dizer a sua mãi, e verás todos os guerreiros da tribu chegarem para combaterem comtigo, e salvarem Cecy.

—Mas quem é o inimigo da casa?

—Queres saber?

—De certo; como hei de combate-los?

—Tu saberás.

Alvaro quiz insistir; mas o indio não lhe deo tempo; metteu-se de novo pelo matto; emquanto o moço subia a escada, elle fazia uma volta ao redor da casa, e ganhava o lado para onde dava o quarto de Cecilia.

Já tinha vistado ao longe a janella, quando debaixo de uma ramagem surgio a figura magra e esguia de Ayres Gomes, coberto de ortigas e hervas de passarinho, e deitando o bofes pela boca.

O digno escudeiro, tendo encontrado em cima de sua cabeça um maldito galho desageitado, foi de narizes ao chão, estendeu-se maciamente sobre a relva.

Apezar disto ergueu-se um pouco sobre os cotovellos, e gritou com toda a força dos pulmões:

—Olá! mestre bugre!... Dom Cacique!... Caçador de onça viva!... Ouve cá!

Pery não se voltou.


VII
NO PRECIPICIO

Pery tinha parado para ver Cecilia de longe.

Ayres Gomes ergueu-se, correu para o indio, e deitou-lhe a mão ao braço.

—Afinal pilhei-o, dom caboclo! Safa!... Deo-me agua pela barba?... disse o escudeiro resfolgando.

—Deixa! respondeu o indio sem se mover.

—Deixar-te! Uma figa! Depois de ter batido esta mattaria á tua procura! Tinha que ver!

Com effeito D. Lauriana desejando ver o indio fóra de casa quanto antes, havia expedido o escudeiro em busca de Pery para trazê-lo á presença de D. Antonio de Mariz.

Ayres Gomes, fiel executor das ordens de seus amos corria o matto havia boas duas horas; todos os incidentes comicos, possiveis ou imaginaveis, tinhão-se como que de proposito collocado em seu caminho.

Aqui era uma casa de maribondos, que elle assanhava com o chapéo, e o fazião baterem retirada honrosa, correndo a todo o estirão das pernas; ali era um desses lagartos de longa cauda que pilhado de improviso se enrolára pelas pernas do escudeiro com uma formidavel chicotada.

Isto sem fallar das ortigas, e das unhas de gato, cabeçadas e quedas, que fazião o digno escudeiro arrenegar-se, e maldizer da selvajaria de semelhante terra! Ah! quem o dera nos tojos e charnecas de sua patria!

Tinha pois Ayres Gomes razão de sobra para não querer largar o indio, causa de todas as tribulações por que passara; infelizmente Pery não estava de accordo.

—Larga, já te disse! exclamou o indio começando a irritar-se.

—Tem santa paciencia, caboclinho de minha alma! Fé de Ayres Gomes, não é possivel; e tu sabes! Quando eu digo que não é possivel, é como se a nossa madre Igreja... Que diabo ia rezar-lhe?... Ai! que chamei sem querer a madre Igreja do diabo! Forte heresia! Quem se mette a tagarellar dos santos!... Virgem Santissima! Estou incapaz! Cala-te, boca! não me pies mais!

Emquanto o escudeiro desfiava esse discurso, meio soliloquio, no qual havia ao menos o merito da franqueza, Pery não o ouvia, embebido como estava em olhar para a janella; depois, desprendendo-se da mão que segurava-lhe o braço, continuou o seu caminho.

Ayres acompanhou-o pisada sobre pisada, com a impassibilidade de um auto mato.

—Que vens fazer? perguntou-lhe o indio.

—E esta! Seguir-te e levar-te á casa; é a ordem.

—Pery vai longe!

—Ainda que vás ao fim do mundo, é o mesmo, filho.

O indio voltou-se para elle com um gesto decidido.

—Pery não quer que tu o sigas.

—Lá quanto a isto, mestre bugre, perdes o teu tempo; por força ainda ninguem levou o filho de meu pai, que bom é que, saibas foi homem de faca e calhão.

—Pery não manda duas vezes!

—Nem Ayres Gomes olha atrás quando executa uma ordem.

Pery, o homem da cega dedicação, reconheceu no escudeiro o homem da obediência passiva; sentio que não havia meio de convencer este executor fiel: assim, resolveu livrar-se delle por meio decisivo.

—Quem te deo a ordem?

D. Lauriana.

—Para que?

—Para te levar á casa.

—Pery vai só.

—Veremos!

O indio tirou a sua faca.

—Heim!... gritou o escudeiro. A conversa vai agora nesse tom? Se o Sr. D. Antonio não me tivesse prohibido expressamente, eu te mostraria! Mas... Podes matar-me, que eu não arredo pé.

—Pery só mata o seu inimigo, e tu não és; tu teimas, Pery te amarra.

—Como?... Como é lá isso?

O indio começou a cortar com a maior calma um longo cipó que se engrasava pelos galhos das arvores, o escudeiro meio espantado sentia a mostarda subir-lhe ao nariz, e esteve quasi não quasi, atirando-se ao selvagem.

Mas a ordem de D. Antonio era formal; via-se pois obrigado a respeitar o indio; ornais que o digno escudeiro podia fazer era defender-se valentemente.

Quando Pery cortou umas dez braças do cipó que ia enrolando ao pescoço, embainhou a faca, e voltou-se para o escudeiro sorrindo. Ayres Gomes sem trepidar puxou da espada, e pôz-se em guarda, segundo as regras da nobre e liberal arte do jogo de espadão, que professava desde a mais tenra idade.

Era um duello original e curioso, como talvez não tenha havido segundo, combate em que as armas lutavão contra a agilidade, e o ferro contra um vime delgado.

—Mestre Cacique, disse o escudeiro rugando o sobr'olho; deixa-te de partes: porque, palavra de Ayres Gomes, se te encostas, espeto-te na durindana!

Pery estendeu o labio inferior, em signal de pouco caso; e começou a voltear rapidamente em torno do escudeiro, n'um circulo de seis passos de diametro que o punha fora do alcance da espada: a sua tenção era assaltar o adversario pelas costas.

Ayres Gomes apoiado a um tronco, e obrigado a gyrar sobre si mesmo, para defender as costas, sentio a cabeça tontear e vacillou. O indio aproveitou o momento, atirou-se a elle, pilhou-o de costas, agarrou-o pelos dous braços, e passou a amarra-lo ao mesmo tronco da arvore em que estava encostado.

Quando o escudeiro voltou a si da vertigem, uma rodilho de cipós ligava-o ao tronco desde o joelho até os hombros; o indio seguira seu caminho placidamente.

—Bugre de um demo! Perro infernal! gritava o digno escudeiro, tu me pagarás com lingua de palmo!...

Sem prestar a menor attenção á ladainha de nomes injuriosos com que o mimoseava Ayres Gomes, Pery aproximou-se da casa.

Via Cecilia, com a face apoiada na mão, a olhar tristemente o fosso profundo que passava em baixo de sua janella.

A menina, depois do primeiro momento de sorpreza em que adivinhou o ciume de Isabel e o seu amor por Alvaro, conseguio dominar-se. Tinha a nobre altivez da castidade; não quiz deixar ver a sua prima o que sentia nesse momento; era boa tambem, amava Isabel, e não desejava magoa-la.

Não lhe disse pois uma só palavra de exprobração nem de queixa; ao contrario ergueu-a, beijou-a com carinho, e pedio-lhe que a deixasse só.

—Pobre Isabel! murmurou ella; com deve ter soffrido!

Esquecia-se de si para pensar em sua prima; mas as lagrimas que saltárão de seus olhos, e o soluço que fez arfar os seios ruinosos a chamarão ao seu proprio soffrimento.

Ella, a menina alegre e feticeira que só aprendera a sorrir, ella, o anginho do prazer que bafejava tudo quando a rodeava, achou um gozo ineffavel em chorar. Quando enxugou as lagrimas, soffria menos; sentio-se alliviada; pôde então reflectir sobre o que havia passado.

O amor revelava-se para ella sob uma nova forma; até aquelle dia a affeição que sentia por Alvaro era apenas um enleio que a fazia corar, e um prazer que a fazia sorrir.

Nunca se lembrára que esta affeição podesse passar daquillo que era, e produzir outras emoções que não fossem o rubor e o sorriso; o exclusivismo do amor, a ambição de tornar seu e unicamente seu o objecto da paixão, acabava de ser-lhe revelado por sua prima.

Ficou por muito tempo pensativa; consultou o seu coração, e conheceu que não amava assim; nunca a affeição que tinha a Alvaro podia obriga-la a odiar sua prima, a quem queria como irmã.

Cecilia não comprehendia essa luta do amor com os outros sentimentos do coração, luta terrivel em que quasi sempre a paixão victoriosa subjuga o dever, e a razão. Na sua ingenua simplicidade acreditava que podia ligar perfeitamente a veneração que tinha por seu pai, o respeito que votava a sua mãi, o affecto que sentia por Alvaro, o amor fraternal que consagrava a seu irmão e a Isabel, e a amizade que tinha a Pery.

Estes sentimentos erão toda a sua vida; no meio delles sentia-se feliz: nada lhe faltava: tambem nada mais ambicionava. Emquanto podesse beijar a mão de seu pai e de sua mãi, receber uma caricia de seu irmão e de sua prima, sorrir a seu cavalheiro e brincar com o seu escravo, a existencia para ella seria de flôres.

Assustou-se pois com a necessidade de quebrar um dos fios de ouro que tecião os seus dias innocentes e felizes; soffreu com a idéa de ver em luta duas das affeições calmas e serenas de sua alma.

Teria menos um encanto na sua vida, menos uma imagem nos seus sonhos menos uma flor na sua alma; porém não faria a ninguem desgraçado, e sobretudo a sua prima Isabel, que ás vezes se mostrava tão melancolica.

Restavão-lhe suas outras affeições; com ellas pensava Cecilia que a existencia ainda podia sorrir-lhe; não devia tornar-se egoista.

Para assim pensar era preciso ser uma menina pura e isenta como ella; era preciso ter o coração como recente botão, que ainda não começou a desatar-se com o primeiro raio do sol.

Estes pensamentos adejavão ainda na mente de Cecilia emquanto ella olhava pensativa o fosso, onde tinha cahido o objecto que viera modificar a sua existencia.

—Se eu podesse obter essa prenda? dizia comsigo. Mostraria a Isabel como eu a amo e quanto a desejo feliz.

Vendo sua senhora olhar tristemente o fundo do precipicio, Pery comprehendeu parte do que passava no seu espirito; sem poder adivinhar como Cecilia soubera que o objecto tinha cahido alli, percebeu que a moça sentia por isso um pezar.

Nem tanto bastava para que o indio fizesse tudo afim de trazer a alegria ao rostinho de Cecilia: além de que já tinha promettido a Alvaro endireitar isto, como elle dizia na sua linguagem simples.

Chegou-se ao fosso.

Uma cortina de musgos e trepadeiras lastrando pelos bordas do profundo precipicio cobria as fendas da pedra: por cima era um topete de verde risonho sobre o qual adejavão as borboletas de côres vivas; em baixo uma cava cheia de limo onde a luz não penetrava.

Ás vezes ouvião-se partir do fundo do balseiro os silvos das serpentes, os pios tristes de algum passaro, que magnetisado ia entregar-se á morte; ou o tanger de um pequeno chocalho sobre a pedra.

Quando o sol estava a pino, como então, via-se entre a relva, sobre o calice das campanulas roxas, os olhos verdes de alguma serpente ou uma linda fita de escamas pretas e vermelhas enlaçando a baste de um arbusto.

Pery pouco se importava com estes habitantes do fosso e com o acolhimento que lhe farião na sua morada; o que o inquietava era o receio de que não tivesse luz bastante no fundo para descobrir o objecto que ia procurar.

Cortou o galho de uma arvore, que pela sua propriedade, os colonisadores chamárão candêa; tirou fogo, e começou a descer com o facho acceso. Foi só nessa occasião que Cecilia, embebida nos seus pensamentos, viu defronte de sua janella o indio a descer pela encosta.

A menina assustou-se; porque a presença de Pery lembrou-lhe de repente o que se passára pela manhã; era mais uma affeição perdida.

Dous laços quebrados ao mesmo tempo, dous habitos rompidos um sobre o outro, era muito; duas lagrimas correrão pelas suas faces, como se cada uma fosse vertida pelas cordas do coração que acabavão de ser vibradas.

—Pery!...

O indio levantou os olhos para ella.

—Tu choras, senhora? disse elle estremecendo.

A menina sorrio-lhe; mas com um sorriso tão triste que partia a alma.

—Não chores, senhora; disse o indio supplicante; Pery vai te dar o que desejas.

—O que eu desejo?...

—Sim; Pery sabe.

A moça abanou a cabeça.

—Está alli; e apontou para o fundo do precipicio.

—Quem te disse? perguntou a menina admirada.

—Os olhos de Pery.

—Tu viste?

—Sim.

O indio continuou a descer.

—Que vais fazer? exclamou Cecilia assustada.

—Buscar o que é teu.

—Meu!... murmurou melancolicamente.

—Elle te deo.

—Elle quem?

—Alvaro.

A moça córou; mas o susto reprimio o pejo; abaixando os olhos sobre o precipicio, tinha visto um reptil deslisando pela folhagem e ouvido o murmurio confuso e sinistro que vinha do fundo do abysmo.

—Pery, disse empallidecendo, não desças, volta!

—Não; Pery não volta sem trazer o que te fez chorar.

—Mas tu vais morrer!...

—Não tem medo.

—Pery, disse Cecilia com severidade, tua senhora manda que não desças.

O indio parou indeciso; uma ordem de sua senhora era uma fatalidade para elle: cumpria-se irremissivelmente.

Fitou na moça um olhar timido: nesse momento Cecilia, vendo Alvaro na ponta da esplanada junto da cabana do selvagem, retirava-se para dentro da janella córando.

O indio sorrio.

—Pery desobedece á tua voz, senhora, para obedecer ao teu coração.

E o indio desappareceu sob as trepadeiras que cobrião o precipicio.

Cecilia soltou um grito, e debruçou-se no parapeito da janella.


VIII
O BRACELETE

O que Cecilia viu debruçando-se á janella, gelou-a de espanto e horror.

De todos os lados surgião reptis enormes que, fugindo pelos alcantis, lançavão-se na floresta; as viboras escapavão das fendas dos rochedos, e aranhas venenosas suspendião-se aos ramos das arvores pelos fios da têa.

No meio do concerto horrivel que formava o sibillar das cobras e o estridulo dos grillos, ouvia-se o canto monotono e tristonho da cauan no fundo do abysmo.

O indio tinha desapparecido; apenas se via o reflexo da luz do facho.

Cecilia pallida e tremula julgava impossivel que Pery não estivesse morto e já quasi devorado por esses monstros de mil fórmas: chorava o seu amigo perdido, e balbuciava preces pedindo a Deus um milagre para salva-lo.

Ás vezes fechava os olhos para não ver o quadro terrivel que se desenrolava diante della, e abria-os logo para prescrutar o abysmo e descobrir o indio.

Em um desses momentos um dos insectos que pullulavão no meio da folhagem agitada esvoaçou, e veio pousar no seu hombro; era uma esperança, um desses lindos coleopteros verdes que a poesia popular chama lavandeira de Deus.

A alma nos momentos supremos de afflicção suspende-se ao fio mais tenue da esperança; Cecilia sorrio-se entre as lagrimas, tomou a lavandeira entre os seus dedos rosados e acariciou-a.

Precisava esperar; esperou, reanimou-se, e pôde proferir uma palavra ainda com a voz tremula e fraca:

—Pery!

No curto instante que succedeu a este chamado, soffreu uma anciedade cruel; se o indio não respondesse, estava morto; mas Pery fallou:

—Espera, senhora!

Entretanto apezar da alegria que lhe causarão estas palavras, pareceu á menina que erão pronunciadas por um homem que soffria; a voz chegou-lhe ao ouvido surda e rouca.

—Estás ferido? perguntou inquieta.

Não houve resposta; um grito agudo partio do fundo do abysmo, e echoou pelas fragoas; depois o cauan cantou de novo, e uma cascavel silvando bravia passou seguida por uma ninhada de filhos.

Cecilia vacillou; soltando um gemido plangente cahio desmaiada de encontro á almofada da janella.

Quando, passado um quarto d'hora, a menina abrio os olhos, vio diante della Pery que chegava naquelle momento, e lhe apresentava sorrindo uma bolsa de malha de retroz dentro da qual havia uma caixinha de velludo escarlate.

Sem se importar com a joia, Cecilia ainda impressionada pelo quadro horrivel que presenciára, tomou as mãos do indio, e perguntou-lhe com sofreguidão:

—Não estás mordido, Pery?... Não soffres?... Dize!

O indio olhou-a admirado do susto que via no seu semblante.

—Tiveste medo, senhora?

—Muito! exclamou a menina.

O indio sorrio.

—Pery é um selvagem, filho das florestas; nasceu no deserto, no meio das cobras; ellas conhecem Pery e o respeitão.

O indio dizia a verdade; o que acabava de fazer era a sua vida de todos os dias no meio dos campos: não havia nisto o menor perigo.

Tinha-lhe bastado a luz do seu facho, e o canto do cauan que elle imitava perfeitamente, para evitar os reptis venenosos que são devorados por essa ave. Com este simples expediente de que os selvagens ordinariamente se servião quando atravessavão as mattas de noite, Pery descera e tivera a felicidade de encontrar presa aos ramos de uma trepadeira a bolsa de seda, que adivinhou ser o objecto dado por Alvaro.

Soltou então um grito de prazer que Cecilia tomou por grito de dôr: assim como antes tinha tomado o écho do precipicio por uma voz cava e surda.

Entretanto Cecilia que não podia comprehender como um homem passava assim no meio de tantos animaes venenosos sem ser offendido por elles, attribuia a salvação do indio a um milagre, e considerava a acção simples e natural que acabava de praticar como um heroismo admiravel. A sua alegria por ver Pery livre de perigo, e por ter nas suas mãos a prenda de Alvaro foi tal, que esqueceu tudo o que se tinha passado.

A caixinha continha um simples bracelete de perolas; mas estas erão do mais puro esmalte e lindas como perolas que erão; bem mostravão que tinhão sido escolhidas pelos olhos de Alvaro, e destinadas ao braço de Cecilia.

A menina admirou-as um momento com o sentimento de faceirice que é innato na mulher, e lhe serve de setimo sentido; pensou que devia ir-lhe bem esse bracelete; levada por esta idéa cingio-o ao braço, e mostrou a Pery que a contemplava satisfeito de si mesmo:

—Pery sente uma cousa.

—O que?

—Não ter contas mais bonitas do que estas para dar-te.

—E porque sentes isto?

—Porque te acompanharião sempre.

Cecilia sorrio; ia fazer uma travessura.

Assim, tu ficarias contente se tua senhora em vez de trazer este bracelete, trouxesse um presente dado por ti?

—Muito.

—E o que me dás tu para que eu me faça bonita? perguntou a menina gracejando.

O indio correu os olhos ao redor de si e ficou triste; podia dar a sua vida, que de nada valia; mas onde iria elle, pobre selvagem, buscar um adorno digno de sua senhora!

Cecilia teve pena do seu embaraço.

—Vai buscar uma flor que tua senhora deitará nos seus cabellos, em vez deste bracelete que ella nunca deitará no seu braço.

Estas ultimas palavras forão ditas com um tom de energia, que revelava a firmeza do caracter desta menina; ella fechou outra vez o bracelete na caixa, e ficou um momento melancolica e pensativa.

Pery voltou trazendo uma linda flôr sylvestre que encontrára no jardim; era uma parasita avelludada, de lindo escarlate. A menina prendeu a flôr nos cabellos, satisfeita por ter cumprido um innocente desejo de Pery, que só vivia para cumprir os seus; e dirigio-se ao quarto de sua prima, occultando no seio a caixinha de velludo.

Isabel pretextára uma indisposição; não sahira do seu quarto depois que voltára do aposento de Cecilia, tendo trahido o segredo de seu amor.

As lagrimas que derramou não forão como as de sua prima, de allivio e consolo; forão lagrimas ardentes, que em vez de refrescarem o coração, o queimão como o rescaldo da paixão.

Ás vezes, ainda humedecidos de pranto, seus olhos negros brilhavão com um fulgor extraordinario; parecia que um pensamento delirante passava rapidamente no seu espirito desvairado. Então ajoelhava-se, e fazia uma oração, no meio da qual suas lagrimas vinhão de novo orvalhar-lhe as faces.

Quando Cecilia entrou, elle estava sentada á beira do leito, com os olhos fitos na janella, por entre a qual se via uma nesga do céo.

Estava bella da melancolia e languidez que prostrava o seu corpo n'um enlevo seductor, fazendo realçar as linhas harmoniosas de talhe gracioso.

Cecilia aproximou-se sem ser vista, e estalou um beijo na face morena de sua prima.

—Já te disse que não te quero vêr triste.

—Cecilia!... exclamou Isabel sobresaltando-se.

—Que é isto? Faço-te medo?

—Não... mas...

—Mas, o que?

—Nada...

—Sei o que queres dizer, Isabel; julgaste que conservava uma queixa de ti. Confessa!

—Julguei, disse a moça balbuciando, que me tinha tornado indigna de tua amizade.

E porque? Fizeste-me tu algum mal? Não somos nós duas irmãs, que nos devemos amar sempre?

—Cecilia, o que tu dizes não é o que tu sentes? exclamou Isabel admirada.

—Algum dia te enganei? replicou Cecilia magoada.

—Não; perdoa; porém é que...

A moça não continuou; o olhar terminou o seu pensamento, e exprimio o espanto que lhe causava o procedimento de Cecilia. Mas de repente uma idéa assaltou-lhe o espirito.

Cuidou que Cecilia não tinha ciumes della, porque a julgava indigna de merecer um só olhar de Alvaro; esta lembrança a fez sorrir amargamente.

—Assim, está entendido, disse Cecilia com volubilidade, nada se passou entre nós; não é verdade?

—Tu o queres!

—Quero, sim; nada se passou; somos as mesmas, com uma differença, accrescentou Cecilia corando, que de hoje em diante tu não deves ter segredos para comigo.

—Segredos! Tinha um que já te pertence! murmurou Isabel.

—Porque o adivinhei! Não é assim que desejo; prefiro ouvir de tua boca; quero consolar-te quando estiveres toda tristezinha como agora, e rir-me comtigo quando ficares contente. Sim?

—Ah! nunca! Não me peças uma cousa impossivel, Cecilia! Já sabes de mais; não me obrigues a morrer a teus pés de vergonha.

—E porque te causaria isto vergonha? Assim como tu me amas, não podes amar uma outra pessoa?

Isabel escondeu o rosto nas mãos para disfarçar o rubor que subia-lhe ás faces, Cecilia um pouco commovida olhava sua prima, e comprehendia nesse momento a causa porque ella propria córava quando sentia os olhos de Alvaro fitos nos seus.

—Cecilia, disse Isabel fazendo um esforço supremo, não me illudas, minha prima; tu és boa, tu me amas, e não queres magoar-me; mas não zombes da minha fraqueza. Se soubesses como soffro!

—Não te illudo, já te disse; não desejo que soffras, e menos que soffras por minha causa; entendes?

—Entendo, e juro-te que saberei fazer calar meu coração; se fôr preciso elle morrerá antes do que dar-te uma sombra da tristeza.

—Não, exclamou Cecilia, tu não me comprehendes: não é isto que eu te peço, bem ao contrario quero que... sejas feliz!

—Que eu seja feliz? perguntou Isabel arrebatadamente.

—Sim, respondeu a menina abraçando-a e fallando-lhe baixinho ao ouvido; que o ames a elle, e a mim tambem.

Isabel ergueu-se pallida, e duvidando do que ouvia; Cecilia teve bastante força para sorrir-lhe com um dos seus divinos sorrisos.

—Não, é impossivel? Tu me queres tornar louca, Cecilia?

Quero tornar-te alegre, respondeu a menina acariciando-a; quero que deixes esse rostinho melancolico, e me abraces como tua irmã. Não o mereço?

—Oh! sim, minha irmã; tu és um anjo de bondade, mas o teu sacrificio é perdido; eu não posso ser feliz, Cecilia.

—Porque?

—Porque elle te ama! murmurou Isabel.

A menina corou.

—Não digas isto, é falso.

—É bem verdade.

—Elle te disse?

—Não, mas adivinhei-o antes de ti mesma.

—Pois te enganaste, e sabes que mais, não me falles nisto. Que me importa o que elle sente a meu respeito?

E a menina conhecendo que a emoção se apoderava della fugio, mas voltou da porta.

—Ah! esqueci-me de dar-te uma cousa que trouxe para ti.

Tirou a caixinha de velludo, e abrindo-a atou o bracelete de perolas ao braço de Isabel.

—Como te vão bem! Como assentão no teu moreno tão lindo! Elle te achará bonita!

Este bracelete!...

Isabel teve de repente uma suspeita.

A menina percebeu: ia mentir pela primeira vez na sua vida.

—Foi meu pai que m'o deo hontem; mandou vir dous irmãos; um para mim, e outro que eu lhe pedi para ti. Assim, não tens que recusar, senão agasto-me comtigo.

Isabel abaixou a cabeça.

—Não o tires; eu vou deitar o meu e ficaremos irmãs. Adeus, até logo.

E apinhando os dedos atirou um beijo á prima e sahio correndo.

A travessura e jovialidade do seu genio já tinhão dissipado as impressões tristes da manhã.


IX
TESTAMENTO

No momento em que Cecilia deixou Isabel, D. Antonio de Mariz subia a esplanada, preoccupado por algum objecto importante, que dava á sua physionomia expressão ainda mais grave que a habitual.

O velho fidalgo avistou de longe seu filho D. Diogo e Alvaro passeando ao longo da cerca que passava no fundo da casa; fez-lhes signal de que se aproximassem.

Os moços obedecerão promptamente, e acompanhárão D. Antonio de Mariz até o seu gabinete d'armas, pequena saleta que ficava ao lado do oratorio, e que nada tinha de notavel, a não ser a portinha de uma escada que descia para uma especie de cava ou adega, servindo de paiol.

Na occasião em que se abrião os alicerces da casa, os obreiros descobrirão um socavão profundo talhado na pedra; D. Antonio como homem previdente, lembrando-se da necessidade que teria para o futuro de não contar senão com os seus proprios recursos, mandou aproveitar essa abobada natural, e fazer della um deposito que podesse conter algumas arrobas de polvora.

O fidalgo achára ainda uma outra grande vantagem na sua lembrança; era a tranquillidade de sua familia, cuja vida não estaria sujeita a um descuido de qualquer domestico ou aventureiro; porque no seu gabinete d'armas ninguem entrava, senão estando elle presente.

D. Antonio sentou-se junto da mesa coberta com um couro de moscovia e fez signal aos dous moços para que se sentassem a seu lado.

—Tenho que fallar-vos de objecto muito serio, de objecto de familia, disse o fidalgo. Chamei-vos para me ouvirdes como em uma cousa que vos interessa e a mim antes do que a todos.

D. Diogo inclinou-se diante de seu pai; Alvaro imitou-o, sentindo um sobresalto ao ouvir aquellas palavras graves e pausadas do velho fidalgo.

—Tenho sessenta amos, continuou D. Antonio; estou velho. O contacto deste solo virgem do Brazil, o ar puro destes desertos remoçou-me durante os ultimos annos; mas a natureza reassume os seus direitos, e sinto que o antigo vigor cede á lei da creação que manda voltar á terra aquillo que veio da terra.

Os dous moços ião dizer alguma doce palavra como quando procuramos illudir a verdade áquelles a quem prezamos, esforçando por nos illurdirmos a nós proprios.

D. Antonio conteve-os com um gesto nobre.

—Não me interrompeis. Não é uma queixa que vos faço; é sim uma declaração que deveis receber, pois é necessaria para que possais comprehender o que tenho de dizer-vos ainda. Quando durante quarenta annos jogamos nossa vida quasi todos os dias, quando vimos a morte cem vezes sobre nossa cabeça, ou debaixo de nossos pés, podemos olhar tranquillo o termo da viagem que fazemos neste valle de lagrimas.

Oh! nunca duvidamos de vós, meu pai! exclamou D. Diogo; mas é a segunda vez em dous dias que me fallais da possibilidade de uma tal desgraça; e esta só idéa me assusta! Estais forte e vigoroso ainda!

—De certo, retrucou Alvaro; dizeis ha pouco que o Brazil vos tinha remoçado, e eu affirmo-vos que ainda estais na juventude da segunda vida que vos deo o novo mundo.

—Obrigado, Alvaro, obrigado, meu filho, disse D. Antonio sorrindo; quero acreditar nas vossas palavras. Comtudo julgareis que é prudente da parte de um homem que chega ao ultimo quartel da vida, dispor a sua ultima vontade, e fazer o seu testamento.

—O vosso testamento, meu pai! disse D. Diogo pallido.

—Sim: a vida pertence a Deus, e o homem que pensa no futuro, deve preveni-lo. É costume encarregar-se isto a um escriba; nem o tenho aqui, nem o julgo necessario. Um fidalgo não póde confiar melhor a sua ultima vontade do que a duas almas nobres e leaes como as vossas. Perde-se um papel, rompe-se, queima-se; o coração de um cavalheiro que tem sua espada para defendê-lo e seu dever para guia-lo, é um documento vivo e um executor fiel. Este será pois o meu testamento. Ouvi-me.

Os dous cavalheiros conhecêrão pela firmeza com que fallava D. Antonio, que sua resolução era inabalavel; dispuzerão-se a ouvi-lo com uma emoção de tristeza e respeito.

—Não trato de vós, D. Diogo, a minha fortuna pertence-vos como chefe da familia que sereis; não trato de vossa mãi, porque perdendo um esposo restar-lhe-ha um filho devotado: amo-vos a ambos, e vos bem-direi na ultima hora. Ha porém duas cousas que mais prezo neste mundo, duas cousas sagradas que devo zelar como um thesouro ainda mesmo depois que me partir desta vida. É a felicidade de minha filha, e a nobreza do meu nome; uma foi presente que recebi do céo, o outro legado que me deixou meu pai.

O fidalgo fez pausa, e volveu um olhar do rosto triste de D. Diogo para o semblante de Alvaro, que estava em extraordinaria agitação.

—A vós, D. Diogo, transmitto o legado de meu pai; estou convencido que conservareis o seu nome tão puro como a vossa alma, e vos esforçareis por eleva-lo, servindo uma causa santa e justa. A vós, Alvaro, confio a felicidade de minha Cecilia; e creio que Deus enviando-vos a mim, fazem já dez annos, não quiz senão completar o dom que me havia concedido.

Os dous moços tinhão deitado um joelho em terra, e beijavão cada uma das mãos do velho fidalgo, que collocado no meio delles envolvia-os n'um mesmo olhar de amor paternal.

—Erguei-vos, meus filhos, abraçai-vos como irmãos, e ouvide-me ainda.

D. Diogo abrio os braços, e apertou Alvaro ao peito; um instante os dous corações nobres baterão um de encontro ao outro.

—O que me resta dizer-vos é difficil; custa sempre confessar uma falta, ainda mesmo quando se falla a almas generosas. Tenho uma filha natural: a estima que voto a minha mulher e o receio de fazer essa pobre menina corar de seu nascimento, obrigárão-me a dar-lhe em vida o titulo de sobrinha.

—Isabel?... exclamou D. Diogo.

—Sim, Isabel é minha filha. Peço-vos a ambos que a trateis sempre como tal; que a ameis como irmã, e a rodeieis de tanto affecto e carinho, que ella possa ser feliz, e perdoar-me a indifferença que lhe mostrei e a infelicidade involuntaria que causei á sua mãi.

A voz do velho fidalgo tornou-se um tanto tremula e commovida; sentia-se que uma recordação dolorosa, adormecida no fundo do coração, havia despertado.

—Pobre mulher!... murmurou elle.

Levantou-se, passeou pelo aposento, e conseguindo dominar a sua emoção, voltou aos dous moços.

—Eis a minha ultima disposição; sei que a cumprireis; não vos peço um juramento; basta-me a vossa palavra.

Diogo estendeu a mão, Alvaro levou a sua ao coração: D. Antonio, que comprehendeu tudo quanto dizia essa muda promessa, abraçou-os.

—Agora deixai a tristeza; quero-vos risonhos; eu o estou, vêde! A tranquillidade sobre o futuro vai remoçar-me de novo; e esperareis muito tempo talvez, antes que tenhais de executar a minha vontade, que até lá fica sepultada no vosso coração, como testamento que é.

—Assim o tinha entendido, disse Alvaro.

—Pois então, replicou o fidalgo sorrindo, deveis ficar entendendo tambem um ponto; é que talvez me incumba eu mesmo de realisar uma das partes do meu testamento. Sabeis qual?

—A da minha felicidade!... respondeu o moço córando.

D. Antonio apertou-lhe a mão.

—Estou contente e satisfeito, disse o fidalgo; pena é que tenha um triste dever a cumprir. Sabeis de Pery, Alvaro?

—Vi-o ha pouco.

—Ide e mandai-o a mim.

O moço retirou-se.

—Fazei chamar vossa mãi e vossa irmã, meu filho.

D. Diogo obedeceu.

O fidalgo sentou-se á mesa e escreveu n'uma tira de pergaminho, que fechou com um retroz e sellou com as suas armas.

D. Lauriana e Cecilia entrárão acompanhadas por D. Diogo.

—Sentai-vos, minha mulher.

D. Antonio reunia sua familia para dar uma certa solemnidade ao acto que ia praticar.

Quando Cecilia entrou, elle perguntou-lhe ao ouvido:

—Que queres tu dar-lhe?

A menina comprehendeu immediatamente; a affeição pouco commum que tinhão a Pery, a gratidão que lhe votavão, era uma especie de segredo entre esses dous corações; era uma planta delicada que não querião expor ao reparo que causaria aos outros amizade tão sincera por um selvagem.

Ouvindo a pergunta de seu pai, Cecilia, que neste dia tinha soffrido tantas emoções diversas, lembrou-se do que se tratava.

—Como! sempre pretendeis manda-lo embora! exclamou ella.

—É necessario; eu te disse.

—Sim: mas pensei que depois houvesseis resolvido o contrario.

—Impossivel!

—Que mal faz elle aqui?

—Sabes quanto eu o estimo; quando digo que é impossivel, deves crêr-me.

—Não vos agasteis!...

—Assim não te oppões?

Cecilia calou-se.

—Se não queres absolutamente, não se fará; mas tua mãi soffrerá, e eu, porque lhe prometti.

—Não; a vossa palavra antes de tudo, meu pai.

Pery appareceu na porta da sala; uma vaga inquietação resumbrava no seu rosto, quando viu-se no meio da familia reunida.

A sua attitude era respeitosa, mas o seu porte tinha a altivez innata das organisações superiores; seus olhos grandes, negros e limpidos percorrêrão o aposento, e fixárão-se na physionomia veneravel do cavalheiro.

Cecilia prevendo o que se ia passar tinha-se escondido por detraz de seu irmão D. Diogo.

—Pery, acreditas que D. Antonio de Mariz é teu amigo? perguntou o fidalgo.

—Tanto quanto um homem branco pode ser de um homem de outra côr.

—Acreditas que D. Antonio de Mariz te estima?

—Sim; porque o disse e mostrou.

—Acreditas que D. Antonio de Mariz deseja poder pagar-te o que fizeste por elle, salvando sua filha?

—Se fosse preciso, sim.

—Pois bem, Pery; D. Antonio de Mariz, teu amigo, te pede que voltes á tua tribu.

O indio estremeceu.

—Porque pedes isto?

—Porque assim é preciso, amigo.

—Pery entende; estás cançado de dar-lhe hospitalidade!

—Não!

—Quando Pery te disse que ficava não te pedio nada; sua casa é feita de palha em cima de uma pedra; as arvores do matto lhe dão o sustento: sua roupa foi tecida por sua mãi que veio traze-la na outra lua. Pery não te custa nada.

Cecilia chorava; D. Antonio e seu filho estavão commovidos; D. Lauriana mesma parecia enternecida.

—Não digas isto, Pery? Nunca na minha casa te faltaria a menor cousa, se tu não recusasses tudo e não quizesses viver isolado na tua cabana. Mesmo agora dize o que desejas, o que te agrada, e é teu.

—Porque então mandas Pery embora?

D. Antonio não sabia o que responder; e foi obrigado a procurar um pretexto para explicar ao indio o seu procedimento: a idéa da religião, que todos os povos comprehendem, pareceu-lhe a mais propria.

—Tu sabes que nós os brancos temos um Deus, que mora lá em cima, a quem amamos, respeitamos e obedecemos.

—Sim.

—Esse Deus não quer que viva no meio de nós um homem que não o adora, e não o conhece; até hoje lhe desobedecêmos; agora elle manda.

—O Deus de Pery tambem mandava que elle ficasse com sua mãi, na sua tribu, junto dos ossos de seu pai, e Pery abandonou tudo para seguir-te.

Houve um momento de silencio; D. Antonio não sabia o que replicar.

—Pery não te quer aborrecer; só espera a ordem da senhora. Tu mandas que Pery vá, senhora?

D. Lauriana que apenas se tinha fallado em religião voltára ás suas prevenções contra o indio, fez um gesto imperioso a sua filha.

—Sim! balbuciou Cecilia.

O indio abaixou a cabeça; uma lagrima deslisou-lhe pela face.

O que elle soffria é impossivel dizer; a palavra não sabe o segredo das tormentas profundas de uma alma forte e vigorosa, que pela primeira vez sente-se vencida pela dôr.


X
DESPEDIDA

D. Antonio aproximou-se de Pery e apertou-lhe a mão:

—O que eu te devo, Pery, não se paga; mas sei o que devo a mim mesmo. Tu voltas á tua tribu: apezar da tua coragem e esforço, pode a sorte da guerra não te ser favoravel, e cahires em poder de algum dos nossos. Este papel te salvará a vida e a liberdade; acceita-o em nome e de tua senhora e no meu.

O fidalgo entregou ao indio o pergaminho que ha pouco tinha escripto e voltou-se para seu filho:

—Este papel, D. Diogo, assegura a qualquer Portuguez de quem Pery possa ser prisioneiro, que D. Antonio de Mariz e seus herdeiros respondem por elle e pelo seu resgate, qualquer que fôr. É mais um legado que vos deixo a cumprir, meu filho.

—Ficai certo, meu pai, replicou o moço, que saberei responder á essa divida de honra, não só em respeito á vossa memoria, como em satisfação dos meus proprios sentimentos.

—Toda a minha familia aqui presente, disse o fidalgo dirigindo-se ao indio, te agradece ainda uma vez o que fizeste por ella; reunimo-nos todos para te desejarmos a boa volta ao seio dos teus irmãos e ao campo onde nasceste.

Pery fitou o olhar brilhante no rosto de cada uma das pessoas presentes, como para dizer-lhes o adeus que seus labios naquella occasião não podião exprimir.

Apenas seus olhos se fitarão em Cecilia, impellido por uma força invencivel atravessou o aposento e foi ajoelhar-se aos pés de sua senhora.

A menina tirou do peito uma pequena cruz de ouro presa a uma fita preta, e deitou-a no pescoço do indio:

—Quando tu souberes o que diz esta cruz, volta, Pery.

—Não, senhora; de onde Pery vai, ninguem voltou.

Cecilia estremeceu.

O selvagem ergueu-se, e caminhou para D. Antonio de Mariz, que não podia dominar a sua emoção.

—Pery vai partir; tu mandas, elle obedece; antes que o sol deixe a terra, Pery deixará tua casa; o sol voltará amanhã, Pery não voltará nunca. Leva a morte no seio porque parte hoje; levaria a alegria se partisse no fim da lua.

—Por que razão? perguntou D. Antonio; desde que é necessario que nos separemos, tanto deves sentir hoje, como d'aqui a tres dias.

—Não, replicou o indio; tu vais ser atacado amanhã talvez, e Pery estaria comtigo para defender-te.

—Vou ser atacado? exclamou D. Antonio pensativo.

—Sim: podes contar.

E por quem?

—Pelo Aymoré.

—E como sabes isto? perguntou D. Antonio fitando nelle um olhar desconfiado.

O indio hesitou durante um momento; estudava a resposta.

—Pery sabe porque viu o pai e o irmão da india, que teu filho matou sem querer, olharem tua casa de longe, soltarem o grito da vingança, e caminharem para sua tribu.

—E tu o que fizeste?

—Pery viu-os passar; e vem te avisar para que te prepares.

O fidalgo fez com a cabeça um movimento de incredulidade.

—É preciso não te conhecer, Pery, para acreditar no que dizes; tu não podias olhar com indifferença para os inimigos de tua senhora e meus.

O indio sorrio tristemente.

—Erão mais fortes; Pery deixou que passassem.

D. Antonio começou a reflectir; parecia evocar as suas reminiscencias, e combinar certas circumstancias que tinha impressas na memoria.

Seu olhar abaixando-se do rosto de Pery, cahira sobre os hombros; a principio vago e distrahido como o de um homem que medita, começou a fixar-se e a distinguir um ponto vermelho quasi imperceptivel, que apparecia no saio de algodão do indio.

Á proporção que a vista se firmava, e que o objecto se desenhava mais distincto, o semblante do fidalgo se esclarecia, como se tivesse achado a solução de um difficil problema.

—Estás ferido? exclamou o fidalgo de repente.

Pery recuou um passo; mas D. Antonio lançando-se para elle entreabrio o talho de sua camisa, e tirou-lhe as duas pistolas da cinta; examinou-as, e viu que estavão descarregadas.

O cavalheiro depois deste exame cruzou os braços, e contemplou o indio com admiração profunda.

—Pery, disse elle, o que fizeste é digno de ti; o que fazes agora é de um fidalgo. Teu nobre coração pode bater sem envergonhar-se sobre o coração de um cavalheiro portuguez. Tomo-vos a todos por testemunhas, que vistes um dia D. Antonio de Mariz apertar ao seu peito um inimigo de sua raça e de sua religião como a seu igual em nobreza e sentimentos.

O fidalgo abrio os braços e deo em Pery o abraço fraternal consagrado pelos estylos da antiga cavallaria, da qual já naquelle tempo apenas restavão vagas tradições. O indio, de olhos baixos, commovido e confuso, parecia um criminoso em face do juiz.

—Vamos, Pery, disse D. Antonio, um homem não deve mentir, nem mesmo para esconder as suas boas acções. Responde-me a verdade.

—Falla.

—Quem disparou dous tiros junto ao rio, quando tua senhora estava no banho?

—Foi Pery.

—Quem atirou uma flexa que cahio junto de Cecilia?

Um Aymoré, respondeu o indio estremecendo.

—Porque a outra flexa ficou sobre o lugar onde estão os corpos dos selvagens?

Pery não respondeu.

—É escusado negares; tua ferida o diz. Para salvar tua senhora, te offereceste aos tiros dos inimigos; depois os mataste.

—Tu sabes tudo; Pery não é mais preciso: volta á sua tribu.

O indio lançou um ultimo olhar a sua senhora, e caminhou para a porta.

—Pery! exclamou Cecilia, fica; tua senhora manda.

Depois correndo para seu pai, e sorrindo-lhe entre as lagrimas, disse com um tom supplicante:

—Não é verdade? Elle não deve partir mais. Vós não podeis manda-lo embora, depois do que fez por mim?

—Sim! A casa onde habita um amigo dedicado como este, tem um anjo da guarda que vela sobre a salvação de todos. Elle ficará comnosco, e para sempre.

Pery, tremulo e palpitando de alegria e esperança, estava suspenso aos labios de D. Antonio.

—Minha mulher, disse o fidalgo dirigindo-se a D. Lauriana com uma expressão solemne, julgais que um homem que acaba de salvar pela segunda vez vossa filha pondo em risco a sua vida, que, despedido por nós, apezar da nossa ingratidão, a sua ultima palavra é uma dedicação por aquelles que o desconhecem, julgais que este homem deva sahir da casa onde tantas vezes a desgraça teria entrado, se elle ahi não estivera?

D. Lauriana, tirados os seus prejuizos, era uma boa senhora, e quando o seu coração se commovia sabia comprehender os sentimentos generosos. As palavras de seu marido achárão écho em sua alma.

—Não, disse ella levantando-se e dando alguns passos; Pery deve ficar, sou eu que vos peço agora esta graça, Sr. D. Antonio de Mariz; tenho tambem a minha divida a pagar.

O indio beijou com respeito a mão que a mulher do fidalgo lhe estendêra.

Cecilia batia as mãos de contente; os dous cavalheiros sorrião um para o outro, e comprehendião-se. O filho sentia um certo orgulho, vendo seu pai nobre, grande e generoso. O pai conhecia que seu filho o approvava, e seguiria o exemplo que lhe dava.

Neste momento Ayres Gomes appareceu no vão da porta e ficou estupefacto.

O que se passava era para elle uma cousa incomprehensivel, um enigma indecifravel para quem ignorava o que succedêra anteriormente.

Pela manhã, depois do almoço, D. Antonio de Mariz, chegando a uma janella da sala, vira uma grande nuvem negra abater-se sobre a margem do Paquequer. A quantidade dos abutres que formavão essa nuvem, indicava que o pasto era abundante; devia ser um ou muitos animaes de grande corpulencia.

Levado pela curiosidade natural em uma existencia sempre igual e monotona, o fidalgo desceu ao rio; encontrou junto da latada de jasmineiros que servia de casa de banho á Cecilia, uma pequena canôa em que atravessou para a margem opposta.

Ahi descobrio os corpos dos dous selvagens que immediatamente reconheceu pertencerem á raça dos Aymorés; viu que tinhão sido mortos com arma de fogo. Nesse momento não se lembrou de cousa alguma senão de que os selvagens ião talvez atacar a sua casa, e um terrivel presentimento cerrou-lhe o coração.

D. Antonio não era supersticioso; mas não podéra eximir-se de um receio vago quando soube da morte que D. Diogo tinha feito involuntariamente e por falta de prudencia; fôra este o motivo por que se tinha mostrado tão severo com seu filho.

Vendo agora o começo da realisação de suas sinistras previsões, aquelle receio vago que a principio sentira, redobrou; auxiliado pela disposição de espirito em que se achava, tornou-se em forte presentimento.

Uma voz interior parecia dizer-lhe que uma grande desgraça pesava sobre sua casa, e a existencia tranquilla e feliz que até então vivêra naquelle ermo ia transformar-se n'uma afflicção que elle não sabia definir. Sob a influencia desse movimento involuntario d'alma, que ás vezes sem motivo nos mostra a esperança ou a dôr, o fidalgo voltou á casa.

Perto viu dous aventureiros a quem ordenou que fossem immediatamente enterrar os selvagens, e guardassem o maior silencio sobre isto; não queria assustar sua mulher.

O mais já sabemos.

Pensou que podia a desgraça, que elle temia, recahir sobre sua pessoa, e quiz dispor a sua ultima vontade, assegurando o socego de sua familia.

Depois, o aviso de Pery lembrou-lhe de repente o que tinha visto; recordou-se das menores circumstancias, combinou-as com o que Isabel havia contado a sua tia, e conheceu o que se tinha passado como se o houvesse presenciado.

A ferida do indio que se abrira com as emoções por que passou durante o momento cruel em que sua senhora o mandava partir, tinha manchado o saio de algodão com um ponto quasi imperceptivel; este ponto foi um raio de luz para D. Antonio.

O escudeiro, o digno Ayres Gomes, que depois de esforços inauditos conseguira arrastar com o pé a sua espada, levanta-la e com ella cortar os laços que o prendião, tinha pois razão de ficar pasmado diante do que se passava.

Pery, beijando a mão de D. Lauriana, Cecilia contente e risonha, D. Antonio de Mariz e D. Diogo contemplando o indio com um olhar de gratidão; tudo isto ao mesmo tempo, era para fazer enlouquecer ao escudeiro.

Sobretudo para quem souber que apenas livre correra á casa unicamente com o fim de contar o occorrido e pedir a D. Antonio de Mariz licença para esquartejar o indio; resolvido se o fidalgo lh'a negasse despedir-se do seu serviço, no qual se conservava havia trinta annos; mas tinha uma injuria a vingar, e bem que lhe custasse deixar a casa, Ayres Gomes não hesitava.

D. Antonio vendo a figura espantada do escudeiro, rio-se; sabia que elle não gostava do indio, e quiz neste dia reconciliar todos com Pery.

—Vem cá, meu velho Ayres, meu companheiro de trinta annos. Estou certo que tu, a fidelidade em pessoa, estimarás apertar a mão de um amigo dedicado de toda a minha familia.

Ayres Gomes não ficou pasmado só; ficou uma estatua. Como desobedecer a D. Antonio que lhe fallava com tanta amizade? Mas como apertar a mão que o havia injuriado?

Se já se tivesse despedido do serviço, seria livre; mas a ordem o pilhára de sorpreza; não podia sophisma-la.

—Vamos, Ayres!

O escudeiro estendeu o braço hirto; o indio apertou-lhe a mão sorrindo.

—Tu és amigo; Pery não te amarrará outra vez.

Por estas palavras todos adivinhárão confusamente o que se tinha passado, e ninguem pôde deixar de rir-se.

—Maldito bugre! murmurava o escudeiro entre dentes; has de sempre mostrar o que és.

Era hora do jantar: o toque soou.


XI
TRAVESSURA

Na tarde desse mesmo domingo em que tantos acontecimentos se tinhão passado, Cecilia e Isabel sahião do jardim com o braço na cintura uma da outra.

Estavão vestidas de branco; lindas ambas, mas tinha cada uma diversa belleza; Cecilia era a graça; Isabel era a paixão; os olhos azues de uma brincavão; os olhos negros da outra brilhavão.

O sorriso de Cecilia parecia uma gota de mel e perfume que distillavão os seus labios mimosos; o sorriso de Isabel era um beijo ideal, que fugia-lhe da boca e ia roçar com as suas azas a alma daquelles que a contemplavão.

Vendo aquella menina loura, tão graciosa e gentil, o pensamento elevava-se naturalmente ao céo, despia-se do envolucro material e lembrava-se dos anginhos de Deus.

Admirando aquella moça morena, languida e voluptuosa, o espirito apegava-se á terra; esquecia o anjo pela mulher; em vez do paraiso, lembrava-lhe algum retiro encantador, onde a vida fosse um breve sonho.

No momento em que sahião do jardim, Cecilia olhava sua prima com um certo arzinho malicioso, que fazia prever alguma travessura das que costumava praticar.

Isabel, ainda impressionada pela scena da manhã, tinha os olhos baixos; parecia-lhe, depois do que se havia passado, que todos, e principalmente Alvaro, ião ler o seu segredo, guardado por tanto tempo no fundo de sua alma.

Entretanto sentia-se feliz; uma esperança vaga e indefinida dilatava-lhe o coração e dava á sua physionomia a expressão de jubilo, expansão da creatura quando acredita ser amada, aureola brilhante que bem se podia chamar a alma do amor.

O que esperava ella? Não sabia; mas o ar lhe parecia mais perfumado, a luz mais brilhante, o olhar via os objectos côr de rosa, e o leve roçar da espiguilha do vestido no seu collo avelludado causava-lhe sensações voluptuosas.

Cecilia com o mysterioso instincto da mulher adivinhava, sem comprehender, que alguma cousa de extraordinario se passava em sua prima, e admirava a irradiação de belleza que brilhava no seu moreno semblante.

—Como estás bonita! disse a menina de repente.

E conchegando a face de Isabel aos labios, imprimio nella um beijo suave; a moça respondeu affectuosamente á caricia de sua prima.

—Não trouxeste o teu bracelete? exclamou ella reparando no braço de Cecilia.

É verdade! replicou a menina com um gesto de enfado.

Isabel julgou que este gesto era produzido pelo esquecimento; mas a verdadeira causa foi o receio que teve Cecilia de se trahir.

—Vamos busca-lo?

—Oh! não! ficaria tarde, e perderiamos o nosso passeio.

—Então devo tirar o meu; já não estamos irmãs.

—Não importa; quando voltarmos prometto-te que ficaremos bem irmãs.

Dizendo isto Cecilia sorria maliciosamente.

Tinhão chegado á frente da casa. D. Lauriana conversava com seu filho D. Diogo, emquanto D. Antonio de Mariz e Alvaro passeavão pela esplanada conversando.

Cecilia se dirigio a seu pai, levando Isabel, que ao aproximar-se do joven cavalheiro sentio fugir-lhe a vida.

—Meu pai, disse a menina, nós queremos dar um passeio. A tarde está tão linda! Se eu vos pedisse e ao Sr. Alvaro para que nos acompanhassem?

—Nós fariamos como sempre que tu pedes, respondeu o fidalgo galanteando; cumpririamos a tua ordem.

—Oh! ordem, não, meu pai! Desejo apenas!

—E o que são os desejos de um lindo anginho como tu?

—Assim, nos acompanhais?

—De certo.

—E vós, Sr. Alvaro?

—Eu... obedeço.

Cecilia fallando ao moço não pode deixar de córar; mas venceu a perturbação e seguio com sua prima para a escada que descia ao valle.

Alvaro estava triste; depois da conversa que tivera com Cecilia, vira-a durante o jantar; a menina evitava os seus olhares, e nem uma só vez lhe dirigira a palavra. O moço suppunha que tudo isto era resultado da sua imprudencia da vespera; mas Cecilia mostrava-se tão alegre e satisfeita que parecia impossivel ter conservado a lembrança da offensa de que elle se accusava.

A maneira por que a menina o tratava tinha mais de indifferença do que de resentimento; dir-se-hia que esquecêra tudo que havia passado; nem guardava já a minima lembrança da manhã. Era isto o que tornára Alvaro triste, apezar da felicidade que sentira quando D. Antonio o chamára seu filho; felicidade que ás vezes parecia-lhe um sonho encantador que ia esvaecer-se.

As duas moças havião chegado ao valle, e seguião por entre as moitas de arvoredo que bordavão o campo formando um gracioso labyrintho. Ás vezes Cecilia desprendia-se do braço de sua prima, e correndo pela vereda sinuosa que recortava as moitas de arbustos, escondia-se por detraz da folhagem, e fazia com que Isabel a procurasse debalde por algum tempo. Quando sua prima por fim conseguia descobri-la, rião-se ambas, abraçavão-se e continuavão o innocente folguedo.

Uma occasião porém Cecilia deixou que D. Antonio e Alvaro se aproximassem; a menina tinha um olhar tão travesso e um sorriso tão brejeiro, que Isabel ficou inquieta.

—Esqueci-me dizer-vos uma cousa, meu pai.

—Sim! E o que é?

—Um segredo.

—Pois vem contar-m'o.

Cecilia separou-se de Isabel; chegando-se para o fidalgo, tomou-lhe o braço.

—Tende paciencia por um instante, Sr. Alvaro, disse ella voltando-se; conversai com Isabel; dizei-lhe vossa opinão sobre aquelle lindo bracelete... Ainda não o vistes?

E sorrindo afastou-se ligeiramente com seu pai; o segredo que ella tinha, era a travessura que acabava de praticar, deixando Alvaro e Isabel sós, depois de lhes ter lançado uma palavra, que devia produzir o seu effeito.

A emoção que sentirão os dous moços ouvindo o que dissera Cecilia é impossivel de descrever.

Isabel suspeitou o que se tinha passado; conheceu que Cecilia a enganára para obriga-la a aceitar o presente de Alvaro; o olhar que sua prima lhe lançára afastando-se com seu pai, lh'o tinha revelado.

Quanto á Alvaro, não comprehendia cousa alguma, senão que Cecilia tinha-lhe dado a maior prova do seu desprezo e indifferença; mas não podia adivinhar a razão por que ella associara Isabel a esse acto que devia ser um segredo entre ambos.

Ficando sós em face um do outro, não ousavão levantar os olhos; avista de Alvaro estava cravada no bracelete; Isabel, tremula, sentia o olhar do moço, e soffria como se um annel de ferro em braza cingisse o seu braço mimoso.

Assim estiverão tempo esquecido; por fim Alvaro desejoso deter uma explicação, animou-se a romper o silencio:

—Que significa tudo isto, D. Isabel? perguntou elle supplicante.

—Não sei!... Fui escarnecida! respondeu Isabel balbuciando.

—Como?

—Cecilia fez-me acreditar que este bracelete vinha de seu pai, para me fazer aceita-lo; pois se eu soubesse...

—Que vinha de minha mão! Não aceitarieis?

—Nunca!... exclamou a moça com fogo.

Alvaro admirou-se do tom com que Isabel proferio aquella palavra; parecia dar um juramento.

—Qual o motivo? perguntou depois de um momento.

A moça fitou nelle os seus grands olhos negros; havia tanto amor e tanto sentimento nesse olhar profundo, que se Alvaro o comprehendesse teria a resposta á sua pergunta. Mas o cavalheiro não comprehendeu nem o olhar nem o silencio de Isabel; adivinhava que havia nisto um mysterio, e desejava esclarecê-lo.

Aproximou-se da moça e disse-lhe com a voz doce e triste:

—Perdoai-me, D. Isabel; sei que vou commetter uma indiscrição; mas o que se passa exige uma explicação entre nós. Dizeis que fostes escarnecida; tambem eu o fui. Não achais que o melhor meio de acabar com isto, seja o fallarmos francamente um ao outro?

Isabel estremeceu.

—Fallai: eu vos escuto, Sr.Alvaro.

—Escuso confessar-vos o que já adivinhastes; sabeis a historia deste bracelete, não é verdade?

—Sim! balbuciou a moça.

—Dizei-me pois como elle passou do lugar onde estava ao vosso braço. Não penseis que vos censuro por isso, não; desejo apenas conhecer até que ponto zombão de mim.

—Já vos confessei o que sabia. Cecilia enganou-me.

—E a razão que teve ella para enganar-vos não atinais?

—Oh! se atino.... exclamou Isabel reprimindo as palpitações do coração.

—Deizei-m'a então. Eu vo-lo peço e supplico!

Alvaro tinha deitado um joelho em terra, e tomando a mão da moça implorava della a palavra que devia explicar-lhe o acto de Cecilia, e revelar-lhe a razão que tivera a menina para rejeitar a prenda que elle havia dado.

Conhecendo esta razão talvez podesse desculpar-se, talvez podesse merecer o perdão da menina; e por isso pedia com instancia a Isabel que lhe declarasse o motivo porque Cecilia a havia enganado.

A moça vendo Alvaro a seus pés, supplicante, tinha-se tornado livida; seu coração batia com tanta violencia que via-se o peito de seu vestido elevar-se com as palpitações fortes e apressadas: o seu olhar ardente cahia sobre o moço e o fascinava.

—Fallai! dizia Alvaro; fallai! Sois boa; e não me deixeis soffrer assim, quando uma palavra vossa pode dar-me a calma e o socego.

—E se essa palavra vos fizesse odiar-me? balbuciou a moça.

—Não tenhais esse receio; qualquer que seja a desgraça que me annunciardes, será bem vinda pelos vossos labios; é sempre um consolo receber-se a má nova de voz amiga!

Isabel ia fallar, mas parou estremecendo:

—Ah! não posso! seria preciso confessar-vos tudo!

—E porque não confessais? Não vos mereço confiança? Tendes em mim um amigo.

—Se fosseis!...

E os olhos de Isabel scintillárão.

—Acabai!

—Se me fosseis amigo, me havieis de perdoar.

—Perdoar-vos, D. Isabel! Que me fizestes vós para que eu vos perdoe? disse Alvaro admirado.

A moça teve medo do que havia dito; cobrio o rosto com as mãos.

Todo este dialogo, vivo, animado, cheio de reticencias e hesitações da parte de Isabel, tinha excitado a curiosidade do cavalheiro; seu espirito perdia-se n'um dedalo de duvidas e incertezas.

Cada vez o mysterio se obscurecia mais; a principio Isabel dizia que tinhão escarnecido della; agora dava a entender que era culpada: o cavalheiro resolveu a todo o transe penetrar o que para elle era um enigma.

D. Isabel!

A moça tirou as mãos do rosto; tinha as faces inundadas de lagrimas.

—Porque chorais? perguntou Alvaro soprezo.

—Não m'o pergunteis!...

—Escondeis-me tudo! Deixais-me na mesma duvida! O que me fizestes vós? Dizei!

—Quereis saher? perguntou a moça com exaltação.

—Tanto tempo ha que supplico-vos!

Alvaro tomara as duas mãos da moça, e com os olhos fitos nos della esperava emfim uma resposta.

Isabel estava branca como a cambraia do seu vestido; sentia a pressão das mãos do moço nas suas e o seu halito que vinha bafejar-lhe as faces.

—Me perdoareis?

—Sim! Mas porque?

—Porque...

Isabel pronunciou esta palavra n'uma especie de delirio; uma revolução subita se tinha operado em toda a sua organisação.

O amor profundo, vehemente que dormia no intimo de sua alma, a paixão abafada e reprimida, por tanto tempo, acordára, e quebrando as cadêas que a retinhão erguia-se impetuosa e indomavel.

O simples contacto das mãos do moço tinha causado essa revolução; a menina timida ia transformar-se na mulher apaixonada: o amor ia transbordar do coração como a torrente caudalosa do leito profundo.

As faces se abrazárão; o seio dilatou-se; o olhar envolveu o moço, ajoelhado a seus pés, em fluidos luminosos; a boca entreaberta parecia esperar, para pronuncia-la, a palavra que sua alma devia trazer aos labios.

Alvaro fascinado a admirava; nunca a vira tão bella; o moreno suave do rosto e do collo da moça illuminava-se de reflexos doces e tinha ondulações tão suaves, que o pensamento ia, sem querer, enleiar-se nas curvas graciosas como para sentir-lhe o contacto, espreguiçar-se pelas fórmas palpitantes.

Tudo isto passára rapidamente emquanto Isabel hesitava ao proferir a primeira palavra.

Por fim vacillou: reclinando sobre o hombro de Alvaro, como uma flor desfallecida sobre a haste, murmurou:

Porque... vos amo!


XII
AS MENSAGENS DE PERY

Alvaro ergueu-se como se os labios da moça tivessem lançado nas suas veias uma gota do veneno subtil dos selvagens que matava com um atomo.

Pallido, atonito, fitava na menina um olhar frio e severo; seu coração leal exagerava a affeição pura que votava a Cecilia a tal ponto, que o amor de Isabel lhe parecia quasi uma injuria; era ao menos uma profanação.

A moça com as lagrimas nos olhos, sorria amargamente; o movimento rapido de Alvaro tinha trocado as posições; agora era ella que estava ajoelhada aos pés do cavalheiro.

Soffria horrivelmente; mas a paixão a dominava; o silencio de tanto tempo queimava-lhe os labios; seu amor precisava respirar, expandir-se, embora depois o desprezo e mesmo o odio o viessem recalcar no coração.

—Promettestes perdoar-me!... disse ella supplicante.

—Não tenho que perdoar-vos, D. Isabel, respondeu o moço erguendo-a; peço-vos unicamente que não fallemos mais de semelhante cousa.

—Pois bem! Escutai-me um momento, um instante só, e juro-vos por minha mãi, que não ouvireis nunca mais uma palavra minha! Se quereis, nem mesmo vos olharei! Não preciso olhar para ver-vos!

E acompanhou estas palavras comum gesto sublime de resignação.

—Que desejais de mim? perguntou o moço.

—Desejo que sejais meu juiz. Condemnai-me depois; a pena vindo de vós será para mim um consolo. M'o negareis?

Alvaro sentio-se commovido por essas palavras soltas com o grito de um desespero surdo e concentrado.

—Não commettestes um crime, nem precisais de juiz; mas se quereis um irmão para consolar-vos, tendes em mim um dedicado e sincero.

—Um irmão!... exclamou a moça. Seria ao menos uma affeição.

—E uma affeição calma e serena que vai bem outras, D. Isabel.

A moça não respondeu; sentio a doce exprobração que havia naquellas palavras; mas sentia tambem o amor ardente que enchia sua alma, e a suffocava.

Alvaro tinha-se lembrado da recommendação de D. Antonio de Mariz; o que a principio fora uma simples compaixão tornou-se sympathia. Isabel era desgraçada desde a infancia; devia pois consola-la, e desde já cumprir a ultima vontade do velho fidalgo, a quem amava e respeitava como pai.

—Não recuseis o que vos peço, disse elle affectuosamente, aceitai-me por vosso irmão.

—Assim deve ser, respondeu Isabel tristemente, Cecilia me chama sua irmã; vós deveis ser meu irmão. Aceito! Sereis bom para mim?

—Sim, D. Isabel.

—Um irmão não deve tratar sua irmã pelo seu nome simplesmente? perguntou ella com timidez.

Alvaro hesitou.

—Sim, Isabel.

A moça recebeu essa palavra como um gozo supremo; parecia-lhe que os labios do cavalheiro, pronunciando assim familiarmente o seu nome, o acariciavão.

—Obrigada! Não sabeis que bem me faz ouvir-vos chamar-me assim. É preciso ter soffrido muito para que a felicidade esteja em tão pouco.

—Contai-me as vossas magoas.

—Não; deixai-as comigo; talvez depois as conte; agora só quero mostrar-vos que não sou tão culpada como pensais.

—Culpada! Em que!

—Em querer-vos, disse Isabel corando.

Alvaro tornou-se frio e reservado.

—Sei que vos incommodo: mas é a primeira e a ultima vez; ouvi-me, depois ralhareis comigo, como um irmão com sua irmã.

A voz de Isabel era tão doce, seu olhar tão supplicante, que Alvaro não pode resistir.

—Fallai, minha irmã.

—Sabeis o que eu sou; uma pobre orphã que perdeu sua mãi muito cedo, e não conheceu seu pai. Tenho vivido da compaixão alheia; não me queixo, mas soffro. Filha de duas raças inimigas devia amar a ambas; entretanto minha mãi desgraçada fez-me odiar a uma, o desdem com que me tratão fez-me desprezar a outra.

—Pobre moça! murmurou Alvaro lembrando-se segunda vez das palavras de D. Antonio de Mariz.

—Assim isolada no meio de todos, alimentando apenas o sentimento amargo que minha mãi deixára no meu coração, sentia a necessidade de amar alguma cousa. Não se póde viver sómente de odio e desprezo!...

—Tendes razão, Isabel.

—Inda bem que me approvais. Precisava amar; precisava de uma affeição que me prendesse á vida. Não sei como, não sei quando, comecei a amar-vos; mas em silencio, no fundo de minha alma.

A moça embebeu um olhar nos olhos de Alvaro.

—Isto me bastava. Quando vos tinha olhado horas e horas, sem que o percebesseis, julgava-me feliz; recolhia-me com a minha doce imagem, e conversava com ella, ou adormecia, sonhando bem lindos sonhos.

O cavalheiro sentia-se perturbado; mas não ousava interromper a Isabel.

—Não sabeis que segredos tem esse amor que vive só de suas illusões, sem que um olhar, uma palavra o alimente. A mais pequenina cousa é um prazer, uma ventura suprema. Quantas vezes não acompanhava o raio de lua que entrava pela minha janella e que vinha a pouco e pouco se aproximando de mim; julgava vêr naquella doce claridade o vosso semblante, e esperava tremula de prazer como se vos esperasse. Quando o raio se chegava, quando a sua luz assetinada cahia sobre mim, sentia um gozo immenso; acreditava que me sorrieis, que vossas mãos aperta vão as minhas, que vosso rosto se reclinava para mim, e vossos labios me fallavão...

Isabel pendeu a cabeça languida sobre o hombro de Alvaro; o cavalheiro palpitando de emoção passou o braço pela cintura da moça e apertou-a ao coração; mas de repente afastou-se com um movimento brusco.

—Não vos arreceieis de mim, disse ella com melancolia, sei que não me deveis amar. Sois nobre e generoso; o vosso primeiro amor serão ultimo. Podeis-me ouvir sem temor.

—Que vos resta a dizer-me ainda? perguntou Alvaro.

—Resta a explicação que ha pouco me pedieis.

—Ah! emfim!

Isabel contou então como apezar de toda a força de vontade com que guardava o seu segredo se havia trahido; contou a conversa de Cecilia, e o modo por que a menina lhe fizera aceitar o bracelete.

—Agora sabeis tudo; o meu affecto vai de novo entrar no meu coração, donde nunca sahiria se não fosse a fatalidade que fez com que vos aproximasseis de mim, e me dirigisseis algumas palavras doces. A esperança para as almas que não a conhecêrão ainda, illude tanto e fascina, que devo merecer-vos desculpa. Esquecei-me, meu irmão, antes que lembrar-vos de mim para odiar-me!

—Fazeis-me uma injustiça, Isabel; não posso é verdade ser para vós senão um irmão, mas esse titulo sinto que o mereço pela estima e pela affeição que me inspirais. Adeus, minha boa irmã.

O moço pronunciou estas ultimas palavras com uma terna effusão, e, apertando a mão de Isabel, desappareceu: precisava estar só para reflectir sobre o que lhe acontecia.

Estava agora convencido que Cecilia não o amava, e nunca o havia amado; e esta descoberta tinha lugar no mesmo dia em que D. Antonio de Mariz lhe dava a mão de sua filha!

Sob o peso da magoa dolorosa, como é sempre a primeira magoa do coração, o cavalheiro afastou-se distrahido, com a cabeça baixa; caminhou sem direcção, seguindo a linha que traçavão os grupos de arvores, destacados aqui e alli sobre a campina.

Estava quasi a anoitecer: a sombra pallida e descorada do crepusculo estendia-se como um manto de gaze sobre a natureza; os objectos ião perdendo a forma, a cor, e ondulavão no espaço vagos e indecisos.

A primeira estrella engolfada no azul do céo luzia a furto como os olhos de uma menina que se abrem ao acordar, e cerrão-se outra-vez temendo a claridade do dia: um grillo escondido no toco de uma arvore começava a sua canção; era o trovador insecto saudando a aproximação da noite.

Alvaro continuava o seu passeio, sempre pensativo, quando de repente sentio um sopro vivo bafejar-lhe o rosto; erguendo os olhos viu diante de si uma longa flexa fincada no chão, e que ainda oscillava com o movimento que lhe tinha imprimido o arco.

O moço recuou um passo e levou a mão á cinta; logo reflectindo aproximou-se da seta e examinou a plumagem de que estava ornada; erão de um lado pennas de azulão e do outro pennas de garça.

Azul e branco erão as côres de Pery; erão as cores dos olhos e do rosto de Cecilia.

Um dia a menina, semelhante a uma gentil castellã da media idade, tinha-se divertido em explicar ao indio, como os guerreiros que servião uma dama, costumavão usar nas armas de suas côres.

—Tu dás a Pery as tuas cores, senhora? disse o indio.

—Não tenho, respondeu a menina; mas vou tomar umas para te dar; queres?

—Pery te pede.

—Quaes achas mais bonitas?

—A de teu rosto, e a de teus olhos.

Cecilia sorrio.

—Toma-as; eu te as dou.

Desde este dia, Pery enramou todas as suas settas de pennas azues e brancas; seus ornatos, além de uma faxa de plumas escarlates que fôra tecida por sua mãi, erão ordinariamente das mesmas côres.

Foi por esta razão que Alvaro, vendo a plumagem da setta, tranquillisou-se; conheceu que era de Pery, e comprehendeu o sentido da phrase symbolica que o indio lhe mandava pelos ares.

Com effeito aquella flecha na linguagem de Pery não era mais do que um aviso dado em silencio e de uma grande distancia; uma carta ou mensageira muda, uma simples interjeição: Alto!

O moço esqueceu os seus pensamentos e lembrou-se do que Pery lhe havia dito pela manhã; naturalmente o que acabava de fazer tinha relação com esse mysterio que apenas deixara entrever.

Correu os olhos pelo espaço que se estendia diante delle, e sondou com o olhar as moitas que o cercavão; não viu nada que merecesse attenção, não percebeu um signal que lhe indicasse a presença do indio.

Alvaro resolveu pois esperar; e parando junto da flecha, cruzou os braços, e com os olhos fitos na linha escura da matta que se recortava no fundo azul do horizonte, esperou.

Um instante depois uma pequena setta açoutando o ar veio cravar-se no tope da primeira, e abalou-a com tal força que a haste inclinou-se; Alvaro comprehendeu que o indio queria arrancar a flecha, e obedeceu á ordem.

Immediatamente terceira seita cahia dous passos á direita do cavalheiro, e outras forão-se succedendo na mesma direcção de duas em duas braças até que uma mergulhou-se n'um arvoredo basto que ficava a trinta passos do lugar onde parára a principio.

Não era difficil desta vez comprehender a vontade de Pery; Alvaro, que acompanhava as settas á proporção que cahião, e que sabia indicarem ellas o lugar onde devia parar, apenas viu a ultima sumir-se no arvoredo, escondeu-se por entre a folhagem.

Dahi, com pequeno intervallo, viu tres vultos que passavão pouco mais ou menos pelo logar que ha pouco havia deixado; Alvaro não os pôde conhecer por causa da ramagem das arvores, mas viu que caminhavão cautelosamente, e pareceu-lhe que tinhão as pistolas em punho.

Os vultos afastárão-se dirigindo-se á casa; o cavalheiro ia segui-los, quando os folhas se abrirão, e Pery resvallando como uma sombra, sem fazer o menor rumor, aproximou-se delle, e disse-lhe ao ouvido uma palavra.

—São elles.

—Elles quem?

—Os inimigos brancos.

—Não te entendo.

—Espera: Pery volta.

E o indio desappareceu de novo nas sombras da noite que avançava rapidamente.


XIII
TRAMA

Tornemos ao lugar onde deixámos Loredano e seus dois companheiros.

O italiano, depois que Alvaro e Pery se afastárão, levantou-se; passada a primeira emoção, sentira um accesso de raiva e desespero por lhe escaparem os seus inimigos.

Um instante lembrou-se de chamar os complices para atacar o cavalheiro e o indio; mas essa idéa desvaneceu-se logo; o aventureiro conhecia os homens que o seguião; sabia que podia fazer delles assassinos, mas nunca homens de energia e resolução.

Ora, os dous inimigos que tinha a combater, erão respeitaveis; e Loredano temeu comprometter ainda mais a sua causa, já muito mal parada. Devorou pois em silencio a sua raiva, e começou a reflectir nos meios de sahir da posição difficil em que se achava.

Neste meio tempo Ruy Soeiro e Bento Simões vinhão se aproximando receiosos do que tinhão visto, e temendo o menor incidente que complicasse a situação.

Loredano e seus companheiros olhárão-se em silencio um momento; havia nos olhos desses ultimos uma interrogação muda e inquieta, a que respondia perfeitamente o rosto pallido e contrahido do italiano.

—Não era elle!... murmurou o aventureiro com a voz surda.

—Como sabeis?

—Se fosse, acreditais que me deixasse a vida?

—É verdade; mas quem foi então?

—Não sei; porém agora pouco importa. Quem quer que fosse, é um homem que sabe o nosso segredo, e pode denuncia-lo, se já não o fez.

Um homem?... murmurou Bento Simões que até então se conservara silencioso.

—Sim; um homem. Quereis que fosse uma sombra?

—Uma sombra não, mas um espirito! acudío o aventureiro.

O italiano sorrio de escarneo.

—Os espiritos têm mais que fazer para se occuparem com o que vai por este mundo; guardai as vossas abusões, e pensemos seriamente no partido que devemos tomar.

—Lá quanto a isto, Loredano, é escusado; ninguem me tira que anda em tudo isto uma cousa sobrenatural.

—Quereis calar-vos, estúpido carola! replicou o italiano com impaciencia.

—Estupido!... Estupido sois vós que não vistes que não ha ouvido de creatura que podesse ouvir as nossas palavras, nem voz humana que saia da terra. Vinde! E vou mostrar-vos se o que digo é ou não a verdade.

Os dous acompanhárão Bento Simões e voltárão á touça de cardos, onde tivera lugar a sua entrevista.

—Ide, Ruy, e fallai á guela despregada para vêr se Loredano ouve uma palavra sequer.

Com effeito a experiencia mostrou-lhes o que Pery tinha conhecido; que o som da voz entaipado dentro daquella especie de tubo, se elevava e perdia no ar, sem que dos lados se podesse perceber a menor phrase. Se porém o italiano se tivesse collocado sobre o formigueiro que penetrava até ao chão onde ha pouco estavão sentados, teria tido a explicação da scena anterior.

—Agora, disse Bento Simões, entrai; eu gritarei e vereis que a palavra vos passará pela cabeça e não sahirá da terra.

—Quanto a isto pouco se me dá, respondeu o italiano. A outra observação, sim, tranquillisa-me. O homem que nos ameaçou não ouvio; desconfia apenas.

—Ainda insistis em que fosse um homem?

—Escutai, amigo Bento Simões; ha uma cousa de que tenho mais medo do que de uma cobra; é de um homem visionario.

—Visionario! dizei crente!

—Um vale outro. Visionario ou crente, se me fallais outra vez em espiritos e milagres, prometto-vos que ficareis neste lugar onde servireis de carniça aos urubús.

O aventureiro tornou-se esverdinhado; não era a idéa da morte e sim da pena eterna que segundo uma crença religiosa, soffrem as almas cujos corpos ficão insepultos, o que mais o horrorisava.

—Pensastes?

—Sim.

—Admittis que fosse um homem?

—Admitto tudo.

—Jurais?

—Juro.

—Sobre...

—Sobre minha salvação.

O italiano soltou o braço do miseravel, que cahio de joelhos pedindo ao Deus que offendia perdão para o perjurio que acabava de commetter.

Ruy Soeiro voltou: os tres seguirão calados o caminho que tinhão feito; Loredano pensativo, seus companheiros cabisbaixos.

Sentárão-se á sombra de uma arvore; ahi permanecêrão quasi uma hora, sem saber o que devião fazer, nem o que podião esperar. A posição era critica; reconhecião que se achavão n'um desses lances da vida, em que um passo, um movimento, precipita o homem no fundo do abysmo, ou o salva da morte que vai cahir sobre elle.

Loredano media a situação com a audacia e energia que nunca o abandonava nas occasiões extremas; uma luta violenta se travára neste homem, só tinha agora um sentimento, uma fibra; era a sêde ardente do gozo, sensualidade exacerbada pelo ascetismo do claustro e o isolamento do deserto. Comprimida desde a infancia, a sua organisação se expandira com vehemencia no meio desse paiz vigoroso, aos raios do sol ardente que fazia borbulhar o sangue.

Então, no delirio dos instinctos materiaes, surgirão duas paixões violentas.

Uma era a paixão do ouro; a esperança de poder um dia deleitar-se na contemplação do thesouro fabuloso que como Tantalo elle ia tocar e fugia-lhe.

A outra era a paixão do amor; a febre que lhe requeimava o sangue quando via aquella menina innocente e candida, que parecia não dever inspirar senão affeições castas.

A luta que naquelle momento o agitava dava-se entre essas duas paixões. Devia fugir e salvar o seu thesouro, perdendo Cecilia? Devia ficar e arriscar a vida para saciar o seu desejo infrene?

Ás vezes dizia comsigo que bastava-lhe a riqueza para poder escolher no mundo uma mulher que amasse; outras parecia-lhe que o universo inteiro sem Cecilia ficaria deserto, e inutil lhe seria todo o ouro que ia conquistar.

Por fim ergueu a cabeça. Seus companheiros esperavão uma palavra sua como o oraculo do seu destino; preparárão-se para ouvi-lo.

—Só ha duas cousas a fazer; ou entrarmos na casa, ou fugirmos daqui mesmo; é preciso resolver. Que pensais vós?

—Eu penso, disse Bento Simões tremulo ainda, que devemos fugir quanto antes, e andar dia e noite sem parar.

—E vós, Ruy, sois do mesmo aviso?

—Não; fugir é nos denunciar e perder. Tres homens sós neste sertão, obrigados a evitar o povoado, não podem viver; temos inimigos por toda a parte.

—Que propondes então?

—Que entremos em casa como se nada se tivesse passado; ou estamos descobertos, e neste caso ainda faltão as provas para nos condemnarem; ou ignorão tudo e não corremos o menor risco.

—Tendes razão, disse o italiano, devemos voltar; nessa casa está a nossa fortuna, ou a nossa ruina. Achamo-nos n'uma posição em que devemos ganhar tudo ou perder tudo.

Houve longa pausa durante que o italiano reflectia.

—Com quantos homens contais, Ruy? perguntou elle.

—Com oito.

—E vós, Bento?

—Sete.

—Decididos?

—Promptos ao menor signal.

—Bem, disse o italiano com o desempenho de um chefe dispondo o plano da batalha; trazei cada um os vossos homens amanhã a esta hora; é preciso que á noite tudo esteja concluido.

—E agora o que vamos fazer? perguntou Bento Simões.

—Vamos esperar que escureça; á bocca da noite nos achegaremos da casa. Um de nós á sorte entrará primeiro; se nada houver, dará signal aos outros. Assim, quando um se perca, dois ao menos terão ainda esperança de salvar-se.

Os aventureiros resolverão passar o dia no matto; uma caça, algumas fructas silvestres derão-lhes simples mas abundante refeição.

Por volta de cinco horas da tarde se encaminhárão á casa, afim de sondarem o que passava, e realisarem o seu projecto.

Antes de partirem, Loredano carregou a clavina, mandou seus companheiros carregar as suas, e disse-lhes:

—Assentai bem nisto. Na posição difficil em que estamos, quem não é nosso amigo é nosso inimigo. Póde ser um espião, um denunciante; em todo o caso será depois menos um que teremos contra nós.

Os dous comprehendêrão a justeza dessa observação, e seguirão com as armas engatilhadas, olho vivo e ouvido alerta.

Apezar porém da sua attenção, não vîrão agitar-se as folhas a dous passos delles, e estender-se pelos arbustos uma oudulação que parecia produzida pela correnteza do vento.

Era Pery; havia um quarto d'hora que elle acompanhava os aventureiros como a sua sombra; o indio deixando D. Antonio dera pela sua ausencia, e conjecturando que elles tramavão alguma cousa, lançou-se em sua procura.

O italiano e seus companheiros caminhavão já havia pedaço, quando Bento Simões parou:

—Quem entrará primeiro?

—A sorte decidirá, respondeu Ruy.

—Como?

—Desta maneira, disse o italiano. Vêdes aquella arvore? O que primeiro chegar a ella será o ultimo a entrar; o ultimo será o primeiro.

—Está dito!

Os tres mettêrão as armas á cinta, e preparárão-se para a corrida.

Pery ouvindo-os teve uma inspiração: os aventureiros ião separar-se; como Loredano, elle tambem disse, comsigo:

—O ultimo será o primeiro.

E tomando tres flechas, esticou a corda do arco; mataria os aventureiros sem que um percebesse a morte dos outros.

Os tres partirão; mas não tinhão feito uma braça de caminho quando Bento Simões tropeçando, foi de encontro a Loredano, e estendeu-se no chão ao fio comprido do lombo.

Loredano soltou uma blasphemia, Bento gritou misericordia; Ruy que já ia adiante, voltou julgando que alguma cousa succedia.

O plano de Pery tinha gorado.

—Sabeis, disse Loredano, que no pareo perde aquelle que se deixou cahir. Sereis o primeiro, amigo Bento.

O aventureiro não replicou.

Pery não perdêra a esperança de lhe deparar a fortuna outra occasião favoravel para realisar o seu projecto; seguio-os. Foi então que de longe por baixo das arvores avistou Alvaro na mesma direcção em que ião os aventureiros; despedindo uma setta por elevação dera ao cavalheiro o primero signal, e os outros que o fizerão afastar-se.

Deixando Alvaro, a intenção do indio era atalhar os aventureiros, espera-los junto á cerca; e quando elles se separassem para entrar a um e um, mata-los.

Mas uma fatalidade parecia perseguir o indio, e proteger os inimigos.

Quando Bento Simões, destacando-se dos companheiros entrou na cerca, Pery ouvio naquella direcção a voz de Cecilia que voltava do passeio com seu pai e sua prima.

A mão do indio, que nunca tremêra no meio do combate, cahio inerte; escapou-lhe o arco, só com a idéa de que a setta que ia atirar podesse assustar a menina, quanto mais offendê-la.

Bento Simões passou incolume.


XIV
A CHACARA

Pery viu passar pouco depois Loredano e Ruy Soeiro.

Era a terceira vez que os aventureiros depois de estarem na sua mão lhe escapavão por uma especie de fatalidade.

O indio reflectio alguns momentos, e tomou uma resolução definitiva; modificou inteiramente o seu plano. A principio decidira não atacar os tres inimigos de frente, não porque os temesse, mas sim porque receiava que morrendo podessem realisar a salvo o projecto, cujo segredo só elle sabia.

Conheceu porém que não havia remedio senão recorrer a este expediente; o tempo corria; de um momento para outro podia o italiano executara sua trama.

O que precisava era achar um meio para no caso de succumbir prevenir a D. Antonio de Mariz do perigo que o ameaçava; este meio havia já acudido ao pensamento do indio.

Foi ter com Alvaro que o esperava.

O moço já o tinha esquecido; pensava em Cecilia, na sua affeição quebrada, na sua mais doce esperança murcha, e talvez perdida para sempre.

Ás vezes tambem apresentava-se ao seu espirito a imagem melancolica de Isabel; lembrava-se que ella tambem amava, e não era amada. Esta lembrança creava certo laço entre elle e a moça; ambos soffrião pela mesma causa, ambos sentião o mesmo pezar, e curtião igual desengano.

Depois vinha a idéa de que era a elle que Isabel amava; sem querer repassava na memoria as ternas palavras; revia o sorriso triste e os olhares de fogo que se avelludavão com alanguidez do amor.

Parecia-lhe que sentia ainda o halito perfumado da moça, a pressão da cabeça desfallecida em seu hombro, o contacto das mãos tremulas, e o echo das queixas murmuradas pela voz maviosa.

O coração lhe palpitava com violencia; esquecia-se revendo a bella imagem, de um moreno suave, a que o amor dava reflexos e uma aureola esplendida.

Mas de repente estremecia, como se a moça ainda estivesse perto delle; passava a mão pela fronte para arrancar as reminiscencias que o incommodavão; e tornava á indifferença de Cecilia e ao desengano de suas esperanças.

Quando Pery se aproximou, Alvaro estava n'um dos momentos de tedio e desapego da vida, que succedem ás dores profundas.

—Diz-me, Pery. Fallaste de inimigos?

—Sim; respondeu o indio.

—Quero conhecê-los.

—Para que?

—Para ataca-los.

—Mas são tres.

—Melhor.

O indio hesitou:

—Não; Pery quer combater só os inimigos de sua senhora; se elle morrer tu saberás tudo; acaba então o que Pery tiver começado.

—Para que este mysterio? Não podes dizer já quem são esses inimigos?

—Pery póde; mas não quer dizer.

—Porque?

—Porque tu és bom e pensas que os outros tambem são; tu defenderás os máos.

—Oh! que não. Falla!

—Ouve. Se Pery não apparecer amanhã, tu não tornarás a vê-lo: mas a alma de Pery voltará para te dizer os nomes delles.

—Como?

—Tu verás. São tres; querem offender a senhora, matar seu pai, a ti, a todos da casa. Tem outros que os seguem.

—Uma revolta!... exclamou Alvaro.

—O primeiro delles quer fugir e levar Cecy, que tu amas; mas Pery não deixará.

—É impossivel! disse o moço surprendido.

Pery te diz verdade.

—Não creio!...

Com effeito o cavalheiro attribuindo as desconfianças do indio a uma exageração filha da sua dedicação extrema pela filha de D. Antonio, não podia acreditar no horrivel attentado: sua direitura de sentimentos repellia a possibilidade de um crime tal.

O fidalgo era amado e respeitado por todos os aventureiros: nunca durante dez annos que o moço o acompanhava se tinha dado na banda um só acto de insubordinação contra a pessoa do chefe; havia faltas de disciplina, rixas entre os companheiros, tentativas de deserção; mas não passava disto.

O indio sabia que Alvaro duvidaria do que se passava; e por isso se obstinava em guardar parte do segredo, receiando que o moço com o seu cavalheirismo não tomasse o partido dos tres aventureiros.

—Tu duvidas de Pery?

—Quem faz uma accusação tal, precisa prova-la. Tu és um amigo, Pery; mas os outros tambem o são, e têm o direito de se defenderem.

—Quando um homem vai morrer, tu julgas que elle mente? perguntou o indio com firmeza.

—Que queres dizer com isto?

—Pery vai vingar sua senhora; vai se separar de tudo quanto ama; se elle perder a vida dirás ainda que se engana?

Alvaro foi abalado pelas palavras do indio.

—Melhor é que falles a D. Antonio de Mariz.

—Não; elle e tu servem para combater homens que atacão pela frente; Pery sabe caçar o tigre na floresta, e esmagar a cobra que vai lançar o bote.

—Mas então o que queres de mim?

—Que se Pery morrer, acredites no que elle te diz e faças o que elle fez; que salves a senhora!

—Assassinar?... Nunca, Pery; nunca o meu braço brandirá o ferro senão contra o ferro!

O indio lançou ao moço um olhar que brilhou nas trevas.

—Tu não amas Cecy!

Alvaro estremeceu.

—Se tu a amasses, matarias teu irmão para livra-la de um perigo.

—Pery, talvez não comprehendas o que vou dizer-te. Daria a minha vida sem hesitar por Cecilia; mas a minha honra pertence a Deus e á memoria de meu pai.

Os dous homens olhárão-se um momento em silencio; ambos tinhão a mesma grandeza de alma, e a mesma nobreza de sentimento; entretanto as circumstancias da vida havião creado nelles um contraste.

Em Alvaro, a honra e um espirito de lealdade cavalheiresca dominavão todas as suas acções; não havia affeição ou interesse que podesse quebrar a linha invariavel que elle havia traçado, e era a linha do dever.

Em Pery a dedicação sobrepujava tudo; viver para sua senhora, crear em torno della uma especie de providencia humana, era a sua vida; sacrificaria o mundo se possivel fosse, contanto que podesse como o Noé dos indios, salvar uma palmeira onde abrigar Cecilia.

Entretanto essas duas naturezas, uma filha da civilisação, a outra filha da liberdade selvagem, embora separadas por distancia immensa, comprehendião-se: a sorte lhes traçára um caminho differente; mas Deus vasára em suas almas o mesmo germen de heroismo, que nutre os grandes sentimentos.

Pery conheceu que Alvaro não cederia; Alvaro sabia que Pery apezar de sua recusa, cumpriria exactamente o que tinha resolvido.

O indio a principio pareceu impressionado pela obstinação do cavalheiro; porém ergueu a cabeça com um gesto altivo, e batendo com a mão no peito largo e vigoroso, disse em tom de energia:

—Pery só, defenderá sua senhora: não precisa de ninguem. É forte; tem como a andorinha as azas de suas flechas; como a cascavel o veneno das settas; como o tigre a força de seu braço; como a ema a velocidade de sua carreira. Só póde morrer uma vez; mas uma vida lhe basta.

—Pois bem, amigo, respondeu o cavalheiro com nobreza, vais realisar o teu sacrificio; eu cumprirei o meu dever. Tenho uma vida tambem, e a minha espada. Farei de uma a sombra de Cecilia; com a outra traçarei em torno della um circulo de ferro. Podes ficar certo que os inimigos que passarem por cima de teu corpo acharão o meu antes de chegarem á tua senhora.

—Tu és grande; podias ter nascido no deserto, e ser o rei das florestas; Pery te chamaria irmão.

Apertárão as mãos e dirigirão-se á casa; em caminho Alvaro lembrou-se que ainda não conhecia os homens contra os quaes tinha de defender Cecilia; perguntou seus nomes; Pery recusou formalmente e prometteu que o cavalheiro saberia, quando fosse tempo.

O indio tinha a sua idéa.

Chegando á casa os dous separárão-se; Alvaro ganhou o aposento que occupava; Pery encaminhou-se para o jardim de Cecilia.

Erão então oito horas da noite, toda a familia se achava reunida na cêa; o quarto da menina estava ás escuras. Pery examinou os arredores para vêr se tudo estava tranquillo e em socego; e sentou-se n'um banco do jardim.

Meia hora depois uma luz esclareceu a janella do quarto, e a porta abrindo-se deixou vêr o corpinho gracioso de Cecilia que se destacava no vão esclarecido.

A menina avistando o indio correu para elle:

—Meu pobre Pery, disse ella; tu soffreste hoje muito, não é verdade? E achaste tua senhora bem má e bem ingrata, porque te mandou partir! Mas agora, meu pai disse: Ficarás comnosco para sempre.

—Tu és boa senhora: tu choravas quando Pery ia partir; pediste para elle ficar.

—Então não tens queixa de Cecy? disse a menina sorrindo.

—O escravo póde ter queixa de sua senhora? tornou o indio simplesmente.

—Mas tu não és escravo!... respondeu Cecilia com um gesto de contrariedade; tu és um amigo sincero e dedicado. Duas vezes me salvaste a vida; fazes impossiveis para me veres contente e satisfeita; todos os dias te arriscas a morrer por minha causa.

O indio sorrio:

—Que queres que Pery faça de sua vida, senhora?

—Quero que estime sua senhora e lhe obedeça, e aprenda o que ella lhe ensinar, para ser um cavalheiro como meu irmão D. Diogo e o Sr. Alvaro.

Pery abanou a cabeça.

—Olha, continuou a menina; Cecy vai te ensinar a conhecer o Senhor do céo, e a rezar tambem e ler bonitas historias. Quando souberes tudo isto, ella bordará um manto de seda para ti; terás uma espada, e uma cruz no peito. Sim?

—A planta precisa de sol para crescer, a flôr precisa de agua para abrir; Pery precisa de liberdade para viver.

—Mas tu serás livre; e nobre como meu pai!

—Não!... O passaro que vôa nos ares cahe, se lhe quebrão as azas; o peixe que nada no rio morre, se o deitão em terra; Pery será como o passaro e como o peixe, se tu cortares as suas azas e o tirares da vida em que nasceu.

Cecilia bateu com o pé em signal de impaciencia.

—Não te zanga, senhora.

—Não fazes o que Cecy pede?... Pois Cecy não te quer mais bem; nem te chamará mais seu amigo. Vê; já não guardo a flôr que me déste.

E a linda menina, machucando a flôr que arrancou dos cabellos, correu para o seu quarto, e bateu a porta com violencia.

O indio voltou pezaroso á sua cabana.

De repente cortou o silencio da noite voz argentina, que cantava uma antiga chacara portugueza, com sentimento e expressão arrebatadora. Os sons doces de uma guitarra hespanhola fazião o acompanhamento da musica.

A chacara dizia assim:

Foi um dia.—Infanção mouro
Deixou
Alcaçar de prata e ouro.
Montado no seu corcel,
Partio
Sem pagem, sem anadel.
Do castello á barbacã
Chegou
Viu formosa castellã.
Aos pés daquella a quem ama
Jurou
Ser fiel á sua dama.
A gentil dona e senhora
Sorrio;
Ai! que isenta ella não fora
«Tu és mouro; eu sou christã:»
Fallou
A formosa castellã.
«Mouro, tens o meu amor:
Christão,
Serás meu nobre senhor.»
Sua voz era um encanto,
O olhar
Quebrado, pedia tanto!
«Antes de ver-te, senhora,
Fui rei;
Serei teu escravo agora.
«Por ti deixo meu alcaçar
Fiel;
Meus paços d'ouro e de nacar.
«Por ti deixo o paraiso;
Meu céo
É teu mimoso sorriso.»
A dona em um doce enleio
Tirou
Seu lindo collar do seio.
E duas almas christãs,
Na cruz
Um beijo tornou irmãs.

A voz suave e meiga perdeu-se no silencio do ermo; o echo repetio um momento as suas doces modulações.


FIM DA SEGUNDA PARTE.


NOTAS
DO TOMO PRIMEIRO.

PAG. 3.—Guarany.

O titulo que damos a este romance significa o indigena brazileiro. Na occasião da descoberta, o Brazil era povoado por nações pertencentes a uma grande raça, que conquistára o paiz havia muito tempo, e expulsára os dominadores. Os chronistas ordinariamente designavão esta raça pelo nome Tupi mas esta denominação não era usada senão por algumas nações. Entendemos que a melhor designação que se lhe podia dar era a da lingua geral que fallavão e naturalmente lembrava o nome primitivo da grande nação.

PAG. 3.—O Paquequer.

Para se conhecer a exactidão dessa descripção do rio Paquequer naquella epoca, lêa-se B. da Silva Lisboa, Annaes do Rio de Janeiro, 1° tomo, pag. 162. Hoje as grandes plantações de café transformárão inteiramente aquelles lugares outr'ora virgens e desertos.

PAG. 4.—Brazão d'armas.

Este brazão da casa dos Marizes é historico; nos mesmos Annaes do Rio de Janeiro, tomo 1°, pag. 329, acha-se a sua descripção que copiei litteralmente.

PAG. 11.—D. Antonio de Mariz.

Este personagem é historico, assim como os factos que se referem ao seu passado, antes da epoca em que começa o romance.

Nos Annaes do Rio de Janeiro, tomo 1°, pag. 328, lêa-se uma breve noticia sobre sua vida.

PAG. 13.—D. Pedro da Cunha.

Deste projecto de transportar ao Brazil a coroa portugueza, falla Warnhagen na sua historia do Brazil.

PAG. 16.—Aventureiros.

O costume que tinhão os capitães daquelle tempo de manterem uma banda de aventureiros ás suas ordens, é referido por todos os chronistas. Esse costume tinha o quer que seja dos usos da media idade, e a necessidade o fez reviver em nosso paiz onde faltavão tropas regulares para as conquistas e explorações.

PAG. 14.—D. Lauriana.

Segundo B. da S. Lisboa a mulher de D. Antonio de Mariz chamava-se Lauriana Simoa, e era natural de S. Paulo.

PAG. 19.—D. Diogo de Mariz.

Este personagem tambem é historico. Em 1607 era provedor da alfandega do Rio de Janeiro, cargo que tinha servido seu pai alguns annos antes. S. Lisboa.—Annaes.

PAG. 20.—Pistoletes.

Ou arcabuzes pequenos. Pela ord. 5, tit. 80, s. 13ª, era defesa trazê-los armados ou tê-los em casa.

PAG. 32.—Um indio.

O typo que descrevemos é inteiramente copiado das observações que se encontrão em todos os chronistas. Em um ponto porém varião os escriptores; uns dão aos nossos selvagens uma estatura abaixo da regular; outros uma estatura alta. Neste ponto preferi guiar-me por Gabriel Soares que escreveu em 1580, e que nesse tempo devia conhecer a raça indigena em todo o seu vigor, e não degenerada como se tornou depois.

PAG. 38.—Forcado.

Esta maneira de caçar uma onça, que a muitos parecerá extraordinaria, é referida por Ayres do Casal. Ainda hoje no interior ha sertanejos que cação deste modo, e sem o menor risco ou difficuldade, tão habituados já estão.

PAG. 40.—Ticum.

O ticum é uma palmeira de cujos filamentos os indios usavão como os Europeus do linho. Della se servião para suas redes de pesca, para cordas de arco e outros misteres; o fio preparado por elles com a resina de almocega era fortissimo.

PAG. 42.—Biribá.

Era a arvore com que os indigenas tiravâo fogo por meio do attrito, roçando fortemente um fragmento de encontro ao outro. B. da S. Lisboa.—Annaes.

PAG. 43.—Gardenia.

Nome scientifico que Fr. Velloso na sua Flora Fluminense dá á açucena silvestre; nos nossos campos encontra-se essa flôr da varias côres; a mais commum é a branca e escarlate.

PAG. 73.—Pery.

Palavra da lingua guarany que significa junco silvestre.

PAG. 80.—Oleo.

É uma das arvores mais elevadas de nossas florestas; cresce a mais de cem palmos, e o tronco chega a uma extraordinaria grossura.

PAG. 94.—Hirara.

Especie de gato selvagem, indigena do Brazil.

PAG. 100.—Soffrer.

É um lindo passaro do Brazil, côr de ouro, com os encontros de um negro brilhante. O seu canto doce imita a palavra soffrer, razão por que os primeiros colonos lhe derão esse nome.

PAG. 102.—Cecy.

É um verbo da lingua guarany que significa magoar, doer.

PAG. 106.—Sapucaia.

Arvore de alta grandeza, que dá um fructo do tamanho e da confeição de um côco.

PAG. 107.—Pequiá.

Arvore de mais de cem palmos de altura, que tem uma pequena flôr de brilhante escarlate; floresce nos mezes de setembro e outubro.

PAG. 111.—O cactus.

Temos differentes especies de cactus; os mais lindos são o branco, o rosa e o amarello, a que os indigenas chamavão urumbeba. Todos elles abrem á meia noite e fechão ao despontar do sol.

PAG. 111.—Graciola.

É o nome scientifico que Fr. Velloso na sua Flora Fluminense dá á pequena flôr azul de um arbusto indigena.

PAG. 111.—Malvalisco.

Assim designa Saint-Hilaire uma especie de malva indigena brazileira, cuja flor é escarlate.

PAG. 112.—Viuvinha.

Pequeno passaro negro que canta ao amanhecer; dizem ser o primeiro que saúda o nascimento do dia.

PAG. 113.—Jasmineiro.

Ha uma especie de jasmineiro indigena do Brazil; assim o dizem os dous botanicos que citamos acima.

PAG. 115.—Colhereira.

É uma das aves aquaticas mais lindas do Brazil; suas pennas são de uma bella côr de rosa.

PAG. 146.—O cão.

Diz o Sr. Warnhagen na sua historia do Brazil que o cão era o companheiro constante do nosso indigena, ainda mais do que do Europeu.

PAG. 149.—Cabuiba.

A cabuiba ou cabureiba, Balsamum Peruvianum de Pison, Cabuibaiba de Maregrave e Miroxilem Cabriuva de outros naturalistas, é uma arvore das nossas mattas de mais de cem palmos, e a que vulgarmente se chama arvore do balsamo.

Distilla um licor louro de um cheiro agradavel, que dizem milagroso para cura de feridas frescas. (Gabriel Soares; S. Lisboa e Ayres do Casal.)

PAG. 154.—Formigueiro.

No sertão encontrão-se frequentemente essas excavações subterraneas, feitas por uma formiga, a que os indios chamárão taciahy.

PAG. 161.—Garcia Ferreira.

Garcia Ferreira foi provido no officio de tabellião do Rio de Janeiro por Salvador Corrêa de Sá, em 15 de Fevereiro de 1588. (B. da Silva Lisboa.)

PAG. 163.—Roberio Dias.

Roberio Dias offereceu a Felippe II o segredo de uma grande mina de prata, descoberta por elle nos sertões de Jacobina, provincia da Bahia; pedia em troca o titulo de marquez das Minas, que não lhe foi dado. Essas minas, falsas ou verdadeiras, nunca se descobrirão.

Roberio morreu pobre e desgraçado, recusando revelar o segredo das minas. (B. da S. Lisboa.)

PAG. 177.—Convento do Carmo.

«Logo que os carmelitas se estabelecerão em Santos pela doação de José Adorno, de 1589, se passou ao Rio do Janeiro o padre Fr. Pedro, para fundar aqui o convento do Carmo. Supposto não conste com certeza o anno da fundação é indisputavel todavia que fôra entre 1589 e 1590, pois que já estava aquelle feito em 1595. Corria por tradição geralmente ter sido o seu começo em 1590.» (B. da S. Lisboa, tom. VII°, cap. 2°, § 6.)

PAG. 196.—Arvores de ouro.

A sapucaia perde a folha no tempo da florescencia, e cobre-se de tanta flor amarella que não se vê nem tronco, nem galhos; o mesmo succede á embaiba, ao páo d'arco e outras arvores. (G. Soares, Roteiro do Brazil, e B. da S. Lisboa Annaes).

Sendo epoca da florescencia dessas arvores em setembro, a phrase figurada do indio traduz-se da seguinte maneira: «Era o mez de setembro.»

PAG. 196.—O mais forte.

É sabido que entre as nossas tribus, o chefe era sempre aquelle que tinha maior reputação de valor e fortaleza. O principio de hereditariedade, se algumas vezes regulava a successão do mando, era ephemero.

PAG. 197.—Taba dos brancos.

Allude-se á colonia da Victoria, hoje capital da provincia do Espirito Santo, que foi duas vezes arrasada pelos Goytacazes Tupininquins. É um desses combates que o indio conta de passagem.

PAG. 198.—Senhora dos brancos.

Pela descripção seguinte conhece-se que o selvagem viu na igreja, na occasião do incendio que devorou a villa da Victoria, uma imagem de Nossa Senhora, que o impressionou vivamente.

PAG.—A estrella grande.

O que dizem alguns chronistas, a respeito da ignorancia absoluta dos indigenas sobre a astronomia, me parece inexacto. Os Guaranys tinhão os conhecimentos rudes, filhos da observação. Chamavão a estrella jacy-tato, fogo da lua; suppunhão pois que a lua é que transmittia a luz ás estrellas. Conhecião as quatro phases da lua: a lua nova, jacy-peçaçu; o quarto crescente, jacy-jemorotuçu; a lua cheia, jacy-caboaçu; e o quarto minguante, jacy-jearoca. Dividião o anno em duas estações: a estação do sol, coaracyara, e a estação da chuva, ama'na-ara; são as mesmas que hoje conhecemos, e as unicas que realmente existem no Brazil. Muitas outras observações podiamos fazer, que omittimos para evitar prolixidade.

PAG. 199.—Grande rio.

Esta palavra é relativa: todas as nações chamavão assim o maior rio que havia no territorio que ellas conhecião, e é por isso que se encontrão tantos rios grandes nos nomes dos rios do nosso paiz. Para os Goytacazes o Rio-Grande era o Parabyba.

PAG. 218.—A nação goytacaz.

Esses factos lêem-se em qualquer dos escriptores que se têm occupado dos primeiros tempos coloniaes do Brazil, e especialmente em G. Soares, que foi contemporâneo delles.

PAG. 260—Cipós.

Diz Gabriel Soares: «Deu a natureza ao Brazil, por entre os arvoredos, umas cordas muito rijas, muitas que nascem aos pés dos arvores e atrepão por ellas acima, a que chamão cipós, com que os indios atão a madeira de suas casas e os brancos que não podem mais. Nestes mesmos mattos se crião outras cordas mais delgadas e primas a que os indios chamavão «timbós,» que são mais rijas que os cipós acima.»

A quantidade infinita de cipós é uma das originalidades das florestas do Brazil, e admirou os naturalistas estrangeiros que o visitárão.

PAG. 222.—Candêa.

Diz o mesmo autor: «Ha uma arvore meã que se chama «ibiriba» a qual os Indios fazem em fios para fachos, com que vão mariscar e para andarem de noite; e ainda que seja verde, cortada daquella hora, pega o fogo nella como em alcatrão, e não apaga o vento os fachos della; e em casa servem-se os indios de achas dessa madeira, como de candêas.

PAG. 269.—Cauan.

É uma ave que devora as cobras, pelo que ellas fogem della, Os indios, segundo affirma Ayres do Casal, imitavão o seu canto, quando andavão á noite pelo matto, e assim preservavão-se de serem mordidos.

PAG. 338.—Setta por elevação.

A destreza e a habilidade com que os Indios atiravão a setta era tal, que os Europeus a admiravão. Para atirarem por elevação, deitavão-se, seguravão o arco com os dous dedos dos pés e lançavão ao ar a setta que, subindo, descrevia uma parabola e ia cahir no alvo. Ainda ha pouco tempo no Pará se vião, nas aldêas de indios já cathequisados, pareos deste jogo, em que o alvo era um tronco de bananeira decepado. O tenente Pimentel, filho do presidente de Matto-Grosso, foi assassinado pelos indios deste modo, cavalgando no meio de muitos cavalleiros. Nenhum foi ferido: e todas as settas abatêrão-se sobre o moço de quem os selvagens se querião vingar.


FIM DAS NOTAS DO TOMO PRIMEIRO.