Project Gutenberg's Chronica de el-rei D. Affonso Henriques, by Duarte Galvão This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Chronica de el-rei D. Affonso Henriques Author: Duarte Galvão Release Date: March 20, 2006 [EBook #18026] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CHRONICA DE EL-REI D. *** Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) Bibliotheca de Classicos Portuguezes Proprietario e fundador--Mello d'Azevedo (VOLUME LI) Chronica de El-Rei D. Affonso Henriques POR DUARTE GALVÃO _ESCRIPTORIO_ 147--Rua dos Retrozeiros--147 LISBOA 1906 Bibliotheca de Classicos Portuguezes Proprietario e fundador _Mello d'Azevedo_ Bibliotheca de Classicos Portuguezes Proprietario e fundador--Mello d'Azevedo (VOLUME LI) Chronica de El-Rei D. Affonso Henriques POR DUARTE GALVÃO _ESCRIPTORIO_ 147--Rua dos Retrozeiros--147 LISBOA 1906 PROLOGO A Chronica de Duarte Galvão é a lenda de Affonso Henriques, do fundador de Portugal. O autor encontrou noticias, narrativas, tradições; agrupou-as, apurou-lhes a linguagem, e formou assim a Chronica que apresentou a D. Manoel. Mais tarde mudaram costumes, augmentaram convenções sociaes, cresceu a polidez cortezan, e a critica abafou o livro perigoso, inconveniente. Chegaram a chamar-lhe conjuncto de fabulas. As brigas com a mãi, a violencia feroz com o legado de Roma offendiam os bons costumes, as delicadas maneiras. Na Chronica ha lenda e tradição a par de narrativas baseadas em factos. As luctas com D. Affonso de Castella, as campanhas systematicas e porfiadas com os sarracenos, todo esse esforço enorme para augmentar o reino e garantir-lhe a independencia são factos averiguados. A bella tradição a respeito de Egas Moniz, a do cavalleiro Henrique e da palmeira que nasceu na sua cova, a lenda do corpo de S. Vicente, guardado pelo corvo, são lendas ou tradições antigas acreditadas já na funda edade media, justificadas pela escultura, pela epigraphia, ou por antiquissimos escriptos. A descripção do casamento de D. Mafalda, filha de D. Affonso Henriques, parece ter uma base verdadeira, algum escripto mui antigo que o chronista soube approveitar. É interessante attender á maneira como os historiadores trataram do fundador do reino; Duarte Galvão no começo do seculo XVI; Antonio Brandão no seculo XVII; Alexandre Herculano no meio do XIX. Os elementos de trabalho vão crescendo, e o entendimento humano apura-se; vê-se mais e melhor; a critica, a analyse profundam com maior liberdade. Não devemos esquecer que Duarte Galvão foi uma summidade no seu tempo. Antonio Brandão foi uma intelligencia superior. Herculano o intellectual maximo, energico trabalhador com intenso fermento artistico. A maneira como estes tres espiritos tratam o fundador, e o conjuncto de recursos que elles possuiam, constitue um motivo de estudo merecedor de attenção. Sobre Duarte Galvão é bem que se leia a noticia que vem publicada no dicionario da lingua portugueza, da Academia Real das Sciencias de Lisboa (Tomo 1.^o e unico. Lisboa, 1793. Catalogo de autores, pag. CXXVII). ==Galvão (Duarte) nasceu pelos annos de 1446, e faleceo em 1517 «carregado (como diz João Pinto Ribeiro) (a)» de annos, de prudencia, «e de autoridade.» no mar da Arabia, na ilha de Camarão, indo de mandado del-Rei D. Manoel por Embaixador a David, Emperador e Rei dos Abexins. El-Rei D. João II. o enviou com grandes poderes por Embaixador a Maximiliano I. Emperador de Alemanha, seu primo coirmão, Rei naquelle tempo dos Romanos, e prezo em Burgos pelos Governadores da dita Cidade. E se bem o achasse já solto, quando chegou a Flandres, lhe fez todavia abalizados serviços, muito a contentamento do mesmo Rei. Segunda vez voltou por Embaixador a Alemanha, e conforme expressamente declara Damião de Goes, servio os dous Reis, D. João II. e D. Manoel «em muitas Embaixadas nas cortes dos Papas, e do Emperador Fedrique e Maximiliano, seu filho, e dos Reis de França e Inglaterra, e em outros muitos negocios, de que sempre deo boa conta.» O referido Goes já em outro lugar, a que se remette, havia tratado, como diz, «o demais das calidades e partes dignas de louvor, que nelle se dava.» Tendo sido os Priores Crasteiros de Santa Cruz de Coimbra, Chronistas do Reino desde o anno de 1145 por provisão del-Rei D. Affonso Henriques «até o tempo del-Rei D. Affonso V. o Prior mór de santa Cruz D. João Galvão, (assim o escreve o Chronista dos Conegos Regrantes de S. Agostinho) deo o officio de Chronista do Reino a seu irmão, Duarte Galvão, pelos annos de 1460, ainda que sobre isto houve grandes resistencias por parte dos Priores Crasteiros de Santa Cruz, e durou a demanda por muito tempo.» Por ordem del-Rei D. Manoel começou, mas não proseguio, as Chronicas dos Reis, seus predecessores, para cujo trabalho, e para cousas outras de _mór importancia foi homem por sua doutrina assás desperto e mui sufficiente_, conforme o reputa Rui de Pina. _Vir non minus aetate, quam prudentia, ac rerum usu gravissimus_ he elle qualificado por Damião de Goes. _Raro em sciencia e valor_ o denomina João Pinto Ribeiro; _homem douto_, Duarte Nunes do Leão. Publicou-se modernamente: _Chronica do muito alto, e muito esclarecido Principe D. Affonso Henriques, primeiro Rey de Portugal, composta por Duarte Galvão, Fidalgo da Casa Real, e Chronista Mór do Reino. Fielmente copiada do seu original, que se conserva no Archivo Real da Torre do Tombo. Offerecida á Magestade sempre Augusta del-Rey D. João V. nosso Senhor por Miguel Lopes Ferreyra. Lisboa Occidental, na Officina Ferreyriana M. DCC. XXVI._==fol. «Nesta Chronica, que Duarte Galvão _diz_, que fez de novo (são palavras de Damião de Goes) faltão muitas cousas, que não chegárão á sua noticia.» O Abbade Barboza traz o lugar citado, e com elle prova que Goes dissera, que Duarte Galvão a fizera de novo. Mas esta asserção, como se vê claramente, só pertence ao mesmo Galvão, a quem Goes a attribue. O qual porém nisto mesmo se enganou, visto que o referido Galvão no Prologo da sobredita Chronica, dirigido a el-Rei D. Manoel, assim lhe falla: «Pelo qual, Serenissimo Senhor, como quer que além da materia, me haja de ser trabalho e difficuldade ajuntar e supprir cousa de tantos tempos, desordenada e falecida, e para haver de _emendar escritos alhêos_, vejo que armo sobre mim juizos de muitos:» O que se ajusta melhor com o parecer de Barros, o qual escreve, que Duarte Galvão sómente lhe _apurára a lingoagem antiga em que estava escrita_.» «E quem quer que foi (prosegue o mesmo Barros) o compoedor della dará conta a Deos de macular a fama de tão illustres duas pessoas, como forão a Rainha Dona Tareja, e el-Rei D. Affonso Henriques, seu filho.» Acudio a isto com a merecida emenda o P. Fr. Antonio Brandão na terceira Parte da Monarchia Lusitana. André de Resende só diz que Duarte Galvão a escrevéra: porém Pedro de Mariz a declara expressamente recopilada de outra antiquissima por mandado del Rei D. Manoel. No mesmo engano de Goes, cahio depois Gaspar Estaço, dizendo assim: «Como escreve Duarte Galvão na Chronica del Rei D. Affonso Henriques, que elle compôz por mandado del Rei D. Manoel, a quem a dedicou: da qual elle não foi autor, senão apurador do antigo lingoage, em que andava, como diz João de Barros. Espantame dizer Duarte Galvão (no principio desta Chronica) que elle a fez de novo, porque o Chronista Fernão Lopes, Escrivão da Puridade, que foi do Infante Santo D. Fernando, e Guarda mór da Torre do Tombo fez todas as Chronicas dos Reis té seu tempo como prova Damião de Goes.» Rui de Pina, André de Resende, Duarte Nunes do Leão, e muitos outros de grande autoridade o dão por Autor da sobredita Chronica==. Nos manuscriptos da Bibliotheca Nacional de Lisboa encontro oito copias desta Chronica. A marcada B--12--8 tem no final a data 1568. Bello exemplar é a B--4--2 (n.^o 376), escripta no seculo XVI. Da mesma epoca a B--4--4 (n.^o 378). Ha tres copias do seculo XVII; uma destas foi doada pelo bispo de Beja, D. fr. Manoel do Cenaculo. Do seculo XVIII possue a Bibliotheca duas copias. A copia n.^o 841 offerece algumas notas e explicações do texto. Acho ainda um fragmento sob n.^o 8.169. Em todas estas copias acho os taes quatro capitulos riscados para a primeira edição. Parecem estes codices ter pertencido a particulares, não a institutos religiosos: não lhes vejo sellos ou ex-libris de conventos. A Chronica foi impressa em Lisboa em 1726, eliminados os celebres capitulos escandalosos. Antes d'isto a publicação da _Monarquia Lusitana_, pòde suppôr-se, tornára inutil a impressão ou publicação da chronica de Affonso Henriques por Duarte Galvão. Mas, talvez por causa dos taes capitulos continuaram a fazer-se copias; ainda, em pleno seculo XVIII, depois da impressão, se fizeram copias. Esta a razão de por todos os archivos se encontrarem copias manuscritas da chronica de Galvão. Os quatro capitulos foram publicados na Revista litteraria do Porto (1838, 2.^o vol. pag. 322). Ahi se fazem as observações seguintes. Quatro capitulos ineditos da Chronica de D. Affonso Henriques por Duarte Galvão A Chronica de D. Affonso Henriques por Duarte Galvão, foi estampada pela 1.^a vez, em Lisboa no anno de 1726. «O original desta Chronica» diz Barboza, em sua Bibliotheca Lusitana, «se conserva no Archivo Real da Torre do Tombo, da qual extrahio uma _copia fiel_ Miguel Lopes Ferreira, e a publicou em nossos tempos». A simples inspecção da mesma Chronica impressa denuncia a incorreção da asserção de que a copia fiel gozou da luz publica. No «Prologo ao Leitor» falla Miguel Lopes Ferreira do modo seguinte:--«Nesta historia se acham alguns pontos encontrados com a verdade, o que de nenhum modo se deve attribuir á malicia do Autor, senão a que naquelle tempo devia de ser esta a tradicção, que havia entre nós, mal fundada no principio, e peor continuada na boca dos que a passavão a outros, em que, como é natural, cada dia se vai desfigurando e perdendo sua fórma verdadeira. Estes descuidos emendou doutissimamente o Dr. Fr. Antonio Brandão, na 3.^a Parte da Monarchia Luzitana, porque examinou a verdade no segredo dos Cartorios em que estava sepultada. Algumas pessoas me aconselhavão que lhe fizesse notas, porém segui o parecer de outros, que assentárão, que como esta Chronica se imprimio para os que sabem, (Curiosa razão! Sómente os sabios devião lêr a Chronica; e não haveria ignorante que se quizesse instruir!) elles não ignorão pela lição de Fr. Antonio Brandão o que é tradição errada. Sahe pois a Chronica d'El-Rei D. Affonso Henriques da sorte que a escreveu Duarte Galvão.» Enganou-se Miguel Lopes Ferreira. Não foi tão brando em sua qualificação dos «pontos encontrados com a verdade,» o Censor Regio por cuja alçada teve a Chronica de passar, nem seguia elle systema de cura tão leniente e delicado. São suas palavras: «Vi a Chronica d'El-Rei D. Affonso Henriques, que compoz Duarte Galvão, e que quer mandar imprimir Miguel Lopes Ferreira. De um louvo o zelo em fazer publicar as Chronicas dos nossos Reis, que tantos tempos ha que se conservão manuscriptas, e do outro não posso deixar de lhe não accusar a negligencia com que se houve na composição desta Chronica, porque parece que não fez exame algum para o que havia de escrever. Mas _como vejo riscado nella alguns capitulos_, e tudo vejo reformado pelo Dr. Fr. Antonio Brandão Chronista Mòr do Reino, no 3.^o Tomo da Monarchia Luzitana, bem se pode imprimir sem escrupulo»... A mutilação da Chronica foi portanto publicamente annunciada. Mas já não estava na mão de D. José Barbosa, ou de quem quer que foi que riscou esses capitulos, o privar a posteridade da gratificação de saber quaes esses effeitos da neglicencia e nenhum exame do Chronista, que El-Rei Dom Manoel encarregou de escrever a historia do Fundador da Monarchia Portugueza. Já em 1600 tinha Duarte Nunes de Leão impresso suas «Chronicas dos Reis de Portugal,» e na Vida e feitos de seu 1.^o Monarcha tinha elle dedicado um capitulo inteiro ao texto e á _refutação_ das fabulas da _Chronica velha_[1] de D. Affonso Henriques. Este texto encerra toda a substancia dos Capitulos que hoje publicamos em sua fórma original. Havia ainda outro autor em cujas obras (ineditas em 1726) tinha sido incorporada a materia dos Capitulos riscados. Fallamos de Christovão Rodrigues Acenheiro, que escreveo em 1535 um Summario das Chronicas dos Reis de Portugal, cuja publicação devemos á Academia Real das Sciencias de Lisboa. (Ineditos da Historia Portugueza, Tomo 5.^o--1824). Ahi encontramos esses impugnados feitos de D. Affonso Henriques, e encontramos de mais um juizo do Compilador sobre elles muito mais franco, muito mais claro, e muito menos mistico, do que aquelle que quiz idear Duarte Galvão. «Devem bem de notar os Reis e os Principes Christãos» diz Acenheiro, «estas façanhas do Cardeal e Bispo, e quanto devem pugnar pela honra de suas pessoas e Reino, quando com justiça e verdade o perseguem, como este Catholico Rei fazia e fez». Não é comtudo do nosso intento entrarmos na discussão da veracidade da narração do nosso Chronista, que muito longe nos levaria, e em empreza nos metteria para a qual não temos forças. Numerosas são as duvidas que obscurecem a historia dos começos da Monarquia. A illigitimidade do nascimento da Snr.^a D. Thereza, mãi de D. Affonso Henriques--seu casamento com D. Fernando Peres de Trava, Conde de Trastamara, que a seu proprio irmão D. Vermuim Peres, (com quem já era casada) a usurpou,[2]--suas desavenças com seu filho e guerras que contra elle suscitou,--a jornada que por causa do exito de uma destas D. Egas Moniz emprehendeu a Castella;--a prisão a que D. Affonso Henriques condemnou sua mãi e desavenças que por este respeito teve com o Papa:--todos estes são pontos que tão tenazmente se tem affirmado, como fortemente combatido. Todavia a um e outro ponto já a bem instituida critica tem feito devida justiça; e a illigitimidade do nascimento e segundo casamento de D. Thereza (pelas doutas Dissertações de Antonio Pereira de Figueiredo, no Tomo 9.^o das Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa--1825), assim como a jornada d'Egas Moniz (pela descripção de seu tumulo, como ainda hoje se vê em Paço de Souza, o que tambem devemos á mesma Academia) são pontos já reconhecidos como demonstrados. Mas tanto nestes, como nos assumptos que fazem o immediato objecto dos capitulos que ajuntamos, ha lugar para contestação, na qual não quizeramos aqui entrar: por não termos outros fins em vista além da integração do texto d'um dos nossos antigos Chronistas. Não podemos comtudo deixar de apontar a infelicidade de Duarte Nunes de Leão na formula de seus argumentos. De todos os factos contenciosos que temos indicado fórma elle uma cadêa, cuja mutua e necessaria dependencia julga intuitiva, e contentando-se com expor a falsidade das allegações d'um só facto, pertende d'ahi inferir a falsidade de todos; e deste modo d'argumentar conclue que a Snr.^a D. Thereza nunca fôra 2.^a vêz casada, nunca teve desavenças com seu filho, nunca suscitou o Rei de Castella contra elle, e que nem Egas Moniz fôra offerecer-se a este com a corda ao pescoço, nem D. Affonso Henriques prendêra sua mãi, nem o Papa tivera motivo algum para enviar um legado a Portugal. Mal estava Duarte Nunes se voltassemos o argumento contra si mesmo, e pela indubitabilidade do offerecido sacrificio do Ayo de nosso 1.^o Rei, corroborassemos a verdade de toda a narrativa de Galvão. Fraco arguente era o Licenciado. O alto nascimento e as nobilissimas allianças de sangue da Snr.^a D. Thereza erão para elle effectiva salva-guarda em abono da virtude da mesma Senhora; e comtudo, nessa mesma pagina, não acha elle absurdo em traspassar todo esse montão d'infamias á propria _irmã_ dessa mesma princêza, com quem igualava em nobreza! Algumas das suas razões não deixão de ter seu xiste. «O dito Snr. D. Affonso» (o 6.^o de Castella) «como Catholico Rei que era, quando lhe morria uma mulher, casava logo com outra»! E daqui funda elle motivo para se crer que D. Ximena Nunes de Gusmão (mãi de D. Thereza) fôra sua legitima esposa, que não concubina. Quanto ás circunstancias que poderião afiançar alguma exactidão em Duarte Galvão, contentar-nos-hemos com dizer que foi filho de um secretario de D. João 1.^o e de D. Affonso V, e irmão d'um Bispo de Coimbra, e Escrivão da paridade do ultimo citado monarcha. Elle mesmo foi Secretario de D. João 2.^o, e alem de Chronista-mor, foi encarregado de varias missões importantes. Temos portanto que nem relações nem occasião pessoal lhe faltárão para certificar-se do que era verdade. Sobre o Bispo _negro_ não deixa de parecer especiosa a explicação que offerece Fr. Joaquim de Santa Roza de Viterbo em seu Elucidario:-- «Muitos monges forão tirados dos Mosteiros para encherem o lugar de Bispos: e como não depunhão o Habito Monachal, que era Preto, o Clero se compunha á imitação do seu Prelado. Deste tempo ficou na Sé de Coimbra a mal tramada Fabula do _Bispo Negro_. Este foi D. Bernardo, Francez de Nação, Monge de S. Bento, e Arcediago de Braga, feito por S. Giraldo, de quem escreveo elegantemente a vida. O Principe D. Affonso Henriques (a despeito de sua mãi, a Rainha D. Thereza, e todo o Clero e povo de Coimbra, que postulavão para Bispo daquella Sé o Arcediago da mesma _D. Tello_) o nomeou Bispo de Coimbra no anno de 1128. E como este monge nunca depôz o habito dos _Negros_ como então chamavão aos que professavão a Religião de S. Bento, e os Conegos da Sé de Coimbra vestião branco, em razão das grandes sobrepelizes que então uzavão; os mal affectos dizião que tinhão naquella Sé um _Bispo Negro_, para não dizerem com maior indecencia, e atrevimento, um Negro Bispo». Elucidario, Tomo 1.^o pagina 285. Mas esta explicação, recebida com cautella em quanto aos factos allegados, não deve ter-se senão em conta de conjectura. A copia dos Quatro Capitulos que aqui offerecemos ao publico foi tirada sobre um nitidissimo exemplar manuscripto em pergaminho da Chronica de Duarte Galvão que vimos em Santa Cruz de Coimbra, e que deve hoje existir na Bibliotheca Publica Portuense. Este exemplar era coetaneo dos tempos do Chronista-mor, e na encadernação e riqueza das iniciaes illuminadas, inculcava ter pertencido a pessoa ou repartição Real; e coincide, na discripção que fez Pedro de Mariz no Prologo á sua intentada edição da Chronica de D. Affonso 4.^o por Rui de Pina com os Codices que se guardavão na Torra do Tombo. A copia é verbal, mas não julgamos conveniente conservar a orthographia daquelles tempos. Acautelamos os menos versados contra muita copia espuria da Chronica de D. Affonso Henriques por Duarte Galvão, que se encontra nas Bibliothecas Manuscriptas. A maior parte são compilações. Igual advertencia fazemos em quanto ás copias que por ahi andão (e algumas de pessoas doutas) destes mesmos Capitulos==. Na presente edição os quatro capitulos entram na sua competente altura. _G. Pereira._ CHRONICA DO MUITO ALTO, E MUITO ESCLARECIDO PRINCIPE D. AFFONSO HENRIQUES PRIMEIRO REY DE PORTUGAL, COMPOSTA POR DUARTE GALVAÕ, Fidalgo da Casa Real, e Chronista Mor do Reyno. Fielmente Copiada do Seu Original, que se conserva no Archivo Real da Torre do Tombo. OFFERECIDA Á MAGESTADE SEMPRE AUGUSTA DELREI D. JOAÕ V. NOSSO SENHOR POR MIGUEL LOPES FERREYRA LISBOA OCCIDENTAL, Na Officina FERREYRIANA. M. DCC. XXVI. _Com todas as licenças necessarias_. SENHOR Prostrado aos Reais pés de V. Magestade, lhe offereço a Chronica do Fundador da sua gloriosa Monarchia o Santo Rei D. Affonso Henriques decimo quinto Avô de V. Magestade, que ha mais de dous seculos escreveo Duarte Galvão, tão estimado dos Senhores Reis de Portugal, como dizem os grandes lugares, em que o occuparam, especialmente o Senhor Rei D. Manoel quinto Avô de V. Magestade, em cujo Reinado se vio com maior admiração a grande capacidade deste Chronista. Aceite V. Magestade com a sua Real, e costumada benignidade este meu pequeno obsequio, para que desta sórte animado possa continuar com a impressão das outras Chronicas dos Serenissimos Predecessores de V. Magestade. Deos guarde a V. Magestade muitos annos como desejamos, e havemos de mister. _Miguel Lopes Ferreira._ AO EXCELLENTISSIMO SENHOR *FERNÃO TELLES DA SILVA* Marquez de Alegrete, dos conselhos de Estado, e guerra del-Rei Nosso Senhor, Gentil-homem de sua Camara, Vêdor de sua fazenda, Embaixador extraordinario á Corte de Vienna, ao Serenissimo Emperador Joseph, e Condutor da Serenissima Rainha Nossa Senhora a estes Reinos, Academico, e Censor da Academia Real da Historia Portuguesa, &c. Depois de ter resoluto dedicar esta Chronica del-Rei D. Affonso Henriques a El-Rei Nosso Senhor, não podia ter duvida em que fosse Vossa Excellencia quem lha offerecesse em meu nome. Se para se consultarem os Oraculos, se procuravam aquellas pessoas, que eram dedicadas aos Templos em que elles respondiam, justamente dezejo a protecção de Vossa Excellencia para um Oraculo tão Soberano, que o merece ser de todo o mundo. A proporção é o que mais se deve de procurar, e sendo assim, não póde Vossa Excellencia accuzar a confiança, com que lhe peço, offereça este livro a S. Magestade que Deos guarde, pois é para este fim um meio tão proporcionado, que o mesmo Principe elegeo a Vossa Excellencia para lhe assistir com a pessoa no seu Palacio, e com as prudentes experiencias do seu grande entendimento aos negocios mais importantes de toda a Monarchia. Deos guarde a Vossa Excellencia muitos annos como desejo. Criado de Vossa Excellencia _Miguel Lopes Ferreira_ MIGUEL LOPES FERREIRA AO LEITOR Pela Chronica do primeiro Rei de Portugal começo a satisfazer a promessa de dar ao prelo todas as Chronicas dos nossos Reis, que até agora se conservavam manuscritas. Esta do fundador glorioso do Imperio Portuguez tem mais de dous seculos de antiguidade, porque seu Author Duarte Galvão falleceu na Ilha de Camarão a 9 de Junho do anno de mil e quinhentos e dezasete. A authoridade de quem a escreveu não é menor, porque o Pai deste Chronista foi Ruy Galvão, Secretario, e Escrivão da Puridade de El-Rei D. Affonso V. de Portugal, lugares tão grandes, e tão immediatos á Magestade, que suppõem illustre a quem os exercita. Duarte Galvão seu filho foi do Conselho dos Reis D. João o II e D. Manoel, Chronista Mór do Reino, Alcaide Mór de Leiria, doutissimo nas Letras humanas, e Embaixador a França, e Alemanha, e ultimamente ao Preste João, levando em sua companhia ao Embaixador Matheus, que da Corte do Abexim tinha passado á de Portugal, vencidas, e compostas as injustissimas duvidas da sua verdade. O irmão deste Chronista foi D. João Galvão, que depois dos maiores lugares da Congregação de Santa Cruz de Coimbra, sendo Bispo da mesma Cidade, lhe fez mercê El-Rei D. Affonso V do Titulo de Conde de Arganil, que até agora se conserva nos seus Successores, e desta Mitra passou para a de Braga. Nesta Historia se acham alguns pontos encontrados com a verdade, o que de nenhum modo se deve de attribuir a malicia do Author senão a que naquelle tempo devia de ser esta a tradição, que havia entre nós mal fundada no principio, e peior continuada na boca dos que a passavam a outros, em que como é natural, cada dia se vai desfigurando, e perdendo a sua fórma verdadeira. Estes descuidos emendou doutissimamente o Doutor Fr. Antonio Brandão na Terceira Parte da Monarchia Lusitana, porque examinou a verdade no segredo dos Cartorios, em que estava sepultada. Algumas pessoas me aconselhavam, que lhe fizesse notas, porém segui o parecer de outras, que assentáram, que como esta Chronica se imprimia para os que sabem, elles não ignoram pela lição de Fr. Antonio Brandão, o que é tradição errada. Sahe pois a Chronica de El-Rei D. Affonso Henriques da sórte que a escreveu Duarte Galvão, e lhe fiz o beneficio de lhe ordenar um Index para utilidade de todos. Agradeça o leitor o meu cuidado, que brevemente lhe darei impressas todas as mais Chronicas manuscritas dos nossos Reis, e entre ellas a de El-Rei D. João o II que escreveu Ruy de Pina, tão rara como desejada. _Vale._ PROLOGO DO AUTHOR Dirigido ao Serenissimo, e Muito Poderoso Principe El-Rei D. Manoel nosso Senhor, sobre as vidas, e excellentes feitos dos Reis de Portugal, seus Antecessores, ordenados, e escritos por seu mandado, por Duarte Galvão Fidalgo da sua Casa, e do seu Conselho, no qual falla do grande louvor destos mesmos Reis de Portugal. Muito devem, Serenissimo Senhor, trabalhar os homens, por em sua vida obrarem virtudes, para que mereçam a Deos no outro mundo, e neste leixem de seu tempo memoria, não sómente, que viveram o que as animalias tem por igual comnosco; mas que bem, e louvadamente passaram sua vida, que é proprio do homem, o qual tendo a vida, em dias breve, com a virtude que obra, a faz longa, e durar mais des que morre, vivendo depois de morto no outro mundo, por gloria, e neste por exemplo assi, que para nós necessario nos é nossa virtuosa vida, e para os outros nossa virtuosa fama; esto como quer que convem a todos, muito mais cabe em os Principes, e Reis faze-lo, cuja maior excellencia de seu nome traz logo maior obrigação de seu carrego, que é serem Reis postos por Deos, para regedores principaes na terra sobre os outros homens para execução, e exemplo de toda perfeita virtude, mas pois que toda desposição para obrar virtudes por muito que naça com a pessoa não póde ser comprida, nem haver perfeição senão por ajuda, e graça Divinal. Grandes e perpetuos louvores devem ser dados a nosso Senhor, por todos os naturaes do Reino de Portugal, por tanto participar de sua graça, com os Reis vossos Antecessores, e com vossa Real pessoa, com tão clara mostrança de os querer honrar, e escolher para seu santo serviço, exalçamento da sua Santa Fé, de maneira, que para se mais mostrar que vinha delle, e por elle, segundo em seus grandes mysterios sempre neste mundo, até em si mesmo escolheo o menos, para fazer, ou desfazer o mais, e o baixo para se fazer conhecer por mais alto, lhe aprouve dar graça, e poder a vossos Antecessores por onde no Reino, e senhorio menos de outros que vemos na Christandade, alcançáram por suas louvadas famas, e obras, em todo o genero de louvor, e virtudes grande, e assinado merecimento para o outro mundo, e neste muita honra, fama, e proveito, para sua Real Coroa, e de seus Reinos, e esto então poucas idades, que se as contarmos parece mui pouco tempo, e segundo a grandeza de suas obras julgar-se-ha por infindo, querendo nosso Senhor que assi como no desejo, e fervor de serviço em especial de punhar pela Fé vossos Antecessores fossem sempre mui singulares, assi fosse singular antre os outros Principes nesta parte, e em outra seu louvor, remunerando-lhes nosso Senhor nisso seus grandes merecimentos como hoje em dia faz a vossa Real Alteza, segundo se grandemente manifesta no grande louvor, e não menos mysterio de vossas mui louvadas, e excellentes obras, as quais bem condradas concludem, e claramente mostram não menos, que vosso Divino nome ser Deos comnosco, e com o bem destes Reinos mais que de antes, dando-vos nellos para o diante como fruito mostrado, e prometido, no grande emflorecer de vossos Antecessores, escuza-me, Senhor, de ser, nem parecer adulação o que digo. Primeiramente vossa successão nestos Reinos por nosso Senhor tão claramente querida, e ordenada levando para si tantos, que vos nella precediam, segundo seus ocultos Juizos, porém sempre justos, e escuza-me o grande fervor, que logo poz em vosso virtuoso coração para seu serviço, em tirar Judeus, e Mouros destos Reinos por tal, que lançado fóra todo Judaico, e Mosometico culto, ficasse só o verdadeiro de sua Christã Religião, e escuza-me esso mesmo vossa perseverante devação, e cuidado, em proseguir, e obrar por mar, e terra, guerra contra Mouros, em as partes Dafrica, do que não satisfeito vosso manhanimo coração, e desejo, que sempre ha por menos o muito de tão santas emprezas, não leixou de mandar a Levante por mar Armada de mui nobre gente, maior do que des memoria de homens, sem Rei saio destes Reinos em soccorro da Christandade contra os Turcos, e por Capitão della D. João de Menezes Conde de Tarouca vosso Mordomo Mor, e Capitão da Cidade de Tanger, mui dino de semelhantes, e maiores encargos por sua singular cavalaria, e prudencia. Escuzo-me finalmente antes, e depois desto, a grande maravilha, e mysterio, do achamento, ou mais com verdade conquista das Indias; nunca esperado, nem cuidado pelas gentes, até que se vio feito por vosso mandado, e posto por obra, e assi descobrimento de minas, terras outras, mares, climas, polos, e gentes inconhitas, nunca de antes sabidas, nem de nós conversadas, o que nem aquelle grão Rei Alexandre Conquistador do mundo, nem Carthaginenses Senhores Dafrica, e grande parte Deuropa, nem Romãos, que todos os outros passaram em senhorio, poderam alcançar trabalhando-se desso, como se lê, nem esso mesmo fazer vossos Antecessores em sessenta annos com muitas mortes de gentes, grandes despezas, e continuadas diligencias, o que se fez, e comprio nos primeiros dous, e tres annos de vosso Reinado trigando-se (segundo parece) a Divina Clemencia a manifestar este grande mysterio, por elle em vosso tempo predestinado, pelo qual quiz que em tão breve espaço se fizesse de uma só viagem, e por os primeiros, que a esto mandastes, outro tanto caminho, para achar a India, como em sessenta annos estava feito, no que, Senhor, grandemente servistes a Deos, ganhaste perpetua honra, nobrecestes vosso Reino, obrigastes o mundo, fazendo que em muita parte não sabida, o mundo soubesse parte de si mesmo, e por conseguinte de seu Creador, e Redemptor, o qual por sua infinda piedade, e amor que sempre mostrou ao bem, e honra destos Reinos, ordenou, que por vossas mãos se supprisse pelo mundo outra quasi segunda Prégação dos Apostolos, para notificação de nossa Fé, renovada ás gentes, que apoz seus peccados depois de recebida perderam, e necessaria para outra, que a nunca houveram, e de necessidade hão de haver, segundo affirma Santo Agostinho, que em tempo dos Apostolos não foi prégada a Fé de Christo por todo o mundo, nem até seu tempo, quatro centos annos despois, dando logo em prova desso muitas gentes em Africa donde elle era, como pelos Cativos, que se de lá traziam era manifesto, e que em todo caso a dita universal manifestação havia de ser, para se comprir, o que nosso Senhor disse, que seu Evangelho havia de ser notificado por o mundo universo ante do fim, em testemunho a todalas gentes, segundo se ora assás confirma por vossa navegação e conquista o qual mysterio traz consigo grande mostra, e pronostico de ser, não sómente para convertimento de muitos infieis, mas ainda para desfazimento, e destruimento da Mahometica secta consirado bem, Deos seja louvado, os começos, e proseguimentos de seus maravilhosos effectos. Muitos outros louvores, Serenissimo Rei, apontaria de vossas mui singulares obras, e virtudes mui compridas, se tão facil me fosse poder-lhe dar cabo, quão facil me é achar-lhe começo, e se a elle não aprouvera faze-los mais sobidos, e manifestos por vossas obras, do que poderiam ser por minhas palavras, mas hi ficará tempo, e lugar para com sua graça se poderem dizer em vossa Chronica mais compridamente, com todo, Senhor, é-me forçado dizer ainda de vossas virtuosas obras uma necessaria á presente materia, a qual é, mandar-me V.A. mui afficadamente, que os notaveis feitos dos mui esclarecidos Reis vossos Antecessores, escritos, e postos por negligencia de Escritores, ou culpa dos tempos, não só em menos polida, mas ainda em desordenada, e acerca não achada memoria, os quizesse ordenar, e escrever, e quasi trespassar, e a mais honrados Jazigos, e sepulturas, como é meu desejo para vosso serviço, e na confiança que me nesso V. A. mostra muito para folgar, mas para nella presumir sufficiencia não mais de atrever, que quanto está conhecido, que tão grandes, e verdadeiros louvores participados de tanta graça Divinal, não pode nhum humano falecimento apouquenta-los, nem faze-los menos da verdade toda humana eloquencia, sem receo de nhum prasmo deve de folgar achar-se vencida de tão excellente materia, cujo mui estimado pezo mais é de culpar quem não queira, que quem não possa leva-lo; porque ainda não leixará de precalçar muito louvor, e contentamento quem de tão nobres, e louvados feitos fizer lembrança, que foram, posto que não abaste dinamente faze-la de quão louvados foram, pois a grandeza de seu louvor por elles mesmos milhor se póde estimar, que dizer. Escuzo aqui poder pela ventura parecer este carrego, e serviço menos da maneira, e estimação de meus serviços; porque certo amor, e vontade, sobeja não acha serviço minguado, nem devem de mais para os Principes, cujas causas por grandes que sejam, não devem tolher atrevimento, maiormente quando por algumas rezões necessarias a seu mais serviço se mandam, a quem sem ellas poderiam ser escusado mandar-se, assi que, Senhor, esto que me V.A. manda fazer se deve a meu juizo antre outras vossas louvadas obras muito estimar, e haver por outro quasi novo descobrimento, e renovação de cousa ácerca perdida, que tanto devia estar sã, e alumeada como cousa principal do mui devulgado bem, e honra que vossos Reinos tem, e logram, no que não menos, que em todas outras cousas esclarece vosso grande louvor, porque bem se mostra povoado de muitas virtudes, e não invejar as alheias, quem as dos outros muito ama, e assi as manda renovar, e apregoar, pelo qual, Serenissimo Senhor, como quer-que álem da grandeza da materia, me haja de ser trabalho, e difficuldade ajuntar, e supprir cousa de tantos tempos, desordenada, e falecida, e para haver de emendar escritos alheios, vejo que armo sobre mim juizos de muitos; porém pois V.A. o ha tanto por bem, e serviço seu, e de seus Antecessores, mui de vontade me puz a faze-lo, sendo certo, que haverei ante elle grado se não de sufficiencia, ao menos de obediencia, pois por comprir seu mandado, no que muito me não atrevo fazer, me não pude, nem soube negar. LICENÇAS DO SANTO OFFICIO Vistas as informações, pode-se imprimir (menos o riscado) a Chronica do Senhor Rei D. Affonso Henriques, que compoz Duarte Galvão, e depois de impressa tornará para se conferir, e dar licença para correr, sem a qual não correrá. Lisboa Occidental, 23 de Julho de 1726. _Rocha.--Fr. R. de Allencastre.--Cunha.--Teixeira.--Silva.--Cabedo._ DO ORDINARIO _Approvação do Reverendissimo P. Mestre Fr. Joseph de Sousa, Religioso da Ordem de Nossa Senhora do Carmo, Lente jubillado na Sagrada Theologia, Qualificador do Santo Officio, Prior que foi do Real Convento do Carmo de Lisboa Occidental, Vigario Provincial Apostolico, que foi da dita Provincia, Provincial, Commissario, Visitador Geral que foi da mesma Ordem nestes Reinos, &c_. Illustrissimo e Reverendissimo Senhor Li a Chronica do Invictissimo Monarca o Serenissimo Senhor D. Affonso Henriques, de santa e eterna memoria, famoso conquistador, e primeiro Rei de Portugal, a qual quer dar á estampa Miguel Lopes Ferreira, dignissimo do titulo de Vivicador das glorias de Portugal, pois que zeloso da fama Regia, por meio do Prelo intenta resuscitar as memorias daquelle seculo dourado, em que Portugal no berço da sua infancia, com maior fortuna, que a do valeroso Alcides no da sua meninisse, soube despedaçar innumeraveis Hydras Africanas, que em varios recontros, capitaneados por dezoito Reis, e um Emperador de Marrocos Almiramolim, em formidolosos exercitos intentaram cortar os venturosas progressos, com que ia sacudindo o forte jugo do perfido Mauritano. Mas a pezar sentidissimo de Mafoma, em tão perfiados recontros, e em tão sentidas batalhas, havendo em algumas quasi cem Mouros contra cada um só Portuguez, ficaram sempre os Mouros inteiramente destroçados, os seus Reis vergonhosamente vencidos, e só Portugal gloriosamente triumfante, e senhor pacifico não só das terras, que pela repartição dos Estados tocavam á sua Monarchia, mas de muitas, que pertenciam á de Hespanha, porque de umas, e outras, á força de forte braço, e duro ferro fez largar a iniqua, e injusta posse, que havia muitos seculos, desde a sempre lacrimosa perda de Hespanha, logravam os Agarenos: protegido sempre daquelle destemido Capitão, e valerosissimo Heroe D. Affonso Henriques, que efficazmente soccorrido da mão Omnipotente do Senhor dos exercitos, na miraculosa apparição do Campo de Ourique quando batalhou com cinco Reis Africanos, ficou seu valente braço revestido de uma fortaleza tão desmedidamente grande, que já vibrando a lança, nunca tirou bote, que não fosse inexoravel desizivo da morte, já empunhando a espada não descarregou golpe, que não fosse infeliz Parca da vida. E sendo tal o esforço de seu braço, que o manejo das Armas, não era menos o valor do seu coração para o exercicio das virtudes: porque foi constantissimo no da Justiça administrando-a, e fazendo-a guardar rigorosamente aos seus povos, sem que o continuo exercicio de Marte lhe embaraçasse as execuções de Nemesis, mas antes, que com a espada sempre empunhada representava um vivo simulacro da Justiça. No da Humildade foi singular, porque sem respeito aos sacros decoros da Magestade, familiar, e urbanissimamente com palavras, e obras, como a companheiros e amigos a todos os seus vassallos, tratava carinhoso, e careciava benigno. No da Liberalidade foi magnifico, porque quando nas campanhas, os ricos despojas das batalhas, (e não foram poucos) primeiro os enfardelavam os soldados, do que elle se redimisse com parte das coroas dos triunfos, porque até destes repartia seu nobre coração com os que o ajudavam a vencer; e quando na Corte, dos seus Erarios eram chaves mestras os merecimentos de seus vassallos. No da Misericordia foi insigne, porque não cabendo já nos limites de seu estado, lá se dilatou para o Hospital de Jerusalem com oitenta mil dinheiros de ouro (que nem tudo lhe consumiam as guerras consumindo-lhe as guerras muito) para emprego de que annual, e perpetuamente rendessem para sustento dos pobres, que nelle se alvergassem. No da Piedade foi magnanimo, como testemunham entre muitas Igrejas que fundou os Reais Mosteiros de S. Vicente de Fóra em Lisboa, o de Santa Cruz em Coimbra, e o de Alcobaça, aos quaes dotou de amplos Senhorios, e copiosissimos patrimonios. No da Religião, todo este livro é breve compendio dos vastos dominios que conquistou para as cearas da Igreja; instituindo de muitos delles o nobilissimo Bispado de Coimbra, e o Illustrissimo de Lisboa, que offereceu ao Romano Pontifice adiantando-se este tanto nos seus augmentos que não cabendo na esfera de sua propria grandeza se multiplicou em duas Sagradas Sedes, nas quaes, uma conservando o titulo de Archiepiscopal, que já tinha, se separou com a differença de Oriental por respeito do sitio que tem na Corte, e a outra com o distintivo de Occidental que é o sitio deste Reino a respeito do Mundo, se exalta com o especioso titulo de Patriarcal sendo a primeira que o logra em todo elle. Por ventura que tanta gloria lá tenha o seu proporcionado auspicio, no seu glorioso fundador, que tambem foi o primeiro em Portugal; mas sem questão, deve o seo glorioso augmento á Serenissima, Augustissima, Felicissima, e sempre Magnifica Magestade do Senhor Rei D. João o V no nome que somando na linha de todas suas acções sempre em tudo heroicas, em tudo excellentes, e magnanimas em tudo, o numero admiravel de todas as de seus gloriosissimos Progenitores se dignou illustra-las com a Real preheminencia de engrandecer a sua Corte com uma Santa Sé Patriarcal, realçando seus lustres com o feliz, e premeditado acerto de instituir por seu primeiro Patriarca ao Meritissimo, Illustrissimo, e Reverendissimo Senhor D. Thomás de Almeida da Nobilissima Casa de Avintes, Bispo que foi de Lamego, e Porto; e para que finalmente na sua Corte pela destas Igrejas Occidental, e Oriental constasse notoriamente o ardentissimo desejo, que rezide no seu religioso coração de que o nome da Divina Magestade, o Rei dos Reis, e Senhor dos Senhores seja sempre louvado desde o Oriente onde o Sol nasce, té o Occaso onde fenece: «A Solis ortu usque ad Occasum laudabile nomen Domine». Tão gloriosos progressos, tiveram o seu feliz principio nas acções do Serenissimo Senhor D. Affonso Henriques, que esta Chronica descreve, e é mais que justo, saiam a luz do mundo, que pertende dar-lhe este Restaurador das primitivas, e estupendas memorias de Portugal, para que por benificio da estampa resuscite no mundo um vivo modelo da Magestade, um elegante exemplo do valor, e um famoso trofeo da admiração. Este o meu parecer salv. semp. mel. Carmo de Lisboa Occidental 1 de Agosto de 1726. _Fr. José de Sousa_. Vista a informação, póde-se imprimir a Chronica de que se trata, e depois de impressa tornará para se conferir, e dar licença que corra, sem a qual não correrá. Lisboa Occidental, 3 de Agosto de 1726. _D. F. Arcebispo de Lacedemonia_. DO PAÇO _Approvação do Reverendissimo P. Mestre D. José Barbosa, Clerigo Regular da Divina Providencia, Chronista da Serenissima Casa de Bragança, e Academico do Numero da Real Academia da Historia Portugueza, &c_. SENHOR Por Ordem de V. Magestade vi a Chronica d'El-Rei D. Affonso Henriques, que compoz Duarte Galvão, e que quer mandar imprimir Miguel Lopes Ferreira. De um louvo o zelo em fazer publicar as Chronicas dos nossos Reis, que tantos tempos ha que se conservam manuscritas, e do outro não posso deixar de lhe não occultar a negligencia com que se houve na composição desta Chronica, porque parece que não fez exame algum para o que havia de escrever. Mas como vejo riscados nella alguns Capitulos, e tudo vejo reformado pelo Doutor Frei Antonio Brandão Chronista mór deste Reino no 3.^o tomo da Monarchia Lusitana, bem se póde imprimir sem escrupulo. Vossa Magestade ordenará o que fôr servido. Nesta Casa de N. Senhora da Divina Providencia 12 de Agosto de 1726. _D. Jose Barbosa C.R._ Que se possa imprimir vistas as licenças do S Officio, e Ordinario, e despois de impresso tornará á Mesa para se conferir, e taxar, que sem isso não correrá. Lisboa Occidental, 22 de Agosto de 1726. _Pereira.--Galvão.--Teixeira.--Bonicho._ _Chronica do muito alto, e esclarecido princepe D. Affonso Anriques, primeiro Rei de Portugal_ CAPITULO I _Como El-Rei D. Affonso de Castella chamado Emperador, casou sua filha Dona Tareja com o Conde D. Anrique, dando-lhe em casamento Portugal por Condado com certas condições_. Começando de escrever das vidas, e mui excellentes feitos dinos de eterna memoria, dos mui esclarecidos Reis de Portugal, encomendo-me áquelle guiador de seus nobres, e virtuosos corações Espirito Santo, que assi participou com elles de sua infinda graça para as obras, me queira dar alguma para os escrever, e assentar em devida lembrança, por tal que não pareçam falecidas minhas palavras na grande excellencia de tão louvadas obras, de cujo louvor a primeira prova, e testemunho será o meu esforçado, e manifico Rei D. Affonso Anriques, primeiro Rei de Portugal, fundamento logo proprio, e necessario, por Deos ordenado para tão alto cume da gloria destes Reinos, como nelle edeficou, segundo que seu immenso louvor não menos se verá ao diante acrescentado, e conformado pelos Reis seus successores, os quaes, contando deste primeiro Rei, são por todos quatorze com o Serenissimo de todo louvor illustrado El-Rei D. Manuel N. Senhor, o qual vai em dez annos que ao presente Reina, anno do Senhor de mil e quinhentos e cinco.[3] Mas porque melhor se saiba o procedimento deste mui virtuoso Rei D. Affonso Anriques, é forçado recorrer algum tanto pelas Chronicas atraz, a El-Rei D. Affonso de Castella o Sexto, chamado Emperador, que tomou Toledo aos Mouros, dino de muito louvor em todo principalmente em guerrear os imigos da nossa Santa Fé Catholica, de que então a Espanha estava occupada, a cuja mui devulgada fama, movidos com mui devota cavalaria, grandes Senhores, e outras gentes Estrangeiras vinham busca-lo, para em sua companhia, por ser serviço de Deos, e salvação de suas almas, participarem de suas santas empresas, e trabalhos, antre os quaes vieram trez mui principaes senhores, a saber, o Conde D. Reymão de Tolosa, grande senhor em França, e o Conde D. Reymão de S. Gil, de Proença, e D. Anrique sobrinho deste Conde de Tolosa, filho segundo genito de uma sua irmã, e Del Rei Dungria, com quem era cazada, os quaes trez foram mui honradamente por El-Rei D. Affonso recebidos. Era este Conde D. Anrique mui discreto, e esforçado Cavaleiro, e não menos de todas outras bondades comprindo, trazia em seu Escudo de Armas campo branco sem outro nhum sinal, e andando sempre dedepois, na guerra dos Mouros com El-Rei D. Affonso, fez muitas, e assinadas cavalarias, por onde Del-Rei, e de todos os da terra era mui estimado, e querido, e assi o Conde de Tolosa seu tio, e o Conde de S. Gil de Proença, e tendo El-Rei assi delles contentamento querendo honra-los, e remunerar seus nobres feitos e trabalhos, que em sua companhia passaram na guerra contra os infieis, determinou de cazar trez filhas suas com elles, uma chamada Dona Urraca, cazou com o Conde D. Reimão de Tolosa, de que depois naceo El-Rei D. Affonso de Castella chamado tambem Emperador, donde decendem tambem todos os Reis de Castella; outra Dona Elvira, cazou com o Conde D. Reymão de S. Gil, de Proença; outra chamada D. Tareja deu por molher a D. Anrique sobrinho do Conde de Tolosa, dando-lhe com ella em cazamento Coimbra, com toda a terra até o Castello de Lobeira, que é uma legua além de ponte Vedra, em Caliza, e com toda a terra de Vizeu, e Lamego, que seu pai El-Rei D. Fernando, e elle ganharam nas Comarcas da Beira. De todo o que lhe assi deu, fez Condado chamado o Condado de Portugal, com tal condição, que o Conde D. Anrique o servisse, e fosse ás suas Cortes, e chamados, e sendo caso que fosse doente, ou tivesse legitimo impedimento a não poder lá ir, lhe mandasse um dos mais principaes de sua terra a seu serviço com trezentos de cavalo, não havendo naquelle tempo mais naquella terra de Portugal. E ainda lhe assinou mais terra da que os Mouros possoiam, que a conquistasse, e tomando-a, a crescentasse em seu Condado, o que elle, e seus successores com muito esforço, e valentia por muito arriscados perigos e trabalhos depois fizeram, como ao diante se verá, e que não querendo o Conde D. Anrique cumprir assi esto, qualquer que fosse Rei de Castella pudesse tomar a terra ao dito Conde, e mais toda a outra que o dito Conde, e seus successores ganhassem, e fazer della o que lhe aprouvesse, como de cousa sua propria. CAPITULO II _Do Tronco, e linhagem Real de que descendem os Reis de Portugal, e donde se chamou Portugal_. Deste Conde D. Anrique, e Dona Tareja sua molher descendem todolos Reis de Portugal, que até agora foram, e a causa porque a terra se chamou Portugal, foi que antigamente sobre o Douro foi povoado o Castello de Gaya, e por aportarem ahi mercadores, e navios, e assi pescadores pelo Rio dentro ancorarem, e estenderem suas redes da outra parte para isso mais conveniente, se povoou outro lugar, que se chamou o Porto, que ora é Cidade mui principal, donde ajuntando estes dous nomes, foi chamado Portugal. E era então naquelle tempo costume, que todos os filhos dos Reis se chamavam Reis, e as filhas Rainhas, posto que fossem bastardos, e como quer que El-Rei D. Affonso de Castella, desse este Condado de Portugal, ao Conde D. Anrique, e a sua filha, e ella se chamasse Rainha; porém elle nunca se chamou Rei em sua vida, nem seu filho o Principe D. Affonso, até que houve uma grande batalha, e vencimento no Campo de Ourique, contra cinco Reis Mouros, onde foi alevantado por Rei de Portugal, cuja geração veio de Reis, assi da parte do pai, como da mãi, que segundo já dissemos este Rei D. Affonso Anriques primeiro Rei que foi de Portugal, era neto de El-Rei Dungria da parte do pai o Conde D. Anrique, que foi filho legitimo dEl-Rei Dungria, e da parte de sua mãi, era neto dEl-Rei D Affonso acima dito, filho de sua filha Dona Tareja, por onde se mais manifesta a esclarecida gloria dos Reis de Portugal, pela nosso Senhor de todolos cabos tanto a exalçar, que de Nobreza, e Realeza de sangue não menos, que de excellentes virtudes, fossem em tanto gráo illustrados. CAPITULO III _Como D. Egas Moniz criou a D. Affonso filho do Conde D. Anrique, que foi são por milagre de N. Senhora da aleijão com que naceo_. Depois que o Conde D. Anrique foi cazado com a Rainha D. Tareja, filha del-Rei de Castella como dito é, vindo ella a emprenhar, D. Egas Moniz mui esforçado e nobre Fidalgo, grande seu privado, que com elle viera da sua terra, e a quem tinha feito muita mercê, chegou ao Conde pedindo-lhe que qualquer filho, ou filha, que a Rainha parisse lho quizesse dar para o elle criar, e o Conde lho outrogou. Veio a Rainha a parir um filho grande, e fermoso, que não podia mais ser uma creatura, salvo, que naceo com as pernas tão encolheitas, que a parecer de Mestres, todos julgavam que nunca poderia ser são dellas. O seu nacimento foi no anno de nosso Senhor de mil noventa e quatro. Tanto que D. Egas Moniz soube que a Rainha parira, cavalgou á pressa, e veio-se a Guimarães onde o Conde estava, e pedio-lhe por mercê que lhe desse o filho que lhe nacera para o haver de criar, como lhe tinha prometido. O Conde lhe respondeo que não quizesse tomar tal carrego; porque o filho, que lhe Deos dera, nacera por seus peccados tolheito de modo, que todos tinham, que nunca guareceria, nem seria para homem. D. Egas quando esto ouvio pesou-lhe muito, e disse: «Senhor, antes cuido eu que por meus peccados aconteceo; mas pois a Deos aprouve de tal ser minha ventura, dai-me todavia vosso filho, quejando quer que seja»: E o Conde posto que tivesse grande pejo polo bem que a D. Egas Moniz queria, de o encarregar em semelhante criação, por causa da aleijão da criança, com tudo lha deu por lhe comprazer, e quando D. Egas vio a criança tão fermosa, e com tal aleijão, houve mui grão dó della, e confiando em Deos, que lhe poderia dar saude, a tomou, e fez criar, não com menos amor, e cuidado como se fora são. E jazendo D. Egas uma noite dormindo, sendo já o Menino de cinco annos, lhe appareceo nossa Senhora, e disse: «D. Egas dormes». Elle a esta voz, e visão acordando respondeo. «Senhora quem soes vós». Ella disse: «Eu sou a Virgem Maria, que te mando que vás a um tal lugar,», dando-lhe logo os sinaes delle, «e faze hi cavar, e acharás hi uma Egreja que em outro tempo foi começada em meu nome, e uma Imagem minha; faze correger a Imagem e a Igreja feita á minha honra; esto feito farás hi vigilia poendo o Menino que crias sobre o Altar, e sabe que guarecerá, e será são de todo, e não menos te trabalha da hiavante de o bem guardar, e criar como fazes; porque meu filho quer por elle destruir muitos imigos da Fé». Desaparecida esta vizão ficou mui consolado D. Egas Moniz, e alegre, como vassallo que com são, e verdadeiro amor amava seu Senhor, e suas cousas, e tanto que foi manhã levantou-se logo, e foi-se com gente áquelle lugar, que lhe fora dito, e mandando hi cavar achou aquela Egreja, e Imagem pondo em obra todas as cousas que lhe N. Senhora mandára. Á qual aprouve pela sua santa piedade, tanto que o Menino foi posto sobre o seu Altar, ser logo guarecido, e são das pernas de toda aleijão, como se nunca tivera nada della. Vendo D. Egas este tão grande milagre, foi muito o seu prazer, deu muitas graças, e louvores a Deos, e a Nossa Senhora sua Madre, criando, e guardando dahi avante com muito maior cuidado o Menino, cujo Aio foi sempre, até que seu pai morreo em Estorgua, sendo elle já de tal idade, que nas guerras, e fadigas supria os carregos de seu pai. E por causa deste milagre foi depois feito em esta Egreja com muita devação o Mosteiro de Carquare; e como quer que alguns contem seu nacimento ser ultra mar, e bautizado no Rio do Jordão, porém por mais verdade achei ser seu nacimento como disse. CAPITULO IV _Como o Conde D. Anrique adoeceo á morte, e das palavras que disse a seu filho ante que falecesse_. Era este Conde D. Anrique mui nobre, e esforçado cavaleiro, muito amador da Justiça, e a temor de Deos mui chegado, e elle com grande devação fez a Sé de Coimbra, e de Braga, e do Porto, e de Vizeu, e Lamego, e pôz em ellas Bispos, que as houvessem de reger por mandado, e licença do Santo Padre. Em este tempo andando a era de Nosso Senhor de mil cento e trez, (1103) foi este Conde D. Anrique a ultra mar á Caza Santa de Jerusalem, conquistada havia quatro annos de Christãos, novamente pelo Duque Gudufre de Bulhão, quatro centos e noventa annos depois que em tempo de Mafamede, e do Araclio Emperador foi tomada a Christãos, e possuida de Mouros, e quando de lá veio trouxe este Conde muitas reliquias de Santos, entre as quaes foi um braço de S. Lucas Evangelista, que por filho del-Rei Dungria, e fama de sua grande bondade, e cavalarias lhe foi dado em Constantinopla, e a rogo de S. Giraldo que então era Bispo de Braga, deu parte delle á Sé da dita Cidade, o qual elle recebeo em mui grande dom, e o pôz com outras Reliquias da Egreja, e depois que assi o Conde D. Anrique veio de Jerusalem não lhe cessaram guerras com os Lionezes, e ganhou-lhes muita terra até chegar a Estorgua, a qual tendo tomada, e metida sob seu senhorio, dali os guerreou fazendo continuamente muitas cavalgadas pela terra estragando-lhes pães, e vinhas, matando, e prendendo muita gente delles, com que os pôz em tanto aperto, que se lhe não podiam defender, e lhes foi forçado preitejarem-se por esta guiza, que se El-Rei D. Affonso de Castella seu primo chamado Emperador, lhes não soccorresse até quatro mezes, elles lhe entregassem a Cidade de Lião com todas as rendas, e senhorio que El-Rei nella tinha. E tendo-a assi preitejada veio o Conde a doecer de modo, que bem conheceo não haver nelle vida. Pelo qual vendo-se elle em tal ponto chamou seu filho D. Affonso Anriques, e lhe fez uma falla muito de Cavaleiro entendido, e esforçado em esta maneira. «Filho esta hora derradeira que me Deos ordena para te haver de leixar com a vida deste mundo me faz, que te veja, e fale com dobrado amor, e sentido do nosso apartamento, e por esso assenta em teu coração minhas palavras como de pai a quem após estas já não has douvir outras. Deves filho de saber, que o poderio que o Senhor Deos neste mundo ordenou de alguns Princepes sobre outros sometidos a elles foi por tal, que os máos sejam constrangidos, e os bons vivam entre elles em paz, e assocego, porque conservação é dos bons, e pungimento dos máos, pelo qual filho more sempre em teu coração vontade de fazer justiça, virtude é que dura para sempre na vontade, e corações dos justos, e dá igualmente seu direito, que é o maior louvor, e merecimento que os Principes em seu regimento podem alcançar, que todo o governo, e bem commum consiste principalmente em duas cousas, a saber: em premio, e em pena; e assi como os bons pela justiça se fazem milhores recebendo premio, e galardão de suas boas obras, assi os máos vem a ser bons, ou a menos cessam de seus males com receo da pena, e por tanto faze filho sempre como hajam todos direito assi grandes como pequenos, e nunca por rogo, nem cobiça, nem outra nhuma afeição leixes de fazer justiça, que o dia que um só palmo a leixares de fazer logo no outro se arredará de teu coração uma braçada. «Trabalha-te muito de saber se os que tem teu carrego fazem justiça, e direito compridamente, e se a fizerem, faze-lhe compridamente bem, e mercê, e se o contrario, dá-lhe pena segundo seu merecimento, por os outros tomarem castigo, não consintas em modo algum, que os teus sejam soberbos, nem atrevidos em mal fazer, que perderás teu preço, e estimação se taes cousas não vedares; mas segue todavia justiça temendo, e amando muito a Deos, para que sejas dos teus amado, e temido, tendo Deos em tua ajuda, terás as gentes para teu serviço, e sem ella não ha poder, nem saber que te aproveite, de sua mão somos isso que somos, e o que temos não teriamos, se da sua mão, e bondade o não tivessemos, e portanto trabalha-te por conservar em seu serviço. O que tiveres, e de toda esta terra que te eu leixo Destorgua até Lião não percas della um palmo que eu a ganhei com grande fadiga e trabalho. Toma filho do meu coração um pouco; porque sejas esforçado, e sem medo: aos fidalgos sê companheiro, e dá-lhe dos teus dinheiros, e aos Conselhos faze gazalhado, e trata bem, e chama agora estes Destorgua, e mandarás que te façam logo menagem da Villa, e des que me levarem a enterrar logo te torna, e não a percas, e daqui conquistarás toda a outra terra adiante, ou manda-me com alguns meus vassalos, e teus que me vão enterrar a Santa Maria de Braga, que eu povoei. Tudo esto filho faze assi com a minha benção; porque sejas como filho de benção a serviço de Deos com muita honra prosperada». CAPITULO V _Como D. Affonso Anriques tanto que seu pai faleceo se fez chamar Principe, e levando-o a enterrar se alçou em tanto a terra com sua mãi Dona Tareja_. Desta doença se veio a finar o Conde D. Anrique em Estorgua dous mezes, e cinco dias antes que o prazo de Lião fosse acabado. Seu finamento foi no anno de nosso Senhor de mil cento e doze, (1112) e tanto que elle faleceo logo seu filho D. Affonso Anriques ficando em idade de dezoito annos se fez chamar Principe, dando ordem como o corpo de seo pai fosse mui honradamente levado a Santa Maria de Braga onde se mandara lançar, e perguntou a seus vassallos se iria com elle a seu enterramento, ou se ficaria, e elles disseram que fosse com seu pai, e o honrasse, nem por isso temesse nada da terra, porque obrar virtude nunca deu a ninguem perda, e então se foi com seu pai; porque mais honradamente fosse enterrado, e em quanto assi foi com elle tomaram-lhe toda a terra de Lião que elle tinha por sua, e a terra de Galiza lhe ficou que lha não poderam tomar. Quando elle vio a terra tomada mandou desafiar a El-Rei D. Affonso de Castella chamado Emperador seu primo com irmão filho do Conde D. Reymão de Tolosa, e de Dona Urraca irmã de sua mãi a Rainha Dona Tareja, mas logo foram reconciliados, e amigos, e então se foi a Portugal, e não achou onde se acolhesse: porque toda a terra se alçara com sua mãi a qual cazou com D. Vermuy Paes de Trava, e depois D. Fernando Conde de Trastamara seu irmão delle lha tomou, e cazou com ella, e D. Vermuy Paes cazou depois com uma filha desta Rainha D. Tareja, e do Conde D. Anrique já finado, que elle tinha em sua casa, que chamavam Dona Tareja Anriques, e por este peccado foi feito em Galiza um Mosteiro chamado de Sobrado. Outra filha ficou do Conde D. Anrique, que havia nome D. Sancha que foi cazada com D. Fernão Mendes. Este Conde D. Fernando de Trastamara acima nomeado, era naquelle tempo o maior homem de Espanha que Rei não fosse, e por esta causa se alçou toda a terra ao Principe D. Affonso Anriques com sua mãi. CAPITULO VI _Como o Principe D. Affonso Anriques peleijou com seu padrasto, e foi vencido, e como tornando outra vez á batalha o venceo, e prendeo, e a sua mãi com elle_. Quando o Principe D. Affonso Anriques vio que não tinha onde se acolher, e que sua mãi tão pouco delle curava, segundo mal peccado muitas vezes vemos as mãis com novos esposos se tornarem madrastas, trabalhou de lhe furtar dous Castellos: um delles foi Neiva, e o outro o Castello da Feira terra de Santa Maria, e destes dous Castellos fazia muita guerra a seu padrasto, tanto que vieram ambos á fala com a Rainha Dona Tareja de presente, e disse o Conde D. Fernando: «Principe não nos afadiguemos mais nesta contenda, mas ajuntemo-nos um dia em batalha, eu e vós quando quizerdes, e ou vós vos sahireis de Portugal, ou eu». Respondeu o Principe D. Affonso. «Não devia de aprazer a Deos tal cousa que vós me queirais deitar fóra da terra que meu pai ganhou». E acodio a Rainha sua mãi dizendo. «Minha é a terra, e será que meu pai ma deu, e ma leixou». Disse então o Conde D. Fernando a ella «Não andemos mais neste debate, ou vós vos ireis comigo para a Galiza, ou leixareis a terra a vosso filho, se mais poder que nós». Sobre esto se desafiaram para um dia certo, e vieram-se ájuntar em Guimarães em um lugar que chamam Santilanhas, elles estando prestes para peleijar disse a Rainha ao Conde seu marido: «Comvosco quero eu ir á batalha; porque tenhais mais rezão de fazer mais por meu amor, e trabalhai todavia muito por prender o Principe meu filho, que maior poder temos que elle». A batalha foi gravemente peleijada, e o Principe D. Affonso lançado do campo desbaratado, e indo elle assi uma legoa de Guimarães encontrou com D. Egas Moniz seu Aio, que o vinha ajudar, e ser com elle na batalha, e quando D. Egas o vio disse: «Que é esto Senhor, como vindes vós assi». Respondeo o Principe: «Venho mui desbaratado, que me venceu meu padrasto, e minha mãi, que hi era com elle». Disse então D. Egas: «Não fizestes bem, nem sizo dardes batalha sem mim, mas tornai, e eu comvosco, e espero em Deos, que a hi prendamos vosso padrasto, e vossa mãi, recolhei a vós toda vossa gente que vem fogindo, e tornemos a peleijar». Respondeo o Principe: «Praza a Deos que assi seja». Tornáram então á batalha, e venceram-no, e o Principe prendeu hi seu padrasto, e sua mãi, e quando se o Conde D. Fernando vio prezo, cuidou logo de ser morto, e fez preito, e menagem ao Principe de nunca mais entrar em Portugal, e o Principe o soltou e foi-se, uns dizem que para sua terra, outros, que para terra dultra mar, sem nunca mais tornar. O Principe D. Affonso poz então sua mãi em ferros e ella vendo se assi preza, disse. «Filho D. Affonso prendeste-me, e desherdaste-me da terra, e honra que me leixou meu pai, e quitaste-me de meu marido, a Deos pesso que prezo sejais vós assi como eu me vejo, e porque puzestes minhas pernas em ferros que vos ajudaram a trazer, e a criar com muitas dores em meu ventre, e fóra delle, com ferros sejam as vossas quebradas, a Deos praza que assi seja». E depois aconteceo a este Principe D. Affonso sendo já Rei, que lhe quebrou uma perna em sahindo pela porta de Badalhouce, e foi prezo del-Rei D. Fernando de Lião, como se ao diante dirá, dizendo todos, que lhe acontecêra por lho assi mal dizer sua mãi. CAPITULO VII _Como o Principe D. Affonso Anriques peleijou com El-Rei D. Affonso de Castella, chamado Emperador como seu avô, e o venceo, e tomou as Fortalezas que estavam alçadas por sua mãi, e como andando nisto veio um Rei Mouro cercar Coimbra_. Vendo assi Dona Tareja Rainha como o Principe D. Affonso seo filho a não queria soltar enviou seus recados o mais secreto que pôde a El-Rei D. Affonso de Castella chamado Emperador como El-Rei D. Affonso seu avô, em que lhe fazia queixume do Principe seu filho a ter preza dizendo que Portugal pertencia a elle de direito, e que assi por elle cobrar o que seu era, como pelo que devia á virtude em acudir por uma sua tia posta fóra de seu marido, e em prizão tão deshonesta lhe pedia, que a quizesse vir livrar, pois não tinha a quem com mais rezão se soccorresse, e lhe podesse valer. Quando El-Rei de Castella vio o recado de sua tia, aprouve-lhe muito com elle, e fez logo prestes suas gentes de Castella, e de Lião, e de Aragão, e de Galiza, e abalou com mui grande poder contra Portugal. Os Portuguezes desque souberam que El-Rei de Castella ajuntava seu poder para vir conquistar Portugal, e tirar sua tia da prizão, houveram todos seu acordo, que estivessem com o Principe D. Affonso Anriques, e o ajudarem contra elle, e então se vieram todos para o Principe mui guarnecidos de suas armas, e ajuntaram-se com elle em um lugar que chamam Val de Vez, entre Monção e Ponte de Lima, e ali esperaram El-Rei de Castella, o qual tanto que chegou logo uns e os outros ordenaram suas azes para a batalha, e dambas as partes foi grande peleija, e tão grande vencimento por parte do Principe D. Affonso, que El-Rei de Castella foi ferido na perna esquerda de duas lançadas, e sahio-se da batalha em um cavallo fogindo, acolhendo-se o mais que pode a Toledo, por haver medo de com este desbarato perder a Cidade, e prenderam-lhe na batalha sete Condes, e outros muitos Cavalleiros, e mataram-lhe os Portuguezes muita gente. E o Princepe D. Affonso se foi logo dalli levando comsigo sua mãi preza, e todos os lugares que se levantáram contra elle os tomou por força, e tratou asperamente os que os tinham. Emquanto elle assi andava na guerra com El-Rei de Castella, e com aquelles que tinham os Castellos por parte de sua mãi, El-Rei Achi Mouro veio guerrear Coimbra com grande multidão de Mouros que ao juizo de todos passariam de trezentos mil de pé, e teve-a cercada muitos dias combatendo-a mui rijamente, mas os da Cidade com grande esforço, e ajuda de Deos se defendiam mui bem matando muitos dos Mouros com setas, e pedras, e muitos delles morriam por fome, e pestelencia que no arraial havia. Aos da Cidade nunca lhes faleceo mantimentos em abastança em quanto estiveram cercados, e vendo os Mouros a Fortaleza da Cidade, e sentindo a abondança de mantimentos que dentro havia, e a mortandade da peste, e a fome do arraial, que cada dia viam, desesperaram de a tomar, e levantáram o cerco destruindo pães, vinhas, olivaes, e foram-se perdendo grande parte da gente que trouxeram, e tanto estava a Cidade abastada, que depois do cerco alevantado davam cinco quarteiros de trigo por um maravedi de ouro, e dous moros de vinho por outro maravedi, e valia o vinho pelo preço dantes do cerco, e este cerco se poz nove dias por andar de Junho no anno do Senhor de mil cento e dezasete (1117). CAPITULO VIII _Como El-Rei D. Affonso de Castella chamado Emperador veio cercar o Principe D. Affonso Anriques seu primo a Guimarães, e como D. Egas Moniz lhe fallou, de modo que lhe fez levantar o cerco_. A cabo de pouco tempo, estando El-Rei D. Affonso de Castella chamado Emperador em Toledo sentindo muito seu desbarato, e vencimento que delle houve o Principe D. Affonso Anriques tendo elle que toda Espanha lhe havia de obedecer, e conhecer senhorio, determinou em mui secreto conselho tornar a Portugal, e ajuntada muita gente o mais dessimulada que pode, abalou para Galiza, e chegou de supito a Guimarães onde cercou o Principe D. Affonso, que dentro estava despercebido, nem a Vílla estava bastecida, que a poucos dias a tomára El-Rei de Castella se tivera o cerco, e sobre esto vendo D. Egas Moniz Aio do Principe o grande perigo em que seu Senhor estava, vestindo sua capa pelo trajo, e nome daquelle tempo, cavalgou secretamente um dia pela manhã cedo, sem levar ninguem comsigo, e foi-se ao arraial dos imigos. Cavalgara El-Rei, e andava alongado de redor da Villa, vendo por onde mais ligeiramente se poderia combater, e tomar, e chegando D. Egas a elle, fez-lhe sua reverencia, e beijou-lhe a mão; El Rei salvou-o perguntando-lhe a que vinha. Respondeo D. Egas que queria falar com elle; então se apartáram ambos, e perguntou-lhe D. Egas porque se viera lançar sobre aquella Villa? E El-Rei respondeo, que viera cercar D. Affonso Anriques seu primo porque lhe não queria conhecer senhorio, nem ir a suas Cortes como era rezão, e como lhe faziam em toda Espanha, que sua determinação era leva-lo prezo comsigo, e dar a terra a quem lhe conhecesse senhorio com ella. Respondeo entonces D. Egas, e disse: «Senhor não fostes bem aconselhado virdes aqui cercar esta Villa, porque o Principe vosso primo é tal Cavaleiro como vós bem sabeis, e tem comsigo dentro tanta gente, e tão boa afóra muita que tem pela terra muito a seu querer, e mandar, que grande será o poder, e muito mor a ventura de quem lhe forçar, e tomar a Villa, porque Senhor havei por certo, que destes movimentos das guerras que com vosso primo houvestes, elle foi sempre tão suspeitoso, e receado de vós, e se poz tanto a recado para semelhantes cazos, esperando cada dia de se ver nelles comvosco, como se ora vê, que toda sua terra e Fortalezas fez guarnecer, e abastecer grandemente, e assi as tem bem providas, e bastecidas, em especial esta Villa, em que a miudo está que a meu entender, outra mais gente da que está, dentro, se nella podesse caber teria abastança para muitos annos de cerco, pois estando vós tempo sobre ella, ainda que escuzado tendes meu conselho, poderia trazer trovação a vosso estado, assi dos de vosso Reino, como dos Mouros que tão vizinhos, e fronteiros tendes, e quanto ao que Senhor dizeis que vosso primo vos conheça senhorio, e vá a vossas Cortes, certo a mim parece rezão, e ainda Senhor, me parece mais, que se vos partirdes daqui para vossa terra, que não pareça que vosso primo por força, nem rendimento de medo o faz; eu acabarei com elle que vá a vossas Cortes onde vós quizerdes, e disto Senhor vos farei preito, e omenagem». Quando El-Rei de Catella esto ouvio, prouve-lhe muito de receber a omenagem de D. Egas Moniz a cerca dello, ficando-lhe de se partir ao outro dia, e depois de dada, e recebida a dita menagem D. Egas se tornou para a Villa mui callado como della saira, sem dar conta a ninguem do que viera fazer. CAPITULO IX _Como El-Rei D. Affonso de Castella levantou o cerco de sobre Guimarãez, e do desprazer que o Principe D. Affonso teve, do que nisso fez D. Egas Moniz_. Ao dia seguinte levantou El-Rei de Castella o cerco, e se partio com toda sua Corte, como ficára a D. Egas Moniz, e o Principe D. Affonso vio partir El-Rei, e espantando-se muito porque não sabia a causa, perguntou a D. Egas Moniz que lhe parecia de tal alevantamento, e partida de El-Rei de Castella, porque entendia que era? D. Egas lhe contou então tudo o que era, e como a causa passára; ouvindo o Principe esto, houve grande pezar, e foi mui indinado dizendo que escolhera antes ser morto, que fazer semelhante, nem ir a suas Cortes. Disse D. Egas: «Senhor não haveis de que vos queixar, que no que eu fiz vos tenho feito muito serviço; porque El-Rei de Castella por força vos tomara, segundo estaveis desapercebido de mantimentos, e de todo o que para vossa defensa cumpria, assi que em todo o cazo foreis prezo, ou morto, e o senhorio de Portugal dado a outrem, de tudo esto eu vos livrei, e quanto á menagem que fiz a El-Rei de Castella não vos dê desso nada, que assi como o fiz sem vosso mandado, assi o livrarei sem vosso conselho com a graça de Deos». CAPITULO X _Como D. Egas Moniz se foi apresentar com sua molher e filhos a El-Rei D. Affonso de Castella pela menagem que lhe feito tinha em o cerco de Guimarães_. Vindo o tempo do prazo em que o Principe D. Affonso Anriques havia de ir ás Cortes, que se faziam em Toledo, segundo a menagem que D. Egas fizera a El Rei de Castella, ordenou-se D. Egas de todo, e partio com sua molher, e filhos, e chegáram a Toledo, foram decer ao Paço onde El-Rei estava, e ali se despiram de todolos panos senão os de linho, e sua molher com um pelote mui ligeiro, trajo daquelle tempo, descalçaram-se todos, e pozeram senhos baraços nos pescoços, e assi entráram pelo Paço onde El-Rei estava com muitos Fidalgos, e Cavalleiros, e chegando a El-Rei pozeram-se todos assi como iam de joelhos ante elle, falou então D. Egas Moniz, e disse. «Senhor estando vós em Guimarães sobre o Principe vosso primo meu Senhor, eu vos fiz a omenagem que sabeis, a qual eu fiz por ver que sua pessoa e honra áquelle tempo corria grande risco de se perder por na Villa não haver mantimentos, nem percebimento algum para defensão, se lhe vós tivesseis o cerco, e eu porque o criei de seu nacimento, quando o vi em tamanho trabalho, e perigo, tomei de mim aquelle conselho, de me ir a vós, e fazer esso que fiz». Recontando dahi ávante perante todos cumpridamente o feito como passara, e em cabo de todo disse: «Por causa desto Senhor me venho presentar ante vós, e eis aqui estas mãos com que vos fiz a menagem, e a lingua com que vo-la disse, e demais vos trago aqui minha molher, e estes moços meus filhos para se vossa ira houver por maior minha culpa que a vingança do meu corpo só, por esta molher, e por estes moços a cuja fraqueza, e idade, a ira dos imigos soe apiedar-se, seja vossa indinação satisfeita, prestes Senhor vos trago tudo para esso, tomai se vos assi parece por culpa de um só vingança de muitos, do pai, da mãi, de seis filhos quejanda vossa mercê for, não me pezará que vossa sobeja vingança faça maior meu cumprimento, e que se diga em todo o tempo mais comprio D. Egas, do que errou». Desque D. Egas acabou de falar ficou El-Rei mui irado, e quizera manda-lo matar, dizendo que o havia enganado: mas os Fidalgos, e nobres que ahi estavam lhe disseram, que tal não fizesse, que não tinha rezão de lhe fazer nhum mal, porque D. Egas fizera todo seu dever como mui nobre, e leal vassallo, quejando elle era, e todos os Principes deviam de desejar ter muitos tais, que seu mesmo fora o engano de se deixar enganar, e que antes por seu bom nome tinha razão de lhe fazer muita honra, e mercê, e manda-lo em paz. El-Rei assocegado de sua sanha pelo que lhe diziam, conhecendo que era assi na verdade perdeo todo o despeito de D. Egas, e quitou-lhe a omenagem que lhe feito tinha, e depois de lhe fazer muitas mercês o mandou livremente elle, e sua molher, e filhos tornar para Portugal. CAPITULO XI _Como D. Egas Moniz livremente despedido del-Rei D. Affonso de Castella se tornou a Portugal, e o sahio a receber o Principe, o qual apoz esto juntou gente, e foi tomar Leiria_. Desque D. Egas Moniz se assi partio del-Rei de Castella quite, e livre de sua menagem, e com sua graça veio caminho de Guimarães, e ante que ahi chegasse, o Princepe D. Affonso Anriques sabendo sua vinda o sahio a receber com toda sua Corte mui alegre como quem parecia que aquella ora cobrava de novo um tal servidor, e vassallo, como era D. Egas; porque sempre esperára que elle em Castella fosse morto, ou deshonrado para sempre, e tudo sómente por seu respeito, ou serviço, e assi quanto lhe estas cousas tinham dado pezar, lhe davam agora sobejo prazer com sua vinda em salvo. Quando D. Egas chegou ao Princepe quiz-lhe beijar as mãos, e o Principe as tirou a si, e abraçou-o mui de vontade com grande gazalhado parecendo-lhe com muita rezão que tal obra, e merecimento mais merecia ser recebida com mostrança de muita honra, e agradecimento que sobgeição, e assi vieram ambos fallando com muito prazer até Guimarães, onde depois dalguns dias o Princepe por se prover de não cair em outra tal mingua, e desastre de se ver cercado, e não apercebido como dantes, começou abastecer seus Castellos, e Villas de todalas cousas que para sua defenção lhe compriam, e em dar ordem a esto per si, e pelos seus, passáram alguns dias. E dahi veio-se a Coimbra onde lhe pareceo que estava mui de vago, e sem proveito, pois se não occupava em mais, que no que tinha mandado aos seus que fizessem pelo qual ajuntou alguma gente, e fez entrada na terra dos Mouros, e no primeiro lugar em que deu foi Leiria a qual combateo rijamente, e posto que o Castello fosse muito forte, e os Mouros o mui bem defendessem tomou-o por força, e os mais dos Mouros que ahi achou andáram á espada, e assi esta Villa tomada o Princepe a deu ao Prior de Santa Cruz de Coimbra, por ser homem em que elle tinha grande devação, e fez a elle, e ao Moesteiro doação della no temporal, e espritual, e o Prior lha teve em mui grande mercê; e pondo-lhe logo por Alcaide no Castello Paio Guoterres homem bom Fidalgo. E desque o Princepe D. Affonso Anriques assi tomou a Villa de Leiria, seguio mais sua entrada pela terra dos Mouros, e tomou Torres Novas, e então se tornou para Coimbra com muita honra, e vitoria, e os seus ricos, e abastados de despojos, e estas duas Villas foram tomadas no mez de Dezembro andando a era do Senhor em mil cento e dezasete annos (1117) de sua idade. CAPITULO XII _Como o Principe D. Affonso Anriques abalou com gente a guerrear aos Mouros a terras de Alentejo, e como no caminho adoeceo, e morreo D. Egas Moniz, e do seu enterramento, e da muita devação dos Cavalleiros daquelle tempo_. Depois que o Principe D. Affonso Anriques tornou de ganhar Leiria, e Torres Novas, esteve em Coimbra alguns dias, e vendo que tinha suas terras, e Fortalezas mui providas, e postas em ordem do que lhe compria, e tambem que de Castella estava seguro de guerra por algumas rezões que a Estoria não declara, consirando elle, que não devia, nem podia milhor empregar o bem, e honra que seu pai, e elle ganháram, que em serviço de nosso Senhor de cuja mão a tinham récebido, e como não havia então nhum serviço de Deos mais necessario em Espanha occupada de Mouros, que serem guerreados, e lançados fóra della, segundo fora sempre seu proposito, e vontade, houve conselho com os seus de fazer guerra nas terras de Alentejo especialmente na Comarca do Campo Dourique, e esto por duas rezões, a primeira, porque a terra era mui povoada, e de poucas Fortalezas, em que os seus haveriam assaz mantimentos, e prezas; a segunda, e principal porque se El-Rei Ismar, que regia em Espanha toda a maior parte dos Mouros contra Ponente, viesse a peleijar com elle, e dando-lhe Deos delle o vencimento que esperava, toda a terra que se chama Estremadura, que era sob seu senhorio, não haveria poder de se lhe defender, e o Princepe D. Affonso tinha que iria acompanhado de tão boa gente, que era bastante para peleijar com elle. E tanto que juntou, e teve sua gente prestes, partio de Coimbra, e a poucas jornadas no Campo Dourique adoeceo á morte D. Egas Moniz seu Aio, e se finou, de cujo falecimento o Principe tomou pezar, e o sentio grandemente mostrando o menos pelo da gente, e feito a que ia. Cazo é a morte de bons vassallos, e servidores em que os Princepes sempre devem mostrar sentimento, por animarem mais os que ficam para seu serviço, e se mostrarem virtuosos, e bons, não sómente em vida, mas depois de mortos, porque as virtudes (onde ha virtude) auzentes devem de ser queridas, e lembradas. Então mandou o Princepe tornar com o corpo de D. Egas tantos dos seus, e taes pessoas com que podia ir honradamente. Mandou-se elle enterrar no Moesteiro do Paço de Souza, que elle mesmo fez, e o seu moimento está dentro da Capella que se chama do Corporal, ou dos Freguezes, e entre elle, e a parede não está se não um moimento baixo, esto se poz aqui para se saber onde jaz tão nobre, e honrado Cavalleiro. Elle fundou em sua vida dous Moesteiros, este do Paço, e o de S. Martinho de Cucujães áquem da Cidade do Porto, os quaes dotou de muitas possessões, e guarneceo de grandes ornamentos, no que é bem de notar, e seguir a muita devoção dos Cavalleiros daquelle tempo, que com todas suas presas, e trabalhos, e grandes, e continuas despezas, em guerra tão santa, e quasi do Reino a dentro sendo então o Reino mais pequeno, e menos rico, não se descuidáram por esso de todo o serviço de Deos, conhecendo que o serviço de Deos salva para o outro mundo, e acrescenta a cavallaria, e honra deste mundo, e por tanto vemos muitas Egrejas honradas, e grandes, e sumptuosos Moesteiros feitos daquelle tempo, e nhuns Paços, e cazarias maiores, e pompa sobeja, edeficadas, mas os passados segundo parece, fundavam-se mais em fazer, guarnecer moradas para as Almas, que para os corpos, lembrando-se sómente dos corpos o enterramento que delles havia de ser, mais que a vivenda, que havia deixar de ser. CAPITULO XIII _Como o Principe D. Affonso passado o Tejo foi buscar El-Rei Ismar, que com quatro Reis, outros, e infinda Mourama vinha contra elle, e como sentaram seus arraiaes um á vista do outro_. Finado D. Egas, e mandado assi enterrar como dito é, o Princepe D. Affonso Anriques como quer que lhe muito pezasse do falecimento de tão honrado Cavalleiro, em quem tinha grande confiança; seguio avante o que ia fazer, por serviço de Deos, e partindo daquelle lugar, onde se D. Egas finara, passou o Tejo, e as charnecas mui grandes, e despovoadas que agora ainda hi ha, e então seriam maiores, e sahindo dellas começou a fazer grande guerra aos Mouros, correndo-lhe a terra, e tomando-lhe Villas, e lugares, e fazendo grandes cavalgadas, e havendo muitos vencimentos contra elles, do que tanto que El-Rei Ismar houve nova, mandou requerer toda a mourama dos lugares, e outras partes do redor, mandando seus alvites, que elles entre si hão por homens de santa vida, que fossem pregar, e requerer da parte de Mafamede, que acorressem á terra que estava em ponto de se perder, pelo qual houve El-Rei Ismar muita em sua ajuda de Mouros dáquem, e dalém mar, e outras gentes barbaras, que era infinda a multidão delles em tanta desigualança dos Christãos, que se ha por certo serem pouco menos de cento para um, entre os quaes vieram quatro Reis outros, cujos nomes não achamos escritos, e vieram com estas gentes molheres vezadas a peleijar como as Amazonas, o que foi sabido, e provado depois pelos mortos, que acharam no campo. O Princepe D. Affonso quando soube que El-Rei vinha com aquellas gentes, foi mui ledo, e moveo contra elle, com mui grande esforço, e vontade de servir a Deos em tal afronta, e andando suas jornadas veio a um lugar, que se hora chama Cabeças de Rei junto com Castro Verde, onde estava uma Ermida, e nella um Irmitão. Esto era a hora da Sexta, ali se viram as Ostes ambas, e o Princepe D. Affonso, e El-Rei Ismar sentáram seus arraiaes um á vista do outro, em vespera de Santiago, anno de N. Senhor de mil cento e trinta e nove (1139). CAPITULO XIV _Como os Portuguezes vista a multidão dos Mouros requereram ao Principe D. Affonso que escuzasse a batalha, e da fala que lhe o Princepe fez sobre esso_. Os Christãos que eram com o Principe, vendo a grande multidão dos Mouros sem conto, começaram de poer duvida em se haver de dar batalha pela mui grande desigualança, que havia delles aos Mouros. Então se foram ao Principe, e lhe disseram: «Senhor quem sua carga compassa póde com ella, e vós vedes bem a multidão de gente que El-Rei Ismar traz comsigo, e cuidardes de com tão pouca, como tendes peleijar com elle, é cousa fóra de toda a rezão, que ainda parece mais tentar a Deos, que sezuda valentia, nem se deve haver por serviço de Deos, antes por muito seu desserviço para tamanha aventura, e risco de uma só ora o senhorio de Portugal, ganhado em tantos de muitos dias, e annos, pelo qual Senhor, a todos parece, e não com mingoa de coração, e vontade que em nós nunca achastes, devesse ter modo por onde toda via se escuze esta batalha». Quando o Princepe D. Affonso ouvio aos seus esto, pezou-lhe muito, e posto que nelle só houvesse o esforço que a toda a Oste compria, lhe pareceo necessario fazer a todos uma falla, a qual depois de todos ajuntados, assi começou. «Meus bons vassallos, e amigos, muito vos deve lembrar a tenção e desejos com que partimos de Coimbra para servir a Deos, e punhar por sua santa Fé Catholica, contra estes seus imigos, e nossos, e ora estando nós já em vista dos que viemos buscar, será grande mingua, e ainda poder-se-ia mais azinha de Portugal seguir essa perda, não peleijando, que peleijando receaes se fogissemos ás batalhas a que nos Deos, e nossas vontades tão acerca trouxeram, que já nosso recolhimento não podia leixar de parecer fugida, ou ser desbarato. Deos por sua piedade nunca abrio mão dos que em elle esperam, nem para dar, ou tolher, a quem lhe praz vitoria, ha mister poder de mais, nem menos gente. Lembre-vos quantas vezes, e em quantos lugares, peleijaram nossos antecessores com estes imigos da Fé, e os venceram poucos, pois não é agora menos poderosa a mão do Senhor Deos para nos ajudar contra El-Rei Ismar, do que foi nos tempos passados para ajudar a elles, e assi outros muitos Princepes, e Senhores Christãos, em semelhantes casos, e tanto mais da ventagem de nossos imigos; deve nosso coração, e esforço quanto temos mais justas causas, e rezão de peleijar. Nós peleijamos por Deos, pela Fé, pela verdade, e estes arrenegados que vedes, peleijam contra Deos, pela falsidade. Nós por nossa terra, elles pela que nos tem tomada, e furtada, e querem furtar. Nós pelo sangue, e vingança de nossos Antecessores, elles por ainda cruelmente espargerem o nosso. Nós por poer nossos pais, nossas mãis, nossas pessoas, molheres, e filhos, com liberdade, elles a nós todos em seu cativeiro, a terra que hoje em dia tem, e pessuem em Africa, em Espanha, nossa foi, e a Christãos por nossos peccados a tomaram, e agora que Deos quer que a cobremos, com seu desfazimento, e destruição, não desfaleçamos a vontade do Senhor Deos, e a tamanho bem nosso; oh quanta mercê nos Deos faz Cavalleiros, e a quanto bem nos chegou, se lho bem conhecessemos, chegou-nos a um dia e feito tão glorioso, quanto Cavalleiros não poderiam, nem saberiam mais desejar. Chegou-nos a peleijarmos por elle, e por nós, peleija sua, e nossa contra cinco Reis Mouros imigos da sua Santa Fé, em que nos elle salvou, peleija em que mataremos, seguros de culpa, morreremos mais seguros de galardão, matando, ganharemos terra, e honra temporal, morrendo ganhamos o Ceo, e gloria eterna, matando tolhemos a vida a nossos imigos, e morrendo damos vida e gloria a nós para sempre, a quem se deve mais nossa vida que a Deos que no la deu, nem nosso sangue que a Christo, que o seu proprio por nós espargeo, nem que podemos fazer neste mundo por elle, que muito mais, o primeiro não fizesse por nós, elle sendo filho de Deos, se abaixou a fazer homem por nos fazer filhos de Deos, e nós filhos de homens, ainda por elle não faremos por onde filhos de Deos pareçamos? Elle padeceo por nós, só nu, e despido, sem galardão, e nós cubertos de armas, e acompanhados, e com galardão, muito maior que merecimento, receamos peleijar por quem assi por nós morreo, para que nos fez logo Deos, para que nos teve amor tão sobejo, que por remir tão ingratos servos, deu seu proprio filho, sendo logo (quanto assi por nós, e nós possamos fazer por elle) feito tudo só por nós, e para nós, que Deos nada lhe faz mister? Certo não é de homens, nem de Cavalleiros, e muito menos de Christãos, e mais nós Portuguezes recearmos trabalho, que nos sae em tanta gloria, nem morte que nos passa a vida para sempre segura da morte, pelo qual meus bons Cavalleiros tenhamos muita Fé, e muita Esperança, em N. Senhor, o dia de amenhã em que com sua graça venceremos a batalha, será de tanto prazer para nós, e nos aprezenta tanta gloria e honra para o outro mundo, e para este cuidando no premio, faz ligeiro o trabalho; não cureis de nhumas rezões, nem temores que a lembrança de Deos só, e de tanto bem nosso, no los deve lançar fóra de nossos corações. Hi-vos agora todos em boa hora a repouzar, e esperai com muito prazer, e descanço o dia damenhã, tão ledo, e de prazer, como nunca foi a Cavalleiros, tanto que amanhecer vamos logo com a ajuda de Deos, e sua graça ao que viemos fazer, que elle ha de ser comnosco como sempre o é com os seus, e elle por sua piedade no-lo dará feito, e vencido, em nossas mãos, e de manhã prazendo a elle acabareis de confirmar para sempre o bom nome, e louvor que os Portuguezes tem de saberem bem aguardar seu Senhor nas pressas, e perigos maiores, porque com a ajuda do Senhor Deos, eu espero tomar tal lugar na peleija, onde me faça mester vossas mãos, e ajuda». Quando os Portuguezes ouviram taes palavras, com tanto e tão confiado esforço do Principe, foram assi todos esforçados, e animados de um coração para servir a Deos, e a elle naquella batalha que pareceo ser trespassado em cada um o mesmo esforço, que no Princepe viam, responderam todos mui ledos, que pois elle queria, e lhe assi perecia, elles estavam mui prestes para fazer o que sempre fizeram aquelles donde elles decendiam. CAPITULO XV _Como N. Senhor appareceo aquella noite ao Principe D. Affonso Anriques, posto na Cruz como padeceo por nós_. Quando foi contra a tarde depois que o Princepe fez poer as guardas em seu arraial, o Irmitão que estava na Irmida, que acima dissemos, veio a elle, e disse-lhe: «Princepe D. Affonso Deos te manda por mim dizer, que pela grande vontade e desejos que tens de o servir, quer que tu sejas ledo, e esforçado, elle te fará de menhã vencer El-Rei Ismar, e todos seus grandes poderes, e mais te manda por mim dizer, que quando ouvires tanger uma campainha que na Irmida está sairás fóra, e elle te apparecerá no Ceo, assi como padeceo pelos peccadores». (E já antes desto elle tinha feito, e dotado com grande devação o Moesteiro de Santa Cruz de Coimbra, á honra da morte e paixão que N. Senhor recebeo na Cruz, pelo qual é de crer que lhe quiz Deos assi apparecer, porque por onde cada um mais merece, por hi o mais honra, e alevanta) Des que se partio o Irmitão, o Princepe D. Affonso poz os giolhos em terra, e disse: «Oh bom Senhor Deos todo poderoso a que todalas creaturas obedecem, sogeitas a teu poder, e querer, a ti só conheço, e tenho em mercê os grandes bens e mercês que me tens feito, e fazes em me mandares prometer tão grande cousa, como esta, e tu Senhor sabes que por te servir, passei muita fadiga e trabalho contra estes teus imigos, com os quaes, por serem contra ti, eu não quero paz, nem os ter por amigos, e pois em quanto viver, me não heide partir de teu serviço á tua infinda piedade peço que me ajudes, e tenhas em tua santa guarda; porque o imigo da linhagem humanal não seja poderoso para torvar teu santo serviço, nem fazer que os meus feitos sejam ante ti aborrecidos». E desde que esto disse com outras muitas devotas palavras, encomendou-se a Deos, e á Virgem gloriosa sua Madre, acostou-se, e adormeceo, e quando foi uma hora, ante menhã tangeo-se a campa, como o Irmitão disséra, e então o Princepe saio-se fóra da sua tenda, e segundo elle mesmo disse, e dentro em sua Estoria se contem, vio Nosso Senhor em a Cruz no modo que disséra o Irmitão, e adorou-o mui devotamente com lagrimas de grande prazer, confortando-se, e animando-se com tal elevamento, e confirmação do Espirito Santo, que se afirma (tanto que vio N. Senhor) haver antre outras palavras falado alguma sobre coração, e espirito humano dizendo: «Senhor, aos Ereges, aos Ereges faz mister appareceres, que eu sem nhuma duvida creio, e espero em ti firmemente». Esto mesmo não é para leixar de crer, o que tambem se afirma que neste apparecimento foi o Princepe D. Affonso certificado por Deos de sempre Portugal haver de ser conservado em Reino, e o tempo, e caso, aquella ora sua virtude, e merecimentos eram taes para lho Deos prometer. E mais se afirma que por ser esta a vontade de N. Senhor confirmou-o depois um parceiro de S. Francisco homem santo, que veio a Portugal, do que nos tempos passados, e em nossos dias, Deos seja louvado, se vio muito grande mostra desto atégora, e será para sempre; tudo é para crer que N. Senhor queria, e faria a Princepe tão virtuoso, sobre que fundava Reino, e Reis tão virtuosos, para tanto seu serviço, e da santa Fé Catholica, e por suas cousas andarem por culpas dos tempos em mui falecida lembrança de escritura quiz Deos, segundo parece, que ficassem algumas em confirmada fama. CAPITULO XVI _Como o Principe D. Affonso Anriques depois de ordenar suas azes para peleijar com os Mouros no Campo Dourique foi levantado por Rei_. Tanto que N. Senhor desapareceo, o Principe mui cheio de prazer, e esforço, se veio para sua tenda, e fez-se armar, mandando dar ás trombetas, e atabales, e anafins, os do arraial foram logo todos levantados, e começaram-se de confessar, e ouvir suas Missas, e commungar encomendando-se todos a Deos, com grande devação, e alegria. Esto acabado partio o Princepe sua gente em quatro azes, na primeira meteo trezentos de cavallo, e tres mil homens de pé, e na reguarda fez outra az em que iam outros trezentos de cavallo, e tres mil de pé; uma das azes fez de duzentos de cavallo, e dous mil de pé, outra az fez de outros tantos, que eram por todos dez mil homens de pé, e mil de cavallo; na primeira az ia o Princepe com mui bons Cavalleiros, ia com elle D. Pero Paes Alferes que levava sua bandeira, e D. Diogo Gonçalves, que era grande rico homem; a reguarda foi encomendada a D. Lourenço Viegas, e a D. Gonçalo de Souza, e a az esquerda a Mem Moniz filho de D. Egas Moniz já finado, e a direita a seu irmão Martim Moniz. Não cessava o Princepe em ordenando as azes, e depois de ordenados, correndo por todos a anima-los, e esforça-los, chamando-os por seus nomes, trazendo-lhe á lembrança o que lhes tinha falado, e encomendado, e nelles cabia fazer, e assi desde que o Sol sahio, e ferio nas armas dos Christãos, maiormente indo acompanhados da graça de Deos resplandeciam e reluziam tão grandemente, que ainda que poucos fossem, não havia poder maior que os não temesse. Os Mouros tambem de seu cabo postos no campo, fizeram de si doze azes de gente mui grossa, assi de pé, como de cavallo, e quando os Senhores e grandes que estavam com o Principe viram as azes dos Mouros, e grande multidão delles sem conto, chegaram ao Principe, e disseram: «Senhor, nós vimos a vós que nos façais uma mercê, a qual será grande bem, e honra dos que aqui viverem, e aos que morrerem, e a todolos os de sua geração». O Princepe lhe respondeo que dissessem, que não havia cousa, que em seu poder fosse de fazer, que de boa vontade não fizesse, elles disseram: «Senhor, o que toda esta vossa gente vos pede é, que vós consintais que vos façam Rei, e assi haverão mais esforço para peleijar». Respondeo elle e disse: «Amigos seres irmãos, eu assaz tenho de honra, e senhorio antre vós, por sempre ser de vós mui bem servido, e guardado, e porque desto me contento muito, não me quero chamar Rei, nem se-lo, mas eu como vosso irmão, e companheiro, vos ajudarei com meu corpo contra estes infiels imigos da Fé, quanto mais que para o que dizeis o lugar, nem ora, não são convenientes, pelo qual para o feito em que estamos vós sede mui esforçados, e não temais nada, que o Senhor Jesu Christo, por cuja Fé somos aqui juntos, e prestes para peleijar, e esparger nosso sangue, como elle fez por nós, nos ajudará contra estes imigos, e os dará vencidos em nossas mãos, e o preciozo Apostolo Santiago cujo dia hoje é, será nosso Capitão, e valedor nesta batalha». Responderam elles todos: «Senhor praza a Deos que assi seja, e não menos o esperamos de sua graça, porém para elle ser milhor serviço de vós, e de nós neste feito, e em todos os outros adiante, é mui necessario que vos alcemos por Rei, e não deve uma só vontade vossa trovar a de todos que vo-lo tanto pedimos, e desejamos». O princepe vendo-se tão aficado delles, disse que pois assi era que fizessem o que lhes bem parecesse. Então todos o levantaram por Rei; bradando com grande prazer e alegria: «Real, Real, por El-Rei D. Affonso Anriques de Portugal». Anno de Christo de mil cento e trinta e nove (1139). CAPITULO XVII _Como o Principe D. Affonso depois de alevantado por Rei de Portugal deu batalha a cinco Reis Mouros no Campo Dourique, e do grande vencimento della_. Feito esto El-Rei cavalgou logo em um cavallo grande, e fermoso, que lhe foi trazido cuberto de suas armas brancas, como dantes trazia, e os senhores Cavalleiros se tornaram cada um a suas azes, e lugares ordenados, e sem mais tardança, moveram contra os Mouros que já vinham contra elles. El-Rei quando vio ser tempo disse a D. Pero Paes seu Alferes que abalasse mais rijo com a bandeira, e toda sua az, o fez assi, e foram todos juntos ferir nos Mouros mui rijo, onde El-Rei que ia diante ferio um Mouro da lança, de tal sorte, e encontro, que deu logo com elle morto em terra, e rompendo a primeira az dos Mouros chegaram á segunda da gente mui grossa, e ali foi grande sem conto o poder dos Mouros, que tambem das outras azes carregaram sobre El-Rei. Então D. Lourenço Viegas, e D. Gonçalo de Souza que traziam a reguarda acodiram a El-Rei mui esforçadamente, e foi a peleija mui grande, e ferida de ambas as partes, esso mesmo Martim Moniz, e Mem Moniz irmãos, Capitães das azes entraram cada um de sua parte na batalha, como esforçados Cavalleiros que eram, fazendo grande matança nos Mouros. Todos o faziam muito bem: mas em especial El-Rei da ventagem que era mui grande de corpo, e de mui assinada valentia, de força grande, e coração muito maior, e gram cortador de espada, e por tanto seu peleijar onde se topava, antre todos era avantejado. Foi esta batalha tão bravamente peleijada, que durou até horas do meio dia, sem tomar fim, sendo o dia tão quente, e tanto pó naquelle tempo, que cada uma destas cousas com pouca mais afronta os devera cansar; mas N. Senhor que era com El-Rei D. Affonso tão esforçado Cavalleiro, e com os seus lhes deu esforço, como nem com nhuma destas cousas, nem com tanta multidão de Mouros afraquassem dando-lhe batalha, e de tudo tão grande vencimento, qual se não deu, de tão poucos, e tantos em batalha campal aprazados; foi assi vencido El-Rei Ismar, e os quatro Reis Mouros que vinham com elle, e mortos na peleija mui grande conto de Mouros, e muitas das molheres pelejadoras, que acima dissemos, nem da parte dos Christãos foi a vitoria sem perda grande, morreram muitos antre os quaes Martim Moniz Capitão da az direita, e D. Diogo Gonçalves, homens mui principaes. Não se espante ninguem, nem duvide do que em cima escrevo da grandeza deste vencimento, como já vi espantar alguns por mo assi ouvirem, quando Plutarco, e outros Authores Gregos, e assi Tito Livio com outros Latinos, concordando affirmam, e dizem a vitoria da batalha que Lucullo Lentullo Capitão de Roma houve em Asia contra El-Rei Tigrames ser a maior que o Sol nunca vio sendo os Romãos onze mil de pé, a fora a gente de cavallo, e os imigos duzentos e vinte mil de peleija, havendo-o logo com gente tão cobarda, e prestes para fogir, que sobre morrerem delles cem mil no desbarato, dos Romões sómente cinco morreram, e feridos não passaram de cento, donde se escreve, que os Romãos houveram vergonha, e se riram de si mesmos por tomarem armas para tão vil gente, da qual segundo affirma Tito Livio eram os vencedores quasi a vigessima parte, o que em mui maior gráo, e desigualança se deve estimar, e dizer desta vitoria del-Rei D. Affonso assi pelo muito mais numero de imigos, e menos dos Christãos, como pela valentia, e animosidade, e seita contraria dos infieis, e além desso vezados ás mesmas guerras nossas, e a muitas vitorias havidas contra nós, com que se tinham feito vencedores da Christandade, e senhoreado o mundo, nem des o tempo de Lucullo Lentullo para cá, não acho vitoria destas mais assinadas, que foram; porque desta del-Rei D. Affonso se devia julgar, nem dizer menos do que disse. CAPITULO XVIII _Como El-Rei D. Affonso Anriques depois da batalha vencida acrecentou em suas Armas sinaes que mostrassem o que lhe alli acontecera, e da nova que houve do Corpo de S. Vicente por alguns que ahi foram tomados_. Depois da batalha vencida esteve El-Rei D. Affonso tres dias no campo, como é de costume fazerem os Reis se forçados necessidade lhes não vem, e estando assi no campo, em lembrança da grande mercê que lhe Deos naquelle dia fizera acrecentou em suas Armas sinaes que mostrassem o que lhe alli acontecera, no Ceo, em Cruz. Poz sobre o campo que dantes no Escudo trazia, por Armas uma Cruz toda azul, partida em cinco Escudos, pelos cinco Reis que vencera, e meteo trinta dinheiros de prata em cada um dos Escudos em relembrança da morte e Paixão de Jesu Christo, vendido por trinta dinheiros, e os Reis de Portugal, que depois vieram, vendo que se não podiam meter tantos dinheiros em pequenos Escudos Darmas puzeram em cada um dos cinco Escudos cinco dinheiros em aspa, e assi contando por si cada uma carreira da Cruz do longo, e atravez metendo sempre no conto de ambas as vezes o Escudo da ametade, fazem trinta dinheiros, e desta maneira se trazem agora. Depois dos tres dias passados que El-Rei D. Affonso esteve no campo com mui grande honra, e grandes prezas de ouro, e prata, presioneiros, e gados tomados na batalha, tornou-se para Coimbra. Antre os prisioneiros era um bom quinhão de gente que chamavam Moçaraves, os quaes eram Christãos, que os Mouros tinham por cativos naquella terra, e quando El-Rei chegou a Coimbra o Prior de Santa Cruz o saio a receber, e disse-lhe: «Oh Senhor Rei, e vós outros nobres varões que sois filhos da Santa Madre Egreja, porque trazeis assi prezos, e cativos estes Christãos irmãos vossos como se fossem infieis, devendo-os de ter, e tratar como vós mesmos; ora vos peço senhor, pois são da Lei de Christo como nós, sejam soltos, e livres da prizão». E El-Rei que era muito sogeito a toda rezão, e virtude, de todo bom, e verdadeiro Christão, outorgou logo no que o Prior falou, e os mandou todos soltar, e livrar de cativeiro. Vinham entre estes Moçaraves dous homens de grande idade, e mui louvada vida, os quaes contáram a El-Rei como já estiveram no cabo da terra do Algarve que mais sae ao mar do Occidente, que naquelle lugar jazia o Corpo de S. Vicente, ao qual elles alli viram fazer muitos milagres. Quando El-Rei esto ouvio, tomou grande desejo de haver aquelle Santo Corpo em sua terra, mas pois me a Estoria trouxe a fazer menção de tão glorioso Martyre que em Portugal temos, parece-me erro passar assi por elle, sem dizer primeiro ao menos em soma como, e onde foi martyrizado, e seu Corpo guardado dos Christãos, e depois em seus lugares contarei como foi trazido áquelle Cabo, que se ora de seu nome chama Cabo de S. Vicente, onde por duas vezes foy buscado, e não se podendo achar da primeira, foi achado da segunda, e foi trazido á Cidade de Lisboa. CAPITULO XIX _Como Daciano veio a Espanha por mandado do Emperador de Roma, e mandou matar S. Vicente depois de muito atormentado por prégar a Fé de Christo_. Foi S. Vicente natural da Cidade de Osqua, que ora é no Reino de Aragão, de nobre linhagem, de Fé, e virtude muito mais nobre. Foi discipulo do Martyre Papa Sixto I e praceiro muito como irmão de S. Lourenço, e sendo enviado a Espanha pelo Papa, chegou-se a S. Valerio Bispo de Valença, o qual por ser empachado na lingoa, em prégações, e muitos outros autos do serviço de Deos, cometia o carrego a S. Vicente. Era então Emperador de Roma Diocleciano gentio, que fez geralmente pelo mundo a decima persecução contra Christãos, que durou dez annos, e foi maior, e mais cruel, que nhuma feita antes, nem depois, e antre muitos emxuqutores, que a esso mandou por todalas Provincias, enviou Daciano em Espanha o qual estando em a Cidade de Valença, tanto que soube da vida de S. Valerio, e S. Vicente, e da doutrina de Christo, que ao povo prégavam, os fez trazer ante si, preguntando-lhes, e emquerendo com gram sanha, e ameaços pelas obras que faziam, e prégavam, e S. Valerio por ser já velho, e empachado da fala, como dito é, começou a responder manço, e de vagar. Disse então S. Vicente a S. Valerio: «Padre não cumpre aqui resposta que seja emcolheita, mas se mandardes eu responderei a este Juiz». S. Valerio respondeo: «Pras-me filho, que como sabes dias ha que te tenho minhas vezes cometido». Então S. Vicente respondeo, e falou a Daciano com tanto fervor, e constancia pela Fé de Christo, que Daciano mui irado o mandou fortemente atormentar mudando-lhe, e dobrando-lhe, (a fim de o tirar de Christo por muitos dias) os tormentos, taes, e tantos, quanto crueza sobeja muito podia sobejamente inventar e fazer, sem ficar nhum que se possa cuidar, os quaes por brevidade, dizer escuzo. Vendo-se Daciano com todos seus tormentos, perante todos vencido, e S. Vicente cada vez em elles mais vencedor, e glorificado, receando, que se por então morresse nos tormentos leixaria de si maior gloria, mandou que o lançassem em sua cama mui mole, e curar muito bem delle, para depois de convalecido lhe renovar novas dores, e chagas, e assi por continuação de tormentos faze-lo render; mas elle jazendo naquella preciosa, e não caridosa cama, deu a Alma a Deos, que como sua a levou para si, e a quiz haver por escuza de mais exames, nem provas de virtudes. Sabendo sua morte Daciano ainda então se não doeo delle, se não de sendo vivo lhe ser tolhido sua crueza, dizendo: «Pois em vivo o não venci, morto o vencerei, e desfarei». Mandou então lançar o Corpo ás aves, e animalias, que o comecem, onde houve pelos Anjos tão guardado, que nhuma lhe poz boca, antes de Corvos que al não buscavam, foi um visto guarda-lo, e defende-lo, o que sendo dito a Daciano, disse com a mesma sanha, e crueza dantes demais: «Se nem morto o poderei vencer». Então mandou atar uma grande mó ao Corpo, e lanca-lo no mar para debaixo do mar ser escondido, e desfeito, quem sobre a terra não pudéra; mas o Corpo de S. Vicente milagrosamente veio até á terra primeiro que o mesmo barco, que o foi deitar, e alli por sua revelação foi sabido e recolhido seu Corpo dalguns Christãos, que o devotamente enterraram, fazendo ahi sempre muitos milagres. Padeceo depois de N. Senhor duzentos e oitenta e sete annos (287). Deste Martyre precioso falam muitos Doutores, mui grandes louvores, antre os quaes diz delle Santo Agostinho: «Oh Bemaventurado Vicente, verdadeiramente venceste: venceo nas palavras, venceo nas penas, venceo queimado, venceo alagado, venceo vivo, venceo morto». CAPITULO XX _Como o Corpo de S. Vicente foi trazido ao Cabo que se ora chama de S. Vicente, e como El-Rei D. Affonso o foi lá buscar, e não o podendo achar se tornou para Coimbra_. Contam as Estorias dos Arabigos, que andando a era dos Mouros, em cento e trinta e cinco annos, se levantou nas Espanhas um poderoso homem, a que chamavam Abdenamer, o qual começou a conquistar, e sobgigar por Espanha assi Mouros, como Christãos, não achando Santuario de Christãos, que não destruisse, nem ossos de Martyres, que não queimasse, e andando nesta conquista foi ter a Aragão, e a Valença, e os homens que tinham o Corpo do Martyre S. Vicente, quando souberam de sua vinda, e do que fazia ás Reliquias, e Corpos dos Santos, houveram seu acordo de fogirem com elle, para terra onde fosse guardado; aprouve a N. Senhor de os guiar áquelle Cabo chamado ora de S. Vicente, como acima se diz, para o seu Corpo alli ser enterrado, e escondido, e aquelles homens bons que o trouxeram, estiveram continuadamente com elle até que por alli chegou um Cavalleiro Mouro, que morava naquella terra dos Algarves, natural do Reino de Fês a que chamavam Albofacem, e contam as Estorias em como elle disse, que andando por alli de noite achára certos homens guardando aquelle Corpo, os quaes matara, e leixara o Corpo. El-Rei D. Affonso ouvindo o conteudo nesta Estoria com o que lhe tinham falado e affirmado os dous velhos Moçaraves de como estiveram no mesmo lugar, onde jazia o Corpo de S. Vicente, teve Conselho com os seus em que modo o poderiam haver, e acordaram que fizessem tregua com os Mouros, e por tempo certo. Ellas feitas El-Rei D. Affonso partio de Coimbra para aquelle lugar, com tanto desejo, e devação, que apagava em seu coração todo receio, trabalho, e perigo que nisto corria, e chegando lá fez buscar com grande deligencia o Corpo, e nunca o pode achar por N. Senhor ter ordenado, que o Jazigo deste glorioso Martyre fosse na Cidade de Lisboa onde agora jaz, a qual ainda então era de Mouros. Quando El-Rei D. Affonso vio que não podia achar este Santo Corpo, como quer que muito lhe pezasse, remeteu seu pezar á vontade de Deos, que por então parecia ser aquella, e dali tornou-se para Coimbra. CAPITULO XXI[4] _Do recado e embaixada que o Papa mandou pelo Bispo de Coimbra a El-Rei Dom Affonso Henriques sobre a prisão de sua mãi, e o que nisso passou com o Bispo_. Depois disto, estando El-Rei D. Affonso Henriques em Coimbra, sua Mãi se enviou muito querelar ao Santo Padre da prisão em que a tinha seu filho tantos tempos havia; e o Padre Santo teve aquella cousa por estranha e muito mal feita, e determinou de mandar a Portugal sobre isto o Bispo de Coimbra que então lá estava em Roma, dando-lhe cartas e grandes mandados para El-Rei D. Affonso que tirasse sua mãi da prisão, e não o querendo assim comprir fosse interdito posto em todo o reino. Partio-se o Bispo para Portugal, e veio a El Rei, ao qual depois de dar as letras do Santo Padre e dizer sua embaixada, El-Rei disse ao Bispo: «Que tinha o Santo Padre de fazer em elle ter sua mãi preza? Que fosse bem certo que nem por mandado do Papa nem d'outro nenhum elle em modo algum a soltaria, porque o havia assim por mais serviço de Deos e bem de seu Reino.» Quando o Bispo vio que outro recado não podia nem esperava achar em El-Rei, trabalhou-se de comprir o que o Santo Padre lhe tinha mandado, e então excummungou toda a terra e partiu-se de novo fugindo. Quando veio pela manhã disseram a El-Rei que era excommungado e toda sua terra, do que sendo mui irado se foi á Sé, e fez entrar todos os Conegos no Claustro em Cabido, e disse-lhes: «D'entre todos me dai um Bispo». Elles responderam todos: «Bispo temos; como vos daremos outro Bispo?» Disse El-Rei: «Esse, que vós dizeis nunca aqui será Bispo em todos meus dias; mas pois assim é, sahi-vos todos pela porta fora, e eu catarei quem faça Bispo». Elles sahiram-se, e El-Rei vindo pela Claustra vio vir um clerigo que era negro, e disse-lhe: «Como has nome?» O clerigo respondeu: «Hei nome Martins».--«E teu pai como se chamava».--Colleima disse elle. El-Rei perguntou-lhe: «És bom clerigo, ou sabes bem o officio da Igreja?» E elle respondeu: «Não ha ahi melhores dous na Hespanha, nem que o melhor saibão». Então disse El-Rei: «Tu serás Bispo Dom Colleima, e ordena logo como me digas Missa». «Senhor», disse elle «eu não sou ordenado como Bispo, para vo-la poder dizer». Acudio El-Rei: «Eu te ordeno como Bispo, que m'a possas dizer, e apparelha-te como logo m'a digas, senão eu te cortarei a cabeça com esta espada». E o clerigo, com medo, revestio-se para dizer Missa solemnemente como Bispo. Sabido este feito em Roma, cuidaram que El Rei era herege, e enviou-lhe o Papa um Cardeal que lhe ensinasse a fé. CAPITULO XXII _Aqui falla Duarte Galvão autor como este feito d'El-Rei D. Affonso Henriques, e outros similhantes, nos bons principes devem ser julgados_. A novidade que esta cousa assim feita por El-Rei D. Affonso Henriques assim poderá parecer a quem quer que a ler e ouvir, como pareceu naquelle tempo, me faz haver por necessario, antes que mais por ella prosiga, fazer alguma salva deste caso por trazer comsigo mostra de exorbitancia. No que certo, assim como se não pode negar cousas de tal modo feitas serem fóra do que os homens devem, assim se não pode deixar de confessar o modo e maneira do Rei ser mui fóra dos outros homens; que o Rei não é Rei per si nem para si, e para obrar e se salvar, outro ha de ser o caminho do Rei, outro o do frade. E pois o coração do Rei é na mão de Deos e onde Deos quer o inclina, segundo diz a sagrada Escriptura, como se deve crer nem cuidar que Rei catholico e virtuoso faça nenhuma cousa similhante fora da vontade e querer de Deos, ainda que seja fóra da vontade e parecer dos homens? Que assim como Deos, sem nosso saber, nos leva muitas vezes por onde não queremos ao que mais devemos querer, assim é de cuidar que dispensa occultamente, sempre porem justamente, como se faça ás vezes o que parece que não deve ser, porque venhamos ao que elle quer e ordena que seja. Ordenava Deos e queria constituir e estabelecer Portugal reino para muito misterio de seu serviço, e exalçamento da santa fé; como elle seja louvado se manifestou e cada vez mais manifesta, no que com muita razão póde tambem entrar este feito d'El-Rei D. Affonso Henriques em fazer assim este bispo como figura já então prognosticada do grande misterio que só por mão de seus successores Nosso Senhor adiante ordenava, que as gentes tinctas das Ethiopias e Indias, e outras terras novamente por sua navegação e conquista achadas, viessem a entrar e ser mettidas na fé de Christo; e isto tanto pela ventura por Deos querido e figurado então neste um negro assi tomado e metido no seio da Santa Madre Igreja,--quanto agora a seu muito louvor se vê manifestado e comprido em mui e muitos outros, por mão dos successores de quem aquillo fêz. Assim que era El-Rei D. Affonso posto então nos começos destas cousas, tendo Castella por contraria e pelo seu respeito por ventura o Papa, e pois lhe Deus para isso tirava e desfazia os impedimentos, e chegava todos os bens e ajudas, como não creremos que dispensando com a ordem que deu geralmente entre os homens, inspirasse no coração de El-Rei D. Affonso que houvesse por bem fazer assim por então aquellas cousas, e as fizesse; quanto mais perseverando elle depois no preposito dellas sem mostrança d'arrependimento, como cousa que assim mais compria ao misterio que se de Portugal ordenava, que era constituir-se Reino, e constituido accrescentar-se, e accrescentado conservar-se, sem ter dever com impedimentos humanos contrarios a tal disposição e juiz divino? Tem a igreja por Santas, e faz festa a certas mulheres que se matarão, por em seus corpos não consentirem corrompimento, e ha por salvo Santo Sansão, que tambem se matou, e outros muitos comsigo; havendo a Igreja por certo que o virtuoso coração destes não podia obrar tamanho mal como é matar-se, senão pelo instincto de Deos inspirado. Quanto mais deve cuidar e crer em menos erro de Reis virtuosos por Deos mui ajudados e prosperados sendo pessoas publicas postas nos reinos para bem dos reinos por Deos, e nas mãos de Deus mais que nenhuns outros homens; e posto que por ventura se veja ou leia, que cousas assim feitas não carecerão neste mundo de alguma punição, é de cuidar que ordena Deos isso por que se conserve todavia proposito e exemplo do que geralmente mandou que se fizesse, maiormente não sendo as tribulações e penas deste mundo condenação para o outro, mas provação ou mezinha por de um muito bom rei fazerem ainda melhor, dando-lhe azo e cauza de mais lembrança e conhecimento de Deos e da virtude. Porque, como diz S. Gregorio, os males que neste mundo nos apressão para Deos nos empuxão; pelo qual os similhantes casos em principes Catholicos e virtuosos, como era El-Rei D. Affonso Henriques, não os queiramos assim ligeiramente julgar, que não remettamos o intrinseco delles áquelle Supremo Saber do Senhor Deos, por cuja providencia se não faz nada neste mundo sem causa, e assim não nos fará novidade nem espanto lê-los nem ouvi-los. CAPITULO XXIII _Como o papa mandou um Cardeal a D. Affonso Henriques sobre a prisão de sua mãi e sobre o Bispo que elle fizera, e do que entre elles se passou em Coimbra_. Quando as novas chegaram ao Santo Padre de como El-Rei D. Affonso Henriques não queria obedecer a suas cartas e mandados para soltar sua mãi, e fizera assim aquelle Bispo da maneira que se disse, o Santo Padre, e toda a Côrte, teve que elle era Herege, e propozeram de lhe enviar um Cardeal, que o ensinasse e mostrasse a fé, e corrigisse de quaesquer erros que tivesse. O qual veio pelas Côrtes dos Reis de Hespanha, que sahião a recebe-lo mui honradamente. E vindo já o Cardeal perto de Coimbra onde El-Rei estava, vieram alguns fidalgos a El-Rei e disserão-lhe: «Senhor, aqui vos vem um Cardeal de Roma por estardes em desprazer e descontentamento do Papa por este Bispo que fizestes.» Disse El-Rei. «Ainda me não arrependo.» Elles proseguindo mais avante pela nova do Cardeal, disseram: «Senhor, todos os Reis por cujas terras vem, segundo se diz, lhe fazem quanta honra podem, e provão para lhe beijarem a mão.» Disse então El-Rei: «Não sei Cardeal nem Papa que a Coimbra viesse, e me tendesse a mão para lh'a beijar em minha casa que lhe eu não cortasse o braço pelo cotovello com esta espada, e disto não podia escapar.» Estas palavras soube o Cardeal em chegando a Coimbra, e tomou grande receio, e El-Rei não quiz sahir fóra a recebê-lo. O que logo o Cardeal teve a máo sinal, e portanto em chegando se foi direito a Alcaçova onde El-Rei pousava. Alli o recebeo El-Rei mui bem e disse-lhe: «Pois, Cardeal, a que viestes a esta terra, ou que riquezas me trazeis de Roma para estas hostes que tão a miude faço de dia e de noute contra Mouros? Dom Cardeal amigo? Se vós por ventura me trazeis algo que me dês, dai-mo, e se me não trazeis nada, tornai-vos vossa via.» «Senhor,» disse o Cardeal: «Eu sou vindo a vós da parte do Santo Padre para vos ensinar a fé de Christo.» Respondeu então El-Rei: «Certo assim temos nós outros cá bons da fé nesta terra como vós lá em Roma, e portanto bem sabemos como o Filho de Deos encarnou na Virgem Maria e della nasceo, e isto por obra do Espirito Santo, e como morreo na cruz por remir a geração humanal e descendeu aos infernos, e ao terceiro dia resurgiu não mortal, e que o Padre e o Filho e o Espirito Santo são Tres Pessoas realmente distinctas em uma só essencia. Esta fé temos e cremos firmemente tão bem como vós lá em Roma; pelo qual não havemos por agora mister de vós outra doutrina nem ensino. Mas deem-vos agora essas cousas que houverdes mister, e de manhã, se Deos quizer, eu e vós fallaremos.» Foi-se então o Cardeal para a pousada, e mandou logo pôr cevada ás bêstas, e tanto que foi meia-noute mandou chamar todos os clerigos da cidade e excommungou a cidade e todo o Reino, e cavalgou, e foi-se da guisa que ante manhã andou duas legoas. CAPITULO XXIV _Como El-Rei D. Affonso Henriques sabendo a partida do Cardeal escondida, cavalgou a pós elle, e do que depois de alcançado com elle passou_. Levantou-se El-Rei ao outro dia pela manhã, e disse a seus cavalleiros: «Vamos ver o Cardeal.» Disseram elles: «Senhor, ante manhã se foi daqui, e deixou excommungado a vós e a toda vossa terra.» Disse assim El-Rei: «Sellem-me á pressa tal cavallo:» e cingio sua espada, e cavalgou a grande pressa quanto pode após elle. Seguião-o todos, mas elle, segundo era melancholico, não quiz esperar por ninguem, e foi alcançar o Cardeal em um lugar que chamão a Vimieira, a par de Poiares, caminho da Beira, e como chegou a elle lançou-lhe mão do cabeção, e com a outra tirou a espada, e alçou o braço com ella, dizendo: «Dá a cabeça, traidor,» querendo-lh'a cortar. Disserão quatro cavalleiros, que ahi chegarão com elle: «Senhor, por mercê não queiraes tal fazer, que se matardes este Cardeal cuidarão de todo em todo que sois herege.» Disse então El-Rei: «Por essa palavra que ora dissestes, vós lhe daes a cabeça; mas pois assim é, disse El-Rei, Dom Cardeal, ou vós desfazei quanto fizeste, ou cá vos ficará todavia a cabeça.» «Senhor» disse o Cardeal «não me queiraes fazer mal, e toda a cousa que vós quizerdes eu a farei de boa mente.» «O que eu quero que vós,» disse El-Rei «façaes, é que descommungaes quanto excommungastes, e que não leveis daqui ouro, nem prata, nem bestas senão tres que vos abastarão, e mais que me envieis uma letra de Roma que nunca eu nem Portugal em meus dias seja excommungado, que eu o ganhei com esta minha espada. E isto quero de vós por agora, e porem vós deixareis aqui este vosso sobrinho filho de vossa Irmã, em prenda até que a letra venha, e se ella até quatro mezes aqui não fôr que eu lhe corte a cabeça.» A tudo, disse o Cardeal que lhe aprazia, e assim ficou de fazer. Então lhe tomou El-Rei quanta prata e ouro lhe achou e bêstas, e não lhe deixando mais de tres que levasse, e disse-lhe: «Ora, Dom Cardeal, ide-vos ahi vosso caminho, que este é o serviço que eu de vós quero, e todavia venha a letra.» E isto acabado ante que se o Cardeal partisse tirou El-Rei a capa pelle, e despio-se todo e mostrou muitos signaes de feridas que tinha pelo corpo e disse: «Cardeal como eu sou herege bem se mostra por estes signaes, que eu houve estas em tal peleja e tal, e estas em tal cidade ou villa que tomei, e todas por serviço de Deos contra os inimigos de nossa fé; e para isto levar adiante vos tomo este ouro e prata, porque estou muito mingoado e me faz mister para mim e para os meus.» Foi-se então o Cardeal, e El-Rei tornou-se a Coimbra. Por estas muitas feridas que El-Rei assi mostrou ao Cardeal, se póde conhecer quanto maiores forão seus feitos e valentia do que se achão escriptos, porque em nenhum cabo faz a historia menção que fosse ferido nem uma só vez de tantas nem em que lugar. Mandou El-Rei logo um escudeiro á Corte de Roma a saber lá o mais encubertamente que pudesse que era o que o Papa e Cardeaes lá dizião delle por estas cousas que fazia. E o escudeiro partiu e andou de tal pressa que chegou primeiro que o Cardeal. A cabo de dias escreveu este escudeiro a El-Rei D. Affonso uma carta que elle mostrou e fez lêr a esses do seu Conselho, na qual dizia que quando o Cardeal chegára de Portugal, e o Papa soubéra como hia, lhe perguntou como passára com El-Rei D. Affonso; e o Cardeal lhe contou como lhe acontecera com elle, e como lhe ficára de lhe enviar a letra acima dita. O Papa lhe reprehendera muito por isto, dizendo que tal cousa como aquella lhe não pertencia, sómente á Sé apostolica, nem era dado a elle nem a outro nenhum prometter nem ficar por tal caso.--«Senhor Santo Padre!» disse o Cardeal: «Eu não digo letra, mas se a cadeira de S. Pedro fôra minha eu lh'a deixára e déra de boa mente por escapar de suas mãos; que se vós vireis sobre vós um cavalleiro, tão forte e tão espantoso como elle é, ter-vos uma mão no cabeção, e outra alçada para vos cortar a cabeça, e o seu cavallo não menos alvoraçado, ora com uma mão ora com outra cavando a terra, parecendo que já me fazia a cova, vós dereis a letra e o Papado por escapardes da morte; e portanto me não deveis de culpar.» Então lhe outorgou o Papa a letra na maneira que o Cardeal quiz, e mandou-a a El-Rei antes dos quatro mezes. E El-Rei lhe mandou seu sobrinho mui honradamente como compria dando-lhe muito. E por causa disto foi depois este Cardeal sempre tanto amigo d'El-Rei D. Affonso que todas as cousas que elle havia mister da Côrte lh'as fazia e acabava com o Papa. E fêz El-Rei D. Affonso em quanto viveo arcebispos e bispos em sua terra quaes elle quiz; e a carta que lhe enviou o seu escudeiro mandou ao seu escrivão que assentasse e escrevesse no livro das Historias. Ora torna a historia a El-Rei Ismar que veio a tomar Leiria. CAPITULO XXV _Como depois desto El-Rei Ismar que foi vencido no campo Dourique veio tomar Leiria, e o Prior de Santa Cruz de Coimbra foi a Alentejo, e tomou Arronches, e como El-Rei D. Affonso tornou outra vez a tomar Leiria aos Mouros_. El-Rei Ismar, que foi vencido no Campo Dourique, por El-Rei D. Affonso Anriques como já dissemos, tendo sempre grande vontade em guerrear Christãos, em especial depois de haver aquelle grande desbarato, ajuntou muitas gentes, e veio-se a Santarem, e dali partio levando consigo a Euzari que era Alcaide da Villa, e correo a terra, até chegar a Leiria, a qual combateo tão fortemente, que entrou por força matando os mais dos Christãos que hi acharam, e levando cativo Paio Goterres, que o Prior de Santa Cruz ahi leixára por Alcaide, e depois de leixarem Mouros no Castello, e Villa, que a bem mantivessem, e guardassem, tornaram-se logo para suas terras, fazendo tudo esto com tanta preça, e trigança, que El-Rei D. Affonso estando em Coimbra não teve tempo para soccorrer, e vir á batalha com elles. Foi tomada Leiria del-Rei Ismar era de N. Senhor de mil cento e quorenta annos (1140). Quando o Prior de Santa Cruz a que chamavam Theotonio homem ante El-Rei muito estimado, vio tomada Leiria, que lhe El-Rei D. Affonso com muita devação, e vontade tinha dado, tomou em si grande pezar, e partindo-se do Moesteiro, foi-se a guerrear ás terras de Alentejo, que os Mouros pessuiam, onde tomou a Villa de Arronches, e em quanto assi o Prior lá andou guerreando, El-Rei D. Affonso tendo grande pezar por se assi tomar Leiria, ajuntou outra vez gente, e foi sobre ella, e Deos que sempre o ajudava em todos os seus feitos, lhe deu tão boa esquença, que por força a tornou a tomar, posto que os Mouros a mui bem defendessem. E esto foi quatro dias por andar de Fevereiro era do Senhor de mil cento e quorenta e cinco annos (1145) e porque vio o Prior a quem elle dantes dera a Villa lha não guardára bem, poz em ella, e no Castello tal guarda, como compria para sua defensão, que lha não podessem assi os Mouros outra vez ligeiramente tomar, e tornou-se a Coimbra. CAPITULO XXVI _Como El-Rei D. Affonso tornou a dar Leiria ao Prior de Santa Cruz, e assi tambem Arronches, em todo o espiritual, ficando o temporal com os Reis de Portugal, e como El-Rei cazou com Dona Mofalda filha do conde D. Anrique de Lara_. Acabo de dias, estando El-Rei D. Affonso em Coimbra chegou o Prior de Santa Cruz, e disse a El-Rei: «Senhor vós déstes a esta vossa Egreja a Villa de Leiria quando a tomastes aos Mouros, e com quanto eu fiz para ella ser guardada todo o que bem podia, e devia, porém por nossos peccados foi tomada de Mouros como se vio, pelo qual eu tomei tanto nojo, que me fez leixar o modo de meu viver ordenado, e tomar vida de andar em guerra, no que me ainda Deos ajudou tanto que tomei a Villa de Arronches, e ora Senhor somos aqui ante vós, eu, e meus amigos, o feito de Arronches, e Leiria todo pomos em vossas mãos». El-Rei havendo sobre esso concelho, e vendo como os negocios temporaes não convinham a tal Habito, e religião, maiormente em feitos de guerra, teve por bem que todo o espiritual destas Villas ambas, fosse de Santa Cruz, e o temporal ficasse sempre aos Reis de Portugal. Estando assi El-Rei D. Affonso com mui grande honra, e fama em Coimbra, foi-lhe cometido o cazamento com Dona Mofalda Anriques filha do Conde D. Anrique de Lara, e a elle aprouve-lhe muito de cazar com ella por estes respeitos, primeiramente por a Caza de Lara ser havida, por a mais alta linhagem de Espanha, esso mesmo porque em toda Espanha, não havia molher nhuma de linhagem de Reis a que elle não fosse mui chegado em parentesco, tambem por ella ser muito fermosa, e dotada de muitas virtudes, e bondades, e por tanto tomou mui grande contentamento deste cazamento, o qual foi feito em Coimbra, era de N. Senhor de mil cento e quorenta e seis annos (1146) havendo já sete annos que fora levantado por Rei, e fazendo cincoenta e dous annos de sua idade, e por se não achar escrito nada das cousas, que se neste cazamento fizeram, nem como foram, se não poz aqui mais, que sómente cazar El-Rei, e o tempo em que cazou, pelo qual passando por esto, falaremos, como se El-Rei moveo depois para tomar a Villa de Santarem. CAPITULO XXVII _Das bondades da Villa de Santarem, e seu termo, e como El-Rei D. Affonso propoz, e ordenou em sua vontade de a tomar, e a tomou_. Ao tempo que os Mouros a que em Arabigo chamam Miçamidas entraram por Espanha, e destruiram a Cidade de Sevilha na era do Senhor de mil cento quorenta e sete annos (1147) estava El-Rei D. Affonso em Coimbra havendo já oito annos que depois de alçado por Rei reinava, o qual havia muito que tinha grande vontade, e desejos de tomar a Villa de Santarem a uma, por della se fazer muita guerra, a toda sua terra, a outra por ser a milhor Villa do Reino, pela nobreza, e abastança de seu assento, que da parte do Oriente a vista dos homens não se póde fartar de ver a fermosura dos campos mui chãos, abastados de muito pão, correndo por elles o grande, e mui nomeado Rio do Tejo, esso mesmo ao Occidente, e ao meio dia desfallece a vista dos olhos em o ver espaçoso, e ao Norte contra os Montes, grande avondança de vinhas, e olivaes, pelo qual falando muitas vezes El-Rei D. Affonso em seu deleitoso, e abastado assento em todalas cousas, chamava-lhe Paraiso deleitoso; era El-Rei mui magoado, e todo penoso em seu coração por a ver em poder de Mouros, e não poder toma-la, com quanto trabalho já tomára sobre ella, porque a Villa não era tão grande de manter, nem defender, aos que dentro estavam, nem tão pequena, que se pudesse furtar de poucos, álem desto, era mui forte de muro, e torres, e barreira da parte do Occidente a que os Mouros chamam Alfão, porque parecia deste cabo cham, em respeito do outro cerco que é sobre barrocas mui altas, e da parte do Oriente fizeram os Mouros carretar tanta terra aos Christãos que tinham cativos, com que encheram de fundo acima, e fizeram um oiteiro de tal altura, que lhe puzeram os Mouros nome Alarfa, que quer dizer couza ingreme, e temerosa, porque lançavam por alli os que eram condenados por sentença á morte, e iam os corpos mortos ter ao fundo á ribeira do Tejo, e da parte do Sul por rezão da propriedade da terra esbarrondada que seubre chamavam Alfange, que em Portuguez soa quebrada, e não se podia por alli haver entrada ao lugar, se não por recaios, e da parte do Norte não menos está afortalezado, pela grande altura do Monte que é pedregoso, e aspero, pelo qual assi pela grande Fortaleza da Villa, que por nhuma maneira de engenhos se podia combater, como pelo grande percebimento de muito boa gente, e mantimentos que dentro havia, não podia El-Rei D. Affonso haver modo de a tomar, nem remedio para tolher a grande guerra, que já de gram tempo desta Villa se fazia a Coimbra, e a outros seus lugares. Ajudava muito a Fortaleza da Villa, a defficuldade para se poder tomar a grandeza das aguas do Tejo, que por junto corre, porque quando lhe El-Rei punha guardas de uma parte, se passavam com seus gados para a outra, demais que estes campos eram tão cheos de pavez, e insoas, nem se podiam andar, se não por barcas em tempos certos: por onde a Villa era tão grave de filhar, que seu avô El-Rei D. Affonso de Castella nunca a pudera tomar, senão por fome, nem esto mesmo Cid Rei Mouro, nem Abderazaca que teve o senhorio della trinta e quatro annos, o que parecerá cousa muito de maravilhar quando se ouvir, que semilhante Villa foi tomada por El-Rei D. Affonso Anriques com tão pouca gente, e como quer que elle cuidasse muitas vezes em seu pensamento como a poderia tomar por força, ou por algum despercebimento, aquelles com que esta cousa comunicava, representavam-lhe sempre duvidas, de muito grande perigo, e receo. CAPITULO XXVIII _Como El-Rei D. Affonso Anriques fazendo tregoa com os Mouros de Santarem mandou lá a D. Mem Moniz a espiar a Villa, e do conselho que teve com os seus para ir sobre ella_. Duvidoso El-Rei D. Affonso Anriques nesta maneira de poder tomar a nobre Villa de Santarem, assi pelas duvidas que punham esses com que falava, como pela grande deficuldade que desse mesmo feito parecia, com todo seu grande animo, que sempre em Deos esperava, e a nhumas deficuldades se rendia, determinou toda via de trabalhar sobre esso, e fazendo treguas com os Mouros, por certo tempo, mandou D. Mem Moniz sabedor de todo este negocio, e conselho lá, para que visse, por qual parte, se podia a Villa furtar, e entrar mais descançado, e seguramente, o qual indo lá, e assentando a tregua espiou todo mui bem, como homem mui avizado, e de grande engenho, e esforço que era, e da tornada falou com El-Rei em segredo fazendo-lhe o caso possivel, prometendo-lhe que elle seria o que fosse diante, e dos primeiros que no lugar entrassem, e poria a sua bandeira sobre o muro, e quebraria as fechaduras das portas, e assi o fez depois, porque era tão bom Cavalleiro, de sua pessoa, e para tanto, que para servir El-Rei, e cumprir sua Cavallaria, todalas cousas lhe pareciam mui ligeiras, e seguras de perigo. El-Rei foi mui ledo com seu recado, e esforço, porque entendia, fazendo-se como D. Mem Moniz dizia, a Villa poderia tomar, não sendo primeiro descuberto, e tanto lhe pareceo que cumpria ser feito com grande segredo, que não quiz falar esta cousa aos de seu Conselho, em seu Paço, receando-se de poder ser em algum modo ouvido, antes foi um dia a folgar ao campo chamado Arnado, e alli apartou D. Lourenço Viegas, e D. Gonçalo de Souza, e D. Pero Paes seu Alferes, e outros, e contou-lhes todo seu intento, e proposito do que queria fazer, mandou-lhes que o tivessem em mui grande segredo sobpena de morte, em tal guiza, que ninguem o podesse entender, em quanto alli estivessem, nem á partida, e o conselho acabado, tornou-se El-Rei para o Paço, e vindo pela rua da figueira velha chegando á Praça disse uma velha regateira contra as outras: «Quereis vós saber, o que El-Rei com aquelles seus companheiros falou» disseram ellas: «Que falou?» Falou disse ella, «como fossem furtar Santarem». El-Rei que passando ouvio tudo, e vendo todos aquelles com que falara esta cousa ir comsigo diante sem nunca se apartarem delle, foi assi maravilhando-se até o Paço, e como descavalgou chamou os todos, e disse-lhes: «Não atentastes no que disse aquella velha, certo se algum de vós se apartára de mim, eu cuidava que fora descuberto por elle, e lhe mandara por ello cortar a cabeça, sem o merecer». CAPITULO XXIX _Como El-Rei D. Affonso Anriques partio com sua gente para ir tomar Santarem, e do voto que fez no caminho a S. Bernaldo, o qual naquella hora lhe foi revelado lá em França, onde estava_. Depois desto fez El-Rei prestes sómente os seus continuos de sua caza, e alguns poucos de Coimbra, com Gonçalo Gonçalves, e assi mantimentos que lhes abastassem, e ante que partisse foi-se ao Moesteiro de Santa Cruz a falar com aquelle devoto homem Prior do Moesteiro em que elle tinha grande e singular devação, e encomendou-lhe sua alma, e seu estado, assi como houvesse de partir deste mundo, dizendo-lhe todo o que tinha ordenado para ir fazer, e quando havia de ser, encomendando-lhe muito afincadamente que naquelle dia com seus amigos rogasse a Deos de vontade que o quizesse ajudar naquelle feito a que iam por seu serviço, e que esta couza tivesse em grande segredo. Então se partio El-Rei uma segunda feira não sabendo ninguem para onde iam; salvo aquelles a que o comunicara, e levaram o caminho tão revessado, e encuberto que os Mouros não houveram novas delles, e vieram aquelle dia poer as tendas em Alfasar, esta foi a sua primeira jornada, ao seguinte dia partiram, e foram dormir a Codornolos, e dali mandou El-Rei a Martim Mohaz que fosse dizer aos Mouros de Santarem que elle levantava a tregua da li em diante, e que a paz dantre si, e elles, fosse quebrada até tres dias, que segundo costume daquelle tempo, cada um podia engeitar a tregua a seu imigo quando lhe aprovesse, com tanto que lho fizesse primeiro saber. Martim Mohaz foi, e depois de comprir o mandado que levava, tornou á quarta feira a Aldeguas, onde El-Rei estava, o qual partio da li, e indo pela serra Dalvardos acertou-se que D. Pedro irmão bastardo del-Rei, que fora já em França, ia falando com elle dos muitos milagres, que naquella terra Deos fazia pelo Abbade S. Bernaldo que então era vivo, e como lhe Deos outorgava toda couza que lhe pedia. Então El-Rei movido a devação pelas couzas que lhe seu irmão assi contava, disse: «Eu á honra, e louvor de Deos, prometo que se me elle Santarem quizer dar, por sua piedade, e pelos rogos do Bemaventurado S. Bernaldo, que vós dizeis, e eu lhe dê toda esta terra para a sua Ordem quanta vejo daqui até o mar, e que faça um Moesteiro em que Frades da sua Ordem vivam a serviço de Deos, e porque ella seja mais acrecentada». E segundo conta a Lenda de S. Bernaldo, tanto que El-Rei fez este voto, logo lhe a elle foi revelado lá em França, onde estava esta promessa del-Rei, e como havia de tomar Santarem aos Mouros, e em como aquelle Moesteiro que El-Rei prometera de fazer seria mui nobre, e abastado de todalas couzas, segundo depois foi, e é agora um dos grandes, e ricos Moesteiros da sua Ordem que ha na Christandade. Tanto que o Abbade S. Bernaldo assi houve esta revelação mandou logo tanger a Cabido, e todos os Monges juntos, lhes contou o que lhe fora revelado, então todos cantando: «Te Deum Laudamus», foram á Egreja dar graças a Deos, e mandáram logo partir certos Monges para Portugal com livros da sua regra, e ordenança, e os que quizessem, viessem para alli, os quaes em se começando a obra do Moesteiro, vieram hi ter, e tomaram posse pela ordem da Doação que lhe El-Rei fizera, começando hi de viver, segundo sua Regra com muito acrecentamento, o qual a N. Senhor aprouve que fosse sempre depois, e agora neste tempo. CAPITULO XXX _Como El-Rei D. Affonso Anriques descubrio aos seus que iam sobre Santarem, e das rezões que disse a todos_. Na serra Dalvados, que acima dissemos, esteve El-Rei a quinta feira até noite, e dahi abalaram ao serão andando toda a noite, até a mata que está sobre Pernes, onde chegaram sexta feira amanhecente, então concirou El-Rei que era bem descobrir a todos seu desejo, e ao que iam, e fez-lhe uma falla nesta maneira: «Meus bons Cavalleiros, e amigos, mais verdadeiramente, que a outros nhuns se ha de chamar, bem sabeis quantos trabalhos, e fadigas comigo, e sem mi padecestes por azo desta Villa de que ácerca estamos, e quanta guerra, e males tem feitos á nossa Cidade de Coimbra, e a todo meu Reino por muito tempo, pelo qual detreminei de a vir com vosco escalar, e tomar, como em Deos espero, e ainda que parece necessario chamar mais gente para esso, e seja certo que me viera de mui boa vontade, porém não quiz, nem escolhi mais que vós soes, em que sempre puz, e ponho meus conselhos, e fadigas, e cuja lealdade, e valentia, em muitos perigos meus conhecida me deu sempre de vós, tal, e tão firme confiança, que com a graça de Deos, ei já por feito o que vimos a fazer, alem desto vejo em vossos gestos, e continencias não menos sentirdes, e dezejardes, esta couza que eu mesmo, o que me cauza tanto prazer, que já me não parece termos nisto mais pejo, que a detença deste dia, que passe azinha, para com a graça de N. Senhor nos irmos a noite seguinte apossentar dentro na Villa, e o que tenho cuidado para se esto mais ligeiramente fazer, escolham-se cento e vinte de nós, para dez esquadras partidos a cada uma doze, que logo no primeiro sobir, se achem não menos de dez sobre o muro, e assi se dobre cada vez o conto da gente. Os primeiros que sobirem alevantem logo minha bandeira, para esforço dos nossos, e esmaio dos imigos se espertarem do sono, e a poz esto quebrai as fechaduras das portas, e assi a volta, e estrondo, dos que pela porta entrarem, ajuntados com os de dentro esmaiarão mais os imigos, em cuja matança de homens sahidos do sono, uns, e desarmados, bem vedes quam pouco ha de fazer. Vós a nhuma pessoa não perdoeis, nem deis vida, nem a homem, nem a mulher, moço, nem velho, de qualquer idade, e qualidade, todos andem á espada, e esto fazei com grande e trigozo esforço, que Deos será ahi em nossa ajuda, para cada um de nós matar cento delles, e hoje, e á menhã fazem por nós oração geral o Prior, e todos os Conegos do Moesteiro de Santa Cruz, a que eu ante que partisse notifiquei o que vinhamos fazer, e assi tambem a Cleresia, com todo o povo, e por que lhes disse que tinha trato, e intelligencia na Villa, para nos dentro receberem, me perdoe Deos esta mentira, que ácinte lhe disse, porque lhe esforçasse os corações, e vontades; assi meus amigos vos esforçai, e peleijai como sempre fizestes, lembrando-vos o que fazeis por Deos, por mi, e por vós, por vossos filhos, e netos, hi serei eu, e me verei com vosco, que não póde haver afronta, nem perigo, que a viver, e morrer me aparte de vós, como vejo que fareis por mi». Ouviram todos a El-Rei, mui promptos, e animados, em seus corações, para ouzarem, e cometerem todo o que lhes falou, mas consirando elles antre si, a grande ardideza del-Rei, e o muito perigo a que se queria poer, apartaram-se com elle, e disseram. «Senhor vossa pessoa, não irá com nosco, que se formos vencidos, nossos imigos não haverão tanto louvor, nem que morramos delles, ou todos, não é muito de curar, salva vossa pessoa, e tirada de semelhante risco, cuja perda que Deos defenda seria perder-se Portugal, e leixando-vos nòs entrar em tamanho perigo, seria nossa linhagem sempre desdita, e prasmada, como filhos de tredores, que tendo tal Rei consentiram perde-lo». El-Rei respeitando o que lhe assi diziam, a muito amor respondeo-lhes com outro tanto, estas palavras: «Oh amigos, rogo a Deos se este anno, eu hei de viver sem vós tais Cavalleiros tomardes esta Villa de Santarem, a elle praza que antes eu desta vez em ella morra». CAPITULO XXXI _Como El-Rei D. Affonso Anriques chegou de noite aos Olivaes de Santarem, e dos sinais que pareceram_. Passado assi esto com outras muitas palavras, e praticas sobre o caso, aparelharam todo o que fazia mister, para tal obra, e leixando alli as tendas, e todo o al que traziam, cavalgaram em seus cavallos, e chegaram aos olivaes de Santarem, de noite. Esto era em vespora de S. Miguel de Maio sete dias andado do mez, na era de mil cento e quorenta e sete annos, (1147) e chegados alli viram um sinal, que lhes esforçou muito mais os corações; viram uma estrella grande ardente com grande raio correndo pelo Ceo, da parte da Serra, que alumiava a terra, e foi ferir no mar. Vendo esto disseram logo todos. _Senhor Deos todo poderoso a Villa é em vossas mãos_. Esso mesmo no dia que El-Rei mandou notificar aos Mouros o britamento das treguas, que acima dissemos aos da Villa, appareceo outro sinal mui espantoso pronostico de sua mortindade, que foi na terceira noite seguinte, viram no Ceo a horas do meio dia semelhança de um Touro ir por meio do Ceo, levando chamas de fogo acezas, desde o cabo até á cabeça. O que esses mais sabedores antre os Mouros, intrepetáram que Santarem haveria cedo Rei novo, e seria o filho del-Rei de Sevilha Mouro, cujo Santarem, e Lisboa, e parte da Estremadura era. Sendo já El-Rei com os seos perto da Villa, lançaram-se em um valle encuberto, e escuso, tão acerca do lugar, que ouviam falar as velas do muro, quando bradavam uns aos outros, e estiveram alli toda a noite, com os cavallos pelas redeas, vigiando com grande cuidado, do que ao dia seguinte esperavam de fazer, sem os Mouros delles haverem nhum sentimento. Em esta noite, e o dia seguinte o Prior de Santa Cruz de Coimbra, com grande devação ocupado em rogar a Deos por El-Rei, mandou fazer aos seus Conigos orações publicas, e particulares, e elle em seu orar mui devotamente dizia: «Senhor Deos todo poderoso, que sem combate, nem força humana fizeste cair os muros de Jericó, e a rogo, e voz de Jezoé, mandaste estar quedo o Sol de seu curço contra Guabaão, pesso á tua infinda bondade, que segundo tua grande misericordia queiras dar vitoria a El-Rei D. Affonso afadigado por te servir, dando-lhe Sol, e sombra que ajude sua tenção, e todo o azo como tome a Villa, que vai ganhar, para teu serviço, e livrar dos imigos que a tem com doesto de tua santa Fé, e por tal que a çuja seita de Mafamede seja lançada fóra della, e o teu santo nome seja sempre hi louvado. CAPITULO XXXII _Como El-Rei D. Affonso Anriques e os seus escalaram a Villa de Santarem, e foi entrada, e tomada_. Desque veio a madrugada sobre o quarto dalva, quando elles entenderam que as velas estavam mais sosegadas, e sonorentas, e os da Villa mais desegurados, e entregues ao sono, partiram donde estavam, leixando naquelle valle os pajes com os cavallos, e tomaram o somideiro antre Motiraz, e a fonte Datamarma, a qual assi chamam em Arabigo, pelas aguas della, que são doces, e foram assi pelo meio do Vale, indo diante D. Mem Moniz que sabia bem as entradas, e saidas, e El-Rei mais atraz, e posto que por onde levaram tenção de escalar, achassem o contrario do que cuidavam, porém Deos a cujo poder não póde haver contrario, lhe tornou em bem este impedimento, por mostrar assi seu poder e ajuda, que no lugar porque haviam de entrar, e sobir, tinham por certo não haver ahi nhuma guarda, e acharam estar duas velas, postas em um cadafalço, feito de novo, que se espertavam um ao outro; e nisto, a rolda que andava pelo muro requerendo ás velas, chegou por hi, e falou-lhe, e os Christãos leixáram-se estar quedos, em um pão, que hi estava, até lhes parecer que as velas poderiam adormecer. E ao cabo de pouco abalou D. Mem Moniz trigozo com os seus pelo infesto, e foi por cima da caza de um oleiro, ao muro a poer a escada, em uma aste a fundo, e deu no telhado fazendo grande som; do que D. Mendo havendo grande pezar de pela ventura, espertarem as velas amergeu-se, e de hi a pouco fez assentar curvo, um mancebo, e por cima delle poz a escada mais entregue no muro por onde tanto que acima sobio logo levantou a bandeira del-Rei, que levava; subiram dous com elle, e não sendo ainda mais de tres sobre o muro, não leixaram as velas de acordar, e senti-los, e falou um delles com voz rouca, e dormente, como desvelado, e tresnoitado, e disse: _Menhu_ que quer dizer, _quem anda ahi_. Respondeo então D. Mendo por Aravia, que era dos da rolda, e tornava por lhe dizer cousas que compriam, que decesse abaixo; o Mouro tanto que deceo foi D. Mendo mui prestes a mata-lo, e cortou-lhe a cabeça, e deitou-a aos de fóra, para mais seu esforço, e seguro, e nesto a outra vela quando ouvio, e conheceo que eram Christãos, e não sendo ainda em cima do muro, mais que dez dos nossos, chegaram os da rolda correndo aos brados da vela que ouviram, e encontrando-se com os Christãos, vieram ás cutiladas bravamente os nossos por darem começo, e entrada ao porque iam, e os Mouros pola tolher, antes que o mal mais crecesse. D. Mendo nesta afronta bradou chamando em ajuda Santiago Patrão de Espanha; e El-Rei tambem do pé do muro, altas vozes acodio: «Santa Maria Virgem Bemaventurada, e glorioso Apostolo Santiago acorre-nos». Bradando aos seus, que eram em cima do muro. «Matai-os: andem á espada todos, que não fique nhum», e os que sobiram, apartaram-se logo pelo muro, em duas partes peleijando cada uma com os Mouros que vinham. Era já tamanha a volta, e arroido de ambas partes que se não podiam entender, El-Rei disse então aos seus mui apressado: «Façamos ajuda aos nossos, e tenhamo-nos á parte dextra se podermos sobir alfam, e Gonçalo Gonçalves com os seus a seextra, que filhe primeiro o caminho que do ceicego, que não possam os Mouros vir por lá, e tomar primeiro a entrada da porta, e assi atalhados se percam os nossos dentro á nossa mingua, e deshonra». Mas o Senhor Deos, que ajuda as obras de seu serviço lhes mudou em melhor, e mais seguro sua tenção, e fadiga, que onde se trabalhavam de entrar pelo muro, entraram pela porta, e de dez escadas que fizeram, duas sós abastaram para tudo, porque sobiram até vinte e cinco, os quaes correram mui prestes a quebrar as portas com um machado que lhes fora dado de fora, e britadas as fechaduras, e ambudes entrou El-Rei a pé com os seus, e poendo os giolhos em terra, antre as portas, com grande prazer, se encomendou, e deu muitas graças a Deos. Os Mouros acodiram todos alli peleijando mui rijamente, e vendo já dentro comsigo tanta gente desesperando de se poder alli ter, acolheram-se os mais delles a Alfam, mas pelo despercebimento em que se acharam foram logo entrados, e mui muitos delles homens, e molheres, e moços trazidos á espada de que foi o sangue tanto pelas ruas, que parecia serem alli mortos grande multidão de gados. Todos os que escaparam de não serem mortos na peleija, foram cativos com grandes, e ricos despojos que na Villa se acharam. Foram hi antre outros cativos, tres Cavalleiros principaes mui ricos de que El Rei houve fazenda de grande valia. Para o escalamento desta Villa foram escolhidos, primeiramente D. Mem Moniz Guarda mór del-Rei, e delle mui querido, filho de D. Egas Moniz, e D. Pedro Affonso irmão del-Rei bastardo, e D. Lourenço Viegas, e D. Pero Paes seu Alferes, e D. Gonçalo de Souza, e outros nobres homens. CAPITULO XXXIII _Como Auzary Alcaide de Santarem, tomada a Villa, fugio para Sevilha, e El-Rei se tornou a Coimbra e donde se chamou a Villa Santarem_. Entrada, e tomada assi a Villa de Santarem, Auzary Alcaide mór della, escapou fugindo, com tres de cavallo consigo caminho de Sevilha, quanto mais pôde. Estava El Rei Mouro de Sevilha sobre a Torre do ouro chamada, e quando Auzary assomou vendo-o El-Rei vir, veio-lhe por sentido, segundo muitas vezes o coração sente dante mão, e advinha as cousas, que seria aquelle Auzary, e disse-o alli aos que com elle estavam; elles mostráram não cair em couza de tão longe enxergada, e tambem por desviar El-Rei do sentido de más novas antecipado; e disse então El-Rei: «Se aquelle que vem é Auzary, e chegando a aquelle porto derem agua aos cavallos: Santarem é tomado; e se não derem de beber, Santarem é cercado, e vem Auzary a gram pressa a demandar soccorro». Os de cavallo chegando ao porto deram agua de seu vagar, El-Rei carregou-se mais de sua prognostica, e chegando Auzary, contou-lhe como se tomára a Villa, e da grande mortindade que se nella fizera de que El-Rei de Sevilha, e todos os Mouros houveram grande pezar, não só pela perda desta Villa, mas de outras a que a perda desta dava cauza forçada. El-Rei D. Affonso desque tomou a Villa, poz nella seu Alcaide, leixando-a abastecida como compria, e tornou-se para Coimbra com muito prazer, onde contando á Rainha sua molher, e a outros muitos como lhe acontecera na tomada de Santarem, disse estas palavras: «Dou a Deos dos Ceos muitos louvores, ante cujos olhos todalas couzas são sabidas, e conhecidos; que não tenho agora a grande maravilha, serem pelo seu poder em outro tempo os muros de Jericó, como se lê derribados, nem estar quedo o Sol por rogo de Josué um dia todo, em comparação da piedade, e misericordia que lhe aprouve fazer comigo, em me dar um tão forte lugar tomado com tão pouca gente, pelo qual glorifico o seu Santo nome, e suas maravilhosas obras, as quaes renovando em nossos dias elle, quiz mostrar neste feito, tanto sobre poder humano, que qaando me eu vi ante as portas da Villa abertas, poendo meus giolhos em terra com muita devação, e prazer de minha alma, orei a elle palavras que me elle naquella hora, como todo o al, então deu no esprito quejandas agora não saberia dizer: mas dos ousados esforços, e cometimentos, que se na tomada da Villa fizeram, digam-no os que se alli acharam, porque não é em mi dize-lo». Esta Villa se chamava antigamente Cabilycrasto, e depois da morte de Santa Eyrea, lhe pozeram os Christãos nome de Santarem, que vem de Santa Eyrea Martyre que a ella veio ter. CAPITULO XXXIV _Como El-Rei D. Affonso Anriques ordenou de ir cercar Lisboa, e a tomou, e das gentes Estrangeiras que para esso houve em sua ajuda_. Depois de tomado Santarem se foi El-Rei D. Affonso para Coimbra como se disse, e não para descançar, nem repousar seu coração, que nunca cessava de buscar afrontas, e louvadas impresas, em que Deos fosse servido, mas para o melhor ordenar, como em fresco, se milhor aproveitasse do vencimento, e tomada de Santarem, sabendo que nas guerras fama de uma vitoria aproveitada com tempo dá azo a muitas, pelo qual ajuntou logo seu poder para conquistar os lugares que ficavam na Estremadura de Santarem até o mar, em especial a Cidade de Lisboa, a qual tomou no modo que se segue. Chegando El-Rei a terra onde Lisboa está situada, pareceo-lhe milhor guerrear, e tomar as fortalezas ao redor della ante de cercar a Cidade por tal que quando viesse o cerco tivessem os seus menos trabalho nas forragens, e se podessem os seus mais ligeiramente sem outras guardas estender pela terra, e alli tomou logo o Castello de Mafora, e deu-o a D. Fernão Monteiro, o primeiro Mestre de Aviz que houve em Portugal, e apoz esto foi logo cercar Sintra, e tomou-a, mas se foi por força, se por preitesia não o achamos escrito, e sendo assi tomada, appareceo no mar uma frota de cento e oitenta velas, de gentes, que naquelle tempo moveram de Alemanha, e de Inglaterra, e de França, para guerrear os infieis por serviço de Deos, e vindo assi todos de mar em fóra demandar terra á rocha de Sintra. Estava El-Rei D. Affonso em cima do Castello, e seus principaes que com elle eram, e maravilhando-se do ajuntamento, e navegação de tão grande frota, mandou logo quatro Cavalleiros, a saber que gentes eram, e a causa de sua vinda, os quaes chegando a Cascaes já a frota toda pousava, vieram então a fallar, e preguntar-lhes que gentes eram? Elles responderam, que eram Christãos partidos de suas terras para virem guerrear por serviço de Deos os Mouros imigos de sua santa Fé. Nesta frota vinham muitos Condes, e outros grandes Senhores, mas a escritura não falla de seus nomes, mais que de quatro, um por nome Mossem Guilhem de longa espada, Conde de Lincoll de que se diz ser em seu tempo havido pelo milhor Cavalleiro, que sabiam em toda a Inglaterra, nem França, ao outro chamavam Childe Rolym, ao outro D. Liberche, ao outro D. Ligel. Sabendo El-Rei pelos que lá mandára como eram Christãos, e da tenção que traziam para servir a Deos, foi desso mui ledo, e bem se lhe poz no sentido que Deos fizera mover aquella gente, e aportar em sua terra, por lhe fazer tanta mercê, que a Cidade de Lisboa fosse tomada, e deu-lhe por ello em seu coração muitos louvores, pelo qual lhes enviou mensageiros, porque lhes mandou dizer como elle soubera os bons movimentos, e tenção de suas boas vontades, que traziam para servir a Deos, e que fossem bem certos que não sem misterio seu, e vontade, elles eram alli aportados trazendo-os N. Senhor a tal logar, onde o bem podiam servir, e comprir seus desejos, e devação, e não menos accrescentar suas honras para esse mundo, porque de alli donde elles estavam pouzados não mais de cinco leguas, estava uma cidade de Mouros mui guerreira das principaes de Espanha, de que por mar, e por terra se fazia muita guerra, e dano aos Christãos, a qual tinha mui fermoso porto, em que suas Náos, e muitas mais podiam mui seguramente estar ancoradas, e elles haver muitos mantimentos em abastança, e pois ao Senhor Deos aprouvera sem irem trabalhar mais longe, traze-los tão perto de tamanho azo, e oportunidade para o que vinham buscar, não leixassem esta empresa por Deos tão querida, e mostrada por outra nhuma creatura, e que elle como Rei que era da terra os ajudaria a esso com todas suas forças, como elles bem veriam. Andaram assim estes recados de uma parte, e da outra, até que vieram concertar de irem juntamente todos cercar a Cidade, á condição que sendo tomada, ametade fosse del-Rei, e a outra metade dos Estrangeiros, e assim logo El-Rei por terra, e a frota por mar foram poer cerco a Lisboa; El-Rei acentou seu arrayal da parte do Oriente, onde agora está o Moesteiro de S. Vicente de Fóra, e os Inglezes, e outras gentes tomaram a parte do Ponente, onde ora são os Martyres. Durou o cerco perto de cinco mezes, por a Cidade ser mui forte, de sitio, e cerca, e estarem dentro muitos Mouros, que a mui bem defendiam; fizeram-se neste cerco grandes escaramuças, e fortes combates, em que se matavam muitos Cavalleiros de uma parte, e da outra. Cada um arrayal dos Christãos, edeficou sua Egreja em que enterrassem os que alli morriam, e El-Rei D. Affonso fez a sua, onde depois foi edeficado o Moesteiro de S. Vicente á honra do Martyre S. Vicente, e os Estrangeiros edeficaram outra que ora é chamada Santa Maria dos Martyres. Estas Egrejas estão agora dentro dos muros da Cidade, desque a cercou El-Rei D. Fernando o noveno Rei de Portugal, como se adiante dirá, porque quando Lisboa esta vez foi tomada a Mouros, não era sua cerca maior, que quanto se ora vê, e chama cerca velha. Quando veio em dia dos Martyres S. Chrispino, e Chrispiniano, que é aos vinte e cinco dias do mez de Outubro, andando a era do Senhor em mil cento quorenta e sete annos, (1147) foi a Cidade mui rijamente, e com grande determinação combatida, dando o Senhor Deos tanta graça aos Christãos, que seu esforço, e gram devação de peleijar por seu serviço, passava pelas muitas feridas, e mortes, e todas outras grandes difficuldades, e perigos do combate, havendo elles todo por menos, pelo grande pezar que tinham em lhe parecer que todo seu trabalho seria debalde, e Deos não servido, se a Cidade se não tomasse, e assi com este fervor, e mui animosa determinação, poendo em fim o que os seus devotos corações tanto desejavam, entraram a Cidade por força. Entrou-se principalmente por a porta que ora chamam de Alfama, e de hi pelas outras portas, e depois de entrada foi dentro a peleija muito mais fera, que janda soe antre irados vencedores, e vencidos, desesperados, peleijando já os Mouros com estremada desesperação, e vontade de querer antes morrer antre as mortes de suas molheres, e perdimento de filhos, paes, parentes, e amigos, e assi os Christãos não com menos indinação por infieis entrados, e vencidos querendo ainda mais deter, e daninficar seu vencimento, nem se querendo dar por vencidos, por tanto foi tão grande a mortindade delles, e sobejo o conto dos que foram mortos, e trazidos a ferro, que é escuzado cuidar quão poucos ficáram. CAPITULO XXXV _Do que El Rei D. Affonso Anriques fez depois de entrada a Cidade de Lisboa, e tomada, e do que falou, e passou com as gentes Estrangeiras_. Oesque a Cidade de Lisboa assi foi tomada por El-Rei D. Affonso Anriques, e aquelles Estrangeiros, com elle ajuntou logo El-Rei todos, e com grande procissão se foram á Mesquita onde ora está a Sé edeficada, e depois de limpa, e mundificada das abominaveis ceremonias que hi eram feitas da seita de Mafamede, os Clerigos, e Bispos revestidos, segundo sua ordem, com _Te Deum laudamus_, entraram nella, e assi foi consagrada, e instituida á honra e louvor da Virgem Maria, celebrando logo em ella os officios Divinos, nomeando-a por Sé Cathedral, se ao Santo Padre aprouvesse. Feito esto mandou El-Rei logo chamar Mossem Guilhem de longa espada, Childe Rolim, e D. Liberche, e D. Ligell, e outros Capitães, grandes, que eram na companhia dos Estrangeiros, e disse-lhes. «Amigos bem sabeis como concertámos se nos Deos desse a Cidade que a partissemos por meio, e pois a elle por sua piedade aprouve de a tomarmos, muitos louvores, e graças lhe sejam dadas, vós escolhei, e tomai Cavalleiros, e eu darei outros que vão partir a Cidade, e assi todalas cousas que dentro, e fóra della houver, e forem achadas.» Vendo esto aquelles Capitães, e gentes Estrangeiras tiveram a grande bem o que El Rei dizia, e responderam-lhe que haveriam sobre ello concelho, e lhe tornariam reposta. O concelho, e determinação delles foi, que pois partiram de suas terras, e foram alli vindos, só com tenção de servir a Deos, nem fora outro nenhum seu proposito, e vontade, não queriam haver Cidades, nem terras, nem outras riquezas, quanto mais não lhes parecendo cousa conveniente que tal Cidade fosse partida, nem manteuda com El Rei de por meio em sua terra, que abastava para elles leixarem-na em poder de Christãos como fora seu dezejo, e assi se foram a El-Rei, e lho disseram mui francamente, o que lhes elle muito agradeceo, offerecendo-se, que se alguns delles, e de suas gentes quizessem ficar em sua terra, elle lhe daria lugares para povoarem, e viverem em elles izentamente, e ás suas vontades. Depois desto partio El-Rei grandemente com os Capitães, e gentes que quizeram tornar para suas terras, e assi se espediram delle com muita sua graça, e os que ficáram para morarem na terra escolheram para sua povoração vivenda a Atouguia, e Lourinhã, e Arruda, e Villa-verde, e Villa-franca, que primeiro foi chamada Cornagoa, porque aquelles que a povoaram eram Ingrezes de Cornualha, e chamaram-na do nome de sua terra, e povoaram tambem a Azambuja, e pozeram-lhe este nome, porque estava alli um grande Azambujeiro, e os Ingrezes por em sua lingoa fazerem do mascolino, femenino, chamaram-lhe Azambuja. E segundo memoria dos edeficadores daquelle lugar, o senhor daquelles que a povoaram havia nome Rolim, não que por esso fosse Childe Rolim, o que em cima dissemos ser um dos grandes Senhores que naquella frota vinha, o qual não é de cuidar que ficasse em Portugal para povoar terra de novo, havendo tantas Villas, e lugares povoados, de que mais com rezão se devera partir com elle ficando na terra, mas é bem de crer, que fosse outro algum Capitão Fidalgo seu parente, com que folgassem de ficar, e seguir alguma daquella gente, segundo que desentão, e hoje em dia seus sucessores, bem mostráram sua cavallaria, e fidalguia com muita honra, e serviços feitos aos Reis, e Reino de Portugal, e outros alguns destas gentes povoaram Almada, e pela nomeação deste nome se mostra que foram muitos a povoa-la, e faze-la, ou por trabalho de suas pessoas, ou por contribuirem dinheiros para esso, porque o proprio nome seu em linguagem Ingreza é, vimadel, que quer dizer em Portuguez: _todos a fazemos_, e depois por tempo, que todalas cousas muda, corrompendo-se o nome, lhe chamáram Almadam, o que ainda vae ter a Almadee, que soa em Ingrez, todo feito, mas leixaremos aqui um pouco de proseguir a Estoria por contarmos de alguns milagres, que a N. Senhor aprouve de fazer por alguns Martyres, que no cerco, e entrada de Lisboa morreram, em especial de um Cavalleiro Alemão por nome Anrique, sendo muita razão, que os Justos sejam como diz a sagrada Escritura em memoria eterna, e de sua gloria por Deos manifestada, se faça louvada menção, pois se faz de seus temporaes feitos, cujos merecimentos por muito que neste mundo mereçamos, não chega á gloria, e louvor do premio, que no outro ante Deos se alcança. CAPITULO XXXVI _Dos milagres que Deos mostrou pelo Cavalleiro Anrique Alemão que morreo quando a Cidade de Lisboa foi entrada_. Acima se disse, como durando o cerco de Lisboa soterraram os mortos naquellas duas Egrejas, que nos reaes se fizeram para esso, e tomando-se a Cidade aconteceo dos que na entrada soterraram na Egraja que ora é chamada S. Vicente de Fóra, um nobre, e valente Cavalleiro Alemão chamado Anrique, comprido de bons, e virtuosos costumes, foi morto naquelle combate peleijando mui esforçadamente, e sendo assi enterrado naquelle lugar N. Senhor em cujos olhos é mui preciosa a morte dos seus Santos, e Bemaventurados aquelles, segundo elle disse, que no amor de Deos, quanto mais os que por seu amor morrem, fazia por este Cavalleiro Anrique muitos milagres de que alguns sómente por mostra brevemente diremos. Vinham na frota daquellas gentes Estrangeiras dous homens surdos, e mudos de seu nacimento, e indo um dia á sepultura daquelle Cavalleiro deitaram-se apar delle com grande devação, pedindo em suas vontades, que por seus merecimentos lhes empetrasse do Senhor Deos piedade, e misericordia para sua infermidade, elles jazendo assi adormeceram ambos, e appareceu-lhes logo em sonhos o Cavalleiro Anrique vestido em trajos de Romeiro, trazendo na mão um bordão de palma, e falou áquelles mancebos, dizendo-lhe: «Alevantai-vos folgai, e havei prazer, e hi ouvi, e falai, que pelos merecimentos meus, e destes Martyres, que aqui jazemos, ganhastes do Senhor Deos graça, a qual é com vosco». E dito esto desapareceo; elles então acordaram, e achando-se sãos de todo, ouvindo, e falando milagrosamente, e assi em voz e linguagem clara, começaram a contar a todo o povo o milagre que Deos em elles fizera pelos merecimentos deste Cavalleiro. E El-Rei D. Affonso, e todos os que hi estavam davam muitas graças, e louvores ao Senhor Deos, que taes maravilhas obra, como diz o Profeta, por honrar, e exaltar os seus Santos, e amigos. Era este Cavalleiro Anrique natural de uma Villa que se chama Bom composta na ribeira de Reina quatro leguas acima de Colonha, na qual eu fui, e estive dessas vezes, que áquellas partes fui enviado por Embaixador, vendo-a sempre com muita affeição, e saudosa lembrança deste Santo Cavalleiro Anrique. CAPITULO XXXVII _Como o Cavalleiro Anrique appareceo em sonhos a um homem bom, mandando-lhe que soterrasse um seu Escudeiro apar delle, que na entrada de Lisboa muito ferido morrera_. Logo a poucos dias que esto aconteceo veio a morrer um Escudeiro deste Cavalleiro Anrique de grandes feridas, que tambem houve na entrada da Cidade, e enterraram-no na mesma Egreja donde jazia seu senhor, e sendo alli soterrado, appareceo de noite o Cavalleiro Anrique a um homem muito velho, que servia aquella Egreja e havia nome Anrique como elle, dizendo-lhe: «Levanta-te, e vai ao lugar onde os Christãos enterraram o meu Escudeiro alongado de mim, toma o seu corpo, e vem enterra-lo aqui junto comigo, porque quem me seguio, e se ajuntou comigo na morte, não deve ser apartado na sepultura». Do que aquelle homem bom nada curou, e vindo-lhe outro tal segundo aparecimento, e amoestação tão pouco curou desso, como da primeira, então lhe appareceo a terceira vez o Cavalleiro Anrique mui irado, e com sembrante bravo, e queixoso ameaçando-o com palavras de grande medo, se logo não fosse comprir o que por tantas vezes lhe dissera, pelo qual aquelle bom velho cheio de temor se levantou logo de noite, e foi com candeias á sepultura onde jazia o Escudeiro, e desenterrou-o trazendo-o elle por si só e lhe fez uma cova a milhor que pode apar do Cavalleiro Anrique onde o enterrou, e quando veio pela menhã, achou-se o velho tão são, e sem cançasso do trabalho da noite passado, sendo impossivel por sua cançada idade pode-lo fazer, como se jouvera em sua cama folgando sem fazer nada, e contando ao outro dia todo assi como lhe acontecera, aos Prelados, e a todo o povo deram todos muitos louvores a N. Senhor. CAPITULO XXXVIII _Da palmeira que naceo na cova do Cavalleiro Anrique, e dos milagres que Deos por elle fazia_. Querendo ainda o Senhor Deos segundo a grande avondança de sua infinda benificencia, mostrar por mais maravilhas quanto lhe tinha aprazido, o serviço deste Cavalleiro Anrique, appareceo á cabeceira de sua sepultura uma palma semelhante áquella que trazem os Romeiros de Jerusalem em suas mãos; assi começou em verdecer, e deitar folhas, e crecer sobre a terra, em sua altura juxta. El-Rei, e todos vendo tão grande, e famoso milagre, louvaram muito a Deos, e quantos enfermos alli vinham tomar palma, e deitavam ao colo logo eram sãos a essa hora, de qualquer infermidade que tivessem, e outros a tomavam, e tostavam, e depois de moida bebiam della aquelle pó, e assi mesmo se achavam logo sãos das dores que tinham, e tanta foi a continuação da muita gente que vinha tomar daquella palma, que a pouco tempo não ficou nada della sobre a terra, até por não porem boa guarda nella, vieram alguns de noite, e a arrancaram de todo, levando o que ficava sobre a terra. Por estes milagres, e outros que N. Senhor aprouve de fazer pelos seus Santos Martyres, que alli morreram, tinha El-Rei nelles mui grande devação, que se sentia em si algum abalamento de doença deitava-se em oração sobre seus jazigos, e achava-se logo remediado. CAPITULO XXXIX _De como El-Rei D. Affonso Anriques ordenou de fazer Lisboa Bispado, e quem foi o primeiro Bispo della_. Passado assi todo esto fez El-Rei juntar toda sua gente que com elle era, e disse-lhe: «Amigos meus eu até agora como vistes depois de tomada esta terra, e Cidade, me ocupei em ordenar, e destribuir os bens temporaes della, os quaes muitas vezes tem rezão, não em dignidade, nem em preiminencia, mas em ordem para se haver primeiro de entender nelles, que nos espirituaes, para que Deos seja assi mais ordenadamente servido, segundo requere a orde, e maneira das cousas deste mundo, e a fraqueza da condição humana sem o temporal não póde vagar no espiritual, agora é muita rezão que não tardemos mais de entender no espiritual, ordenemos, e elejamos quem nesta Cidade seja Bispo, e Pastor de nossas Almas, e regedor da Egreja Cathedral». Louvaram todos o que El-Rei dizia, e então foi eleito um homem virtuoso, que alli era, chamado Gilberto, de muito boa vida, e costumes, e leterado em Degredos, e a poz esto mandou El-Rei logo notificar ao Papa cumpridamente o cerco, e tomada de Lisboa, da eleição do Bispo, que por serviço de Deos novamente fizera, pedindo a Sua Santidade o quizesse confirmar. O Papa lhe outorgou todo esto, e outras mais cousas que lhe enviou pedir, dando-lhe grandes perdões, indulgencias para as Egrejas que tinha feitas. Tanto que este recado veio de Roma chamou El-Rei o Bispo Gilberto, e disse-lhe: «Bispo estas duas Egrejas, foram aqui edeficadas como sabeis, tendo nós ainda esta Cidade cercada para se nellas enterrarem os que morriam, pois a N. Senhor aprouve de vermo-lo, e podermo-lo fazer, eu quero dotalas começando primeiro no Moesteiro de S. Vicente de Fora». E então o dotou de muitas posseções, porque entendeo que poderiam bem, e sem mingoa viver, os que em elle houvessem de servir a Deus, e para os Povos terem mais azo, e devação de ajudar, e fazer o Moesteiro poz em elle grandes indulgencias, que lhe o Papa mandou, e assi tambem na Egreja de Santa Maria dos Martyres. CAPITULO XL _De como El-Rei D. Affonso Anriques ordenou Prior no Moesteiro de S. Vicente de Fóra, e quem foi primeiro Prior delle, e de que Ordem_. E depois desto consirando El-Rei como o seu Moesteiro de S. Vicente de Fóra houvesse de ser milhor servido prepoz de poer em elle Capellães Clerigos onestos, e estando neste seu preposito, aconteceo chegar a Lisboa um Frade Flamengo de boa, e onesta vida, chamado Gualterio, e com elle quatro Frades seus companheiros, que vinham a buscar onde fizessem um Moesteiro da Ordem de que elles eram, para nelle viverem. El-Rei sabido de sua vida e preposito folgou muito, e mandou por elle dizendo-lhe como edeficara aquelle Moesteiro de S. Vicente, rogando-lhe que elle, e seus companheiros quizessem nelle viver, e estar por ser caza para esto mui conveniente, e para Deos hi delle ser servido; aprouve muito dello a Gualterio, e a seus companheiros, e foram-se logo para o Moesteiro. Queria muito este Prior Gualterio, que o Moesteiro fosse chamado da Ordem que elle era, e que El-Rei no Moesteiro não tivesse nhum especial poder, o que não querendo El-Rei consentir, se partio Gualterio com os seus compenheiros para onde vieram. El-Rei fez então Prior um Conego Estrangeiro, que havia nome Damer, o qual a cabo de poucos annos se foi tambem para sua terra, por onde parecendo a El-Rei que Religiosos assi vaguanãos, e fóra de Suprior, por muita devação que tragam, e presumam não hão graça para durar á ordem, e serviço de Deus, determinou de mandar ao Moesteiro do Banho que é da Ordem dos das sobrepelizes por um Conego que chamavam Guodinos, que fosse o Prior do Moesteiro, o qual assi Prior por suas virtudes foi eleito por Bispo de Lamego, e El-Rei então mandou por outro Conego a esse mesmo Moesteiro do Banho, que havia nome D. Mendo, e havendo oito annos que era Prior, se veio a finar; e a poz este houve outro Prior, que chamavam D. Paio, e foi o derradeiro Prior que em S. Vicente houve em tempo del Rei D. Affonso, e posto que estas cousas que dissemos fossem feitas por espaço de tempos, em vida del-Rei D. Affonso, nós contamo-las aqui juntas por pertencerem á tomada de Lisboa. Ora adiante diremos outras cousas que se fizeram logo seguintes á sua tomada. CAPITULO XLI _Dos Lugares que El-Rei D. Affonso Anriques depois tomou na Estremadura, e Alem do Tejo_. Depois de El-Rei D. Affonso Anriques ter tomado Lisboa como se já disse, logo naquelle anno seguinte andando a era de N. Senhor em mil e cento e quorenta e oito annos, (1148), foi El-Rei sobre Alanquer, e Obidos, e Torres Vedras, e sobre outros Castellos da Estremadura, que ainda eram de Mouros, durando em os tomar seis annos, e depois que os teve assentados, e assi toda a terra da Estremadura, ajuntou todas suas gentes, e passou-se a Alentejo, onde fez grande destruição em os Mouros, tomando-lhes Alcacere, Evora, Elvas, Moura, e Serpa, e outros lugares até chegar a Beja, o qual tendo-a cercada entrou grande poder de Mouros pela Comarca da Beira a fim de retraher, e fazer cessar o dano que El-Rei em elles fazia em Alentejo, e cercaram Trancozo, e depois de combatido e tomado por força destruiram o logar, e deixaram-no, matando muitos Christãos, e levando muitos delles cativos. El-Rei D. Affonso posto que lhe estas novas chegassem, não se quiz levantar do cerco, que tinha sobre Beja, antes a combateo então fortemente com engenhos, e artilharias, até que a tomou por força, e pelo despeito que tinha do mal que os Mouros fizeram em Trancozo, todos os Mouros de Beja andaram á espada, ficando mui poucos vivos. Foi Beja tomada na era do Senhor de mil cento e cincoenta e cinco annos (1155). Feita assi esta destruição nos Mouros, e havidas estas vitorias nas terras Dalentejo, leixou El-Rei Beja, e todolos outros Lugares mui bastecidos, e providos de Cavalleiros, e gente que os mui bem podassem defender, e guardar, e tornou-se para Coimbra com muita honra, e grande prazer, pelas mercês, e grandes vencimentos, que lhe N. Senhor Deos contra Mouros dera. CAPITULO XLII _Dos filhos que El-Rei D. Affonso houve, e como cazou sua filha Dona Mofalda_. Tanto que El-Rei D. Affonso chegou a Coimbra lhe foi logo commettido cazamento para sua filha Dona Mofalda; elle teve tres filhas, e um só filho, o filho houve nome D. Sancho, que herdou o Reino por falecimento de seu pai, e em sendo Ifante foi sempre mui bom e esforçado Cavalleiro, e valente, e depois que Reinou, não menos bom, virtuoso, e esforçado Rei, fazendo muitas cavallarias, e accrescentando seu Reino como em seu logar contaremos, e a primeira filha houve por nome Dona Mofalda, que foi cazada com D. Reymondo, filho do Conde D. Reymondo de Barcelona, e a outra chamada Dona Urraca, cazou com El-Rei D. Fernando de Lião; a terceira filha houve nome Dona Tareja. Esta foi cazada com D. Felippe Conde de Frandes, e sendo assi commettido a El-Rei D. Affonso o dito cazamento para sua filha Dona Mofalda, o vieram a concertar, que o Conde D. Reymondo de Barcelona viesse á Cidade de Tuye, que era del-Rei D. Affonso, e alli fizessem vistas antre si sobre este cazamento. Então se partio El-Rei para lá com muitos Senhores, Prelados, e Cavalleiros, levando comsigo a Rainha Sua mulher, e suas filhas. Chegáram a Tuye dez dias andados do mez de Janeiro; dahi a oito dias chegou o Conde D. Reymondo; fez-lhe El-Rei dar bairro, e pouzadas grandes, e boas para elle, e toda sua gente, que com elle vinha, a qual era muita, e mui luzida; vindo o Conde, El-Rei sahio-o a receber acompanhado de honrados Prelados, e outros Grandes do Reino, e Cavalleiros mui principaes; iam com elle D. João Arcebispo de Braga, D. Mendo Bispo de Lamego, D. Izidoro Bispo de Tuye, D. Pedro Conde das Asturias, o Conde D. Ramiro, e o Conde D. Vasco, D. Gonçalo de Souza, D. Pedro Paes seu Alferes, e outros muitos ricos homens, e Cavalleiros com muita gente. Quando o Conde chegou veio El-Rei para elle, e o recebeu com muita honra, e gazalhado, trazendo-o consigo até o Paço, alli descavalgáram, e se foram logo para onde estava a Rainha, e as Ifantes, e o Conde esso mesmo fez grande reverencia á Rainha, e suas filhas, de que foi mui bem recebido, e depois de fallarem alli um pouco tomou El-Rei o Conde, e levou-o para onde haviam de comer. Aquelle dia comeo o Conde com El-Rei em sala, elle, e todos os que com elles vinham, e assi a Rainha, e as Ifantes com suas Donas, e Donzelas, e desque acabáram de comer, vieram Jograes, e tangedores, e foram grandes danças. Isto acabado, havendo-se o Conde de ir colher a suas pouzadas se quizera alli despedir del-Rei, e elle não quiz, se não que se espedice só da Rainha, e suas filhas, e foi-se com elle até porta do Paço onde havia de cavalgar, e El-Rei tinha já ahi cavallo para ir com o Conde; mas o Conde não o quiz consentir em nhuma maneira; ficou então El-Rei, e todos os outros Senhores, e Cavalleiros da Corte, se foram com o Conde até sua pouzada. El Rei mandou a todos seus Officiaes, que dessem todas as cousas sem dinheiro, que o Conde houvesse mister, em quanto hi estivesse, e des aquelle dia em diante, começáram a fallar no trato do cazamento da Ifante, e do filho do Conde; estiveram em o concertar até dous dias por andar de Janeiro em que se fez o cazamento; no qual dia sendo hi juntos muitos Senhores, e Prelados, e Cavalleiros de uma parte e da outra, foi lida á Rainha, e Ifantes uma Procuração de D. Reymondo filho do dito Conde porque dava poder a seu Pai, que em seu nome podesse receber com elle a Ifante D. Mofalda filha del-Rei D. Affonso. E vista a Procuração, El-Rei tomou sua filha, e trouxe-a ante o Arcebispo de Braga, o qual tomou o Conde pela mão, e assi a Ifante, e então os recebeu, elle como Procurador de seu filho, e ella por si, como manda a Santa Madre Egreja de Roma, e esto feito, entregou El-Rei sua filha ao Conde, que a levasse consigo até onde houvessem de ser feitas as vodas, e o Arcebispo de Braga, e D. Martim Moniz, e assi Donas, e Donzelas foram em sua companhia della. Deu El-Rei ricas joias ao Conde, e aos seus fez mercês de modo que elle, e todos os que com elle vinham partiram mui contentes del-Rei. Partio-se assi o Conde, levando a Ifante consigo, e elle partido, El-Rei se tornou para Coimbra com toda sua gente, e Corte. CAPITULO XLIII _Como El-Rei D. Affonso tomou Cezimbra, e Palmela, e peleijou, e venceo El Rei Mouro de Badalhouse com muita Mourama_. Sempre despois deste cazamento El-Rei D. Affonso esteve, e andou por aquelles lugares, que ganhára aos Mouros, provendo-os das couzas, que lhe compriam para sua defenção, como fossem governados em justiça, e estando assi em Alcacer na era do Senhor de mil e cento e sessenta e cinco annos (1165) havendo já El-Rei setenta e um de sua idade, veio recado como Cezimbra estava mingoada de gente, que a tomaria se fosse sobre ella. A esta nova partio logo El-Rei de Alcacer com toda sua gente, e foi-a combater com tanta affronta, que ainda que a Villa, e Castello eram mui fórtes, filhou-a por força, e desque teve a Villa socegada, e posto nella quem a guardasse, determinou de ir ver Palmella, e o acento, e fortaleza della, levando consigo, sessenta bons Cavalleiros, e alguma gente de pé, e besteiros, e chegando a Palmella, e estando vendo-a, asomou El-Rei de Badalhouse com muita Mourama das frontarias daredor, em que havia quatro mil homens de cavallo, e sessenta mil de pé, e vinham ao longo sem ordem a gram pressa para soccorrer Cezimbra, descuidados de verem, nem acharem alli Christãos. Teve-se El-Rei traz um cabeço, e vendo os que eram com elle tanta gente, começáram de haver grande receio, e todos aconselhavam El-Rei que se acolhesse a seu araial o milhor que podesse, e delles diziam, que se puzesse em uma alta serra, que por hi vai, que se chama a serra Dazeitão, e tomassem em ella algum lugar fórte para se deffenderem, até ir recado aos do arraial. El-Rei com quanto vio o medo, e receio dos seus pela grande multidão dos Mouros; porém esforçando-se no poderio de Deos ser maior que o dos homens, no qual elle sempre esperando se achava vencedor, fallou aos seus em esta maneira: «Que esmaio é este amigos, ou que nova desconfiança do Senhor Deos, nem que vedes vós agora de novo, para tanta torvação; estes muitos, que vedes são os que vós muito menos, dos que ora soes, sempre vencestes, para esso ganhamos nós peleijando, e vencendo, á cincoenta annos, tanto merecimento, e honra ante Deos, e o Mundo, para todo em uma só hora, fugindo perdermos, certo que ouvindo-vos, o que ouço, se vos a todos não conhecera, podera mal cuidar, serdes os que comigo vencestes muitos mais, que estes imigos no campo Dourique, e em outros lugares, não ponhaes ante vós meus amigos, quantos mais são, que nós, mas quanto no poder, e querer de Deos, por quem peleijamos, são muito menos que nós; o medo, em que os Deos já poz para nós maiormente se dermos nelles de sobresalto, fará que lhes pareçamos muitos mais do que somos, e elles assi mesmos, menos muito, do que são, e tendo-nos Deos tantas vezes mostrado esta verdade, podeis ainda cuidar em nos devermos de retraher, nem fugir, Deos por nós sempre contra elles em honra, e vencimento, e nos queremos ora poer em deshonra, e nossos imigos em gloria, e esforço contra nós. Ora havei Cavalleiros, que mingua de fé, mingua de crença, nos encurta o esforço, mal concorda no coração de Christão esmaio com ardideza, mal no Christão desconfiança com fé, que inda que poucos sejamos, tambem de muitos, poucos são os que peleijam, não tem hoje estes nossos imigos em seus corações, cousa mais certa que topando-se no campo convosco, e comigo, haverem-se logo por vencidos, tanto que nos virem não ficará destroço, nem mortos, nem vencimentos passados, quantos contra elles houvemos, que como prezentes ante si não ponham, este de agora, que com a graça de Deos haveremos. Pelo qual meus bons Cavalleiros, não vos venham por sentido medos, de que nosso Senhor Deos sempre livrou, e mostrou o contrario, e pois por tantas, e tão milagrosas vitorias, que sobre nosso poder, por sua piedade nos deu, temos tão sabido nada ser a elle impossivel, não devemos nada temer, vamos logo com sua graça, que nos sempre acompanha ferir nos imigos. Eu quero hoje ser vosso pendão, e ver se me quereis seguir, e guardar como sempre fizestes, que pois Deus ordenou para mostrar mais seu gram poder, com tão poucos me aqui acertasse, eu determino por seu serviço, hoje neste dia, de vencedor, ou de morto me não partir do campo». Desque El-Rei acabou de fallar, vendo os seus em elle tão grande confiança, e determinação, todos mui esforçados com suas palavras, e esforço, disseram, que por muito mais dezigual que o cazo fosse, delles aos Mouros, pois elle seu corpo determinava poer a tal feito, elles lhes não faleceriam, e o seguiriam como sempre fizeram, dizendo que dessem logo nelles. Vinham já pelo infesto acima, a cerca, e não haviam mais que tardar. Abalou então El-Rei á pressa com grande coração, e esforço, e todos com elle, em se mostrando fez dar ás trombetas, e foram ferir nos primeiros tão rijamente, que logo muitos delles foram derribados, antre mortos, e feridos. Os Mouros achando-se salteados, e conhecendo, que aquelle era El-Rei D. Affonso, que tanto temiam, figurando-se-lhe, que seria muita mais gente, foi o medo em elles tão grande, que começaram logo a fugir, parecendo aos trazeiros, que os seus mesmos, que voltavam fugindo, eram imigos, como soi a fazer gente de medo cortada, e assi correndo o desmaio por elles, se puzeram todos em desbarate. Alguns contam, que se guardou El-Rei para de madrugada dar nelles, onde foram vistos pouzar, por ser ora, e tempo azado, para mais desmaio, e desbarato dos Mouros, e assi o fez, e os desbaratou. Como quer, que fosse feito, foi em que entrou saber de Cavallaria, com grande coração, e esforço ajudado por nosso Senhor, por cujo serviço se aventurava. Seguio El-Rei apoz os Mouros matando, e ferindo, e cativando muitos no alcance tomando-lhes a carriagem, e despojos grandes, de quanto traziam. Tanto que o desbarato foi acabado, mandou El-Rei dous Cavalleiros a grande pressa a Cezimbra a suas gentes, que lá ficaram, que logo fossem todos com elle, e foram ao outro dia todos e juntos, muito ledos, pela boa andança, que Deos dera a El-Rei, e não menos tristes, por se não acertarem com elle na batalha. Tanto que os de Palmella viram o desbarato dos seus Mouros, e os Christãos juntos contra si, tendo perdida a esperança do soccorro, preitejaram se com El-Rei, que os leixasse sahir em salvo, e lhes dariam a Villa, e a El Rei aprouve dello, e assi houve a Villa de Palmella. CAPITULO XLIV _Do desvairo que sobreveio antre El-Rei D. Affonso Anriques e El-Rei D. Fernando de Lião seu genro, e como se quebrou a perna a El Rei D. Affonso, e foi prezo del-Rei D. Fernando, por caso da perna quebrada_. Sendo El-Rei D. Fernando de Lião casado com Dona Urraca, filha del-Rei D. Affonso Anriques como acima dissemos, veio a deixa-la, e apartar-se della por mandado do Papa, por serem parentes mui chegados, e cazarem sem dispensação, mas o modo como este apartamento foi feito, nem o que se fez desta Rainha Dona Urraca não achamos escrito, salvo, que houve della um filho chamado D. Affonso, que depois da morte de seu pai foi Rei de Lião. Tomando El-Rei D. Affonso deste feito grande pezar, pôs em sua vontade de ir cercar Badalhouse, que estava em poder de Mouros, por ser da Conquista del-Rei D. Fernando de Lião, e ajuntando suas gentes para esso foi poer cerco sobre a Villa, estragando-lhe pães, e vinhas, e fazendo-lhe tanto dano, e apresso, que veio a toma-la. Como quer que os Mouros se mui bem defendessem, El-Rei D. Fernando quando soube que El-Rei D. Affonso de Portugal tomára Badalhouse, enviou lhe a dizer por seus Mensageiros, que lha leixasse, pois sabia que era sua, e de seu Reino, e El-Rei D. Affonso lhe respondeo que lha não havia de leixar, e então o dezafiáram sobre esto, pelo qual El-Rei D. Fernando de Lião ajuntou logo seu poder, e veio contra El-Rei a Badalhouse, e vinha com elle D. Diogo o bom senhor de Biscaya, com cuja irmã chamada Dona Urraca Lopes filha do Conde de Navarra, foi depois cazado este Rei D. Fernando. Vinha tambem D. Fernando Rodriguez de Castro, sendo então ambos vassallos deste Rei D. Fernando de Lião, dezavindos del-Rei de Castella, e vindo já acerca disseram a El-Rei D. Affonso. «Senhor, aqui é El-Rei D. Fernando, e toda a sua oste. Pois assi é, disse El-Rei: Armemo-nos, e saiamos a elle ao campo, que pois nos vem buscar, bem é que nos achem lá fóra em campo comsigo». Então se armáram todos, e sahiram fóra da Villa, e nisto disseram a El-Rei D. Affonso como os seus se embaraçavam já com D. Diogo o bom, e com D. Fernando Rodriguez de Castro, que vinham na dianteira mui bons Cavalleiros, e El-Rei com este recado abalou rijo a cavallo, correndo por sahir fóra da Villa a chegar aos seus, e aconteceo, que o cabo do ferrolho não ficára bem colhido ao abrir das portas, e o cavallo, assi como ia correndo topou nelle com uma ilharga de guiza, que se ferio muito, e quebrou a perna esquerda del Rei, o qual não deixou por esto de chegar aos seus a ajuda-los, e nisto o cavallo que ia ferido, não podendo mais sofrer-se cahio com El-Rei em um senteal, sobre a mesma perna, e acabou-se de quebrar de todo, de modo que os seus não poderam mais levanta-lo, nem poer a cavallo, e então Fernão Rodriguez Castelhano, que o vio cair foi dizer a El-Rei D. Fernando: «Senhor ali jás El-Rei D. Affonso com uma perna quebrada, hi prende-lo, que mais sem trabalho vo-lo deu Deos nas mãos do que eu cuidava.» Chegou então El-Rei D. Fernando onde El-Rei jazia, e por os seus, que o viram cair, e se acertaram serem poucos, e os imigos muitos, houve de ser tomado, e prezo com estes que hi eram com elle; não se podendo valer, nem ser valido, e com os outros seus, que se colhiam á Villa, entráram os del-Rei D. Fernando de mistura, e devulgando-se já o dezastre del-Rei D. Affonso, foi a Villa nessa hora tomada, segundo logo tudo falece, como falece o Capitão. Levou assi El-Rei D. Fernando consigo a El-Rei D. Affonso para a Villa, e fez-lhe mui bem pençar da perna, e em quanto o teve em poder, assentando-o sempre a par de si, fazendo-lhe muita honra; despois veio apreitejar com elle, que lhe desse a terra da Corunha, que é do Minho, até o Castello da Lobeira, uma legoa álem de ponte Vedra, e porcima pelos chãos de Castella, aquella terra, que deram ao Conde D. Anrique seu pai, como no começo da Estoria se disse, fazendo-lhe tambem menagem, que tanto que em besta cavalgasse se tornasse a sua prizão; El Rei D. Affonso nem podendo al fazer disse que lhe prazia. Despois de entregar a terra, e Fortalezas, e fazer a dita menagem, El-Rei D. Fernando o soltou, e elle tornou para seu Reino, e sendo mui bem são da perna, nunca mais quiz cavalgar em besta, por não tornar a menagem, antes sempre depois andou em carro, como soiam andar os Reis antigamente, e logo no anno seguinte de mil e cento e sessenta e seis annos (1166), dia Dassenção, em Coimbra fez El-Rei como mui prudente, e discreto que era, fazer todos os Grandes, e Conselhos do Reino todo menagem a seu filho o Ifante D. Sancho, e este seu quebramento de perna, foi sempre atribuido ao que sua mãi lhe rogou, quando a poz em prizão, segundo atraz nesta Estoria se contem. CAPITULO XLV _Em que fala, e amoesta Duarte Galvão Autor, quanto se devem escuzar as maldições dos pais, e mãis aos filhos_. O pezar que me faz, e a todos fará vendo este dezastre del-Rei D. Affonso Anriques, me faz falar contra as maldições dos pais, e mãis, que ameude se lançam com pouco tento e resguardo, devendo-se escuzar com muito, vendo, e sabendo todos, que com nome de filhos nos reconciliou Deos para si, e com nome de Pai nosso, mandou que o adorassemos, com o nome em que se conclue, e encerra a maior obrigação e ajuntamento de reverencia, e amor que póde haver, antre nós, nem de nós para elle, por onde os filhos devem muito fazer por acatar sempre seus pais, e mãis, segundo por Deos lhe é distintamente mandada escuzar de os provocar a semilhantes maldições, antes recea-las muito, e teme las, por injustas que sejam, como se diz das excommunhões, que desprezando-as haverá por ventura lugar de obrar, como justas, e ajuntadas com outros males de que mal peccado andamos acompanhados descote, e ante Deos desmerecemos, porque tanto quiz Deos, que se guarde, e acate, a ordem que neste mundo ordenou, que elle mesmo sendo sem peccado justo Julgador, sofreo ter injustamente julgado, por injustos, e perversos julgadores, por terem na terra o cargo, e presidencias por elle ordenadas, o que tanto mais devem os filhos acatar, e sofrer a seus pais, e mãis, quanto a lei de justiça, e ordenança de Deos, lho devem ainda por grande obrigação de natural reverencia, e amor. E os pais muito mais de seu cabo devem a meu juizo escuzar semelhantes maldições, quanto mais idade, e entender tem, concirando que são homens, e pais de homens, e que elles poderiam já fazer outro tanto a seus pais, e mãis, maiormente que os erros dos filhos não podem ser tão danosos, que muito mais não sejam as maldições dos pais, lançando-se sempre por humano defeito da sanha vendicativa, a qual se decega em desenfriada ira, não procedesse, não haveria lugar contra o sobejo amor dos pais, e mãis, sendo sempre tamanho, que quanto mais com causa dizem ao filho: «Má morte te mate», vendo-lhe algum mal muito menos de morte se culpam, e matam por elle, e Deos manda, que das nossas injurias, e danos, leixemos a vingança a elle. Dessas pessoas lhe devemos mais leixar de que aos outros devemos tomar que são pais, e filhos, os quais toda a rezão obriga, que antre si mais se comportem, e hajam em suas cousas paciencia, pois Deos que as fez a quem se ainda mais nesso erra, ha com elles paciencia, e assi escuzaram os filhos a culpa tão crime como é desobediencia aos pais, de conhecimento tamanho para Deos como é aos filhos, que lhe deu, por benção, fazerem filhos de maldição, a qual por esto só tambem por injusta que fosse abastaria pela ventura, para fazerem por pena, e peccado do pai, penar o filho inocente neste mundo, em que bem podemos padecer por culpas, e peccados alheios, assi como filhos por pais, e servos por senhores; ainda que no outro não possamos, se não pelos proprios nossos, e da verdade deste caso prouvera a Deos que tiveramos em outra parte a prova, e exemplo mais longe, e estrangeiro, e não del-Rei D. Affonso, que sendo tão virtuoso, e todos seus feitos sempre com virtuosa tenção, e de serviço de Deos, não leixou maldição de mãi, mais madrasta que empecer a este Rei, na pessoa, na fazenda, e na honra, a filho tão virtuoso. CAPITULO XLVI _Como os Mouros vieram com Albojame Rei de Sevilha cercar El-Rei D. Affonso Anriques em Santarem, e como El-Rei foi a peleijar com elles, e os desbaratou e venceo_. Estando assi El-Rei D. Affonso em seu Reino, andando em colos de homens, e outras horas em carros como já em cima dissemos, veio-se para Santarem, e correndo novas pela terra, do desastre do britamento da perna, e da preitezia e menajem que ficára com El-Rei D. Fernando de Lião por cuja causa, não cavalgava em cavallo, nem era de sua pessoa poderoso para fazer guerra como dantes, nem suas costumadas cavallarias, tomaram os Mouros ousadia, e esperança grande de se vingarem, e fazer grande danno a Portugal, pelo qual Albojame Rei de Sevilha, ajuntou grande multidão de Mouros, de toda Andaluzia, e de outras partes, e atravessando todo, antre Tejo e Odiana, matando, e estragando tudo por onde vinham, vieram cercar Santarem, onde El-Rei D. Affonso estava, destroindo-lhe toda a terra de redor. Saiam os Christãos ás barreiras a escaramuçar com elles, e de uma parte, e da outra morriam muitos. El Rei D. Affonso por não poder cavalgar a cavallo, e sair a elles era mui enojado em seu coração acostumado a vencer nos campos, e cercar, e não ser cercado, pelo qual determinando de sair fóra em carro, a lhes dar batalha, alguns dos seus lho contradisseram, e outros diziam que era bem ficar na Villa, e que elles sairiam a peleijar com os Mouros, concelhos ambos muito fóra do parecer del-Rei, e do seu grande animo, e por tanto lhe respondeo, e disse: «Amigos não cumpre agora ver se sairemos, ou não; mas é tempo de tomardes tal esforço para peleijar, que eu possa perante todos louvar os que o bem fizerem, e eu mesmo em pessoa vos ajudarei a esso contra os imigos, quanto em mim fôr como sempre fiz, e se pela ventura alguns tiverem receo, o que não cuido, fiquem na Villa, e não vão lá que eu não poderei sofrer já mais tanta vergonha.» Então acordaram que era bem sair fóra em toda maneira, e estando já prestes para um dia certo, e corregidos como deviam de ir, e de quaes havia El-Rei de ser guardado, aconteceo virem novas a El-Rei D. Affonso como El-Rei D. Fernando de Lião seu genro, vinha com muita gente, o qual por ser Rei mui virtuoso, e mui chegado a Deos, como quer que se quitasse de sua filha, e sobre vence-lo parecesse ser rezão estar delle queixoso, por buscar azo de não cumprir a menagem que lhe tinha feito de tanto que cavalgasse em uma besta, acudir a sua Corte, não olhando nada desto, como soube, que El-Rei Albojame com grande poder tinha cercado El-Rei D. Affonso em Santarem ajuntou sua gente, e partio para o ajudar, e andando então a era do Senhor em mil e cento e setenta e um annos, (1171) assi que vindo recado certo a El-Rei D. Affonso Anriques de como El-Rei D. Fernando de Lião era acerca, e que em poucos dias seria com elle, foi em grande pensamento, cuidando que vinha contra elle por rezão da menagem a que não fora, e posto nesta duvida tanto mais, determinou de peleijar primeiro com os Mouros, e tambem os Mouros de sua parte quando souberam de sua vinda, crendo que vinha contra elles, em ajuda del-Rei D. Affonso seu sogro, determinaram levantar o cerco, e saio então El-Rei D. Affonso a elles, no modo que dantes tinha ordenado, e depois de muito peleijarem fez grande mortindade nelles, e desbarato, de muitos prezos, mortos, e feridos, e grandes e ricos despojos tomados. Assi se foram os Mouros destroçados fogindo quanto mais podiam. El-Rei D. Fernando quando soube que os Mouros eram desbaratados, e El-Rei D. Affonso descercado, não quiz ir mais adiante, posto que perto fosse, e esteve alli quedo tres dias, enviando dizer a El-Rei D. Affonso que tomasse prazer, e nada receasse delle, que não abalára, nem vinha a outra cousa, se não só por o descercar, e pois os Mouros já eram idos, que ficasse com a paz de Deus, e El-Rei D. Affonso lhe deu por ello muitas graças, e é que desque foi prezo na batalha que houve com este D. Fernando de Lião seu genro, nunca depois foi visto ledo, nem haver prazer como dantes, e quando lhe lembravam as cavallarias que dantes soia fazer contra Mouros, e quam temido era delles, não podia estar que mui enxergadamente se não entristecesse, mas porque deste tempo até que o Corpo de S. Vicente foi trazido a Lisboa, não achamos outra cousa que de contar seja, queremos aqui dizer como, e em que modo foi aqui trazido. CAPITULO XLVII _Como o Corpo de S. Vicente foi achado por uns devotos homens que o foram buscar_. Já antes desto, em seu lugar contamos como El-Rei D. Affonso Anriques foi por si com grande cuidado, e devação, buscar o Corpo de S. Vicente, e não o pôde achar havendo já vinte e seis annos que a Cidade de Lisboa era em poder de Christãos, tomada a Mouros, fez El-Rei Albojaque tregoas, com El-Rei D. Affonso Anriques por cinco annos, as quaes foram feitas quatro dias do mez de Maio era do Senhor de mil cento e setenta e trez annos, (1173) então, certos homens de Lisboa, com grande devação, vendo que já podiam ir seguros áquelle lugar onde o Corpo de Vicente jazia, fizeram prestes uma barca, com todo o que lhes fazia mister, e foram-se lá sem nhum impedimento, nem deficuldade, chegaram, e desembarcaram no mesmo lugar, onde postos em oração, mui devotamente a Deos pediam que lhes mostrasse onde jazia o Corpo daquelle glorioso Martyr; a poz esto começaram a cavar, e aprouve a N. Senhor que o acharam, e dando-lhe muitas graças e louvores, o tomaram com muito prazer, e devação, e puzeram-no dentro na barca, e logo Deos alli mostrou por elle um grande milagre, que um dos que iam na barca, em desenterrando aquelle santo Corpo, furtou um dos ossos, e tanto que o tomou, cegou logo de todo, pelo qual cortado de medo, e arrependimento tornou a poello donde o tomara, e neste ponto lhe foi restituida toda sua vista, e foi são como dantes, e tambem se deve atribuir aos grandes merecimentos deste Santo Martyr, que sendo sempre o mar alli alevantado, e perigoso, e reçafa muito grande, foi visto tão chão e manço fóra do acostumado ao embarcar do seu Corpo, como se fôra em qualquer outro lugar, onde nunca houvesse, nem podesse fazer ondas, e assi tornaram com muito prazer a salvamento. CAPITULO XLVIII _Como o Corpo de S. Vicente foi posto na Sé de Lisboa_. Elles chegados ao porto da Cidade de Lisboa, não quizeram logo tirar fóra o Corpo do glorioso Martyr, com receo de lho tomarem por força, e aguardando a noite levaram-no escondidamente á Egreja de Santa Justa, o qual sendo logo sabido ao outro dia pela menhã, segundo Deos não quer sua gloria escondida, toda a Cidade corria para alli, e uns diziam que era bem de o poerem em S. Vicente de Fòra, e outros, que mais rezão era estar na Sé, e neste debate D. Gonçalo Viegas Adiantado mór de Cavallaria del-Rei, que era presente, vendo quão errada cousa era, arguir-se mal e arroido sobre cousa tão santa e devota, que mais com rezão deviam tolhe-lo, fez cessar o alvoroço da gente, e que esperassem até que o El-Rei soubesse, e mandasse o que sua mercê fosse nesso. D. Roberto Daião da Sé homem onesto, e de boa vida, foi o mais onesta e escuzamente que pode a D. Moniz Prior da Egreja de Santa Justa, e rogou-lhe mui afincadamente, que por honrar, e obrigar a Sé, que era a principal e mais dina Egreja da Cidade em que aquelle Santo Corpo mais honradamente, que em outra parte podia estar, lho quizesse dar, e a elle aprouve dar lho, e então os da Sé, com toda outra Clerezia mui ledos, foram por elle, e o levaram mui honradamente em procissão, acompanhado de toda a gente da Cidade dando todos muitas graças, e louvores a N. Senhor, e assi foi trazido, e posto na Sé, onde ora jaz. Os Conegos de S. Vicente vieram logo hi a pedir que lhe dessem das Reliquias daquelle santo Corpo, mas não lhe foram dadas. Quando El-Rei D. Affonso Anriques soube esto, segundo era devoto, chorou com prazer, louvando muito ao Senhor Deos, por querer em seus dias honrar seu Reino com tão preciosas Reliquias, mandando outra vez áquelle lugar donde o Corpo fora trazido, que vissem, e catassem bem, se ficara ainda lá alguma cousa delle. Foram lá, e feita toda diligencia, acharam ainda um pedaço do testo da cabeça, e pedaços pequenos desatandados do Ataude, o que todo trazido sem nada ficar, pozeram com o Corpo. E conta a Estoria, que depois que este santo Corpo alli foi na Sé, o Corvo o qual, segundo já dissemos, que foi visto guarda-lo quando foi deitado ás aves, e animalias veio sempre na barca com elle, e o acompanhou, e depois de posto na Sé, o viram muitas vezes sobre o seu Moimento, como quem o não queria desemparar, e outras oras se punha sobre o Altar mór, e assi andava voando pela Egreja, e aconteceo, que um moço chamado Joane, que servia na Egreja deu com uma pedra a este Corvo, e foi cousa milagrosa, que logo a essa hora foi tolheito, de todos seus membros, e então seu pai do moço quando vio tamanho pezar ao moço seu filho, lançou-se em oração de noite muito devotamente ante o Corpo de S. Vicente, e foi logo o moço são de todo, como dantes era; e da li nunca mais ninguem ouzou de fazer nojo áquelle Corvo, o qual foi hi visto por muitos tempos. El-Rei mandou escrever o dia, e era em que o Corpo deste glorioso Martyr veio a Lisboa, e foi aos quinze dias do mez de Setembro da sobredita era de mil e cento e setenta e tres annos (1173). CAPITULO XLIX _Como El-Rei D. Affonso Anriques ordenou de mandar o Ifante D. Sancho seu filho a Alentejo a guerrear os Mouros, e das rezões que lhe sobre ello disse_. Depois que os cinco annos das tregoas que El-Rei D. Affonso fez com El-Rei Albojaque, como acima dissemos, foram acabados, que foi na era do Senhor de mil cento e setenta e oito annos, (1178) estando El-Rei D. Affonso Anriques em Coimbra, vendo que em toda sua terra era guerra cessada sem ter receo, salvo dantre Tejo, e Odiana, que pelo acabamento da tregoa cumpria ser bem defeza, e guardada, e que álem desto seria cousa honroza, se com a defenção della, se assás se ganharem mais alguns Lugares a Mouros, chamou seu filho o Ifante D. Sancho, e perante alguns do seu Concelho lhe disse assi: «Filho tu sabes bem quanto trabalho tenho passado na guerra com os Mouros, e pela tregoa que tinha com El-Rei Albojaque já ser acabada, hei por certo que os Mouros, não estarão quedos, e guerrearão esses Lugares que delles ganhei em Alentejo, donde recebem, e esperam de receber muito dano, e já me foi falado e requerido que entendesse na defensão delles, pelo qual eu cuidando como se esto milhor podia fazer de quantas cousas me vieram por sentido me pareceo, e parece milhor que tudo, que eu te mande lá em pessoa, e esto por duas rezões, a primeira, porque sabes que está meu cazo de não poder cavalgar em besta por não ir ás Cortes del-Rei D. Fernando, o que eu não fora por cousa que no mundo houvesse, que fazendo traria a ti, e a mim grande perda, e a todos os do Reino de Portugal; a segunda porque prazendo ao Senhor Deos depois de meus dias, tu hás de ter o carrego de reger, e defender este Reino, e pois te deu Deos entender, e corpo, e manhas para o poderes fazer, é bem que já agora commeces, e o faças.» Quando o Ifante ouvio esto a seu pai foi muito ledo, e beijou-lhe as mãos, dizendo: «Senhor, eu vos tenho em mui grande mercê esto, que me encarregais, e espero em a graça do Senhor Deos com os bons Senhores e Cavalleiros, de vosso Reino trabalhar como seu serviço, e vossa vontade, e mandado seja comprido; e pois Senhor se esta cousa ha de fazer seja vossa mercê querer que se faça logo; porque quanto mais cedo for tanto porei a terra em milhor estado, e defensão.» El-Rei respondeo que lhe prazia, que assi o mandava poer em obra, e ordenando logo quais, e quantos daquem do Tejo contra o Porto fossem chamados para haver de ir com o Ifante escrevendo que todos se ajuntassem em Coimbra a certo dia; esso mesmo fizeram ordenanças, e Regimentos que o Ifante havia de ter no feito da guerra, que havia de começar. CAPITULO L _Do Alardo que El-Rei D. Affonso Anriques mandou fazer em Coimbra, da gente que mandava com o Ifante D. Sancho seu filho, e como em partindo no meio da Ponte se despediram todos del-Rei_. Despois de vindos todos os que eram chamados ao tempo que lhes foi assinado, fez El Rei fazer Alardo no campo que se chamava Arnado, de assás fermoza, e ataviada gente de armas, e de bésteiros, e piães, e outros todos com grande mostra de coração, e mui ledos para ir com o Ifante D. Sancho a fazerem por suas honras o que a cada um convinha em tal cazo, e desque o soldo foi pago, e elles todos prestes partiram de Coimbra no mez de Julho da sobredita era (1178). El Rei saio de seus Paços a pé, e veio até ponte, e o Ifante D. Sancho, e todolos outros Grandes com elle, e a outra gente passada da parte dálem, e chegando ao meio da ponte disse o Ifante a El-Rei: «Senhor esto e assaz de vossa vinda, não tome vossa mercê mais trabalho, mas lançai-nos vossa benção, e com a graça de Deos eu, e estes Senhores vossos Cavalleiros, e Vassalos, que aqui estamos, iremos fazer o que mandais, e a elle que sempre endereçou vossos feitos, e teve em sua boa guarda apraza de nos ajudar em tal modo que vosso coração seja ledo, e descançado.» Respondeo El-Rei: «Filho vós fazeis muito bem, mas crede que me é tão grave vossa partida, e destes Vassallos meus naturaes com que soia estar, e ter continos comigo, que ainda que vós, e elles fosseis a cavallo e eu sempre a pé, parece-me que não enfadaria, nem cansaria tanto, que muito mais não faça, como faz este apartamento; mas pois é forçado, pesso a N. Senhor em cujo serviço his vos ajude a todos, e vos haja em sua guarda de guiza, que por vós seja sua santa Fé acrecentada, e seus imigos lançados fóra da terra, que nossos antecessores ganharam». Esto assi passado, quantos ahi estavam foram beijar a mão a El-Rei, e se despediram delle. O Ifante foi o derradeiro que se delle despedio beijando-lhe as mãos. El-Rei lhe lançou sua benção, e se tornou para a Cidade, e elles cavalgaram todos, e se foram seu caminho. CAPITULO LI _Das jornadas que o Ifante D. Sancho fez, e como partio de Evora guerreando os Mouros até Sevilha, onde fez falla aos seus ante que com os Mouros peleijasse_. Partidos dalli foram aquella noite pouzar a Penella, e alli disse o Ifante a todos que lhe parecia bem não irem juntos, e que para irem mais folgados, fosse cada um á sua vontade, por onde mais quizesse, porém que se juntassem com elle na Guoleguam. Aos tres dias andados do dito mez de Julho, e juntos hi todos como lhes era mandado, partiram dalli, e passando o Tejo se meteram todos em ordem, como quem entrava em terra a cada passo sospeita de imigos, andaram assi tanto por suas jornadas, que chegaram a Evora onde o Ifante foi bem recebido dos que hi moravam, e todos os seus que com elle iam. Esteve o Ifante em Evora alguns dias por sentir o que os Mouros queriam fazer por sua vinda, e tambem por dar folgado caminho aos seus. Este tempo que o Ifante hi esteve, os Mouros nunca fizeram entrada, nem intentaram cousa alguma, que de contar seja, pelo qual pareceo ao Ifante tempo de fazer o porque viera. Então mandou chamar alguns das frontarias ao redor, para irem com elle, e que todavia as Villas, e Lugares ficassem bem guardadas. De nhuma lhe acodiam tantos, como de Beja, o que causou ficar a Villa muito minguada de gente, que para sua defensão lhe fazia mister. O Ifante desque teve sua gente junta, abalou de Evora oito dias andados de Outubro da sobredita era de mil cento e setenta e oito annos, (1178) e foi seu caminho direito pelo Castello da Gineta, e dalli se começaram de estender os corredores, e outros homens de armas guerreando os Mouros, estragando-lhes a terra, e assi correo todo aquelle caminho, contra Sevilha, até que passou a Serra Morena. Quando os de Sevilha, e Andaluzia, souberam da vinda do Ifante D. Sancho tiveram-se por mui desonrados, porque depois que Espanha fora tomada, e Sevilha em poder de Mouros, nunca fora guerreada de Christãos, quanto mais ouzarem de chegar tão a cerca della, pelo qual houveram acordo de sair ao Ifante, e pozeram-se todos á saida do Inxarafe. Chegaram novas ao Ifante como os Mouros esperavam alli para peleijar com elle, do que foi mui ledo, dando muitas graças a Deos, por se achar a tempo, e ora que o podesse servir contra aquelles infieis seus imigos, mandou então chamar os Grandes, e outros principaes Cavalleiros de sua oste e disse-lhes: «Quero-vos amigos dar boas novas, com que muito deveis de folgar, como eu faço. Sabei que todo o poder de Sevilha, e terras de redor vos estão aguardando para peleijar com nosco, parece-me que muito nos mostra o Senhor Deos aprazer-lhe de nos dar em nossas mãos o porque viemos, cousa com que elle seja mui servido, e vós grandemente honrados, que por eu ser novo nestas cousas, e vós que comigo vindes Cavalleiros, em ellas tão provados, ainda agora esta honra ha de ser mais vossa que minha, pelo qual sede muito ledos, e com muito prazer ordenemos, como logo de menhã vamos a elles, e assi a ordenança que a nossa gente hade levar, que do mais hei por mui escuzado dizer-vos nada do que cada um hade fazer, nem meter-vos esforço para esso, conhecendo-vos que sois tais, e que sabeis tanto de honra, e cavallaria exercitados em muitas peleijas, e batalhas, e grandes vencimentos com El-Rei meu Senhor, e pai, que soies mais para dar desso ensino e esforço, que toma-lo de ninguem; hei por assás lembrar-vos, que ponhaes em vossos corações o mais que tudo vos ha-de lembrar, que peleijamos por defender, e acrecentar a Fé de N. Senhor Jesu Christo, o qual de sermos nada, fez de nós filhos, a elle que nos tanto amou, a elle em cujo serviço se não perde trabalho: nos encomendemos, elle que para havermos de servi-lo poz em nós o querer, nos cumpra o poder que façamos com sua graça de menhã, por onde corram de nós taes novas, que elle seja louvado, e meu Pai descançado, e vejam todos que para parecer eu seu filho, e vós seus Cavalleiros, e amigos, não faz mister ser elle presente». Com estas palavras do Ifante folgaram todos muito, e foram mui satisfeitos, respondendo: «Senhor, nós todos somos vossos, e por serviço de Deos e vosso faremos neste feito quanto em nós for, e vós podereis ver, de modo que Deos seja servido, e com sua ajuda vós ganheis muita honra para vós, e para nós, e desagora ordenai logo o que se em ella ha de fazer, porque hoje seja sabido de cada um em que lugar ha de ir, e estar». CAPITULO LII _Como o Ifante D. Sancho peleijou com os Mouros de Sevilha, e o esperaram ante a Cidade, e do grande vencimento que houve_. Esto assi passado, o Ifante se apartou logo com os principais para o haverem de fazer, e ordenáram de toda sua gente cinco azes, a primeira fosse a vangarda, e a outra apoz esta batalha do meio; e a terceira reguarda, e as outras duas azes o Ifante levava comsigo, dous mil e trezentos de cavallo, a fóra os corredores que agora chamam ginetes. O Ifante meteo na primeira az em que elle ia, seiscentos de cavallo. Eram hi com elle D. João Arcebispo de Braga, e o Conde D. Gonçalo, e D. Pero Paes Alferes, que então naquella ida servio o Ifante de seu officio, e D. Mem Moniz: a outra batalha segunda, foi encommendada a D. Gonçalo de Souza, com outros seiscentos de cavallo, a terceira, que era reguarda, com outros seiscentos a D. Lourenço Viegas, a az direita levava D. Pedro das Esturias, com duzentos e cincoenta de cavallo, e a esquerda o Conde D. Ramiro, com outros tantos, e os mais dos corredores com homens de pé pozeram tras a carruagem, que a houvessem de guardar, se alguns Mouros quizessem dar nella, e da gente de pé não lemos conto, nem repartição acabada, mais que de quatro mil, de que na avanguarda, onde o Ifante ia, foram metidos mil e quinhentos homens de pés. Ás azes foram dados dous mil, e os mais com a carruagem como dito é. Tanto que essa ordenança foi feita, o Ifante mandou a D. Pedro Paes, que fosse pela oste a encomendar a cada um o que havia de fazer, porque naquelle tempo o Alferes tinha aquelle carrego, e poder, que ora tem os Condestabres. Ao outro dia ante menhã, fez o Ifante dar ás trombetas, foram logo todos levantados mui prestemente, de si ordenáram suas azes, e onde cada um havia de ir, e estar. O Ifante fez mover sua bandeira, e assi todos os outros, e foram todos em ordem até chegarem aonde os Mouros estavam, e logo sem mais detença foram dar, e ferir em elles. Os Mouros receberam-nos mui esforçadamente; ao juntar houve logo muitos derribados, de uma parte, e da outra, e muitos cavallos andavam pelo campo sem senhores. Sobre a az do Ifante, que primeiro juntou com os Mouros carregaram tantos delles, que se não fora soccorrida, em modo algum se pudera sofrer, que vendo D. Gonçalo de Souza, e D. Lourenço Viegas o Ifante assi cercado, e encerrado antre tantos Mouros, foram a gram pressa a ferir nelles; tambem os Condes D. Pedro das Esturias, e D. Ramiro, Capitães das azes, e depois de as azes todas assi envoltas, e antre si mui feridas, partio-se a peleija em quatro, ou cinco partes mui brava em todolos cabos. Era para louvar a Deos, e folgar de ver o esforçado peleijar dos nossos, que por força fizeram juntar-se onde estava o pendão de Sevilha; e do Ifante, se acha escrito, que bem mostrava ser filho de seu pae, em ferir, assi de lança como de espada peleijando mui esforçadamente, onde quer que se acertava. Em esto vendo D. Pero Paes Alferes, os Mouros assi todos juntos com o pendão de Sevilha dando vozes a Mem Moniz, e a outros Senhores, remeteo ao Alferes que o tinha, e deu-lhe tais duas feridas de espada, que o desatinou, e leixando cair sua espada dependurada por uma cadea, para esso segundo parece custumada travou no Alferes, e como era forçoso deu com elle, e com o pendão em terra. Nesto os Mouros, que com algum esforço, ou vergonha de ver ainda o seu pendão levantado, sostinham a peleija, tanto que o viram derribado começaram todos a fugir, via da Cidade, e o Ifante e os seus apoz elles matando, e derribando quantos podiam, e ao entrar de Trianna foi tanta a pressa nos Mouros, que não poderam cerrar a porta, e os nossos entraram de volta com elles. Os Mouros que tinham já a ponte passada, por tornarem a soccorrer os que ficavam atraz, acalçados dos nossos, deram tanto empacho e torvação aos trazeiros, que tiveram os nossos grande e despejado tempo, e lugar, para fazer em elles grande matança, e em muitas partes se acha escrito haver sido tanta mortindade dos Mouros, feridos, e mortos no rio Guadalquibir, que suas aguas pareciam sangue, segundo o sangue tinge sempre mais de sua quantidade a agua em mostra muito maior. O Ifante feito este tão grande desbarato dos Mouros, tornou-se para onde elles tiveram seu arraial de ante sentado, no qual acharam prezas grandes, e ouro, e prata, e muitas joias, e cavallos, e outras cousas, as quaes repartio por esses Grandes, e Cavalleiros, e outra gente, como bem lhe pareceu sem tomar nada para si, do que todos foram delle mui contentes. CAPITULO LIII _Como os Mouros foram cercar Beja, e o Ifante D. Sancho o soube, e foi sobre elles a soccorre-la, e da batalha que com elles houve sobre ella_. Acha-se escrito, que ficando assi Beja falecida de gente para sua defenção, pela muita que della se fora com o Ifante D. Sancho mais que de outro nhum Lugar Dalentejo como acima dissemos, e ainda de esses que nella ficaram alguns com medo de a não poderem defender, se partiram della para outros lugares de Christãos, e os Mouros sabendo certo como a Villa estava para ligeiramente se poder tomar, pela mingua de gente que não tinha, ajuntaram-se dous mui principaes antre elles chamados um Alboacamesim, e outro Albouzil, e muitos Mouros que os seguiram, e chegaram a pôr cerco sobre ella. Os poucos Christãos que dentro estavam, corregeram a Villa o milhor que poderam, e poseram se a defende-la, e aprouve a N. Senhor, que com quanto os Mouros logo em chegando a combateram, e afrontaram mui rijamente, os nossos a defenderam com tanto esforço, que os imigos a não poderam tomar tão de ligeiro, como traziam por certo, e assi por sua multidão, e os defensores da Villa serem poucos, como por o Ifante ser com a outra gente mui alongado, para os haver de soccorrer, detreminaram toda via sentar arraial sobre a Villa, fazendo conta, que ainda que a não tomassem, logo em chegando a tomariam, em alguns poucos dias, que para esso teriam despaço, e começaram trazer, e fazer engenhos, e arteficios, que para tal cazo cumpria. Quando os de dentro da Villa viram a determinação, e assento dos Mouros, tomaram acordo de o fazerem saber ao Ifante, e mandaram um Escudeiro dos que na Villa estavam sabedor mui bem da terra, cavalgado em um especial cavallo, o qual como foi noite saio-se fóra da Villa com tal tento, e avizo, que não houve sentimento, nem torvação dos do arrayal, e a carta que levava era que os da Villa se encomendavam em sua mercê, e lhe pediam que lhes acorresse em tão grande fadiga e trabalho em que estavam; no qual entre tanto elles fariam quanto em si fosse, por toda via guardarem o que lhes encomendara. Passando assi estas cousas depois de vencida a batalha de Sevilha, o Ifante partio da li contra a terra, que ora em Castella chamam Algarve, fazendo muita destruição nos Mouros por toda aquella terra, e estando sobre Niebla, chegou o recado dos Cavalleiros de Beja, como aquelles Mouros a tinham cercada. O Ifante vista a carta chamou logo os do seu Concelho, e amostrou-lha, dizendo: _Amigos que vos parece desto, ou que devemos fazer_. E todos acordaram que para andarem correndo a terra, não era bem perder-se tal Villa, como era Beja. Então pareceo ser bem, que o Ifante tomasse de sua gente até mil e quatro centos de cavallo dos melhores emcavalgados para logo partirem com elle, e que toda a outra oste o seguisse, e tirassem de pôs elle o milhor que podessem direito a Beja. Esto assi detreminado, disse o Ifante a D. Pero Paes Alferes, que tomasse carrego dos que haviam de ficar e elle lhe respondeo: «Que cousa Senhor será irdes vós em algum lugar poer em a ventura a vosso corpo, em que me eu não ache a ter vossa bandeira, como ora em esta batalha, que vencestes de Sevilha, e outras muitas com vosso pai, até agora me sempre achei.» O Ifante lhe tornou a dizer, que elle fora desso mais ledo, mas pois seu cargo era guardar a oste, e rege-la, e governa-la, e nelle tanto confiava toda via quizesse ficar com ella. Então ficou D. Pero Paes com a gente, e deu de sua mão a bandeira a um seu sobrinho, por nome Sueiro Paes, mui bom Cavalleiro. Logo ao outro dia cedo, sem mais tardar partio o Ifante com aquelles mil e quatro centos de cavallo, a mais andar, e os Adais e Guias que comsigo levava, o levaram por tais Lugares, e caminhos, que os Mouro não poderam haver novas delles, e passaram pelo váo de Mertola, onde chamam as Asenhas. Os Mouros de Mertola, tinham escuitas no váo, e vieram dar novas á Villa, e porque o Ifante passava ao Serão, e a Villa era mui forte, não temeram os Mouros de Mertola, que aquella gente vinha sobre elles, mas que iam soccorrer a Beja, pelo qual mandaram logo a gram pressa homens de pé, e de cavallo fazer saber a Alboacamezim, e Albouzil, como pelo váo das Asenhas passara aquella noite muita gente, e que haviam por certo não ser outrem se não o Ifante D. Sancho. Havido este recado, foi muito grande alvoroço no arraial dos Mouros, e uns diziam que era bem que se fossem, e outros que era milhor aguardarem, e peleijarem com os Christãos. O Ifante tanto que veio aos chãos do Campo Dourique, disse aos seus, que se não trigassem a andar por chegarem mais folgados aos imigos, porque o caminho fora grande, e mao, e vinham trabalhados, e por causa desso não poderam chegar á vista dos imigos se não a ora de Terça. Tinham os Capitães dos arraiaes, especiais espias, e tanto que houveram avizo de Mertola, mandáram logo essa noite corredores a saber que gente era a que vinha, e se vinham para alli, se para outra parte. Os corredores dos Mouros amanheceram acerca de alguns do Ifante, que vinham adiantados, e prenderam um Escudeiro, que lhes contou todo como era, e tornáram logo á pressa com elle a seus Capitães, e sabida a verdade por elle, esses milhores do arraial, por escuzarem vergonha de não esperar, mostraram grande esforço, e tenção de quererem em todo cazo peleijar com os nossos, como quer que al tivessem na vontade, outros mostravam o contrario, pelo grande receio que tinham ao Ifante, e aos outros que vinham com elle, havendo que seriam assinados Cavalleiros, dobrava-lhes este medo o fresco desbarato, e mortindade de Sevilha, segundo, que a corações encontrados em receios, sempre se lhes agoura, e apresenta o peor. Este incerto alvoroço dos Mouros deu espaço para o Ifante poder chegar sem elles poderem al fazer, se não esperar, e sair-se fóra do arraial, tão acerca viam já o pó da gente dos Christãos. Quando o Ifante chegou estavam já os Mouros com suas azes prestes, e sem mais aguardar, disse logo o Ifante a Sueiro Paes, que abalasse rijo com a bandeira, e assi foram rijo ferir nos Mouros, e a peleija, esse espaço que durou, foi fortemente peleijada dambas as partes, e com mostra de haver mais de durar, mas aprouve a N. Senhor, que os Mouros não poderam sofrer o grande esforço, e combate dos nossos, e começáram a fugir, e foram delles muitos cativos, e mortos, antre os quais morreram hi os dous Capitães Alboacamezim, e Albouzil. O Ifante com o seu, e assi os da Villa houveram grandes prezas em aquelle desbarato, e o Ifante assentou seu arraial fóra da Villa, sem querer entrar nella, até que chegasse a outra gente sua, que elle mandára que o seguisse. Os da Villa sairam fóra, e trouxeram-lhe serviços desso que podiam. O Ifante os recebeo com muito prazer e agradecimento louvando-os muito do grande esforço, e bondade que tiveram em defender a Villa, sendo tão poucos. Foi esta peleija, e vencimento do cerco de Beja, em dia Dascenção de N. Senhor dezoito dias de Maio, do Nascimento de N. Senhor de mil cento e setenta e nove annos (1179). A cabo de tres dias, do desbarato dos Mouros, chegou D. Pero Paes com toda a oste que lhe ficou encarregada, e depois de chegados, foi o Ifante com certos Cavalleiros ver a Villa, e entrando pela porta vio ainda em cima estar as Armas de Almançor, mandou-as logo tirar, e poer as del-Rei seu pai. Mas ora deixará a Estoria de falar do Ifante D. Sancho, que ficou em Beja mui temido dos Mouros de toda aquella terra, e contará de uma entrada que El-Rei Guami Mouro, e um seu irmão fizeram em Portugal, e como foi desbaratado, e prezo em Porto de Mós, por um Cavalleiro, que havia nome D. Fuas Roupinho. CAPITULO LIV _Como os Mouros cercaram Porto de Mós, e foram desbaratados por D. Fuas Roupinho Alcaide do Castello_. Sabendo os Mouros de cima do Tejo, como o Ifante D. Sancho era em Beja, de socego, parecendo-lhes que com a occupação que lá teria, elles podiam a seu salvo fazer entrada em Portugal, um Rei daquella terra onde ora é Caceres, e Valença, que chamavam Guami, e um seu irmão com soma de gente das terras a redor, passou o Tejo, e correo toda a terra de Christãos, até chegar a Porto de Mós. Em aquelle tempo tinha o Lugar um Cavalleiro, que chamavam D. Fuas Roupinho, o qual quando soube que vinha aquelle Mouro sobre elle, saio-se do Castello, leixando em elle gente que o podesse defender, encomendando-lhes muito, que assi o fizessem, que elle se não saia se não para logo lhes soccorrer com mais gente. Saido elle meteo-se em cima da Serra, que chamam Amendiga, da parte donde nace o roio de Porto de Mós, fazendo esconder os seus, mandou logo a gram pressa a Alcaneide, e Santarem fazendo saber a vinda daquelles Mouros, e que lhe enviassem gente, porque com a ajuda de Deos esperava que havia haver delles honra, e vencimento. Acodiu-lhe logo bom quinhão de gente, e no dia que elles chegaram aonde estava D. Fuas Roupinho, chegou o mesmo Rei Guami com todas suas gentes sobre Porto de Mós, e vendo o Castello tão pequeno, fazendo conta que ligeiramente o tomaria, foram logo todos em chegando a combate-lo mui rijamente. Foi o combate tão profiado, que dureu até noite, dos Mouros foram muitos mortos, e feridos, e assi da parte dos Christãos houve danno assás, e durando o combate os que estavam na Serra com D. Fuas Roupinho, debatiam-se todos por ir soccorrer aos seus, e elle lhes disse. * * * * * «Amigos posto que nós aqui sejamos muitos, porém eu vos rogo, que vos rejais hoje neste cazo por mim, que segundo cuido, e espero prazerá a Deos que vossos desejos, e meus, eu vo-los darei compridos com muito prazer, e honra, antes que estes Mouros daqui vão, e vós sede certos, que os que eu leixei no Castello são taes, que se defenderão bem, ainda que creio que os Mouros de os ter em pouco, não cessarão do combate até que a noite os desparta, e esso é o que eu mais desejo, porque então do caminho e combate mais cançados se lançarão a repouzar, e dormir, e nós ante menhã daremos nelles, e os desbarataremos.» E assi lhes saio em todo, porque de madrugada deram nos Mouros entregues ao sono, e não menos em descuido de lhes tal acontecer, e porque o lugar onde os Mouros estavam ante o Rio e o Castello ser mui estreito, deu ainda mais azo para sendo assi cometidos se embaraçarem antre si, e desbaratarem, e serem mortos, e feridos muitos mais, sem se poderem remediar. Foi ahi prezo El Rei Guami, e seu irmão com elle, e outros muitos, os quais com cincoenta dos melhores D. Fuas Roupinho levou a El-Rei D. Affonso Anriques a Coimbra. El-Rei o recebeo com muito prazer e gazalhado, e mandou meter em prizão a El-Rei Guami, e todos os que com elle foram levados, e a D. Fuas, e aos que com elle iam, e foram na batalha fez grandes mercês, como cabe aos Principes fazer por serviços, e merecimentos, assinados como aquelle. Foi esta batalha de D. Fuas Roupinho, e El-Rei Guami, em Porto de Mós aos vinte dias do mez de Maio, era de mil cento e oitenta annos (1180). CAPITULO LV _Como D. Fuas Roupinho peleijou no mar com os Mouros, e os venceo, e tomou delles nove Galés_. Estando assi D. Fuas Roupinho com El-Rei em Coimbra, quando lhe levou aquelle Rei Mouro prezo, escreveram os de Lisboa a El-Rei como hi andavam nove Galés de Mouros, de que era Almirante um Mouro por nome João Ferreira Dalfamim, o qual fazia muita guerra e dando por aquella Costa, que fosse sua mercê manda-lo remediar. El Rei havendo este recado, chamou D. Fuas Roupinho, encomendou-lhe que fosse a Lisboa, e fizesse armar Galés, e que fosse elle por Capitão, para ir peleijar com os Mouros, se o esperassem; e deu-lhe logo cartas e mandados para seus officiais, que lhe dessem para ello todo o que lhe fizesse mister, e outra para a Cidade, de como o mandava lá para armar aquella frota, e por tanto fizessem todo o que acerca desso elle lhes requeresse. Tanto que D. Fuas foi despachado, espedio-se del-Rei, e partio-se para Lisboa, e como chegou deu a Carta del-Rei á Cidade, e as outras aos officiaes daquelle carrego, e logo á pressa se deu ordem para se armar a frota, e como foi prestes, D. Fuas entrou em ella, e partio volta do Cabo de Espichel, por haver novas que na paragem do rio de Setubal continuadamente, continuavam mais as Galés dos Mouros, e faziam sua guerra, as quais havendo lá nova da Armada que se fazia, vinham tambem contra Lisboa a sabe-lo, e trova-lo se podessem, e em dobrando o Cabo, houveram vista da frota dos Christãos, e sem mais detença se foram aferrar uns com outros, peleijando mui fortemente, e quiz N. Senhor que os Mouros foram desbaratados, e todas suas Galés tomadas. Esto foi na era já dita de mil cento e oitenta annos (1180) a quinze dias de Julho. Tornou-se então D. Fuas para Lisboa com grande vitoria e honra, com a qual como era rezão foi recebido. CAPITULO LVI _Como D. Fuas Roupinho tornou outra vez sobre mar, por mandado del Rei D. Affonso contra Mouros, e foi desbaratado, e morto elle, e os seus_. Tanto que D. Fuas Roupinho tornou a Lisboa, com este vencimento, segundo muitas vezes, pequena boa andança engana para dezaventura maior, escreveo logo a El-Rei D. Affonso a Coimbra da vitoria que houvera onde o mandára, e mais lhe fazia certo, que os da Cidade, e toda a terra ao redor estavam em grande reto, e vontade de entrar nas Fustas e Galés para irem fazer guerra aos Mouros, e se houvesse por seu serviço, elle os serviria nesso. E El-Rei lhe mandou dizer, que lho tinha muito em serviço, e que assi o fizesse, escrevendo á Cidade sobre esso, e visto o recado del-Rei armaram logo uma soma de Galés, e D. Fuas, foi Almirante, e foram correr a Costa do Algarve; mas de couza notavel, e para contar que hi fizessem nada achamos escrito, e então D. Fuas teve Conselho do que fariam, e acordáram ser bem ir sobre o porto de Cepta, e hi acharam Fustas de Armada de Mouros, e tomaram-nas, e assi outros Navios grandes com elles, e depois de estarem ahi dous dias ante Cepta, tornáram para Lisboa trazendo os Navios tomados comsigo, vindo com grande prazer e contentamento de suas prezas, e logo a poucos dias depois de chegados, com não menos alvoroço, sem tento, o que não consente rezão ser sempre ditozo, se fizeram prestes para tornarem lá. Os Mouros mui sentidos dos dannos feitos por D. Fuas, receando-se de mais adiante, mandáram sobre ello recado por toda a Mourisma da praia, e tambem das partes da Espanha, e ajuntáram cincoenta e quatro Galés, e D. Fuas não sabendo desto parte, entrou pelo Estreito dentro, e depois achou-se lá com Galés dos Mouros, e pela grande corrente lançaram-se as nossas Galés sobre a frota dos imigos, e não poderam os nossos al fazer, se não peleijarem com elles, e assi aferráram, e peleijaram muito espaço. Mas pela grande desigualança, e os Mouros serem muitos mais foram os nossos vencidos, e desbaratados, e mortos muitos, e antre elles o nobre D. Fuas Roupinho. Esta foi aos dezasete de Outubro da dita era de mil e cento e oitenta annos (1180). CAPITULO LVII _Como Almiramolim, que Emperador de Marrocos se dizia, entrou em Portugal com muitas e inumeraveis gentes, e cercou o Ifante D. Sancho, em Santarem, e em fim foi vencido e desbaratado por El-Rei D. Affonso, que veio a soccorrer seu filho_. Despois que o Ifante D. Sancho teve Beja corregida do que compria para sua defensão, leixando em ella fronteiros, e assi nos outros Lugares e Villas Dalentejo veio-se para Santarem com a gente que de continuo trazia comsigo, e alguma pouca mais, porque a outra ficava repartida pela frontaria dos Mouros, e estando assi o Ifante D. Sancho em Santarem Almiramolim Emperador antre os Mouros Rei de Marrocos, vendo o grande danno e estrago que os Mouros tinham recebido del-Rei D. Affonso Anriques, e do Ifante D. Sancho seu filho, e como de toda a terra se lhe mandavam desso cada vez mais agravar, foi movido a fazer guerra a Portugal, e juntou muitas gentes infieis, dáquem, e dalém mar, e segundo diz uma Chronica, que foi achada em Santa Cruz de Coimbra, não era em memoria até aquelle tempo que tanta gente de Mouros fosse junta para entrar em Portugal. Vinham com Almiramolim, El-Rei Albojaque de Sevilha, e El-Rei Albozady, e El-Rei de Grada, e El-Rei de Fês, e outros Reis Mouros, que por todos eram treze, cujos nomes se não acham escritos, e vieram pelas partes Dalentejo a entrar na Estremadura, passando o Tejo um Domingo, dia de S. João Bautista, sete dias por andar de Junho, era do Senhor de mil e cento e oitenta e quatro annos; os Mouros logo em esse dia foram sobre o Castello de Torres Novas, e destruiram-no, e á Segunda feira vieram poer seu arraial em um lugar que se chama o monte de Pompeo, e á Terça feira se ajuntáram todos na Redinha, e á Quarta feira, se vieram a Orta lagoa, e alli sentáram seu raial, e esta conta da entrada, e jornadas de Almiramolim se escreve assi na Coronica, como quer que um letreiro dos que estão no Convento de Thomar, desvaire algum tanto, e diz que foi Almiramolim cercar o Castello de Thomar o primeiro dia de Julho, e o teve cercado seis dias, e que trazia comsigo quatrocentos mil de cavallo, quinhentos mil de pé, poderia passado o Tejo de tanta multidão apartar-se muita gente, poer este cerco, e fazer outras corridas pela terra, e chegar elle a esto, e deixa-lo posto. O Ifante D. Sancho que estava em Santarem, como dissemos, não tendo comsigo gente, que com rezão podesse peleijar com tanta multidão de Mouros, meteo-se a correger a Villa o milhor que pode para se haver de defender, e segundo achamos escrito ainda então a maior parte de Santarem era arrevalde, nem havia ahi mais cerca que Alcaceva pela torra de Alfam, até Alfanja, o Ifante despois de correger os muros, e ordenar a defensão saio-se fóra ao arravalde, e tomou uma parte delle, para o abairreirar de cubas, e portas, e escudos, e fez palanques, e lugares em que podessem estar para defender, mandando derribar todas as casas de redor, e então repartio sua gente, e elle poz se com sua bandeira onde lhe pareceo haver de ser mór pressa, e ao outro dia pela menhã Quinta feira vinte e oito de Junho vespora de S. Pedro, e S. Paulo abalou Almiramolim com toda sua gente, e chegou a Santarem, segundo conta aquella Estoria achada em Santa Cruz, como já disse, e em chegando, tanto que soube que o Ifante o esperava assi naquelle palanque houve por desprezo, e fez logo dar ás trombetas, e mover toda sua gente, e combater o palanque. Foi o combate tão forte, que morreram e foram feridos muitos de uma parte e da outra, em quanto uns peleijavam, destroiam os outros todo o arravalde de fóra do palanque até torre Lavinha, por fazerem aos Mouros maior praça, e despejo, para combater. Tanto que veio a noite, que partio o combate, o Ifante poz guarda no palanque, e fez agazalhar e repousar outra gente, e pensar dos feridos, e esta mesma afronta sofreram os Christãos assi cinco dias arreio, porque os Mouros eram tantos, que mui folgadamente se renovavam cada vez muitos aos combates, desde pela menhã até noite; e segundo conta a dita Estoria, quando El-Rei D. Affonso soube que Almiramolim vinha sobre o Ifante seu filho, ajuntou a mais gente que pode, e abalou tanto á pressa, que aos tres dias desque o Almiramolim chegou a Santarem, foi El Rei a Porto de Mós. Os Mouros sabendo da vinda del-Rei D. Affonso não leixáram por esso seguir com maior afronta seus combates, cada dia, como antes faziam, e ao quinto dia foi o Ifante e os seus tão afincados dos Mouros, e postos em tanto aperto, que o palanque foi roto por algumas partes, e muitos dos Christãos mortos, e feridos, e o Ifante esso mesmo foi ferido, com todo mui esforçadamente se defenderam, e sostiveram aquelle dia, que não foram entrados, e já não tinham modo de defensão, se não desemparar o palanque, e acolher-se ácerca; mas o Senhor Deos, que é poderoso em todalas cousas, quando se os homens em ellas não sabem, nem podem valer, então acode elle com sua ajuda, porque se então mais conheça, e poz tal medo e receo nos Mouros, com a vinda e chegada del-Rei D. Affonso, que começaram a dezemparar os combates que faziam, e ir-se poucos a poucos, a mais andar, como desbaratados, como soi a muita gente de fazer, e desmandar-se, quando se menos póde reger, e os Christãos vendo os raiaes dos Mouros mover se, e partirem-se de onde estavam, saio gente de pé do Ifante contra elles, e os Mouros se afastáram para um Lugar, que se chama monte de Abbade, e nisto appareceo El-Rei D. Affonso com sua gente, de que o Ifante e os seus foram mui ledos, e pozeram-se logo todos a cavallo, e juntos com El-Rei déram nos Mouros, fazendo nelles grande estrago, e mortindade, de que morreram alguns dos Reis que alli vinham, e grande parte dos mais nobres Mouros, e foi alli ferido Almiramolim, e feito assi nelle, e nos seus tão grande desbarato. Tornou-se El-Rei, e o Ifante com grande vencimento, e prazer de todos os seus, e acháram no Arraial dos Mouros grandes despojos de ouro e prata, e tendas armadas, cavallos, e camellos, e outras muitas cousas com pressa da peleija deixadas. E com todo esto, e muitos Mouros cativos, entráram na Villa mui ledos, dando muitas graças e louvores a N. Senhor. Estos Mouros, que assi iam fugindo com quanto iam desbaratados, porém por ainda ficarem mui muitos de tanta multidão foram poer arraial acerca Dalanquer, e tiveram-na cercada alguns dias, combatendo-a rijamente sem lhe poderem empecer, e depois se alçaram dali, e foram-se a Aruda, e destruiram-na toda por terra, e dali se foram cercar Torres Vedras, e estiveram sobre ella onze dias, e vendo que a não podiam tomar, houveram Conselho de se ir volta de sua terra, achando que eram dos seus muitos mortos, e perdidos, e assi muitas riquezas que trouxeram, e então se partiram seu caminho, e passado o Tejo morreo o seu grande Emperador Almiramolim das muitas feridas que houve na batalha. CAPITULO LVIII _Como cazou Dona Tareja, filha del-Rei D. Affonso Anriques a derradeira, com D. Felippe Conde de Frandes_. Despois que a batalha assi foi feita, El-Rei D. Affonso Anriques esteve alguns dias em Santarem, partio se para Coimbra levando comsigo o Infante D. Sancho seu filho, e como quer que já tenhamos dito, juntamente que El-Rei D. Affonso teve tres filhas, e que uma dellas cazara com El-Rei D. Fernando de Lião, e outra com o Conde D. Reymon de Barcelona, e outra com D. Felippe Conde de Frandes, nesta era acima dita de mil e cento e oitenta e quatro annos, metendo-se antre o seu cazamento, e de suas Irmãs passante de vinte e cinco annos, em que parece, que ainda esta Dona Tareja não era nacida, ou havia pouco que nacera, mas como se veio tratar o seu cazamento, não achamos escrito cousa para dizer de certo, sómente que desta tornada del-Rei D. Affonso, de Santarem para Coimbra, mandou o Conde D. Felippe de Frandes, por Dona Tareja sua molher, e vieram por ella Cavalleiros, e Senhores muitos, e outra muito nobre gente, e bem luzida, e Náos mui bem guarnecidas, á Cidade do Porto, e tanto que El-Rei soube que elles hi eram, partio-se com sua filha para lá, levando comsigo desses grandes do Reino, e homens principais, e quando chegou os Senhores, e Cavalleiros, que vinham pela Ifante, sairam a El-Rei, e a ella de quem foram bem recebidos, e com muita honra agazalhados, perguntando-lhe El-Rei com muita afeição, e assi a Ifante por novas da saude, e disposição do Conde, e de seu estado, e depois desto entregou-lhes El-Rei sua filha muito honradamente, mandando com ella em outras Náos dos seus naturaes alguns Grandes do Reino, e pessoas principais, e asi Donas, e Donzellas de linhagem quantas compria, e esta Dona Tareja viveo com seu marido vinte e tres annos. CAPITULO LIX _De como veio adoecer El-Rei D. Affonso Anriques, e de seus grandes louvores, e cavallarias em soma brevemente tocadas mais que dinamente escritas_. Vendo-me chegado haver de dar cabo aos mui nobres feitos del-Rei D. Affonso Anriques com sua morte, a qual nos bons sempre é temporam, por tarde que venha, tomo desso grande pezar, como se vivendo com elle o visse falecer. Tão conversado, e affeiçoado trazia o esprito na materia de suas excellencias! Depois de feito o cazamento acima dito, veio o nobre Rei adoecer logo ao anno seguinte, e faleceo dessa doença o Excellente Principe mui manhanimo igual a qualquer dos mui excellentes antigos em valentia de forças, e coração mui grande, nem que na Christandade houve outro, antes, nem depois delle mais temido dos Mouros, cujos mui notaveis feitos não é duvida acharem-se muito menos postos em escrito, do que foram por obra, ora fosse por culpa dos tempos, ora por mingoa dos Escritores, segundo em alguns passos dessa sua Estoria se pode assás comprehender, porque em ella se não faz menção de muitas cousas assinadas de sua pessoa, nem dos seus, assi como de D. Gualdino Paes, que foi Mestre do Templo de Christo, em Portugal, e fez o Castello de Thomar, e outras Fortalezas, e servio grandemente em seu tempo. Teve este muito esforçado Rei, em suas excellentes cavallarias, como por ellas se mostra, o animoso fervor, e ardente esforço de Julio Cesar, e a segurança mui confiada de Publio Cipião Africano, em tanto gráo, que todo o que estava por fazer, cometia como se o tivesse já feito, e o que mui deficil se acha sendo tão activo. Era cheio de muita fé e devação, sem a qual toda cavallaria no Christão, é deslouvada, e ainda muitas vezes danoza, e com rezão mal preparada, pelo qual este mui virtuoso Rei, tendo tamanha occupação de guerras tão santas, e meritorias, contra os infieis, que assás bastavam para muito merecer ante Deos, não leixou por esso de fazer muitas Egrejas, e Moesteiros mui sumptuosos, dotados de muita renda, e ornamentos com muito serviço e acrescentamento do culto Divino, de que hoje em dia são principaes o Moesteiro de Santa Cruz de Coimbra, e o Moesteiro de Alcobaça, leixando manifesto exemplo aos menos devotos, que occupação de servir a Deos em uma cousa, não tolhe por esso, mas antes dá graça e poder para muitas outras. E em uma Chronica achei, que elle começou a Ordem de Santiago, e deu ao Esprital de Jerusalem oitenta mil dinheiros de ouro para se comprar herança, e tanta renda, porque désse cada dia a todos os enfermos de enfermaria mantimento de pão, e vinho, para que o metessem cada dia em orações, e satisfez outras muitas cousas de caridade, e devação, foi mui amado, e temido dos seus. Houve, e venceo em pessoa muito grandes batalhas, e afrontas de peleijas, segundo se achou com muito poucos contra muitos; desbaratou em pessoa dous Emperadores, um Christão, e outro Mouro, e vinte Reis Mouros, com grandes poderes, e gentes, sendo elle muito menos. Primeiramente em Val de vez, antre Monção, e Ponte de Lima, venceo El-Rei D. Affonso de Castella chamado Emperador. Depois no Campo Dourique venceo cinco Reis Mouros, com infinda Mourama, e junto com Palmela venceo El-Rei de Badalhouce Mouro, vindo com grande poder. E em Santarem Albojaque Rei de Sevilha, e apoz esto, Almiramolim Emperador, que se dizia antre os Mouros Rei de Marrocos, que trazia treze Reis Mouros comsigo, com novecentos mil homens, como dito é, não contando outros vencimentos grandes, que houve de Lugares, e Fortalezas, que tomou a Mouros, muitas, e mui grandes, e fortes: primeiramente na Estremadura, Santarem, Lisboa, e todas outras Fortalezas della, desde Lisboa até Coimbra, em Alentejo, tomou Cezimbra, Palmela, Alcacer, Evora, Elvas, Cerpa, Moura, Beja, e outras Fortalezas muitas, mui fortes, e grandes. CAPITULO LX _Dos annos que El-Rei D. Affonso Anriques viveo, e do dia, mez, e era em que se finou, e onde foi sepultado_. Na verdade El-Rei foi dino de grande louvor, e memoria de todos seus feitos, e que alguns escrevessem delle que em sua mancebia foi bravo, e esquivo, sobejo, certo a mim parece concirando bem tudo, que em nhum tempo teve cousa alguma, que sendo elle o primeiro Rei de Portugal, e no modo que o foi, lhe não fosse compridouro ser em tudo qual foi, assi para serviço de Deos, como para bem, e muita honra do seu Reino, e que se tal não fora, não sabemos que fora de Portugal, o que Deos seja louvado, agora é, porque como diz Aristoteles, o principio é mais, que o meio das cousas, porque muitas vezes ouvi dizer a meu irmão D. João Galvão, Arcebispo que foi de Braga, e Prior de Santa Cruz de Coimbra, Escrivão da Puridade del-Rei D. Affonso o Quinto, que Santa gloria haja, que segundo achava pelas cousas daquelle Moesteiro, e outras obras daquelle virtuoso Rei, elle o tinha por Santo, e por tal a seu parecer deve ser havido. Os annos, que neste mundo viveo ainda que se achem escritos em diversos modos, porém tirada a limpo com muita diligencia, a verdade desso, achei que viveo noventa e um annos; porque elle naceo na era de N. Senhor Jesu Christo de mil e noventa e quatro, cinco annos antes que a Caza Santa de Jerusalem fosse tomada aos Mouros pelo Duque Gudufre de Bulhão; e por morte de seu pai o Conde D. Anrique ficou elle de dezoito annos, e des então foi chamado Principe vinte e sete annos, e despois chamado Rei quorenta e seis annos, e sendo alçado Rei em idade de quorenta e cinco annos, que são assi por todos noventa e um annos, em que o Senhor Deos aprouve leva-lo para si, tres annos antes que a Caza Santa se tornasse a perder, e tomar de infieis, pelos peccados dos Christãos, tolhendo N. Senhor a este virtuoso Rei, que não visse tão grande pezar, quem lhe tanto mereceo empunhar pela sua Santa Fé. Finou-se aos seis dias do mez de Dezembro, era de N. Senhor Jesu Christo de mil cento e oitenta e cinco annos. Foi enterrado no Moesteiro de Santa Cruz de Coimbra que elle mandou fazer. Ainda que velho foi mui sentida sua morte, de seu filho, o Ifante D. Sancho, e de todos seus Cavalleiros e Vassallos, do Povo, do Reino de Portugal, e seu corpo enterrado com muita honra, e grandes obsequias, e sua Alma levada nas mãos dos Anjos, á gloria do Paraiso, onde todos sejamos. Amen. Tem de fóra da sepultura um letreiro de versos em latim, que diz, outro Alexandre jaz aqui, ou Julio outro. DEO GRATIAS INDEX DAS COUSAS NOTAVEIS A Abdenamer cativou em Espanha muitos Mouros, e Christãos, e abrazou muitos Santuarios. Achy Rei Mouro com trezentos mil Soldados cerca Coimbra, e levanta o cerco com grande perda. Affonso (D.) Rei de Lião foi filho de D. Fernando, e Dona Urraca filha del-Rei D. Affonso Anriques. Affonso de Castella (D.) chamado o Emperador caza sua filha Dona Tareja com o Conde D. Anrique. É vencido na batalha de Valdevez por D. Affonso Anriques. Affonso Anriques (D.) Quando naceo. É entregue a Egas Monis para ser seu Aio. É apresentado por este Fidalgo a N. Senhora a qual o livra da aleijão com que naceu. Acompanhou a seu pai defunto até o lugar onde o sepultáram. Dezafia a seu Primo el-Rei de Castella D. Affonso filho do Conde D. Reymão por lhe tomar Lião, mas logo se reconciliáram. Peleja com seu Padrasto, e é vencido. Torna Segunda vez a batalhar, e o vence, e prende juntamente com elle a sua Mãi. Alcança a batalha de Valdevez onde fica vencido D. Affonso de Castella chamado Emperador. É cercado em Guimarães por D. Affonso de Castella. De como levantou o cerco. Conquista Leiria, e Torres novas. Parte ao Alentejo para pelejar com os Mouros. Sentio muito a morte de Egas Monis. Busca a el-Rei Ismar, e assenta os arrayaes no lugar chamado Cabeças de Rei. É despersuadido pelos Soldados a não commetter a batalha do campo de Ourique, mas elle os anima para o conflito. Aparece-lhe Christo Senhor nosso, e lhe segura o bom successo da batalha. Antes da batalha é levantado Rei. Dá-se a batalha, e sae vitorioso. Depois d'esta vitoria acrecentou o escudo suas Armas. É informado do lugar onde está o Corpo de S. Vicente Martyr. Vai buscar este santo Corpo ao Cabo do seu nome, e o não acha. Toma Leiria aos Mouros. Faz doação a S. Theotonio de Leiria, e Arronches sómento no espiritual. Caza com Dona Mofalda. Intenta tomar Santarem. Manda por Martim Mohás levantar a tregoa com os Mouros de Santarem. Voto que fez a S. Bernardo se conquistasse Santarem. Pratica que fez aos Soldados para conquistar esta Villa. Escala esta Villa, e se fez Senhor della. De que modo rendeo a Deos as graças pela tomada desta Villa. Ordena cercar Lisboa. Exhorta aos estrangeiros que chegáram na Armada para a conquista de Lisboa. Conquista esta Cidade, e purifica a sua Mesquita. Determina fazer esta Cidade Bispado, e quem foi o seu primeiro Bispo. Nomeia o primeiro Prior do Mosteiro de S. Vicente de Fóra, e quem foi? Conquista Alanquer, Obidos, Torres vedras, e Alcacere, Elvas, Moura, e Serpa. Dos filhos que teve. Recebe com grande pompa em Tuy ao Conde de Barcelona D. Reymondo, que vinha com procuração de seu filho a despozar-se com Dona Mofalda filha do mesmo Rei. Toma Cezimbra, e Palmella onde desbaratou os Mouros. Conquista Badalhouse. Contendas que teve com seu genro D. Fernando Rei de Lião, e sahindo a pelejar com elle quebra uma perna no ferrolho das portas de Badalhouse. Por causa deste desastre fica prisioneiro, e para recuperar a liberdade concede, e larga algumas terras, e Fortalezas a D. Fernando. Fez juramento a seu filho D. Sancho por successor da Coroa, e quando se celebrou este acto. Desbarata em Santarem a Albojame Rei de Sevilha, que a vinha cercar. Manda a seu filho D. Sancho a pelejar com os Mouros no Alentejo. Soccorre ao mesmo Infante, que estava em Santarem cercado por Almiramolim Emperador de Marrocos, e o desbarata. Acções illustres, que obrou. Annos, que viveo. Dia, e anno da sua morte, e onde está sepultado. Alanquer é conquistado por D. Affonso Anriques. Albojame Rei de Sevilha é desbaratado pertendendo tomar Santarem, por D. Affonso Anriques. Faz tregoas com o mesmo Rei por cinco annos. Alcacere é conquistado por D. Affonso Anriques. Almada, diversos nomes que teve. Almiramolim Emperador de Marrocos cerca em Santarem ao Infante D. Sancho, e é desbaratado. Arronches é tomado por São Theotonio Prior de Santa Cruz de Coimbra. Auzery Alcaide mór de Santarem foge para Sevilha quando se tomou a dita Villa. Azambuja porque cauza lhe puzeram este nome. B Badalhouse é tomado por D. Affonso Anriques. No ferrolho das suas portas quebrou o mesmo Rei uma perna, e por esta causa é prisioneiro por seu genro D. Fernando Rei de Lião, e recupera outra vez Badalhouse. Batalha de Santilhanas, nella foi prisioneiro por D. Affonso Anriques D. Fernando Conde de Trastamara juntamente com a Rainha Dona Tareja mãi do mesmo Rei. A de Valdevez, nella ficou destruido D. Affonso de Castella chamado Emperador. A do Campo de Ourique. A de junto de Palmella. A de Inxarafe alcançada pelo Infante D. Sancho. A de Beja alcançada pelo mesmo Infante. A de Santarem onde é destruido Almiramolim Emperador de Marrocos. Beja é conquistado por D. Affonso Anriques, e em que anno. É cercada pelos Mouros governados por Albocamesim, e Albouzil, e levantam o cerco derrotados pelo Infante D. Sancho. Bernardo (S.) Estando em França soube por illustração Divina o voto que fizera á sua Religião D. Affonso Anriques se conquistasse Santarem. C Cezimbra é conquistada por D. Affonso Anriques. Childe Rolim foi um dos principaes Cavalleiros que veio na Armada que ajudou conquistar Lisboa. Passou á Villa de Azambuja, que ficou a seus descendentes. Coimbra é cercada por Achy Rei Mouro, e levanta o sitio com grande perda. D Daciano Martyrizou a S. Vicente. D. Diogo Gonçalves morre valerosamente na batalha de Ourique. E Egas Moniz (D.) foi o aio del-Rei D. Affonso Anriques. Aparece-lhe de noute N. Senhora, e lhe manda leve a este Principe a um lugar, onde achará uma Igreja sua onde ficará livre da aleijão com que nacera, e assim sucedeo. Da maneira que fallou a El-Rei de Castella D. Affonso, e lhe fez levantar o cerco de Guimarães. Vai com sua mulher, e filhos apresentar se a El-Rei de Castella pela menagem que lhe tinha feito em Guimarães. É livremente despedido pelo dito Rei. É recebido com grande alegria por D. Affonso Anriques quando voltou de Castella. Da sua morte, e onde está enterrado. Elvas é conquistada por D. Affonso Anriques. Elvira (D.) filha del-Rei de Castella D. Affonso chamado o Emperador casou com o Conde D. Reymão de S. Gil de Proença. Evora é conquistada por D. Affonso Anriques. F Felippe (D.) Conde de Frandes cazou com Dona Tareja filha terceira del-Rei D. Affonso Anriques. Fernando (D.) Conde de Trastamara cazou com D. Tareja viuva do Conde D. Anrique. Era o maior homem de Espanha, e por esta causa se levantou todo Portugal por elle contra El Rei D. Affonso Anriques. É prisioneiro na batalha de Santilhanas por El-Rei D. Affonso Anriques. Fernando (D.) Rei de Lião cazou com Dona Urraca filha de D. Affonso Anriques. Separa-se delle por ordem do Papa por serem parentes. Prisiona em Badalhouse a seu sogro D. Affonso Anriques. Fuas Roupinho (D.) desbarata os Mouros que cercavam Porto de Mós. Alcança uma victoria naval dos mesmos inimigos, e lhe toma nove Galés. Peleja segunda vez com os Mouros em o mar, onde foi desbaratado, e morto. G Gilberto foi o primeiro Bispo que teve Lisboa depois de ganhada aos Mouros. Gonçalo de Sousa (D.) valerosamente peleja na batalha de Ourique. Achou-se na conquista de Santarem. Acompanhou a D. Affonso Anriques quando foi a Tuy receber ao Conde de Barcelona D. Reymondo. Assistio na batalha de Inxarafe com o Infante D. Sancho governando a seiscentos homens de cavallo. Gonçalo Viegas (D.) adiantado mór da Cavallaria del-Rei, socega o tumulo que havia sobre o lugar onde se havia de collocar o Corpo de S. Vicente quando chegou a Lisboa. Gualterio frade Flamengo é nomeado primeiro Prior do Mosteiro de S. Vicente de Fóra por D. Affonso Anriques, e não permanece. Guimarães é cercada por El-Rei de Castella D. Affonso. Levanta o sitio por persuasão de D. Egas Moniz. Guodinos Conego Regrante, e Prior do Mosteiro de S. Vicente de Fóra é eleito Bispo de Lamego. I Inglezes que vieram na Armada para cercar Lisboa assentam o seu arrayal no logar donde está a Igreja Parochial dos Martyres. Ismar (El-Rei) com quatro Reis é vencido na batalha de Ourique sendo o numero dos inimigos muito superior ao dos Christãos. Toma Leiria. Izidoro (D.) Bispo de Tuy acompanhou a esta Cidade a El-Rei D. Affonso Anriques quando foi receber ao Conde de Barcelona D. Reymondo. J João (D.) Arcebispo de Braga recebe em Tuy a Dona Mofalda filha del-Rei D. Affonso Anriques com D. Reymondo filho do Conde de Barcellona assistindo este com procuração do filho. Assistio com o Infante D. Sancho na batalha de Inxarafe. L Leiria é conquistada por D. Affonso Anriques. É tomada por El-Rei Ismar. Lisboa é cercada por D. Affonso Anriques. Em que dia, e anno foi ganhada. Quem foi o primeiro Bispo, que teve depois de conquistada aos Mouros. Lourenço Viegas (D.) Peleja valerosamente na batalha de Ourique. Achou-se na conquista de Santarem. Assistio na batalha de Inxarafe governando seiscentos homens. M Martim Moniz filho de Egas Moniz Capitão de uma Az na batalha do Campo de Ourique peleja valerosamente. Morre na batalha. Mem Moniz filho de Egas Moniz era Capitão na batalha de Ourique. É mandado por D. Affonso Anriques a fazer tregoas com os Mouros de Santarem, e de como espiou a Villa, e do conselho que deu a El-Rei para poder ser conquistada. Acha-se na conquista de Santarem sendo já Guarda mór del-Rei. Assistio na batalha de Inxarafe D. Sancho. Mendo (D.) Bispo de Lamego acompanhou a El-Rei D. Affonso Anriques a Tuy onde recebeo a D. Reymondo Conde de Barcelona. Moçaraves são prisioneiros na batalha do Campo de Ourique os quaes informaram a El-Rei D. Affonso Anriques donde estava o Corpo do Martyr S. Vicente. Mofalda (D.) Filha do Conde D. Anrique de Lara caza com D. Affonso Anriques. Mofalda (D.) Filha del Rei D. Affonso Anriques caza com D. Reymondo filho do Conde de Barcelona, e quando, e como se fez este cazamento. Mossem Guilhem de longa espada, Conde de Lincoll foi um dos principaes Cavalleiros que vieram na Armada, que ajudou a tomar Lisboa. Mosteiro de S. Vicente de Fóra. Nelle, antes de ser fundado, pôs o seu arraial D. Affonso Anriques para conquistar Lisboa. Qual foi o seu primeiro Prior nomeado pelo mesmo Rei. Moura é conquistada por D. Affonso Anriques. O Obidos foi conquistado por D. Affonso Anriques. P Payo Guoterres é feito Alcaide do Castello de Leiria por S. Theotonio quando foi conquistado por D. Affonso Anriques. É prisioneiro no Castello de Leiria quando foi conquistado por El-Rei Ismar. Palmella é conquistada por El-Rei D. Affonso Anriques onde desbarata em uma batalha aos Mouros de Badajós. Pedro (D.) Conde das Asturias acompanha a Tuy a El-Rei D. Affonso Anriques quando foi receber a D. Reymondo Conde de Barcelona. Pedro Affonso (D.) Irmão bastardo del-Rei D. Affonso Anriques se achou na conquista de Santarem. Pedro das Esturias (D.) governou na batalha, que se compunha de duzentos e cincoenta cavallos. Pero Paes (D.) Alferes de D. Affonso Anriques se achou na conquista de Santarem. Acompanha o mesmo Rei a Tuy quando foi receber ao Conde de Barcelona D. Reymondo. Assistio com o Infante D. Sancho na batalha de Inxarafe. Porto de Mós é cercado pelos Mouros, onde foram desbaratados por D. Fuas Roupinho. Portugal é dado em dote ao Conde D. Anrique por El-Rei de Castella D. Affonso chamado Emperador quando cazou com elle a sua filha Dona Tareja. Porque tomou este nome? R Ramiro (Conde D.) acompanhou a Tuy a El-Rei D. Affonso Anriques quando foi a receber a D. Reymondo Conde de Barcelona. Assistio na batalha de Inxarafe governando a Az esquerda, que se compunha de duzentos e cincoenta cavallos. Reymondo (D.) Conde de Barcelona recebe com procuração de seu filho a Dona Mofalda filha del-Rei D. Affonso Anriques, e quando, e como se fez este cazamento. Roberto (D.) Daião da Sé de Lisboa faz que o Prior da Igreja de Santa Justa lhe conceda que o Corpo do Martyr S. Vicente seja collocado na Sé. S Sancha (D.) filha do Conde D. Anrique cazou com D. Fernão Mendes. Sancho (Infante D.) filho de D. Affonso Anriques em que dia e anno foi jurado em Coimbra. É mandado por seu pai ao Alentejo a peleijar com Mouros, e do alvoroço com que recebeo esta ordem, e o que executou. Alcança uma gloriosa vitoria dos Mouros em Sevilha. Alcança outra vitoria dos mesmos inimigos indo cercar Beja. É cercado dentro em Santarem por Almiramolim Emperador de Marrocos com quatrocentos mil cavallos, e quinhentos mil de pé, e sendo soccorrido por El-Rei seu pai é desbaratado com todo o exercito. Santarem, descreve-se a bondade do seu paiz, e como D. Affonso Anriques determinou conquista-la, e da difficuldade que havia para o conseguir. É escalada, e entrada por El-Rei D. Affonso Anriques. Porque tem este nome. É cercada por Albojame Rei de Sevilha, onde foi derrotado por D. Affonso Anriques. Serpa é conquistada por D. Affonso Anriques. Sinaes espantosos que appareceram em o Ceo de noute quando El-Rei D. Affonso Anriques quiz tomar Santarem. T Tareja (D.) caza com o Conde D. Anrique, e leva por dote a Portugal como Condado. Depois da morte do Conde D. Anrique cazou com D. Vermuy Paes de Trava, e depois com D. Fernando Conde de Trastamara Irmão de Vermuy Paes. É prisioneira na batalha de Santilhanas por seu filho D. Affonso Anriques. Tareja (D.) Filha terceira del-Rei D. Affonso Anriques cazou com D. Felippe Conde de Frandes. Como foi conduzida para aquelle Condado. Theotonio (S.) Prior de Santa Cruz conquista Arronches. Faz-lhe doação D. Affonso Anriques de Leiria, e Arronches sómente no Espiritual. Recebe do mesmo Rei Leiria assim no Espiritual, como no temporal, e lhe põe por Alcaide do Castello a Payo Guoterres. Faz oração com os seus Conegos pelo bom sucesso da conquista de Santarem. Thomar. O seu Castello é cercado por Almiramolim Emperador de Marrocos. Torres Novas. Quando foi conquistada por D. Affonso Anriques? O seu Castello foi destruido por Almiramolim Emperador de Marrocos. Torres Vedras foi conquistada por D. Affonso Anriques. Trancoso é tomado pelos Mouros, onde fizeram grande mortandade. U Urraca (D) filha del-Rei de Castella D. Affonso chamado o Emperador caza com o Conde D. Reymão de Tolofa. Urraca (D.) filha de D. Affonso Anriques cazou com D. Fernando Rei de Lião. Urraca Lopes (D.) filha do Conde de Navarra Irmã de D. Diogo o bom Senhor de Biscaya cazou com El-Rei de Lião D. Fernando. V Vasco (Conde D.) acompanhou a Tuy a El-Rei D. Affonso Anriques quando foi receber ao Conde de Barcelona D. Reymondo. Vermuy Paes de Trava (D.) cazou com a Rainha Dona Tareja viuva do Conde D. Anrique. Depois deixando-a cazou com uma filha da mesma Dona Tareja. Vicente (S.) donde era natural, e como foi martyrizado. O seu Corpo é trazido ao Cabo que agora tem o seu nome, e de como o foi buscar D. Affonso Anriques, e o não achou. Como foi achado o seu Corpo, e collocado na Sé de Lisboa. Villa franca foi chamada antigamente Cornagoa. TRASLADO DO JURAMENTO DEL-REI D. AFFONSO ANRIQUES O qual se conserva no Archivo do Real Mosteiro de Alcobaça Ego Alfonsus Portugalliae Rex, filius illustris Comitis Henrici, nepos magni Regis Alfonsi, coram vobis bonis viris, Episcopo Bracharensi, & Episcopo Colimbriensi, & Theotonio, reliquisque magnatibus officialibus vassalis Regni mei in hac Cruce aerea, & in hoc libro Sanctissimorum Euangeliorum juro cum tactu manuum mearum, quod ego miser peccator, vidi hisce oculis indignis verum Dominum nostrum JESUM Christum in Cruce extensum in hac forma. Ego eram cum mea hoste in terris ultra Tagum, in agro Auriquio, ut pugnarem cum Ismaele, & aliis quatuor Regibus Maurorum habentibus secum infinita millia, & gens mea timorata propter multitudinera, erat fatigata, & multum tristis, ia tantum, ut multi dicerent esse temeritatem inire bellum, & ego tristis de eo quod audiebam, caepi mecum cogitare, quid agerem, & habebam unum librum in meo papillione, in quo erat scriptum Testamentum antiquum, & Testamentum JESU Christi. Aperui illum, & legi victoriam Gedeonis, & dixi intra me: Tu seis Domine JESU Christe, quia pro tuo amore suscepi bellum istud contra tuos inimicos, & in manu tua est dare mihi, & meis fortitudinem, ut vincamus illos blasphemantes tuum nomen, & sic dicens dormivi supra librum, & videbam virum senem ad me venientem, dicentemque: Adefonse, confide, vinces enim, debellabisque Reges istos infideles, conteresque potentiam illorum, & Dominus noster ostendet se tibi. Dum haec video, accedit Joannes Ferdinandus de Sousa vassallus de meo cubiculo, dixitque: Surge domine mi. Adest homo fenex, vultque te alloqui. Ingrediatur, dixi, sic fidelis est. Ingressus ad me, agnovi esse illum, quem in visione videram, qui dixit mihi, domine, bono animo esto, vinces, & non vinceris. Dilectus es Domino, posuit enim super te, & super semen tuum post te oculos misericordiae fuae usque in sextam decimam generationem, in qua attenuabitur proles, sed in ipsa attenuata ipse respiciet, & videbit. Ipse me jubet indicare tibi, quod dum audieris sequenti nocte tintinnabulum Remisorii mei, in quo vixi sexaginta sex annis inter infideles, fervatus favore altissimi, egrediaris extra castra, solus sine arbitris, ostendere tibi pietatem suam multam. Parui, & reverenter in terra positus, & nuntium, & mittentem veneratus sum, & dum iu oratione positus sonitum expectarem, secunda noctis vigilia tintinnabulum audivi, & ense, & scuto armatus, egressus sum extra castra, vidique subito a parte dextra, orientem versus, micantem radium, & paulatim splendor crescebat in maius, & dum oculos ad illam partem efficaciter pono, ecce in ipso radio clarius sole signum Crucis aspicio, & JESUM Christum in eo crucifixum, & ex una, & altera parte multitudinem juvenum candidissimorum, quos Sanctos Angelos fuisse credo. Quam visionem dum video, deposito ense, & scuto, relictisque vestibus, & calceamentis, pronus in terram me projicio, lacrymisque abundè missis, caepi rogare pro confortatione vassalorum meorum, dixi que nihil turbatus. Quid tu ad me Domine? Credenti enim Fidem vis augere? Melius est ut te videant Infideles, & credant, quam ego, qui a fonte baptismatis te Deum verum Filium Virginis, & Patris Aeterni agnovi, & agnosco. Erat autem Crux mirae magnitudinis, & elevata a terra quasi decem cubitos. Dominus suavi vocis sono, quem indignae aures meae perceperunt, dixit mihi. Non ut tuam Fidem augerem hoc modo apparui tibi, fed ut corroborem co tuum in hoc conflitu, & initia Regni tui supra firmam petram stabilirem. Confide Alfonse, non folum enim hoc certamen vinces, sed omnes alios in quibus contra inimicos Crucis pugnaveris. Gentem tuam invenies alacrem ad bellum, & fortem, petentem, ut sub Regis nomine in hac pugna ingrediaris; nec dubites, sed quidquid petierint, liberè concede. Ego enim aedificator, & dissipator Imperiorum & Regnorum sum: volo enim in te, & in semine tuo Imperium mihi stabilire, ut deferatur nomen meum in exteras gentes; & ut agnoscant successores tui datorem Regni, insigne tuum ex pretio, quo ego humanum genus emi, & ex eo quo ego a Judaeis emptus sum, compones, & erit mihi Regnum sanctificatum, Fide purum, & pietate dilectum. Ego ut haec audivi, humi prostratus adoravi dicens: Quibus meritis, Domine, tantam mihi annuntias pietatem? Quidquid jubes faciam, & ut in mea prole, quam promittis oculos benignos pone, gentemque Portugallensem salvam custodi, & si contra eos aliquod paraveris malum, verte illum potius in me, & in successores meos, & populum quem tanquam unicum filium diligo, absolve. Annuens Dominus inquit: Non recedet ab eis, neque a te unquam misericordia mea, per illos enim paravi mihi messem multam, & elegi eos in messores meos in terris longinquis: haec dicens disparuit, & ego fiducia plenus, & dulcedine redii in castra, & quod taliter fuerit, juro ego Aldefonsus Rex per Sanctissima Jesu Christi Euangelia hisce manibus tacta. Idcirco praecipio successoribus meis in perpetuum futuris, ut scuta quinque in crucem partita, propter Crucem, & quinque vulnera Christi, in insigne ferant, & in unoquoque triginta argenteos, & super serpentem Moysis, ob Christi figuram, & hoc sit memoriale nostrum in generatione nostra: & si quis aliud attentaverit, a Domino sit maledictus, & cum Juda traditore in Infernum maceratus. Facta carta Colimb. III. Kalend. Novembris. Era M. C. LII. Ego Aldefonsus Rex Portugaliae _I. Colimb. Episcop.--I. Bracharens. Metropol.--T. Prior.--Ferdinandus Petri Curiae Dapif.--Petrus Pelag. Curiae Signifer.--Velascus Sancij.--Alfonsus Menen. praef. Ulis.--Gondisalvus de Sousa procur. Imn.--Pelagius Menen. procur. Visen.--Suer. Martin. procurar. Colimb.--Menendus Petri, pro Magistro Alberto Regis Cancellario_. _Cuja significação em Portuguez é a seguinte_ Eu Affonso Rei de Portugal, filho do Conde Henrique, e neto do grande Rei D. Affonso, diante de vós Bispo de Braga, e Bispo de Coimbra, e Theotonio, e de todos os mais Vassallos de meu Reino, juro em esta Cruz de metal, e neste livro dos Santos Evangelhos, em que ponho minhas mãos, que eu miseravel peccador vi com estes olhos indignos a nosso Senhor JESU Christo estendido na Cruz, no modo seguinte. Eu estava com meu exercito nas terras de Alentejo, no Campo de Ourique, para dar batalha a Ismael, e outros quatro Reis Mouros, que tinham consigo infinitos milhares de homens, e minha gente temerosa de sua multidão, estava atribulada, e triste sobremaneira, em tanto que publicamente diziam alguns ser temeridade acommetter tal jornada. E eu enfadado do que ouvia, comecei a cuidar comigo, que faria; e como tivesse na minha tenda um livro em que estava escripto o Testamento Velho, e o de Jesu Christo, abri-o, e li nelle a vitoria de Gedeão, e disse entre mim mesmo. Mui bem sabeis vós, Senhor JESU Christo, que por amor vosso tomei sobre mim esta guerra contra vossos adversarios, em vossa mão está dar a mim, e aos meus fortaleza para vencer estes blasfemadores de vosso nome. Ditas estas palavras adormeci sobre o livro, e comecei a sonhar, que via um homem velho vir para onde eu estava, e que me dizia: Affonso, tem confiança, porque vencerás, e destruirás estes Reis infieis, e desfarás sua potencia, e o Senhor se te mostrará. Estando nesta visão, chegou João Fernandes de Sousa meu Camareiro dizendo-me: Acordai, senhor meu, porque está aqui um homem velho, que vos quer fallar. Entre (lhe respondi) se é Catholico: e tanto que entrou, conheci ser aquelle, que no sonho vira; o qual me disse: Senhor tende bom coração, vencereis, e não sereis vencido; sois amado do Senhor, porque sem duvida poz sobre vós, e sobre vossa geração depois de vossos dias os olhos de sua misericordia, até a decima sexta decendencia, na qual se diminuiria a successão, mas nella assim diminuida elle tornará a pôr os olhos e verá. Elle me manda dizer-vos, que quando na seguinte noite ouvirdes a campainha de minha Ermida, na qual vivo ha sessenta e seis annos, guardado no meio dos infieis, com o favor do mui Alto, saias fóra do Real sem nenhuns creados, porque vos quer mostrar sua grande piedade. Obedeci, e prostrado em terra com muita reverencia, venerei o Embaixador, e quem o mandava; e como posto em oração aguardasse o som, na segunda vela da noite ouvi a campainha, e armado com espada e rodela sahi fóra dos Reais, e subitamente vi a parte direita contra o Nacente, um raio resplandecente; e indo-se pouco, e pouco clarificando, cada hora se fazia maior; e pondo de proposito os olhos para aquella parte, vi de repente no proprio raio o sinal da Cruz, mais resplandecente que o Sol, e Jesu Christo Crucificado nella, e de uma e de outra parte, uma copia grande de mancebos resplandecentes, os quaes creio, que seriam os Santos Anjos. Vendo pois esta visão, pondo á parte o Escudo, e espada, e lançando em terra as roupas, e calçado me lancei de bruços, e desfeito em lagrimas comecei a rogar pela consolação de meus vassallos, e disse sem nenhum temor. A que fim me apareceis Senhor? Quereis por ventura accrescentar fé a quem tem tanta? Melhor é por certo que vos vejam os inimigos, e cream em vós, que eu, que desde a fonte do Baptismo vos conheci por Deos verdadeiro, Filho da Virgem, e do Padre Eterno, e assim vos conheço agora. A Cruz era de maravilhosa grandeza, levantada da terra quasi dez covados. O Senhor com um tom de voz suave, que minhas orelhas indignas ouviram, me disse. Não te apareci deste modo para accrescentar tua fé, mas para fortalecer teu coração neste conflito, e fundar os principios de teu Reino sobre pedra firme. Confia Affonso, porque não só vencerás esta batalha, mas todas as outras em que pelejares contra os inimigos de minha Cruz. Acharás tua gente alegre, e esforçada para a peleja, e te pedirá que entres na batalha com titulo de Rei. Não ponhas duvida, mas tudo quanto te pedirem lhe concede facilmente. Eu sou o fundador, e destruidor dos Reinos, e Imperios, e quero em ti, e teus decendentes fundar para mim um Imperio, por cujo meio seja meu nome publicado entre as Nações mais estranhas. E para que teus decendentes conheçam quem lhe dá o Reino, comporás o Escudo de tuas Armas do preço com que eu remi o genero humano, e daquelle porque fui comprado dos judeos, e ser-me-ha Reino santificado, puro na fé, e amado por minha piedade. Eu tanto que ouvi estas cousas, prostrado em terra o adorei dizendo: Porque meritos, Senhor, me mostrais tão grande misericordia? Ponde pois vossos benignos olhos nos successores que me prometeis, e guardai salva a gente Portugueza. E se acontecer, que tenhais contra ella algum castigo apparelhado, executai-o antes em mim, e em meus descendentes, e livrai este povo, que amo como a unico filho. Consentindo nisto o Senhor, disse: Não se apartará delles, nem de ti nunca minha misericordia, porque por sua via tenho apparelhadas grandes searas, e a elles escolhidos por meus segadores em terras mui remotas. Ditas estas palavras dezapareceu, e eu cheio de confiança, e suavidade me tornei para o Real. E que isto passasse na verdade, juro eu D. Affonso pelos Santos Evangelhos de JESU Christo tocados com estas mãos. E por tanto mando a meus decendentes, que para sempre succederem, que em honra da Cruz e cinco Chagas de JESU Christo tragam em seu Escudo cinco Escudos partidos em Cruz, e em cada um delles os trinta dinheiros, e por timbre a Serpente de Moysés, por ser figura de Christo, e este seja o tropheo de nossa geração. E se alguem intentar o contrario, seja maldito do Senhor, e atormentado no Inferno com Judas o treidor. Foi feita a presenta carta em Coimbra aos vinte e nove de Outubro, era de mil e cento e cincoenta e dous. Eu El-Rei D. Affonso. _João Metropolitano Bracharense.--João Bispo de Coimbra.--Theotonio Prior.--Fernão Peres Vedor da Casa.--Vasco Sanches.--Affonso Mendes Governador de Lisboa.--Gonçalo de Sousa Procurador de entre Douro e Minho.--Payo Mendes Procurador de Viseu.--Sueiro Martins Procurador de Coimbra.--Mem Peres o escreveu por Mestre Alberto Cancellario del-Rei_. Fim Da Chronica d'El-Rei D. Affonso Henriques INDICE DOS CAPITULOS I--Como El-Rei D. Affonso de Castella chamado Emperador, casou sua filha Dona Tareja com o Conde D. Anrique, dando-lhe em casamento Portugal por Condado com certas condições. II--Do Tronco, e linhagem Real de que descendem os Reis de Portugal, e donde se chamou Portugal. III--Como D. Egas Moniz criou a D. Affonso filho do Conde D. Anrique, que foi são por milagre de N. Senhora da aleijão com que naceo. IV--Como o Conde D. Anrique adoeceo á morte, e das palavras que disse a seu filho ante que falecesse. V--Como D. Affonso Anriques tanto que seu pai faleceo se fez chamar Principe, e levando-o a enterrar se alçou em tanto a terra com sua mãi D. Tareja. VI--Como o Principe D. Affonso Anriques peleijou com seu padrasto, e foi vencido, e como tornando outra vez á batalha o venceo, e prendeo, e a sua mãi com elle. VII--Como o Principe D. Affonso Anriques peleijou com El-Rei D. Affonso de Castella, chamado Emperador como seu avô, e o venceo, e tomou as Fortalezas que estavam alçadas por sua mãi, e como andando nisto veio um Rei Mouro cercar Coimbra. VIII--Como El Rei D. Affonso de Castella chamado Emperador veio cercar o Principe D. Affonso Anriques seu primo a Guimarães, e como D. Egas Moniz lhe fallou, de modo que lhe fez levantar o cerco. IX--Como El-Rei D. Affonso de Castella levantou o cerco de sobre Guimarães, e do desprazer que o Principe D. Affonso teve, do que nisso fez D. Egas Moniz. X--Como D. Egas Moniz se foi apresentar com sua molher e filhos a El-Rei D. Affonso de Castella pela menagem que lhe feito tinha em o cerco de Guimarães. XI--Como D. Egas Moniz livremente despedido del-Rei D. Affonso de Castella se tornou a Portugal, e o sahio a receber o Principe, o qual apoz esto juntou gente, e foi tomar Leiria. XII--Como o Principe D. Affonso Anriques abalou com gente a guerrear aos Mouros a terras de Alentejo, e como no caminho adoeceo, e morreo D. Egas Moniz, e do seu enterramento, e da muita devação dos Cavalleiros daquelle tempo. XIII--Como o Principe D. Affonso passado o Tejo foi buscar El-Rei Ismar, que com quatro Reis, outros, e infinda Mourama vinha contra elle, e como sentaram seus arraiaes um á vista do outro. XIV--Como os Portuguezes vista a multidão dos Mouros requereram ao Principe D. Affonso que escuzasse a batalha, e da fala que o Principe fez sobre esso. XV--Como N. Senhor appareceo aquella noite ao Principe D. Affonso Anriques, posto na Cruz como padeceo por nós. XVI--Como o Principe D. Affonso Anriques depois de ordenar suas azes para peleijar com os Mouros no Campo Dourique foi levantado por Rei. XVII--Como o Principe D. Affonso depois de alevantado por Rei de Portugal deu batalha a cinco Reis Mouros no Campo Dourique, e do grande vencimento della. XVIII--Como El-Rei D. Affonso Anriques depois da batalha vencida acrecentou em suas Armas sinaes que mostrassem o que lhe alli acontecera, e da nova que houve do Corpo de S. Vicente por alguns que ahi foram tomados. XIX--Como Daciano veio a Espanha por mandado do Emperador de Roma, e mandou matar S. Vicente depois de muito atormentado por prégar a Fé de Christo. XX--Como o Corpo de S. Vicente foi trazido ao Cabo que se ora chama de S. Vicente, e como El-Rei D. Affonso o foi lá buscar, e não o podendo achar se tornou para Coimbra. XXI--Do recado e embaixada que o Papa mandou pelo Bispo de Coimbra a El-Rei Dom Affonso Henriques sobre a prisão de sua mãi, e o que nisso passou com o Bispo. XXII--Aqui falla Duarte Galvão autor como este feito d'El Rei D. Affonso Henriques, e outros similhantes, nos bons principes devem ser julgados. XXIII--Como o Papa mandou um Cardeal a D. Affonso Henriques sobre a prisão de sua mãi e sobre o Bispo que elle fizera, e do que entre elles se passou em Coimbra. XXIV--Como El-Rei D. Affonso Henriques sabendo a partida do Cardeal escondida, cavalgou a pós elle, e do que depois de alcançado com elle passou. XXV--Como depois desto El-Rei Ismar que foi vencido no campo Dourique veio tomar Leiria, e o Prior de Santa Cruz de Coimbra foi a Alentejo, e tomou Arronches, e como El-Rei D. Affonso tornou outra vez a tomar Leiria aos Mouros. XXVI--Como El-Rei D. Affonso tornou a dar Leiria ao Prior de Santa Cruz, e assi tambem Arronches, em todo o espiritual, ficando o temporal com os Reis de Portugal, e como El-Rei cazou com Dona Mofalda filha do conde D. Anrique de Lara. XXVII--Das bondades da Villa de Santarem, e seu termo, e como El-Rei D. Affonso propoz, e ordenou em sua vontade de a tomar, e a tomou. XXVIII--Como El-Rei D. Affonso Anriques fazendo tregoa com os Mouros de Santarem mandou lá a D. Mem Moniz a espiar a Villa, e do conselho que teve com os seus para ir sobre ella. XXIX--Como El-Rei D. Affonso Anriques partio com sua gente para ir tomar Santarem, e do voto que fez no caminho a S. Bernaldo, o qual naquella hora lhe foi revelado lá em França, onde estava. XXX--Como El-Rei D. Affonso Anriques descubrio aos seus que iam sobre Santarem, e das rezões que disse a todos. XXXI--Como El-Rei D. Affonso Anriques chegou de noite aos Olivaes de Santarem, e dos sinais que pareceram. XXXII--Como El-Rei D. Affonso Anriques e os seus escalaram a Villa de Santarem, e foi entrada, e tomada. XXXIII--Como Auzary Alcaide de Santarem, tomada a Villa, fugio para Sevilha, e El-Rei se tornou a Coimbra e donde se chamou a Villa Santarem. XXXIV--Como El-Rei D. Affonso Anriques ordenou de ir cercar Lisboa, e a tomou, e das gentes Estrangeiras que para esso houve em sua ajuda. XXXV--Do que El-Rei D. Affonso Anriques fez depois de entrada a Cidade de Lisboa, e tomada, e do que falou, e passou com as gentes Estrangeiras. XXXVI--Dos milagres que Deus mostrou pelo Cavalleiro Anrique Alemão que morreo quando a Cidade de Lisboa foi entrada. XXXVII--Como o Cavalleiro Anrique appareceo em sonhos a um homem bom, mandando-lhe que soterrasse um seu Escudeiro apar delle, que na entrada de Lisboa muito ferido morrera. XXXVIII--Da palmeira que naceo na cova do Cavalleiro Anrique, e dos milagres que Deus por elle fazia. XXXIX--De como El Rei D. Affonso Anriques ordenou de fazer Lisboa Bispado, e quem foi o primeiro Bispo della. XL--De como El-Rei D. Affonso Anriques ordenou Prior no Moesteiro de S. Vicente de Fóra, e quem foi primeiro Prior delle, e de que Ordem. XLI--Dos Lugares que El-Rei D. Affonso Anriques depois tomou na Estremadura, e Alem do Tejo. XLII--Dos filhos que El Rei D. Affonso houve, e como cazou sua filha Dona Mofalda. XLIII--Como El-Rei D. Affonso tomou Cezimbra, e Palmela, e peleijou, e venceo El Rei Mouro de Badalhouse com muita Mourama. XLIV--Do desvairo que sobreveio antre El-Rei D. Affonso Anriques e El-Rei D. Fernando de Lião seu genro, e como se quebrou a perna a El-Rei D. Affonso, e foi prezo del-Rei D. Fernando, por caso da perna quebrada. XLV--Em que fala, e amoesta Duarte Galvão Autor, quanto se devem escuzar as maldições dos pais, e mãis aos filhos. XLVI--Como os Mouros vieram com Albojame Rei de Sevilha cercar El-Rei D. Affonso Anriques em Santarem, e como El-Rei foi a peleijar com elles, e os desbaratou e venceo. XLVII--Como o Corpo de S. Vicente foi achado por uns devotos homens que o foram buscar. XLVIII--Como o Corpo de S. Vicente foi posto na Sé de Lisboa. XLIX--Como El-Rei D. Affonso Anriques ordenou de mandar o Ifante D. Sancho seu filho a Alentejo a guerrear os Mouros, e das rezões que lhe sobre ello disse. L--Do Alardo que El-Rei D. Affonso Anriques mandou fazer em Coimbra, da gente que mandava com o Ifante D. Sancho seu filho, e como em partindo no meio da Ponte se despediram todos del-Rei. LI--Das jornadas que o Ifante D. Sancho fez, e como partio de Evora guerreando os Mouros até Sevilha, onde fez falla aos seus ante que com os Mouros peleijasse. LII--Como o Ifante D. Sancho peleijou com os Mouros de Sevilha, e o esperaram ante a Cidade, e do grande vencimento que houve. LIII--Como os Mouros foram cercar Beja, e o Ifante D. Sancho o soube, e foi sobre elles a soccorre-la, e da batalha que com elles houve sobre ella. LIV--Como os Mouros cercaram Porto de Mós, e foram desbaratados por D. Fuas Roupinho Alcaide do Castello. LV--Como D. Fuas Roupinho peleijou no mar com os Mouros, e os venceo, e tomou delles nove Galés. LVI--Como D. Fuas Roupinho tornou outra vez sobre mar, por mandado del-Rei D. Affonso contra Mouros, e foi desbaratado, e morto elle, e os seus. LVII--Como Almiramolim, que Emperador de Marrocos se dizia, entrou em Portugal com muitas e inumeraveis gentes, e cercou o Ifante D. Sancho, em Santarem, e em fim foi vencido e desbaratado por El-Rei D. Affonso, que veio a soccorrer seu filho. LVIII--Como cazou Dona Tareja filha del-Rei D. Affonso Anriques a derradeira, com D. Felippe Conde de Frandes. LIX--De como veio adoecer El-Rei D. Affonso Anriques, e de seus grandes louvores, e cavallarias em soma brevemente tocadas mais que dinamente escritas. LX--Dos annos que El-Rei D. Affonso Anriques viveo, e do dia, mez, e era em que se finou, e onde foi sepultado. OBRAS PUBLICADAS I--Historia do Cerco de Diu, por _Lopo de Sousa Coutinho_, 1 volume. 400 II--Historia do Cerco de Mazagão, por _Agostinho Gavy de Mendonça_, 1 volume. 400 III--Ethiopia Oriental, por _Fr. João dos Santos_, 2 grossos volumes. 1$500 IV--O Infante D. Pedro, chronica inédita por _Gaspar Dias de Landim_, 3 volumes. 700 V--Chronica d'El-Rei D. Pedro I, (o Cru ou Justiceiro) por _Fernão Lopes_, 1 volume. 400 VI--Chronica d'El-Rei D. Fernando, por _Fernão Lopes_, 3 volumes. 1$200 VII--Chronica d'El-Rei D. João I, por _Fernão Lopes_, 7 volumes. 2$800 VIII--Chronica d'El-Rei D. João I, por _Gomes Eannes d'Azurara_, VOL. I, II e III (VIII, IX e X). 1$200 IX--Dois Capitães da Índia, por _Luciano Cordeiro_, 1 volume. 400 X--Arte da Caça de Altenaria, por _Diogo Fernandes Ferreira_, 2 volumes. 800 XI--Apologos Dialogaes, por _D. Francisco Manuel de Mello_, 3 volumes. 1$200 XII--Chronica d'El-Rei D. Duarte, por _Ruy de Pina_, 1 volume. 400 XIII--Chronica d'El-Rei D. Affonso V, por _Ruy de Pina_, 3 volumes. 1$200 XIV--Chronica d'El-Rei D. João II, por _Garcia de Resende_, 3 volumes. 1$500 XV--Vida de D. Paulo de Lima Pereira, por _Diogo do Couto_, 1 volume. 500 XVI--Chronica d'El-Rei D. Sebastião, por _Fr. Bernardo da Cruz_, 2 volumes. 1$000 XVII--Jornada de Africa, por _Jeronymo de Mendoça_, 2 volumes. 800 XVIII--Historia Tragico-Maritima, por _Bernardo Gomes de Brito_, VOL I a X. 3$800 XIX--Jornada de Antonio d'Albuquerque Coelho, por _João Tavares de Vellez Guerreiro_, 1 volume. 600 XX--Chronica d'El-Rei D. Affonso Henriques, por _Duarte Galvão_, 1 volume. 600 EM PUBLICAÇÃO Historia Tragico-maritima, por _Bernardo Gomes de Brito_, VOL XI Cancioneiro Geral, por _Garcia de Resende_. NOTAS [1] Duarte Galvão morreu em 1517. [2] Ainda mais. D. Vermuim vendo seu irmão impossado de sua mulher, casou com uma filha d'esta e do Conde D. Henrique. Assim o diz o Conde D. Pedro (em seu Livro de Linhagens) e assim o repete Duarte Galvão. A este peccado, accrescentão, se deve a fundação do Mosteiro de Sobrado. [3] No anno de 1505 se escreveo esta Chronica. [4] Os capitulos XXI a XXIV da presente edição, foram os cortados na de 1726. End of the Project Gutenberg EBook of Chronica de el-rei D. Affonso Henriques, by Duarte Galvão *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CHRONICA DE EL-REI D. *** ***** This file should be named 18026-8.txt or 18026-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/1/8/0/2/18026/ Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. *** START: FULL LICENSE *** THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase "Project Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg-tm License (available with this file or online at http://gutenberg.org/license). Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. 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The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at http://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director gbnewby@pglaf.org Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. 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Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: http://www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. *** END: FULL LICENSE ***