The Project Gutenberg EBook of Quadros de historia portugueza, by Inácio Francisco Silveira da Mota This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Quadros de historia portugueza Author: Inácio Francisco Silveira da Mota Release Date: January 10, 2010 [EBook #30921] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK QUADROS DE HISTORIA PORTUGUEZA *** Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search)
QUADROS
DE
HISTORIA PORTUGUEZA
QUADROS
DE
HISTORIA PORTUGUEZA
POR
I. F. SILVEIRA DA MOTTA
SEGUNDA EDIÇÃO
correcta e augmentada
LISBOA
LALLEMANT FRÈRES TYPOGRAPHOS
6, Rua do Thesouro Velho, 6
1870
Em dous grandes cyclos póde naturalmente dividir-se a historia portugueza, cada um dos quaes abrange algumas epochas mais ou menos importantes; no primeiro a nação constitue-se, desenvolve-se, fortifica-se, estende o seu poder pelas terras de Africa, senhoreia ignotos mares, dicta leis ao Oriente, ganha vastos e productivos terrenos na America, abre caminho ao engrandecimento dos outros povos da Europa, e a final decae rapidamente{VI} até chegar á sepultura de 1580; no segundo resurge, reconquistando n'um dia a antiga independencia politica, e, procurando depois rehaver no decurso de seculos não o poderio de outras eras, mas os fóros de liberdade, e a robustez e firmeza, que são os meios mais poderosos com que as nações, assim como os individuos, podem luctar contra a adversidade e vencel-a.
Traçando este humilde esboço historico quiz o author rememorar alguns factos e algumas phases do primeiro cyclo, que julga mais fecundo em lição e exemplos; e publicando-o agora suppõe fazel-o em occasião opportuna. Quando, no meio das dissensões partidarias, dos erros politicos e das aberrações populares, nos fere os ouvidos a ameaça de que a nossa autonomia e independencia não podem durar muito, é justo e util buscar no estudo dos{VII} fastos nacionaes os titulos do nosso direito, a memoria do que fizemos, e por ventura nobres estimulos para que os nossos progressos intellectuaes e moraes mostrem ao mundo que, se já não somos potencia maritima ou continental, pesando com decisiva força na balança dos acontecimentos politicos, queremos, todavia, e devemos ser respeitados pela sciencia, pelo trabalho, pela energia, pelo amor da liberdade, pela severidade dos costumes, unicas armas com que o espirito da nossa epocha ensina as nações civilisadas a combaterem n'uma lucta generosa.
Possa esta tentativa não ser de todo perdida, e servir ao menos de incentivo para que obreiros mais robustos levantem o monumento grandioso das tradições nacionaes.{VIII}
Bem como a vida dos individuos a vida dos povos é dilatada ou curta. Assim muitas nações, que existiam robustas e altivas durante a edade média, annullaram-se ou desappareceram, absorvidas umas por estados mais poderosos, desmembradas outras pelas conveniencias politicas; e Portugal, apparentemente{10} debil na origem, mas que por milagres d'esforço e de perseverança chegou a constituir a nação mais forte e audaz da Europa, vive ainda, e encontrará a sua defensão em saberem seus filhos repellir, com energia, quaesquer suggestões traiçoeiras ou tentativas violentas contra a terra que livres herdaram, e onde livres querem morrer.
Qual tem sido, porém, a causa d'essa longa vida, d'esse vigor da juventude e da edade viril, d'essa tenacidade que se conserva ainda no seio da decrepidez? É o que procuraremos descobrir, examinando rapidamente a historia dos seus primeiros annos.
Logo que o imperio wisigodo se desmoronou ao embate impetuoso do fanatismo dos arabes, a reacção christã e europêa começou immediatamente. Desde a batalha do Chryssus até o{11} recontro de Cangas de Onis mediou curto espaço, mas tanto bastou para que os mussulmanos gastassem nas dissensões intestinas o provado valor, e para que os godos, retemperados pelo infortunio, recuperassem a ousadia e firmeza, que são as mais seguras armas dos povos ameaçados na sua existencia. O poderio christão foi, pois, crescendo de novo e prosperando, lenta mas persistentemente, e já, meado o seculo XI, Affonso VI, reinava sem resistencia nas Asturias, Galliza, Leão e Castella, e conquistava ou fazia tributarias as principaes cidades e provincias dos sarracenos da Peninsula.
Para as suas guerras brilhantes muitos cavalleiros francezes atravessaram os Pyrineos. Impellia-os a tendencia guerreira e aventurosa da epocha; animava-os a idéa religiosa, que attrahia a pelejar contra os infieis quantos homens{12} de fé viva tinha n'esse tempo a Europa; dava-lhes esforço, por ventura, a esperança de encontrarem fortuna n'um paiz onde, no tumultuar de incessantes combates, se offereciam frequentes conjuncturas para adquirir riqueza e gloria. Entre os estrangeiros mais notaveis vieram a Hespanha Raymundo, conde de Borgonha, e Henrique seu primo co-irmão. Ao primeiro deu Affonso VI em casamento sua filha D. Urraca, havida da rainha Constancia, encarregando-o ao mesmo tempo do governo da Galliza e da terra portugalense; a Henrique concedeu D. Thereza, sua filha bastarda e da nobre dama Ximena Muniones, entregando-lhe com esta alliança o governo do districto de Braga, como condado dependente de seu primo. Em breve, porém, todo o territorio desde as margens do Minho até o Tejo foi destroncado{13} definitivamente da Galliza, para constituir um vasto senhorio, regido pelo conde Henrique, e sujeito apenas á supremacia da corôa leoneza.
O illustre cavaleiro francez, que via realisados os seus designios ainda para além do que imaginára, applicou provavelmente então toda a actividade á guerra com os sarracenos, e posto que a viagem que emprehendeu á Syria nos primeiros mezes de 1103 devesse retardar a sua influencia e conquistas, é certo que já em 1106 havia concebido as idéas de engrandecimento e independencia, a que deveu acaso Portugal a sua existencia como nação. O pacto secreto celebrado entre elle e Raymundo para a repartição dos estados do sogro, alliança que a morte do conde de Galliza inutilisou; as sollicitações perante Affonso VI moribundo;{14} e finalmente o modo por que soube valer-se das discordias civis, a que o fallecimento do rei de Leão deu origem, ligando-se ora com D. Urraca, ora com o monarcha de Aragão, e ainda com os fidalgos de Galliza, traduzem um pensamento unico:—converter o senhorio, que lhe fôra concedido para reger como simples consul, em nucleo de um poderoso estado ao occidente da Europa. E no meio das tempestades politicas, que varreram o solo ensanguentado da Peninsula durante o governo de D. Urraca, teria decerto satisfeito essa arrojada ambição, se a morte não viesse ceifar-lhe os designios junto dos muros de Astorga.
Fallecido Henrique (1 de maio de 1114) e contando o infante Affonso Henriques apenas tres annos de edade, tomou D. Thereza o governo, e{15} com elle o encargo de continuar a obra politica do marido. Apresentava-se ardua e arriscada a empreza, mas a filha de Affonso VI não desdizia das nobres tradições da sua raça. A leôa defendeu o antro com o ardor e constancia de que seu fero senhor lhe deixára assombrosos exemplos. Cercada dos seus vassallos, identificada com certo instincto de nacionalidade, que já então animava todos, ambiciosa, astuta, energica e tenaz, luctou durante quatorze annos para conservar intacta a independencia da terra que lhe chamava rainha. Submettendo-se ao rigor das circumstancias, inclinou por vezes o collo á soberania da côrte leoneza; mas não hesitando em quebrar solemnes promessas, o que aliás era frequente n'esses tempos de bruteza, e ainda hoje não é raro a despeito da civilisação, recusou sempre{16} a obediencia quando julgou possivel resistir. Seguindo, emfim, o caminho traçado pelo conde Henrique, alimentou habilmente rivalidades e rancores entre sua irmã D. Urraca, e o cubiçoso e soberbo bispo de Compostella, e não obstante os damnos e calamidades provenientes das invasões de christãos e sarracenos, augmentou a extensão dos seus dominios ao oriente e ao norte, dando-lhes ao mesmo tempo incremento em população, em riquezas e em forças militares.
A affeição intima a Fernando Peres, um dos mais illustres ricos-homens da Galliza, quebrou-lhe nos ultimos annos a cadeia brilhante de uma vida aventurosa e feliz. Esquecida de que o terrivel neto de Roberto de Borgonha deixára no mundo um successor do seu genio, a formosa rainha entregára ao amante a administração dos{17} districtos do Porto e Coimbra, e é de presumir que lhe outorgasse tambem a supremacia sobre os outros condes ou tenentes do paiz. Nenhum acto indica, talvez, que a intervenção de Fernando Peres fosse desleal ou funesta para a independencia da provincia, que procurava desmembrar-se dos vastos estados leonezes; mas a fortuna do valido excitára desde o principio o descontentamento e ciume dos barões portuguezes, e estes, aproveitando o enthusiasmo de nacionalidade já então radicado no povo, e a sede de poder que devorava Affonso Henriques, lançaram entre a mãe e o filho o facho da discordia, e accenderam a guerra civil, quer conforme todos os indicios, começou em 1127, para se decidir, decorrido um anno, na batalha do campo de S. Mamede, junto de Guimarães, onde o exercito de D. Thereza{18} foi desbaratado, e ella ficou prisioneira.
Assumindo o poder que tanto ambicionára, o moço principe não se limitou a recusar obediencia ao rei de Leão, cujo dominio toda a Hespanha christã e ainda parte da França mais ou menos reconheciam; ousou invadir por vezes as provincias limitrophes, fundando-se, por ventura, nas convenções feitas com seu pae, e sobretudo na posse que D. Thereza tivera dos districtos de Limia e Tuy. No meio de graves difficuldades, Affonso VII, que por morte de D. Urraca empunhára irrevocavelmente o sceptro de Leão e Castella, não poude a principio impedir essas correrias, nem procurar submetter seu primo; mas em breve, favorecido pela fortuna, aprestou um numeroso exercito, e dirigindo-se aos territorios de Galliza, avassallados{19} pelos portuguezes, repelliu de toda a provincia os invasores. Entretanto, apesar das vantagens obtidas, não se attreveu a proseguir na aggressão, e Portugal, que n'aquelle tempo abrangia apenas metade do actual territorio, conservou sempre hasteado o pendão da independencia.
Assim duraram as cousas até que o anno de 1137 viu de novo rebentar a guerra. Seguindo a direcção do enthusiasmo popular e a do seu genio inquieto e bellicoso, Affonso Henriques alliou-se com os condes Gomes Nunes e Rodrigo Peres e com o monarcha de Navarra, e em quanto este, quebrando a especie de vassallagem que prestára, rompia as hostilidades contra Affonso VII, o principe portuguez caminhava de victoria em victoria, sujeitava os districtos meridionaes da Galliza, desbaratava os mais illustres{20} capitães inimigos, e iria ávante em novas conquistas, se a tomada de Leiria pelos sarracenos e as suas tragicas consequencias não lhe attrahissem a attenção para a defensa dos proprios estados.
Depois de asserenada a tempestade, que expunha parte das fronteiras ás irrupções dos arabes, Affonso Henriques voltou a Galliza, onde já estava tambem o rei de Leão; mas avistando-se em Tuy, os dous primos celebraram pazes, e como de accordo volveram os olhos para mais nobre empreza:—o proseguir n'essa longa, patriotica e tenaz cruzada da Peninsula contra os mussulmanos, lucta encetada havia mais de quatro seculos, e cujas probabilidades de completo triumpho já claramente se mostravam favoraveis áquelle dos dous contendores, que, combatendo pelo christianismo, tinha{21} por si a força e o enthusiasmo, fructo de convicções profundas e da certeza moral do dever.
A guerra contra os infieis foi favoravel ao filho do conde Henrique. Penetrando até o coração do Al-Gharb, onde nunca desde a invasão dos arabes os christãos haviam chegado, ganhou a batalha de Ourique, e saldou assim com os sarracenos os ultimos damnos recebidos. A tradição engrandeceu a pouco e pouco o facto, exaggerando o numero dos vencidos, inventando apparições e milagres, e tecendo uma notavel lenda, que as regras da boa critica historica irrefutavelmente condemnam. Se as circumstancias, porém, são fabulosas, nem por isso foram pouco importantes os resultados moraes d'essa batalha, que, habituando os portuguezes a affrontar em campanha os agarenos, lhes deu{22} animo e vigor para futuras conquistas.
Terminada esta empreza, volveu o intrepido principe á lucta com os leonezes. Apoz varios successos, em que a fortuna das armas ora pendeu para Affonso VII, ora para o infante de Portugal, o grosso dos dous exercitos avistou-se perto de Valdevez; mas o captiveiro dos mais notaveis fidalgos de Leão, que em recontros singulares foram vencidos, a conhecida ousadia dos cavalleiros. e homens d'armas portuguezes, e emfim a vantajosa posição que estes occupavam, tudo isso e talvez algumas outras causas, que as memorias do tempo nos não dizem, constrangeram o orgulhoso filho de D. Urraca a sollicitar a paz. Ajustaram-se então tregoas, deu-se liberdade aos prisioneiros, restituiram-se os castellos reciprocamente conquistados, e{23} os dous principes abraçaram-se no campo de batalha.
Estes acontecimentos converteram a separação de Portugal em facto consummado e completo. Tomando o titulo de rei, que havia muitos annos recebia já dos seus subditos, Affonso Henriques realisou, em fim, o altivo pensamento concebido por seu pae, desenvolvido largamente por D. Thereza, e abraçado com ardor pelos barões portuguezes; e quando em 1143 os dous primos assentaram em Samora uma concordia definitiva, o imperador das Hespanhas ou de toda a Hespanha, como se intitulava nos seus diplomas Affonso VII, não poude escusar reconhecer a realeza do principe que pozera magestoso remate no edificio da independencia portugueza.
Prevendo, todavia, futuras disputas sobre a legitimidade d'esse facto, que{24} aliás nem as armas nem os tractados tinham conseguido impedir, Affonso I resolveu collocar o throno á sombra do solio pontificio. N'aquelles rudes tempos, em que a exaltação das crenças se associava intimamente com a ferocidade e soltura dos costumes, o poder dos papas tornára-se uma especie de dictadura, que todos os monarchas christãos directa ou indirectamente reconheciam; e a influencia da côrte de Roma era a espada suspensa por um fio sobre os thronos mais firmes, e ao mesmo tempo como que a columna de fogo, que dirigia as dynastias recentes na carreira das suas ambições. Acceitando as doctrinas theocraticas então por assim dizer incontestadas, e aproveitando-as para o intento quasi exclusivo a que se votára, o novo soberano fez homenagem do reino ao summo pontifice, promettendo{25} obediencia a S. Pedro, sujeição nominal mais supportavel do que o preito ao imperador; e depois de longas evasivas e ambiguidades, vicio que já então caracterisava a politica da sé apostolica, alcançou a confirmação da dignidade real por bulla de Alexandre III de 23 de maio de 1179.
A esse tempo havia já o monarcha comprado o titulo por bem caro preço em quarenta annos de lides contra os infieis. Depois da larga campanha com o imperio leonez os portuguezes tinham escolhido para theatro das suas emprezas os territorios sarracenos; á lucta de desmembração succedêra a de assimilação; e as conquistas de Santarem, Lisboa, Cintra, Almada e Palmella em 1147, as de Alcacer do Sal e de Beja em 1158 e 1162, e finalmente as de Evora, Serpa, Moura e Aljustrel em 1166 haviam constituido{26} a nacionalidade portugueza com a seiva e robustez bastantes para resistir ás procellas que agitavam a Peninsula.
Taes são os lineamentos capitaes da historia da fundação da monarchia. Julgando imparcialmente os homens e as cousas, não hesitâmos em affirmar que o esforço dos portuguezes neste longo periodo é uma das manifestações mais solemnes dessa tenacidade heroica, que nem se inebria com o triumpho nem desanima com os revezes; desse affecto generoso e altivo, que nos leva a luctar com a fome, com a sede, com a morte para defender a terra que cobre as cinzas de nossos paes; dessa abnegação nobilissima, que no meio da rudeza da epocha constitue gloria pura e immarcessivel. Volvamos, pois, os olhos para as velhas glorias da patria. O tracto dos que foram grandes e fortes{27} livrar-nos-ha, talvez, do lethargo febril que nos consome, revocar-nos-ha, por ventura, á energia social e aos vividos affectos de nacionalidade. No meio da indifferença ou do terror, que cérca a geração actual, ouvem-se como que umas melodias suaves que vem consolar-nos dos males que nos affligem, e dar-nos animo e ousadia para arrostar as tempestades que se enxergam no futuro. É o cantico de recordações que nos legou o passado, recordações tanto mais fecundas, quanto nos alimentam a esperança de que este paiz tem ainda nobres destinos a cumprir antes de se envolver na bandeira do fundador da monarchia, e de ir, emfim, occupar no cemiterio da historia o largo jazigo das nações que morrem.{28}
Era deveras tumultuaria a situação do reino na epocha que pretendemos esboçar. Bandos de salteadores, para quem o viver era acaso e a morte espectaculo quotidiano, assolavam os campos, infestavam as povoações, e refugiando-se nos logares do asylo zombavam do castigo; os officiaes publicos, attentos principalmente a saciar a propria crueldade e cubiça, commettiam em nome do fisco toda a casta de prepotencias;{30} e a propriedade, invadida e devastada, em vão pedia segurança e invocava as leis. Na côrte o desbarate das rendas publicas tornava desastrado e temeroso o estado da fazenda, os ministros succediam-se rapidamente, e as luctas de valimento multiplicavam-se, não se astringindo á guerra de tenebrosos enredos, mas semeando cruentas discordias, que depois encontravam nos solares, nos mosteiros, nas municipalidades, nos herdamentos, nas maladias, nos páramos terreno fertil para germinarem, crescerem e fructificarem. A anarchia, emfim, era por todo o paiz como os fogos de terreno vulcanico; ao passo que n'uma parte se extinguia o incendio, rebentavam em outras turbilhões de chammas.
Dotado de indole generosa, D. Sancho II procurára ao principio attrahir{31} todos os animos turbulentos e ambiciosos para um pensamento unico, collocando-se á frente dos barões, dos cavalleiros nobres, dos homens d'armas, da cavallaria e besteiros dos concelhos para continuar a guerra de crença e de raça, no seio da qual a nação surgira, e que parecia ser para ella um dos primeiros elementos de vitalidade e robustez. Nos campos de batalha, sobresahindo entre os guerreiros mais esforçados, mostrára-se digno neto do fundador da monarchia, conquistára muitas povoações mussulmanas de grande monta, taes como Elvas, Serpa, Jurumenha, Aljustrel, Arronches, Mertola, Ayamonte e Tavira, e finalmente dera á auctoridade real o prestigio das victorias; mas as desordens do governo interno invalidaram em grande parte o resultado das batalhas com que se dilatavam as fronteiras{32} pelos dominios sarracenos. Depois o principe, que durante largo espaço quasi nunca descançára a espada de conquistador, e que ao mesmo tempo pretendêra pôr em pratica as severas leis de seu pae com relação ao clero, deixára esmorecer o esplendor da gloria em annos de indolente repouso; e os prelados portuguezes, aproveitando os descontentamentos e perturbações que enfraqueciam a acção da corôa, começaram a trabalhar com fundada esperança n'essa longa têa de enredos, de corrupção e de hypocrisia, cujo remate tinha de ser a deposição do monarcha.
Varias circumstancias, dentro e fóra do paiz, favoreciam mais ou menos os designios facciosos. Consistia a principal na situação em que estava o papa, cuja intervenção era indispensavel, não obstante já ter Roma perdido,{33} pela dobrez e perfidia da sua politica, grande parte da força immensa que havia conseguido com as virtudes austeras dos primitivos padres. A Gregorio IX succedêra na thiara Innocencio IV, intelligencia vasta e energica, mas irascivel, ambiciosa e indomita, que logo mostrára querer sustentar com vigor as antigas doutrinas de Gregorio VII e de Innocencio III. Era o novo papa affeiçoado a Frederico II, imperador da Allemanha, mas este só viu no exito da eleição a perda de um amigo, e não teve esperança de que terminassem as luctas implacaveis e freneticas, que, accendendo a irritação em todos os animos, dividiam o sacerdocio e a realeza. De feito, depois de muitas negociações e tumultos, Innocencio, perseguido e expulso de Italia pelo imperador, e repellido de França por S. Luiz, de Hespanha pelo{34} rei de Aragão, de Inglaterra por Henrique III, dirigiu-se a Lyão, e ahi tractou logo de reunir um concilio para depôr Frederico. No seu animo deviam, pois, causar profunda impressão as amargas queixas dos prelados portuguezes, e movel-o a desthronisar o principe que ousava resistir ao poder ecclesiastico, esquecendo-se não só de que a sociedade civil era apenas imagem grosseira da sociedade catholica, mas até do signal de vassallagem, que outr'ora se offerecêra á sé apostolica, e que tornava o paiz de certo modo tributario do solio pontificio.
As circumstancias internas favoreciam tambem a empreza. Os interesses oppostos, os ciumes do poder, os odios que resultavam da vehemencia das paixões, a cubiça, a soltura de costumes, o amor de licenciosa independencia, todas as desordens communs{35} em tempos de ignorancia e fereza, achavam então ensejo favoravel para se patentearem com audacia; muitos fidalgos, além dos que haviam seguido a França o conde de Bolonha, eram adversos a D. Sancho; e o povo, offendido pelo esforço brutal com que os nobres exerciam impunes tanta oppressão, quanta lhe permittiam a extensão dos seus dominios e a fortaleza dos seus castellos, parecia indifferente á sorte do monarcha. Finalmente D. Sancho, impellido pela mais energica das paixões humanas, o amor contrariado e impetuoso, casára com a viuva de Alvaro Peres de Castro, D. Mecia Lopez, filha do senhor de Biscaya, Lopo Dias de Haro, e de D. Urraca, bastarda de Affonso IX de Leão; e esse consorcio augmentára ainda a desorganisação interna do reino, pela desigualdade da alliança, e pelas emulações{36} e despeitos que desde logo suscitára.
Em tal conjunctura só faltava aos conspiradores encontrar um chefe, capaz de substituir no throno o desditoso monarcha. D. Affonso, irmão de D. Sancho, e conde de Bolonha pelo seu casamento com a condessa Mathilde, foi o indigitado. Talento militar e politico, fôra elle um dos que mais se tinham distinguido na famosa batalha de Saintes, dada por S. Luiz a Henrique III de Inglaterra; ambição energica e tenaz, podia pela nobreza do nascimento, pela indole altiva e valorosa, e pela influencia dos fidalgos que de Portugal o haviam acompanhado, reunir em volta de si todos os interesses feridos, e ser efficaz instrumento do trabalho dos conjurados.
Julgando, portanto, o terreno preparado, e tendo a quasi certeza de{37} realisar amplamente esperanças por muito tempo affagadas, partiram para Lyão os prelados do Porto e de Coimbra e outros descontentes a reunir-se com o arcebispo de Braga, e ahi se queixaram ao pontifice, attribuindo a D. Sancho o estado lastimoso a que havia chegado o reino. Acolheu Innocencio de bom grado os prelados portuguezes, predisposto já em seu favor pelas negociações anteriores, expoz o assumpto ao concilio, e na semana immediata ao encerramento d'essa notavel assembléa, expediu aos barões, concelhos, cavalleiros e povo de Portugal uma bulla, declarando os varios delictos praticados por D. Sancho, e nomeando para a regencia do reino o conde de Bolonha.
Escudado com as comminações do pontifice, e depois de ter assignado as vergonhosas promessas de subserviencia{38} ao poder absoluto, illimitado, omnimodo do clero, promessas que só esqueceu quando viu que o podia fazer sem perigo, partiu D. Affonso para Portugal, onde de feito chegou nos principios de 1246. Não alcançou, porém, immediatamente a realisação dos seus desejos. Muitas povoações importantes sustentaram seu preito ao monarcha, muitos cavalleiros-villãos e besteiros dos municipios resistiram á usurpação, e entre os proprios membros do clero encontrou D. Sancho quem não fraqueasse ante as poderosas armas do conde de Bolonha, e o stygma espiritual das censuras.
Teve, pois, o infante de recorrer, por um lado aos assedios e batalhas, por outro ás dadivas, ás promessas, ás seducções de toda a especie; e se em muitos cavalleiros e alcaides de castellos os calculos interesseiros, as{39} ligações de parentesco, a recordação de antigos aggravos tomaram o passo sem escrupulo ás mais justas considerações, alguns houve tambem que pelo nobre procedimento constituem exemplos memoraveis de lealdade e energia. A defensa de Coimbra por Martim de Freitas, em que este teve de vencer a audacia e vantagem dos sitiadores, e o desalento e desespero da propria guarnição, abatida pelas fadigas, pela fome, pela sede, e acaso pelos terrores que gerára o anathema pontificio, é d'aquelles grandes factos que symbolisam uma epocha; mas quando a tradição não referisse outros, ou quando a todos faltassem bons testemunhos historicos, a diuturnidade da contenda, em tempo que não existiam exercitos permanentes, provaria por si só o denodo e constancia dos fieis partidarios de D. Sancho.{40}
Apesar de tudo, porém, a fortuna das armas pendeu para o lado do infante, e o infeliz monarcha, depois de se ter defendido com a coragem que sempre mostrára no fervor dos combates, teve, emfim, de soccorrer-se á alliança com Castella. Um corpo de tropas castelhanas, capitaneado pelo valente conquistador de Murcia, o filho primogenito de Fernando III, e de que tambem fazia parte Diogo Lopez de Haro, irmão de D. Mecia, veiu dar novo alimento á guerra, que se protrahiu até os fins de 1247. Chegou já tarde, comtudo, esse soccorro. A ambição e astucia de D. Affonso, juntas a valor intrepido, tinham aproveitado todos os recursos para se firmar em bases solidas o novo poder, e os intuitos generosos, tanto da invasão, como das diligencias perante a curia romana, a que ainda recorreu o principe{41} castelhano, foram completamente mallogrados.
Vergado o animo pela desdita, D. Sancho preferiu o desterro a viver captivo na patria, debaixo do jugo do irmão, e escolheu Toledo para residir. O exilio veiu então completar-lhe a escola do infortunio. O orgulho offendido, o desejo de vingança, a compaixão pelas desgraças da patria, os remorsos dos erros commettidos, as vãs esperanças, emfim, que nunca abandonam o desgraçado, rebatiam-se, travavam-se, recuavam, succediam-se consumindo-lhe o coração. As memorias saudosas da terra de que fôra senhor, gravadas como sêllo de amargura no intimo d'alma, tornavam-lhe detestavel o presente pelo contraste do passado. Capitão victorioso em muitos combates, açoute e terror dos sarracenos, tinha-se engrandecido com gloriosos{42} feitos de armas no conceito de amigos e de inimigos, de naturaes e de estranhos; depois conhecêra por dolorosa experiencia as intrigas da politica, as conspirações dos partidos, as ingratidões e perfidias dos validos, o ciume e rancor dos despeitados; e a final via-se deshonrado por uma sentença calumniosa e infamante, despresivel para o povo que só applaude o triumpho, e podendo a custo desafogar em actos de piedade e penitencia a dôr causada na sua alma pelos vicios, pelas torpezas, pelas traições, pelas negruras d'aquelles de quem mais devia esperar lealdade e verdadeiro affecto.
Na solidão irremediavel do desterro abreviou-se-lhe a existencia, a fronte curvou-se para a terra, e antes de passar um anno depois de foragido (janeiro de 1248) falleceu em Toledo,{43} pedindo em testamento que o sepultassem no mosteiro de Alcobaça, onde jaziam as cinzas paternas. Nem essa ultima vontade, porém, lhe foi cumprida. Ha infortunios que perseguem o homem ainda além da campa.{44}
Reinava em Portugal D. Affonso IV, e em Castella seu genro Affonso XI. Protrahia-se com varia fortuna a guerra entre as duas nações, porque os laços de familia não tinham podido suffocar as discordias entre os principes, quando o rei de Fez, Aly-Abul-Hassan, preparando-se para invadir a Hespanha, reuniu um dos mais famosos exercitos, que atravessaram o Estreito emquanto o crescente dominou{46} na Peninsula. Apparelhado tudo para a expedição, começou o embarque dos sarracenos, e no decurso de cinco mezes quasi não se passou um dia, sem que as galés muslemicas viessem lançar nos portos de Gibraltar e Algeziras novos esquadrões de soldados. Reuniram-se a estes as tropas do rei de Granada, Jusef-ben-Ismail, e sitiou-se logo Tarifa, povoação importante e excellente ponto estrategico para proseguir a invasão e conquista.
Defendia-se energicamente a guarnição da fortaleza. A presença da armada christã, que fundeára proximo á cidade, impedia de algum modo o transporte de viveres e munições para o campo dos mussulmanos; e dava ao mesmo tempo aos cercados a esperança de soccorro ou de refugio. Em breve, porém, uma terrivel borrasca destruiu-a completamente, e tudo então{47} pareceu annunciar que ia bater a derradeira hora do dominio da cruz n'aquellas terras, regadas já com o sangue de tantos martyres.
Em presença do perigo, o orgulhoso Affonso XI tractou de celebrar pazes com o sogro e de lhe sollicitar a alliança, a fim de resistir á procella que ameaçava rebentar sobre os seus estados. Cedendo á força das circumstancias, e humilhando-se perante aquella que tanto offendêra e ainda odiava, enviou sua mulher a el-rei de Portugal, rogando-lhe prompto e poderoso auxilio; e depois veiu elle proprio pedil-o, ponderando a multidão dos barbaros, o aperto do sitio em que estava Tarifa, o risco com que se defendiam os cercados, e o muito que importava a brevidade de soccorro, da qual dependia talvez a sorte de toda a Hespanha. Satisfez D. Affonso IV a instante{48} supplica, e dentro de breve tempo partia para Sevilha, á frente de uma lustrosa companhia de gente escolhida, posto que pouco numerosa, adiantando-se ao grosso do exercito, que tinha de marchar mais lentamente por causa dos petrechos de guerra e provimentos.
Juntos os dous monarchas, convocaram-se os prelados, os barões, os mestres das ordens militares, os ricos homens, e entre todos se disputou a conveniencia de soccorrer Tarifa. O susto fez ahi seu officio, e muitos aconselharam se entregasse a praça aos mouros como condição de paz, evitando-se uma lucta, que n'aquella conjunctura só por milagre não seria funesta. Venceu, porém, o voto contrario, que foi o do rei portuguez e o dos seus vassallos, e depressa o enthusiasmo substituiu pela confiança o{49} temor. Achavam-se ali reunidos os principaes cavalleiros das duas nações rivaes; tinham de ser julgados uns pelos outros; tinham de se julgar mutuamente; e tanto bastou para que a emulação d'esforço se accendesse em todas as veias, exaltasse todos os animos, dominasse todas as vontades. Resolvida, pois, a guerra, dirigiram-se sobre Tarifa os dous monarchas, fazendo pequenas jornadas por esperarem as tropas que de instante a instante engrossavam o exercito; e no dia 27 de outubro, ao cahir da tarde, avistaram, emfim, a multidão dos infieis, cujas tendas, derramadas pelas raizes dos montes e pelos cimos dos outeiros, formavam como que uma cidade vastissima, cercada por selva de lanças.
Logo que nas asperas cumiadas de Peña del Ciervo fluctuaram os pendões de Castella e de Portugal, juntos ao{50} estandarte da cruzada, as tropas mussulmanas, que se calculavam em sessenta mil homens de cavallaria e quatrocentos mil infantes, unindo-se com a rapidez do relampago e deixando o recinto das tendas, arrojaram-se para as margens do Salado, e ahi aguardaram firmes o acommettimento dos inimigos. A noite, porém, aproximára-se, e os principes christãos não quizeram no meio das trevas começar a terrivel batalha, em que a fortuna das armas tinha de resolver se os filhos da Peninsula deviam de novo curvar-se ao jugo dos africanos.
No dia seguinte já o sol ia alto, quando o som das trombetas, dos tambores, das charamellas, dos anafis, dos atabales deu o signal de combate. O exercito portuguez, entoando o psalmo Exurgat Deus, arremeça-se pela planicie, transpõe o rio por entre milhares{51} de frechas, que sibilam nos ares como saraiva espessa, e encontrando-se com a hoste do rei de Granada trava uma lucta implacavel, frenetica, vertiginosa. No meio da ebriedade do sangue, baralham-se amigos e inimigos; as espadas faiscam nas espadas; as lanças, topando em cheio nos escudos, nos capacetes, nos arnezes dão um som profundo, que se mistura com o estalar d'aquellas que voam despedaçadas; muitos ginetes correm á solta, nitrindo d'espanto e de terror; muitos cavalleiros pelejam a pé; e os elmos e cervilheiras rolam pelo chão fendidos e amolgados. A final os mussulmanos vacillam, e as suas fileiras, vergadas em semicirculos, recuam ante a gente portugueza, ondeam, espalham-se e abandonam o campo, procurando na fuga a salvação. Por outro lado as tropas castelhanas, capitaneadas{52} pelo principe de Vilhena D. João Manuel, dirigem-se contra o exercito de Abul-Hassan, e depois de renhida peleja conseguem romper aquellas grossas muralhas de homens, affoutos e impavidos no primeiro conflicto, mas incapazes de resistir tenazmente ao embate incessante dos cavalleiros christãos, que, poucos mas bem armados, investem como leões onde mais acceso vae o travar da batalha. Não ignoram elles que da sua audacia depende nessa hora talvez a sorte e a gloria da patria. Emfim a guarnição de Tarifa, sahindo da fortaleza, apodera-se dos arrayaes mouriscos; fere, mata, vence quasi sem combate os que encontra; e derrama assim a ruina entre os inimigos, que, no meio de completa anarchia, chegam a pelejar uns contra os outros, ou expiram sem defensa nem gloria debaixo{53} dos pés dos cavallos e dos troços de infanteria.
Então o terror consumma o desbarato; e, pela volta da tarde, apenas do brilhante exercito dos mouros de Africa e de Hespanha alguns milhares de fugitivos, acompanhando os reis de Fez e de Granada, correm desalentados diante dos cavalleiros christãos, que os perseguem incançaveis até perto de Algeziras.
Grande numero de mussulmanos ficaram captivos, e foi immenso o despojo em ouro, prata, armas e preciosidades de toda a casta. Convidado a escolher d'entre essas riquezas a parte que lhe aprouvesse, D. Affonso IV acceitou sómente alguns alfanges e bandeiras, e um clarim que pertencêra ao rei de Granada. Os despojos, porém, daquella famosa batalha constituiam o preço de menos valia para o{54} monarcha portuguez. Mais graves eram, sem duvida, os resultados de ordem moral. Sahindo victorioso da empreza em que nobremente se empenhára, D. Affonso IV cingira-se ás tradições, por tanto tempo esquecidas, das instituições wisigothicas, que consideravam como dever impreterivel do principe estar sempre á frente dos seus subditos, na hora dos grandes perigos e das grandes glorias; renovára o brado de guerra contra os infieis, que parecia ter de todo emmudecido desde a conquista do Algarve; patenteára ao rei de Castella qual era ainda a ousadia dos cavalleiros e homens de armas portuguezes; e sobretudo livrára a Peninsula da invasão dos africanos, e dera a estes uma aspera demonstração de que não era empreza facil, nem talvez possivel, subjugar de novo a Hespanha e o christianismo.{55}
De todas as obras da creação é a mulher aquella em que mais profundamente está gravado o verbo indefectivel e supremo da providencia omnipotente. O seu nome resoa-nos como o de um ente predestinado para nos servir de guia e amparo nos trabalhos e alegrias da vida; as suas graças infiltram-se por cada sentido, e são para cada desventura um balsamo, para cada descrença um milagre;{56} o gesto, a voz, os meneios, o volver de olhos, a ternura do sorrir, o perfume e brilhantismo dos cabellos, tudo tem encanto indecifravel, que domina as vontades mais isentas; mas no coração principalmente é que ha thesouros inexhauriveis de generosidade e innocencia, e uma suave melancolia, que parece não ter objecto, e que só é por ventura a saudade incerta mas indelevel da sua origem divina. No meio das tempestades da existencia acalma-nos as aspirações insensatas, as paixões fervidas, as esperanças mesquinhas e heterogeneas, e consegue salvar-nos de nós mesmos, esquecendo resignada as proprias dores, e exaltando-nos pela ternura e pela constancia ás regiões ideaes e bem-aventuradas do puro sentimento. Ás vezes, porém, anjo despenhado, a mulher{57} arrasta-nos comsigo; devora-nos, entre fingidas lagrimas e seductoras caricias, os annos, a energia, os nobres affectos, os sentimentos honestos, as noções da verdade e do dever; suscita-nos, desenvolve-nos, completa-nos as más paixões e os ruins instinctos, e faz com que aquelle, a quem um louco amor fascina, desça ao infimo grau da abjecção. Uma dessas mulheres, excepções que infelizmente não são raras, foi decerto Leonor Telles, de cuja terrivel historia, longa iliada de crimes, procuraremos narrar um episodio.
A affeição cega de D. Fernando havia já annos que tinha satisfeito as ambições da mulher de João Lourenço da Cunha, alma soberba e ousada, cubiçosa e perfida, que não se contentára de vêr a seus pés, desvairado pela paixão, o moço e generoso monarcha.{58} A corôa real, por tantas vezes divisada em sonhos, sentia-a, emfim, segura na formosa fronte; os ultrages, que recebêra durante a lucta, lavára-os largamente com o sangue dos homens que mais odiava; e perante o seu olhar, sublime de altivez e energia, não havia cabeça que se não curvasse, nem coração que não estremecesse.
Fôra-lhe para isso preciso supplantar considerações sagradas; vencer obstaculos poderosos; derramar pelo reino a devastação e a miseria; aviltar o homem que tudo lhe sacrificára, riquezas, poderio, gloria, a honra propria e a do nome herdado; mas que importam desgraças alheias a um animo profundamente egoista? As balizas, que separam a iniquidade e a justiça, o crime e a virtude, a abominação e a sanctidade, desapparecem aos olhos{59} do espirito reconcentrado n'um pensamento unico, e contra uma vontade assim inabalavel póde haver difficuldades, mas não ha impossiveis. Um processo de divorcio, julgado por juizes affectos a D. Leonor, livrára-a de seu primeiro marido, que atterrado fugira da patria. O repudio da infante de Castella, cujo casamento fôra contractado em celebração de pazes, annullára o outro obstaculo. A alliança com o duque de Lencastre, tractado impolitico e perfido, que só póde disculpar-se por ser obra de animo turbado por suggestões estranhas, fizera com que D. Henrique, entrando de repente em Portugal, tomasse Almeida, Pinhel, Linhares, Celorico e Vizeu, atravessasse a Beira, offerecesse proximo a Santarem batalha a el-rei D. Fernando, que este não ousou acceitar, e cercasse e destruisse na sua{60} melhor parte a capital do reino, realisando assim os calculos de fria e paciente vingança, que o instincto de tigre ensinára a D. Leonor pelas affrontas ahi recebidas. Finalmente a influencia irresistivel da rainha no espirito fraco do soberano conservára na côrte só aquelles d'entre os nobres, que por sympathia, por gratidão, por temor, por intuitos interesseiros ou por ligações de parentesco se mostravam inclinados á nova ordem de cousas, e substituira á severidade dos antigos tempos o brilho e a devassidão de uma côrte voluptuaria.
Apesar de tudo, porém, no regaço da opulencia e do poder, essa mulher, ora hypocrita e vil, ora insolente e orgulhosa, receiava a cada instante ver derrubado o edificio da sua fortuna, cimentado com o sangue de tantas victimas. Quando a vida lhe sorria sómente{61} esperanças e venturas, parecia que descortinava no horisonte a victoria definitiva dos adversarios, e acaso se lembraria de que semeára odios na terra, e de que ainda não colhêra o fructo.
Entre os nobres que mais temia contavam-se os filhos de D. Ignez de Castro. D. Diniz, o filho predilecto do rei justiceiro, achava-se em Castella, e era odiado pelo povo que aos seus conselhos attribuia a invasão de D. Henrique em Portugal. D. João, todavia, era geralmente bem quisto, e no caso de fallecer o monarcha, podia ser um emulo poderoso contra os direitos da filha de D. Leonor. Demais, levado por amor que reputava sincero, e que talvez então o fosse, o infante casára clandestinamente com D. Maria Telles, a qual, apesar de não ter já o viço da primavera da{62} vida, conservava ainda a flor e a graça de uma formosura rica de seiva, pura nas fórmas, e dotada do enlevo que mais prende e mais seduz, o de uma alma cheia de bondade e affecto.
Irmã da rainha e viuva de Alvaro Dias de Sousa, fidalgo illustre e de linhagem real, D. Maria era respeitada pela severa virtude do seu caracter, e querida pelas mercês que fazia, para as quaes lhe subministravam fartos meios as rendas das suas muitas propriedades, e as do mestrado de Christo, que lhe fôra dado para o filho, e que em grande parte usufruia. Vendo-a, e accendendo-se-lhe a imaginação com essas mil seducções, concedidas pela natureza ao sexo fragil, para que não haja alma que se lhe não franqueie, ousára o infante confessar-lhe o seu amor, e como a{63} bella viuva, entre indignada e piedosa, lhe respondesse que de reis tambem vinha ella, e que não era dama que se sacrificasse aos devaneios ephemeros de um capricho, crescêra com os rigores o affecto, e D. João recebêra-a por mulher, celebrando um desses casamentos clandestinos, vulgares na epocha que tentâmos descrever, epocha em que a hypocrisia estava já longe de ser tão rara como geralmente se cuida, posto que as paixões ainda se mostrassem muitas vezes grosseiras, impetuosas, indomitas.
Chegada a noticia ao conhecimento da rainha, esta em vez de se lisongear com tal consorcio, que lhe podia servir de esteio na situação a que se tinha elevado, julgou-o contrario aos planos que formára para collocar na cabeça da filha a corôa de D. Fernando, e desde logo a morte da irmã foi resolvida.{64} N'aquelle peito de marmore só existia um sentimento sancto e suave, o amor materno; e esse mesmo affecto apenas lhe inspirou o desenho de novos crimes. Como conseguir, porém, sacrificar a irmã, e desfazer ao mesmo tempo o favor popular de que D. João já gosava pelo genio aventuroso e esforçado? Soprando na alma d'este as duas paixões mais ferozes do coração humano, a ambição e o ciume.
N'uma conferencia com o infante communicou-lhe João Affonso Tello, irmão da rainha e inteiramente dedicado aos seus interesses, que esta desejára a sua alliança com a princeza Beatriz, e que se o casamento d'elle infante não tivesse vindo destruir designios e projectos de longo tempo affagados, a preferiria muito á do duque de Benavente, principe de origem{65} castelhana, odiosa por em quanto aos portuguezes, em cuja memoria não se tinham desvanecido antigas inimisades, e cruentos e recentes aggravos.
A perfida insinuação produziu o desejado exito. Dominado pela cubiça de succeder no throno depois da morte do irmão, o filho de Ignez de Castro só pensou nos meios de se livrar da que havia escolhido por mulher, mais n'um impeto de ardor brutal e ephemero, do que por esse affecto intenso e intimo, que se dilata com sereno contentamento até os extremos horisontes da vida. Acceitando como verdadeiras accusações injustissimas, ou, o que por ventura está mais proximo da verdade, creando elle proprio essas calumnias, partiu logo para Coimbra, onde então estava D. Maria Telles, e dirigindo-se a furto ás casas que esta habitava, mandou{66} arrombar as portas. Acordada de subito, a irmã de D. Leonor levantou-se assustada e afflicta, e envolvendo-se n'uma colcha que lhe cobria o leito, perguntou ao infante a causa d'aquelle procedimento que tanto a offendia. Na voz, no gesto, nas lagrimas da desditosa mulher traduzia-se a innocencia e a candura; no arrebatamento de pudor e de colera, que lhe abrasava as faces, havia um energico protesto contra a suspeita infame; mas D. João tornára-se inaccessivel á justiça e á piedade. Accusando-a em altas vozes de divulgar o segredo do seu casamento e de trahir a fé conjugal, arrancou-lhe a unica vestidura que lhe velava a formosa nudez, e com um bulhão, com que nas vesperas o presenteára o conde de Barcellos como que indicando-lhe o destino, a feriu no seio e no ventre. Um grito indizivel{67} de angustia partiu dos labios da pobre victima, que, cerrando para sempre os olhos enxutos, porque n'elles a afflicção estancára as lagrimas, teve apenas tempo para invocar com o ultimo suspiro a misericordia de Deus.
Então em todos os rostos se viu pintado o espanto e o terror; a triste noticia percorreu logo a cidade, e no povo a irritação dos animos depressa chegou ao seu auge, mas o infante já havia sahido de Coimbra, e dentro de pouco tempo, tendo alcançado o perdão d'el-rei, era acolhido na côrte, como se não tivesse sido o assassino feroz de sua mulher. Entretanto só para arrependimento lhe serviu o crime commettido. Lançado o cadaver da irmã sobre a estrada por onde suppunha que a filha subiria ao throno, D. Leonor Telles nem tratou{68} de disfarçar quanto se inclinava de preferencia ao casamento de Beatriz com um principe castelhano; e o infante, perdida de todo a fé no amparo e protecção da côrte, fugiu para as provincias do norte, e d'ahi para Castella, onde acabou a vida no meio da saudade e dos remorsos, justa punição que se tornou ainda mais dura, quando depois da morte de D. Fernando conheceu que tinha destruido toda a possibilidade de succeder no throno, ao qual de certo o elevaria o povo se não fôra o seu crime.
Nos livros dos chronistas e nos contos populares se perpetuou esta triste historia; e ainda hoje no antigo castello dos templarios, theatro do tragico successo, se mostra o quarto onde foi assassinada a boa e desditosa irmã da nossa Lucrecia Borgia.{69}
Rica mais do que nenhuma em homens e feitos grandiosos é a historia da gente portugueza. Quem, lançando os olhos para um mappa da Europa, divisa ao occidente da Peninsula este paiz, encerrado na estreiteza de breves limites, imperceptivel quasi no meio dos grandes imperios da terra; e considera que ahi existe ha sete seculos uma nação independente, e que chegou a estender o seu dominio por uma{70} parte da Asia, da Africa, da America, e até ás regiões encantadas e indefinitas do Oceano Austral, antevê logo n'esse povo grandes virtudes politicas e guerreiras, e nos seus fastos uma excellente escola de enthusiasmo e heroicidade. E se depois d'isso volta o pensamento para as recordações bellas e puras, para os tropheus e monumentos honrosissimos d'esta mimosa e abençoada região, que não deixou parte alguma no mundo onde não chegasse um ecco das suas glorias de todo o genero, o resultado d'esse estudo é a confirmação incontrastavel das primeiras impressões.
Pequeno e fraco na origem, Portugal é apenas um condado, que ameaçam ao mesmo tempo o já então vastissimo imperio de Leão e Castella, e o poder ainda formidavel dos bellicosos sarracenos, e todavia não só lhes{71} resiste com intrepidez e constancia, mas até ousa invadir o territorio dos seus dois temiveis inimigos, conservando sempre hasteado o pendão da nacionalidade. Depois, logo no começo da monarchia, os portuguezes, movidos pelo amor da patria, affecto que amadurecêra e se radicára nos animos de um modo indestructivel, conquistam uma grande parte da Hespanha mussulmana, terra abundante de população, enriquecida pela industria, cheia de villas e cidades importantissimas, fortificada por todos os meios que a experiencia d'aquelles tempos ensinava, e defendida por homens naturalmente esforçados, e aos quaes o aferro á terra natal e o fervor religioso ainda, como é de crer, multiplicavam os brios. Depois estabelecem-se em larga escala os concelhos; promove-se a vinda de colonos; povoam-se granjas{72} e aldeias; arroteam-se charnecas e mattos; repairam-se e abastecem-se castellos; organisa-se a milicia, a administração, a magistratura judicial, a fazenda publica; consolidam-se intimas allianças com algumas das maiores nações, e dá-se sufficiente vigor ao espirito municipal, que em parte alguma talvez, durante a edade media, teve mais viva influencia no progresso da civilisação. Em seguida, apenas Portugal se vê collocado vantajosamente com relação aos varios povos da Peninsula, já não lhe basta a certeza da sua inviolabilidade, e confiado nas proprias forças e destinos, eil-o que se apressa em ir pagar ao islamismo, no solo abrazado de Africa, a divida da invasão e os trances do jugo estranho.
Reinava então em Portugal D. João I. Ao monarcha inconstante e frivolo, cujos defeitos como homem bastam para{73} escurecer os actos do legislador, succedêra o principe mais popular que se encontra nas nossas dynastias de imperantes; a um rei hereditario um rei eleito. Ganha a victoria de Aljubarrota, recuperadas uma a uma as praças de guerra, de que o soberano estrangeiro se havia assenhoreado; firmada, emfim, a paz com Castella depois de longos annos de lucta frenetica, começaram os infantes a instar com D. João I para que emprehendesse conquistar Ceuta, a famosa cidade que desde o tempo dos romanos até ao fim do reinado de Witiza fôra dependencia de Hespanha; conquista que lhes daria ensejo de alcançarem com honra o grau de cavalleiros, e que dilataria ao mesmo tempo os limites do imperio e os da fé. Folgou com a idéa o monarcha, a quem os annos não haviam amortecido o pensamento{74} fixo de gloria, a que devem attribuir-se quasi todos os actos da sua vida, mas não quiz resolver-se sem pesar cuidadosamente os perigos e vantagens do commettimento, que não se limitava ao assalto de uma praça, aliás bem defendida e guardada, mas que era de feito um repto aos infieis, que, inflammados em brios nacionaes e em fanatismo ardente, formariam cem exercitos poderosos e intrepidos contra os temerarios invasores.
Reflectiu, pois, em todas essas circumstancias; ponderou o voto dos guerreiros illustres, a censura dos conselheiros leaes, as preoccupações populares; avaliou com exacção a importancia dos esforços e a escacez dos recursos; viu que ia travar uma lucta em que todo o odio e valor da raça inimiga haviam de empenhar o ultimo alento; mas lembrou-se de{75} que era preciso não deixar esquecer aos seus soldados o duro mister da guerra, de que o unico systema consequente e legitimo de engrandecimento para o reino era alargar-lhe os limites pelas fronteiras costas africanas, de que celebraria assim com um feito memoravel o occaso da sua venturosa carreira, e decidiu-se por fim á expedição mais determinado, mais perseverante, mais enthusiasta do que os proprios filhos. Conciliando, todavia, a confiança na sua fortuna com as admoestações da prudencia, tratou dos apercebimentos adequados á magnitude da empreza, e para evitar suspeitas que de certo trariam raiz de taes preparativos, resolveu que se aproveitasse o pretexto da pirataria com que os hollandezes infestavam as nossas costas, e se reclamasse satisfação do conde de Hollanda com ameaças de guerra.{76} Fernão Fogaça, veador do principe, homem astuto, cauteloso e atrevido, foi enviado a Hollanda para proclamar em embaixada publica os aggravos e exigencias do soberano portuguez, e revelar secretamente ao conde a verdadeira causa da sua vinda. Prestou-se este ao disfarce, lisongeado pela demonstração de confiança, ou por ventura aterrado com a lembrança de que as ameaças podessem ainda traduzir-se em factos, e o artificio produziu o desejado effeito de socegar até certo ponto as populações de Hespanha e Africa, posto que não tanto que os reis de Castella, de Aragão e de Granada não mandassem immediatamente embaixadores a Portugal, renovando todas as garantias de paz e amizade.
Preparado tudo, levantou ancora do porto de Lisboa a poderosa armada aos 25 de julho de 1415, não obstante{77} haver fallecido poucos dias antes D. Philippa de Lencastre, chamada pelo povo a boa rainha, e a cujas virtudes e desvelos deveu acaso Portugal a mais generosa prole, que tem rodeado um throno. Partiu em demanda das praias sarracenas; em desaffronta dos gravames n'outro tempo padecidos; em nome da raça romano-gothica contra o islamismo que lhe lançára a luva; da supremacia da civilisação christã contra as caducas instituições politicas, estribadas nas doutrinas falsas ou incompletas do koran. Partiu, sem que nem um leve estremecimento pelo futuro quebrantasse o enthusiasmo dos que iam participar dos riscos da empreza; o excitamento religioso, o espirito aventureiro, a emulação de esforço, e em muitos ainda a cubiça, menos hypocrita que n'estes nossos tempos, erguiam com demasiada força{78} aquelles animos para que lhes consentissem vacillar.
O mysterio da expedição, na qual tomavam parte os grandes, os nobres, os infantes, o herdeiro do throno e o proprio monarcha, assustou de novo toda a costa de Africa, e não menos a de Hespanha, que ainda occupavam mouros; mas sobretudo as terras de Gibraltar, por se verem abertas e mal defensaveis. Em breve, porém, se dissiparam esses receios, porque, consultados em Algeziras os principaes capitães, foi fixado o dia 12 de agosto para se caminhar contra Ceuta.
Ahi de feito surgiu a frota no dia designado, mas depois de duas tentativas de desembarque, que o temporal estorvou, foi constrangida a voltar para Algeziras. O contratempo desanimou alguns. Eram esses de voto que não se tentasse outra vez o desembarque{79} em Ceuta, que para gloria bastava já o arrojo da empresa, e que se não deviam tornar ao reino sem tingir as mãos em sangue inimigo, se dirigisse a armada a Gibraltar, que n'aquella conjunctura se offerecia como facil conquista, e que daria campo aos valentes para mostrarem esforço, ao passo que satisfaria as ambições do povo e os interesses da patria. Nenhuma consideração, todavia, dissuadiu D. João I do intentado proposito. Perseverante como o homem que, apontando fixamente ao alvo, não desvia nem por um momento a arma senão depois de acertar, desprezou os avisos cautelosos, que aliás já não poderiam ser acceitos sem desaire, e, como é facil de suppor, foi a vontade do monarcha que afinal prevaleceu.
Entretanto os mouros, attribuindo a medo a demora dos portuguezes, trataram{80} de despedir as tribus numidas que os tinham vindo auxiliar, Soldadesca indisciplinada e feroz, que nem só entre os inimigos deixava largos vestigios de ruinas e estragos; mas ainda ellas mal tinham sahido, quando no dia 20, ao declinar da tarde, se dirigiu contra a cidade toda a armada christã. Confiados na fortuna, os habitantes de Ceuta pareciam desprezar a procella que de perto os ameaçava, e quando a noite desceu com denso manto de trevas, illuminaram-se as casas em signal de torva alegria.
Com a primeira luz da manhã seguinte a gente da armada, mettendo-se nas fustas, dirigiu-se para a cidade, e os infantes D. Henrique e D. Duarte, saltando em terra com cento e cincoenta soldados, começaram a peleja com os mouros que fóra das portas os desafiavam, terçando lanças, arremessando{81} azagaias, e animando-se uns aos outros com pragas e insultos contra os invasores, intelligiveis para estes pelos gestos de rancor dos que as proferiam. N'aquelle primeiro impulso os alfanges sarracenos cruzaram as espadas portuguezas com todo o estrepito do enthusiasmo guerreiro, com todo o ardor do excitamento religioso, com todo o fogo de uma colera por muito tempo concentrada. Dir-se-ia, ao ver a furia do combate, que só adejaria a victoria sobre um dos campos quando tivesse cahido sobre o outro a total ruina. No entanto foram desembarcando mais soldados portuguezes, e, havendo já na praia trezentos homens escolhidos, apertaram estes com os mouros, que, levados mais pelo temor que pelo perigo, voltaram costas retirando-se para a cidade. Lembraram-se então os infantes{82} de que n'aquelle mesmo dia poderiam talvez dar fim á empresa, evitando assim o trabalho e combate incessante de semanas e mezes, que naturalmente resultaria de um longo assedio, e os perigos a que se expunham n'uma terra callidissima, onde de certo recrudeceria a peste que de Lisboa os seguíra. Decidiram, pois, entrar na cidade com os que fugiam, e, lançando mão do ensejo que o caso offerecia, perseguiram rijamente os mouros, arrancando-os de todas as posições, e fazendo-os apinhar sobre as portas.
Ahi foi terrivel o recontro e disputada tenazmente a victoria. O apertado revolver das armas formava uma selva de ferros, atravez da qual já quasi não era possivel abrir caminho sem galgar por cima dos cadaveres amontoados, que embargavam os passos{83} dos vivos; nem os invasores desistiam nem os da cidade affrouxavam, e de um e outro lado os contendores haviam chegado áquelle paroxismo de furor, que faz desprezar a vida para só cuidar em produzir a morte. Por fim, não obstante o muito que os defensores trabalharam, não poderam cerrar as portas, nem tolher entrarem os nossos de involta com elles. Os portuguezes dividiram-se então em dous bandos; D. Duarte, capitaneando um d'elles, foi subindo aos logares altos e fazendo-se senhor de todos até chegar á maior eminencia da cidade; D. Henrique tomou por outras ruas; e ambos encontraram porfiada resistencia, porque aos habitantes de Ceuta, reduzidos á defensiva, o affecto, que nos costuma prender ao lar domestico, redobrava alento e brios. Afinal, porém, essa mesma resistencia acabou; os vãos{84} esforços da população mussulmana para salvar Ceuta foram os clarões derradeiros da lampada que se extinguia. A audacia dos infantes e dos que os seguiam, a cobardia do chefe sarraceno, Salat-ben-Salat, que fugiu apenas soube ter sido entrada a cidade, e o habito da victoria, que, desde a batalha das Navas de Tolosa, os proprios mahometanos, consideravam como devendo tarde ou cedo pertencer definitivamente aos inimigos da sua crença, facilitaram a conquista de uma das povoações de Africa mais de receiar para os povos christãos do mediterraneo. El-rei, tendo posto em terra toda a sua gente, mandou fazer alto, e logo que soube estar a cidade de todo ganha, deliberou começar a combater o castello. Depois, impellido pelo enthusiasmo religioso, entrou n'uma mesquita, e ahi de joelhos agradeceu a Deus{85} esse feliz resultado de uma tentativa que a muitos parecêra loucura. Recebendo então a noticia de que o castello estava sem defensa e despejado, mandou arvorar na mais alta torre o estandarte real; e os raios do sol, que se escondia no occidente, já não encontraram a bandeira de islam, derribada n'esse dia para nunca mais se erguer sobre os muros da soberba Ceuta.
Assim, por meio de uma victoria alcançada em poucas horas, dilatou D. João I as fronteiras da monarchia pelos territorios africanos, principiando a realisar o grande pensamento dos reis chamados da primeira raça, e abrindo caminho aos vastos projectos, ás atrevidas empresas, aos descobrimentos e conquistas, que deram a esta nossa boa terra portugueza uma epocha de gloria e predominio, das maiores que o mundo tem visto.{86}
O cadaver do virtuoso D. Duarte havia descido ao sepulchro, onde, emfim, repousava das amarguras de tão curto como desditoso reinado. Para a menoredade de seu filho Affonso V, que então contava seis annos, ficára regente do reino a rainha D. Leonor. Esta, sentindo a necessidade de buscar na côrte seguro esteio contra a má vontade dos subditos, que lhe não perdoavam ser mulher e estrangeira, e{88} sobretudo ter contribuido com solicitações e conselhos para a funesta empresa de Tanger, procurou associar ao imperio o infante D. Pedro, duque de Coimbra, promettendo-lhe ao mesmo tempo o casamento do rei com sua filha D. Isabel, e julgando prendel-o assim pelo esplendor da invejada alliança. Em breve, porém, instigada pela cubiça do poder, que foi a paixão predominante dos ultimos annos da sua vida, ligou-se com o conde de Barcellos, filho natural de D. João I, e á frente dos seus parciaes, aproveitando todos os pretextos, tentou de dia em dia coarctar a auctoridade do infante.
Então o povo de Lisboa começou a alborotar-se, e depois de muitos tumultos e desordens proclamou regente e defensor do reino o duque de Coimbra. Suppondo que pouco duraria um poder, assente em tão movediço alicerce{89} como é o favor da plebe, a rainha acolheu-se a Alemquer, onde se fez forte; mas as côrtes, reunindo-se immediatamente, confirmaram a nova regencia, e resolveram que a educação d'el-rei e de seu irmão fosse confiada a D. Pedro.
O estado da nação n'aquella épocha era, na verdade, lastimoso. Parecia que uma estrella aziaga tinha constantemente presidido aos destinos do fallecido monarcha. A peste assolava o reino; a miseria publica tomava todos os aspectos; o infante D. Fernando, heroe e martyr, jazia captivo em Africa; as prophecias de mestre Guedelha, o astrologo judeu, realisavam-se fatalmente; e as gloriosas recordações de Aljubarrota e de Ceuta tornavam ainda mais duros os flagellos com que a fortuna, como que arrependida de ter sempre protegido D. João I, se{90} vingára em crueldades sobre o seu successor. Por cumulo de infortunios o prior do Crato, o conde de Barcellos e outros fidalgos, poderosos em influencia e valor, julgaram opportuno o ensejo para realisarem projectos de ambição, e proclamando a resistencia em nome da viuva de D. Duarte, constrangeram o regente a empunhar as armas para os conter. Apezar de tudo, porém, D. Pedro dirigiu com tal prudencia o leme do estado, que dentro de pouco tempo desvaneciam-se os fumos da discordia, e Portugal respirava á sombra das leis, dilatando as forças e engrossando as riquezas no seio de perfeita bonança.
Chegado el-rei aos quatorze annos, edade em que, segundo o fôro de Hespanha, qualquer principe devia haver inteiramente posse do seu reino e senhorio, quiz o duque de Coimbra entregar-lhe{91} o supremo poder, que D. Affonso, ainda não pervertido por suggestões calumniosas, recusou acceitar. A inveja, comtudo, não se enfreia nem com as ligações de familia, nem com as obrigações de gratidão, simples vinculos moraes que a historia tem muitas vezes mostrado serem fracos para conter a violencia das paixões; e as intrigas do conde de Barcellos, já então elevado á dignidade de duque de Bragança por aquelle mesmo contra quem conspirava, fizeram com que o moço rei exigisse pouco depois ao infante os fios da administração, para os sujeitar ás influencias de uma nobreza aventurosa, insoffrida de todo o jugo, mais habituada aos enredos da côrte que ás pesadas occupações do governo, e incapaz por isso de sustentar com lealdade, energia e destreza os interesses da monarchia.{92}
Tornados d'este modo reis de facto na resolução das questões mais importantes, os conselheiros de D. Affonso V sentiram recrudecer ainda a aversão contra o principe, cujo caracter generoso e firme os havia confundido ou humilhado. Ha almas impiedosas, abysmo de odios violentos e de paixões profundas, que, no momento em que se realisa a ventura por largo tempo sonhada, se deixam, todavia, subjugar por estranho sentimento de benevolencia; n'outras, porém, a perversidade é singular genero de fome que quanto mais damno causa mais appetece, é lodaçal que até entre formosas paizagens impregna a atmosphera de miasmas pestiferos. No regaço da fortuna continuaram, pois, esses homens a malquistar o infante com o monarcha, que, apesar de ter já casado com sua prima D. Isabel, entrou a{93} afastar o sogro e a dar-lhe claros signaes de que condescendia sem hesitar com as villezas d'aquelles, por quem mostrára sempre decisiva predilecção. Dotado de indole altiva e pouco soffredora, lasso do serpeiar flexuoso dos cortezãos, D. Pedro, em vez de permanecer junto do sobrinho a fim de lhe expungir da mente as perfidas calumnias, retirou-se logo para Coimbra, deixando d'esse modo livre o campo aos adversarios para a seu salvo satisfazerem rancores, que o tempo cada vez mais exacerbára.
Debalde correu então á côrte a defender o irmão o infante D. Henrique, que já n'essa quadra residia em Sagres; debalde o conde de Avranches, D. Alvaro Vaz de Almada, o mais illustre cavalleiro da Peninsula, alma grande, generosa, leal e intrepida, reptou os accusadores do duque de Coimbra,{94} nenhum dos quaes se atreveu a levantar o guante; debalde interveiu a propria rainha, procurando entre lagrimas e caricias reconciliar o marido com o pae. Tudo foi inutil. Dominado pela contumacia dos validos e cego pelo orgulho dos verdes annos, D. Affonso V prohibiu ao sogro que voltasse á côrte, e como este se recusasse a entregar as armas que possuia em Coimbra, allegando que necessitava dellas para se defender dos seus inimigos, declarou-o rebelde e partiu contra elle á frente de um poderoso exercito.
Este procedimento do monarcha operou no animo de D. Pedro uma revolução moral, d'essas que só as grandes crises podem produzir; foi sobresalto, embate, transformação repentina de todas as suas idéas e sentimentos. Entretanto, aconselhando-se com aquelles{95} em que principalmente confiava sobre o que havia de fazer, acceitou o aviso do conde de Avranches; e, partindo de Coimbra com diminuta hoste, determinou buscar o sobrinho e genro, pedir-lhe justiça contra os que o infamavam, e se a moderação e firmeza não bastassem, rota a ultima barreira, repellir a força com a força, arvorando o pendão negro da revolta.
Chegando proximo a Alverca, assentou D. Pedro arrayal nos plainos de Alfarrobeira em sitio assás defensavel. Ahi o encontrou el-rei, e logo o cercou completamente, mandando ao mesmo tempo apregoar por seus arautos, que seriam tidos por traidores todos os que não desamparassem o infante. Essa intimação, todavia, não produziu o ambicionado exito, e pelo contrario alguns cavalleiros e soldados, movidos por nobre sentimento de generosidade,{96} vieram unir-se áquelle que o soberano tratava como rebelde. Emquanto isto succedia, e talvez fosse possivel evitar o funesto conflicto dos dous bandos, um acontecimento fortuito apressou o desfecho do terrivel drama.
Os bésteiros e espingardeiros do exercito real, abrigados uns pelo denso arvoredo que sombreava o ribeiro de Alfarrobeira, collocados outros no cimo de um outeiro que dominava o acampamento, começaram a varejar com tiros o arrayal do infante. Vendo este os seus leaes companheiros immolados sem combate nem gloria, mandou disparar algumas bombardadas, uma das quaes acertou perto da tenda de el-rei. Então a briga empenhou-se decisivamente. De uma parte estava um troço de homens intrepidos, aos quaes a desesperança augmentava o esforço; da outra{97} um exercito numeroso e aguerrido, contra cujo poder seria impossivel a resistencia. Como se não bastasse, porém, a desegualdade entre os dous contendores, o infante, ferido por uma setta que lhe varou o corpo, tombou por terra logo ao principio da peleja, e com a sua morte feneceu em redor d'elle todo o esforço dos animos mais robustos. Sómente o conde de Avranches, que havia jurado não sobreviver a D. Pedro, luctou denodadamente contra os de el-rei, já senhores da victoria. Cegos de furor, cavalleiros e peões arrojavam-se e cahiam diante d'aquelle vulto, como os vagalhões de mar tempestuoso se arremessam e desfazem em frente dos rochedos da costa. No meio de larga clareira, só, impavido e magestoso, D. Alvaro derribava a seus pés quantos d'elle se aproximavam, e parecia, como o Campaneu de Stacio,{98} ameaçar os deuses e os homens. Afinal, perdidas as forças, baqueou por entre os inimigos, que a poder de golpes depressa o acabaram.
O sangue do infante, vertido n'esta carnificina, a que mal podemos dar o nome de batalha, não ficou inulto. Da filha do duque de Coimbra nasceu o principe que tomou sobre si a obra terrivel da expiação. O cadafalso de D. Fernando de Bragança vingou o assassinio do infante D. Pedro, e mais uma vez se realisou a terrivel sentença biblica, que ameaça punir nos filhos as iniquidades dos paes.{99}
Nos ultimos annos de D. Affonso V a aristocracia tinha chegado ao apogeo do predominio, e as instituições feudaes, que se haviam mesclado com a nossa primitiva organisação social, achavam-se enraizadas e vigorosas, parecendo poder resistir perpetuamente aos esforços do povo e do monarcha. Já D. João I, o rei de boa memoria, quizera destruir a quasi independencia dos orgulhosos barões, que governavam{100} nos seus solares como senhores absolutos, não hesitando, sob quaesquer pretextos, em arvorar o estandarte da revolta, e até em combater contra a patria; mas os principes, que se lhe tinham seguido, haviam governado com tal frouxidão e timidez, que a nobreza retomára o antigo valimento, e preparára-se para defender a todo o custo os seus fóros e prerogativas. Foi então que subiu ao throno D. João II, alma energica, robusta e negra, que conseguiu debellar o poder dos fidalgos, apoiando-se no braço do povo, e enfraquecer o braço do povo, pesando depois sobre elle com toda a força e intensidade do poder da corôa.
A uma falta absoluta de escrupulos juntava D. João II grande firmeza de genio, extraordinaria sagacidade e o retrahimento bastante para occultar,{101} debaixo de um aspecto frio e de sorrir forçado, o ardor de violentas paixões. Os chronistas, que escreveram sob o patrocinio dos immediatos successores d'este soberano, chamaram-lhe o principe perfeito. Poucas vezes, porém, escriptores cortezãos e lisongeiros têm respeitado menos a verdade dos factos. Retrato vivo do seu contemporaneo Luiz XI de França, manifestou sempre, quer nas leis geraes, quer nos actos proprios e espontaneos, a influencia de um pensamento capital, a que sujeitou todos os affectos e considerações; e esse foi o de alluir de vez a preeminencia e immunidade dos grandes vassallos da corôa. No seu reinado tem de ir tambem buscar o historiador a fixação das fórmas politicas, que ressumbram em toda a legislação subsequente, e a que poderemos chamar a transfiguração do absolutismo{102} em despotismo, como a estructura social anterior se póde igualmente considerar um meio termo entre a monarchia e as instituições representativas.
Tal era o inimigo com que a nobreza tinha de combater para conservar a sua preponderancia nos negocios publicos, inimigo formidavel não só pelo seu caracter, mas ainda pelo prestigio que o rodeava, e pelas circumstancias que favoreciam os planos da sua politica. O throno, affagando as sympathias democraticas do terceiro estado, que já começava a conhecer a sua força, lançava mão do instrumento mais seguro para assentar o poder em bases solidas. O resultado, pois, da lucta não podia ser duvidoso. Nos paizes governados pela vontade de um só homem, quando á pressão enorme d'essa vontade se associa a opinião{103} popular, o pensamento que vive no animo do principe e das multidões, quer justo quer iniquo, hade triumphar infallivelmente, e a lucta dos que lhe resistem pode ser grande e nobre, mas é inutil esforço.
Logo que falleceu D. Affonso V, o primeiro acto de D. João II foi a convocação das côrtes em Evora, onde lhe prestaram homenagem os senhores, villas e cidades do reino. Ahi começaram os golpes profundos na propriedade, na jurisdicção e em toda a especie de regalias das classes privilegiadas; reformas cujo fim capital era abater a nobreza e em parte o clero, invalidando-lhes duas poderosas armas, a que dá a riqueza e a que provém da opinião. Exigiu-se, pois, dos alcaides e donatarios nova fórma de menagem, chamaram-se a exame as cartas de mercês e doações, cerceou-se{104} muito a jurisdicção criminal, que os fidalgos exerciam em suas terras quasi sem peias nem termo, e ampliou-se o direito de appellação para as justiças reaes.
Os nobres não souberam encobrir o descontentamento. Educados na guerra e na côrte de D. Affonso V, habituados a illimitado poder dentro dos seus coutos e honras, unidos, em fim, pela communidade de interesses e de perigos, de boa e de má fortuna, offenderam-se de que o rei ousasse tomar-lhes contas das violencias de um valimento, ao qual a impunidade de largos annos quasi dera fundamento legitimo. D. Fernando, duque de Bragança e de Guimarães, marquez de Villa Viçosa, conde de Ourem, de Barcellos, de Arrayolos, de Neiva e de Penafiel, senhor de trinta villas, e por nobreza e possessões o principe mais illustre{105} das Hespanhas, foi escolhido como chefe dos descontentes, e isto bastou para o seu tragico fim. As expressões arrogantes dos fidalgos contra a quebra dos seus fóros, os alvitres suggeridos a alguns procuradores do povo, as vãs ameaças, os secretos conluios, e até os actos inoffensivos e indifferentes, tudo foi traduzido, decifrado, envenenado e exposto com as côres necessarias para que D. João II podesse, de um só lance, satisfazer os aggravos de rei e as vinganças de homem. Prevenido a tempo dos riscos que o cercavam, o duque de Bragança não soube ou não quiz evital-os; e em vez de se refugiar em Castella, asylo fiel contra a cólera do monarcha, dirigiu-se á côrte, que então estanciava em Evora, e ahi foi recebido com taes demonstrações de contentamento e affecto, que chegou a julgar-se{106} tão seguro ao lado do seu implacavel inimigo, como no palacio de Villa Viçosa no gremio dos seus parciaes.
Não tardou, todavia, que a confiança se lhe convertesse em arrependimento, e que ao bater a hora da desgraça, conhecesse por dolorosa experiencia que um coração como o do monarcha, abysmo insondavel de perversidade e hypocrisia, podia disfarçar odios, mas não sabia esquecel-os. Indo n'um dia, ao cahir da tarde, despedir-se de D. João II para voltar ás suas terras, conduziu-o este a uma casa apartada, onde, certo de que não vibraria já em vão o golpe, lhe disse que convinha ficasse preso até se averiguarem as suspeitas do crime de rebellião que lhe imputavam. Vendo o perigo que corria o duque, muitos fidalgos offereceram dar a el-rei suas alcaidarias em refens{107} pelo nobre vassallo; e porque, ao tempo em que essas propostas foram feitas, ainda D. João II receiava as consequencias do terrivel lance que tentára, quasi conveiu em acceital-as. Apenas soube, porém, que as comarcas, villas e fortalezas que mandára cobrar tinham sido entregues, e que de Castella não havia a temer clamores importunos, mandou logo que o caso se visse e determinasse por justiça. Assim se exprimem os dous panegyristas do principe perfeito, Ruy de Pina e Garcia de Resende, pobres homens cujo espirito cortezão nem sempre soube esconder a tenebrosa astucia e a suprema perversão moral do heroe dos seus fastos.
A justiça fez-se vingança, e a execução significou sómente um assassinio judicial, fria e solemnemente resolvido. Accusado por testemunhas vis{108} e por inimigos inexoraveis, julgado tumultuariamente por juizes não seus pares, aos quaes a presença do rei coagia além d'isso o voto, o amigo e conselheiro de D. Affonso V foi condemnado sem o ouvirem, e entregou a vida ao cutello do algoz, no meio dos brados e doestos de uma multidão sem piedade nem pudor, que de toda a parte corrêra frenetica para assistir ao cruento espectaculo. N'esse mesmo dia (20 de junho de 1483), e depois de ter ficado exposto o cadaver por espaço de uma hora, os conegos da sé de Evora sepultaram no mosteiro de S. Domingos os restos do homem, que fôra por muito tempo talvez o arbitro do reino.
Á conjuração, por ventura chimerica, succedeu outra verdadeira. O desgosto dos grandes, durante algum tempo sopeado pelo temor ou pela esperança,{109} convertêra-se em odio profundo. Decididos a vingarem a morte do duque de Bragança, e a restabelecerem os fóros e immunidades da nobreza, accordaram que o meio mais adequado aos seus intentos era assassinarem o monarcha. O duque de Vizeu, o bispo de Evora, seu irmão D. Fernando de Menezes, Fernão da Silveira, D. Gutterres Coutinho, D. Alvaro e D. Pedro de Athaide, o conde de Penamacor e Pedro de Albuquerque eram os cabeças da insurreição; o bispo de Evora, porém, é que, como a aranha no centro da têa, urdia e combinava os planos. D'ahi lhes proveiu a ruina, porque o incauto prelado não soube prever a traição, e foi justamente essa falta, que destruiu todos os seus calculos. Fiado na apparente amisade de Diogo Tinoco, cuja irmã seduzira, revellou tudo a esse{110} homem, não se lembrando de que lhe dava assim ensejo de vingar offensas, que não podia ter esquecido; e o aviltado cavalleiro preveniu logo Antão de Faria, camareiro do rei e seu privado, e, encontrando-se depois com o proprio D. João II no convento de S. Francisco em Setubal, relatou-lhe circumstanciadamente os projectos dos conspiradores.
Agradecendo a Tinoco com dadivas e promessas o serviço que prestára, o rei recommendou-lhe inviolavel segredo, e continuou, como se tudo ignorasse, abalançando-se indefenso no meio dos conjurados, oppondo dissimulação a dissimulação, e enganando com fingido affecto aquelles de quem mais se temia. Era a calmaria que antecede a procella. No seio das trevas o filho de D. Affonso V ia aperfeiçoando os planos de vingança, e{111} por isso aguardava sem impaciencia o dia propicio em que podesse colher no fôjo os seus mortaes inimigos.
Este finalmente chegou. Depois de terem por vezes tentado em vão assassinar o rei, os fidalgos assentaram esperal-o em Setubal, ao desembarcar vindo de Alcacer, e realisarem então o seu intento. D. João II, porém, que lhe presentia os movimentos, fez o caminho da Landeira por terra, bem acompanhado pelos ginetes de Fernão Martins, e pelos besteiros e espingardeiros da guarda; e chegando a Setubal no dia 22 de agosto de 1484, mandou logo na manhã seguinte chamar o duque de Vizeu, que pousava em Palmella. Resolvêra, emfim, tirar a mascara, e a explosão devia ser tanto mais terrivel, quanto fôra duradoura e profunda a necessidade de conservar latente, debaixo de superficie{112} de gelo, o ardor de odio intenso e concentrado.
Entrando o duque no palacio ao anoitecer, chamou-o el-rei ao aposento que lhe servia de guarda-roupa, e ahi, accusando-o de traição, o matou ás punhaladas, na presença de alguns cavalleiros, que para assistirem a esse acto tinham sido convocados. Na manhã seguinte via-se sobre um estrado, no centro da egreja matriz da villa, o cadaver do duque de Vizeu, com o rosto descoberto e dez feridas de punhal. D'ahi a poucos dias o bispo de Evora, preso na camara da rainha, morria envenenado no castello de Palmella; D. Fernando de Menezes, D. Pedro de Athaide e Pedro de Albuquerque eram degollados na praça publica; e D. Gutterres Coutinho expirava ás mãos do carrasco no fundo de um calabouço. Emfim, passados cinco annos,{113} Fernão da Silveira, a quem a nobre dedicação de um amigo salvára do patibulo, cahia assassinado em França por mandado do rei de Portugal.
A negrura de semelhante proceder é evidente; e se as cousas da terra podessem despertar o profundo somno dos mortos, os cadaveres d'esses homens deveriam muitas vezes apparecer á consciencia de D. João II, tornando ainda mais penosas as desgraças, que lhe enlutaram o coração durante os restantes annos do seu curto reinado.{114}
Julgam profundos historiadores que os descobrimentos além do cabo Bojador, posto que encetassem para o reino uma grande epocha de gloria e prosperidade, foram talvez a causa capital da rapida e angustiosa decadencia a que chegámos nos fins do seculo XVI. Entretanto não seremos nós que condemnaremos esse espirito aventuroso e intrepido, que levou os nossos marinheiros e soldados a practicarem{116} tantos feitos assombrosos de ousadia, de abnegação, de patriotismo. Das victorias que alcançaram já nem existem tropheus, das nações que se prostraram ao seu esforço indomavel são outros hoje os senhores, do respeito e temor em que os tinha o mundo apenas resta a lembrança, e todavia a maravilhosa narração das façanhas d'aquellas eras, das homericas batalhas de poucos homens contra exercitos, das expedições e conquistas que ergueram uma nação pequena e pobre ao fastigio da soberania e da opulencia, ainda nos alvoroça o coração de enthusiasmo e amor patrio, não obstante as preoccupações prosaicas e calculadoras do seculo em que vivemos.
O descobrimento do caminho maritimo para a India é, sobretudo, um d'aquelles factos extraordinarios, de{117} que o espirito mais penetrante mal póde medir a extensão. Não fallando já dos paizes e regiões incognitas que acrescentámos á communhão europea, do aperfeiçoamento da navegação e do commercio, do novo e immenso mercado que abrimos a todas as industrias, do ascendente da classe média que eficazmente fomentámos, basta dizer-se que ás victorias dos portuguezes na India deve talvez a Europa não ter succumbido ao jugo mahometano. Ao passo que nós e os castelhanos nos preparávamos para dilatar os ambitos do mundo conhecido, hastear por toda a parte a cruz, e estabelecer em redor d'ella uma transformação social; ao passo que as outras nações christãs, agitadas por muitas e diversas causas, se entretinham em luctas feudaes de castello com castello, e de paiz com paiz; os mussulmanos{118} iam crescendo em poder, as suas dynastias radicavam-se desde o Indostão até o Mediterraneo, os seus navios sulcavam todos os mares, o monopolio do commercio asiatico constituia os povos em vassallagem dos seus mercados, e os seus exercitos, animados pelo amor da guerra e pelo fanatismo da crença, ameaçavam de nova invasão os estados da christandade. Veneza, a rainha do Adriatico, ousava a custo contrastar em parte a influencia de Constantinopla, mas esse obstaculo depressa desappareceria se as conquistas dos portuguezes não viessem produzir no mundo completa metamorphose mercantil e politica. Malaca e Ormuz, os dous principaes emporios das producções indianas, abriram seus portos sómente aos novos dominadores; as armadas turcas e as do Achem e Jaoa,{119} os exercitos de Cambaya e Cananor, as forças do Samorim, dos reis de Dekan, do Hidalcão e do soldão do Egypto não conseguiram arrancar das nossas mãos o imperio da Asia; e as nações mussulmanas, perdido o principal elemento da sua força, foram-se desmembrando, fundindo, esvaecendo, e eil-as as que restam, fracas e decrepitas, alongando humildemente os olhos para o occidente, na esperança de que os filhos do christianismo estendam um braço que ampare os representantes e sectarios do propheta.
Foi essa a epocha da nossa gloria mais esplendida. Quem examinasse então um mappa cosmographico, desde a linha que distingue a Europa e a Africa até ao cabo da Boa Esperança, quasi não encontraria ilha, promontorio, costa, golpho ou enseada, onde a fama do nome portuguez não guardasse{120} por si só a conquista; e montando o cabo veria tremular o pendão das quinas nos pontos mais importantes do Oriente, e ainda nos remotos archipelagos que depois se deviam chamar a Oceania. Antes d'essa epocha, porém, houve uma lucta, que durou perto de um seculo, e que votou ás paginas da historia universal e ao applauso da posteridade a memoria d'esses homens valorosos, que alteraram os destinos do mundo em proveito do christianismo, da civilisação e da politica. Os descobrimentos de Gonçalves Zarco e Tristão Vaz, de Gil Annes, de Nuno Tristão, de Gonçalo de Cintra, de Lançarote, de Gonçalo Velho, de Antonio de Nolle, de João de Santarem, de Pedro d'Escobar, de Diogo da Azambuja, de Diogo Cão, de Bartholomeu Dias e João Infante foram como que os preliminares{121} dos grandes commettimentos. D. Manuel, subindo ao throno no anno de 1495, resolveu continuar a empreza de seus antecessores, porfia magnanima que tantos sacrificios tinha já custado. Ao infante D. Henrique haviam-se devido os primeiros trabalhos e tentativas que prepararam o descobrimento da India; D. João II fundára na Africa o imperio portuguez, e deixára ao seu successor abundantes materiaes para o estabelecer na Asia; ao monarcha venturoso estava destinada a missão de traduzir n'um facto estupendo este vasto projecto.
Vigorosa foi, comtudo, a resistencia que D. Manuel encontrou nos seus conselheiros. Reprovavam estes o descobrimento como origem infallivel de ruina, lembrando os riscos de mar e terra, o acanhamento do reino e de{122} seus recursos, a vastidão e difficuldade da conquista, e propondo que a vida energica da metropole se applicasse exclusivamente a explorar as possessões adquiridas, o que aliás era já difficil encargo para um povo tão pouco numeroso. Mas nem duvidas nem suggestões abalaram a vontade do monarcha, que, na febre do enthusiasmo que o incitava á tentativa, como que antevia a aurora do triumpho. Encarregou, pois, de executar a empreza a Vasco da Gama, filho do alcaide mór da villa de Sines, Estevão da Gama, e, entregando-lhe em acto publico a bandeira, determinou a partida.
Prestes a armada, que se compunha de duas naus, S. Gabriel e S. Raphael, da caravella Berrio, e de um navio de mantimentos, embarcaram-se em Restello todos os que deviam ir na{123} expedição, e que seriam cento e sessenta homens entre marinheiros e soldados. Magestoso espectaculo offereceram então aquellas praias. Era o dia 8 de julho de 1497. O sol esplendido banhava de luz o Tejo, as suas margens e a pobre ermida da Senhora da Invocação de Belem, ermida que o infante D. Henrique mandára construir para animar a devoção dos maritimos, e que depois tinha de converter-se no grandioso templo dos Jeronymos. D'ahi sahia uma procissão, guiada pelos freires da ordem de Christo, e seguida de grande concurso de povo, que consternado tinha vindo despedir-se dos audazes navegadores. O fito que attrahia a multidão provinha do enlevo que excitam sempre as tentativas arrojadas, e esse sentimento achava-se ahi concentrado como no seu grande fóco, ancioso pelas contingencias{124} da viagem, afflicto pela probabilidade das catastrophes, engrandecido pela communicação rapida, electrica, fascinadora, irresistivel de tantos espectadores. Tristes estavam todos, excepto os que partiam, porque a esses animava o fervor e alvoroço da empreza, não obstante irem cruzar mares nunca navegados, dobrar promontorios, evitar restingas, resistir a tempestades e correntes, domar barbaros de Africa, combater os mouros, procurar, emfim, o desconhecido com todos os seus encantos e esperanças, mas com todos os seus assombros e perigos.
Desfraldadas as velas partiram-se de foz em fóra, aportaram a Cabo Verde, entraram na bahia de Sancta Helena, e depois de montarem o cabo da Boa Esperança com menos tormentas e riscos do que os marinheiros temiam,{125} e de passarem pela aguada de S. Braz, pela costa do Natal, pelo rio dos Bons Signaes, chegaram, no fim de quasi oito mezes de viagem, a Moçambique, d'onde logo desaferraram algumas barcas, ahi chamadas zambucos, que vieram abicar ás naus. Guarneciam-n'as muitos indigenas, e entre elles alguns brancos que pelos trajos e linguagem se conheceu serem mouros. Por um d'elles, natural de Fez, mandou Vasco da Gama ao xeque d'aquella terra, dizendo que se dirigia á India, e que para esse fim lhe pedia um piloto. Prometteu o xeque satisfazer o pedido e veiu visitar os navegantes, porque, a despeito das informações obtidas, cuidava ainda que seriam turcos; conhecendo, porém, que eram christãos, determinou destruil-os, e quando, desfeitos os varios ardis que para a traição empregára, se viu constrangido a{126} entregar um piloto, instruiu-o para que em vez de guiar os navios procurasse perdel-os. A fortuna, todavia, que no meio dos seus caprichos se inclina a proteger os que muito ousam, salvou os portuguezes, que no dia 7 de abril de 1498 chegaram a Mombaça, cidade importante e para esses tempos civilisada, onde tambem escaparam a graves perigos. Em Melinde, em fim, o rei, não obstante o antagonismo de crenças e de raça, entendeu que devia soccorrer os estrangeiros, e com esse intuito acolheu-os sem perfidia e deu-lhes um habil piloto que os levasse á India.
Vinte e tres dias depois de terem partido de Melinde suppozeram os marinheiros ver terra. Já por vezes, em dias anteriores, se lhes tinha affigurado o mesmo, e haviam estremecido de contentamento e esperança; mas o{127} tempo mostrára sempre que taes imagens eram apenas hallucinação, e a alegria se lhes transformára em profunda tristeza, porque cousa alguma abate mais os animos do que essas alternativas de illusões e desenganos, que são como os sarcasmos do destino. Desalentados, pois, e fitos sombriamente os olhos no horisonte, os mesmos homens, que com tão escassos recursos, e estando ainda na infancia a arte nautica, se haviam affoutado aos abysmos com desassombrada resolução, trepidavam agora, e quasi que sentiam as angustias do desespero. D'esta vez, porém, apresentava-se a realidade incontestavel, e não tardou muito que distinctamente se conhecesse a proximidade de um continente vastissimo. Appareciam afinal essas praias da India, que eram já para os atrevidos navegadores o sonho, o enlevo,{128} a paixão que a todos avassallava, paixão que fôra crescendo com os obstaculos até constituir a idéa fixa, o pensamento constante d'aquellas almas energicas.
Chegada a noite tornou-se necessario virar de bordo, porque fôra perigoso no meio das trevas entestar com a terra, mas no dia seguinte, ao romper da manhã, corria a armada ao longo da costa com vento bonançoso. Uma cadeia de montanhas, tendo por corôa as nuvens, sobresahia em distancia; por entre florestas de palmeiras divisavam-se soberbos edificios; o Oriente, emfim, o recesso dos mysterios, a região dos prodigios, cujas fabulas nebulosas eram ainda inferiores ás maravilhas que já se presentiam, patenteava-se com toda a magestade da sua vegetação opulenta. Avisinhavam-se n'aquella costa tres povoações: Calecut,{129} Capocate e Pandarane. Os marinheiros, tomando a segunda pela primeira, por engano de Canacá, o piloto indiano, dirigiram as naus a Capocate, pobre aldeia de pescadores; mas, sabendo ahi qual das povoações era Calecut, foram lançar ferro na enseada da cidade.
Considerava-se n'esse tempo Calecut uma das mais importantes escalas commerciaes da India, e era sem duvida a mais poderosa de todas as terras do Malabar. Viam-se girar no seu commercio os diamantes e pedras preciosas das ricas minas de Narsinga e do Pegú, as perolas de Kalckar, o oiro de Sumatra, o ambar das Maldivas, o marfim, a porcelana, as sedas e damascos da China, o sandalo de Timor, o algodão, o anil, o assucar, as especiarias mais apreciadas, tudo, emfim, quanto póde contribuir para o uso e{130} delicias da vida. Capital do reino do mesmo nome, constituia Calecut a séde do sacerdocio e do imperio; tinha, além de innumeraveis casas feitas de madeira e cobertas de palma, muitos palacios, templos, arcos e torres soberbas; e estendia-se por largo espaço, contendo, segundo o computo dos naturaes, cerca de duzentos mil habitantes. Fundada com pouco poder, havia ganho dentro de breve tempo aquelle grande esplendor, e o seu rei, a que chamavam o Samorim, era o mais respeitado e temido entre os monarchas do Indostão.
Annunciada a vinda dos portuguezes, recebeu-os o principe com affago, deu audiencia a Vasco da Gama, e declarou acceitar a alliança do rei de Portugal, promettendo que na frota lhe enviaria embaixadores. Os mouros, porém, costumados de longo tempo{131} aos lucros commerciaes d'aquella terra riquissima, e receiando que a influencia dos portuguezes não lhes consentisse de futuro nem protecção, nem accordo, nem tregoas, nem misericordia, começaram a urdir traições, tentando persuadir o Samorim de que os navegantes eram piratas miseraveis que levariam o terror do seu nome aos confins do imperio, como já em Moçambique e Mombaça tinham deixado vestigios de crueldade e perfidia; e de que ainda quando fossem subditos de monarcha poderoso, eram decerto homens orgulhosos e ávidos, que não pretendiam, sob as apparencias de paz e amisade, senão a conquista e posse exclusiva do solo descoberto. Convenceu-se facilmente o principe indiano, e desde logo se lhe transformou a boa vontade, dissimulando apenas o seu odio para encontrar ensejo favoravel{132} de colher ás mãos os estrangeiros.
Debellados, todavia, os tramas pela intrepidez e astucia de Vasco da Gama, levantaram ancora as naus, e depois de quasi tres mezes de demora n'esse paiz inimigo, seguiram viagem para Portugal, tendo que vencer de novo graves perigos, e perdendo tantos a vida com as febres, que dos cento e sessenta homens que partiram poucos mais de sessenta regressaram á patria.
Em Portugal a noticia do descobrimento da India encheu de enthusiasmo todo o reino. Estavam depostos os temores, patente o caminho, encetada, em summa, a nova cruzada de religião, de guerra, de industria e de gloria, que ia devassar as barreiras da antiga civilisação oriental. Justificára-se o firme proposito que vencêra{133} as apprehensões anteriores, e D. Manuel, depois de premiar Vasco da Gama e os famosos companheiros, acrescentou aos titulos do seu dictado os de senhor da conquista, navegação e commercio da Ethiopia, Arabia, Persia e India.
O soberbo mosteiro dos Jeronymos foi o padrão erguido á grandeza do emprehendimento, á fortuna do resultado, ao favor da providencia; a torre de S. Vicente de Belem, edificada quasi no mesmo periodo, tornou-se a testemunha gloriosa do immenso poder que depois alcançámos, e que ao passo que avassallava o imperio da Asia, vencia na Berberia as bellicosas turbas agarenas, cravava marcos de posse em quasi tres mil legoas da costa oriental da Africa, e dava á Europa a primazia entre as outras partes do mundo, abrindo caminho á grande revolução{134} intellectual, moral, politica, mercantil e guerreira, que tornou o seculo XVI talvez a epocha mais maravilhosa da historia da civilisação.{135}
No anno seguinte ao da volta de Vasco da Gama encarregou D. Manuel a Pedro Alvares Cabral, senhor de Belmonte e alcaide mór de Azurara, o mando de uma armada de treze velas, que devia na sua derrota correr a costa de Sofala, visitar o rei de Melinde, chegar a Calecut, e proseguir na empreza, a um tempo mercantil e guerreira, iniciada com tanta fortuna pelo primeiro descobridor. Era{136} a frota magnifica e poderosa, e tinha como capitães entre outros, além de Pedro Alvares Cabral, Nicolau Coelho, que fôra na anterior expedição, e Bartholomeu Dias, o primeiro que ousára dobrar o cabo da Boa Esperança, e que no seio das suas tormentas ia encontrar d'esta vez o perpetuo somno da morte.
Preparado tudo para a partida, levantaram-se ancoras, desfraldaram-se velas, e cortando as aguas sahiu a armada de mar em fóra no dia 9 de março, e seguiu viagem próspera até ás alturas de Cabo Verde, onde um temporal desfeito de tal modo agitou os mares, que os navios, envolvidos entre serras de ondas, ora eram alçados no cume das vagas como se ellas os quizessem expellir de si, ora quasi se submergiam na concavidade do abysmo. Acalmada a procella, juntou-se{137} toda a frota, á excepção de um navio que depois arribou a Lisboa, e continuaram os doze restantes pelo oceano, affastando-se das costas d'Africa, ou para evitarem as calmarias de Guiné, como já o practicára Vasco da Gama, ou porque para o proseguimento de tal rumo influisse de algum modo o espirito aventuroso e obstinado d'esses homens energicos, que tudo arrostavam e a tudo se atreviam com o ardor que só deriva do verdadeiro enthusiasmo.
As plantas maritimas encontradas no dia 21 de abril, as aves redemoinhando nos ares ou pousando sobre as aguas, um halito perfumado impregnando a atmosphera, annunciaram aos navegantes a proximidade de regiões desconhecidas; e por isso, na manhã seguinte, apinhavam-se todos nos chapiteus da proa, fixa a vista no extremo{138} dos mares, onde já se divisava como que um ponto escuro que gradualmente ia crescendo. Afinal a voz do gageiro da nau capitania bradou no cesto da gavia—terra!—, e durante minutos só esse grito de contentamento indisivel resoou em todos os navios. A ligeira nevoa avultára no horisonte, a frota surdia sempre ávante, e por fim já distinctamente se observava um monte de fórma arredondada, largas serranias para o sul, e ao longe uma extensa planicie, vestida de sombrios arvoredos. Aproaram então as naus á terra, que pela ignorancia d'aquellas eras julgaram os pilotos que só podia ser uma grande ilha, como alguma dos Açores ou das Antilhas, ancoraram perto da costa, e na manhã seguinte sulcavam as aguas em direcção á praia.
Grupos de homens, de mulheres e{139} de creanças appareciam por entre as arvores, e ora se adiantavam a medo ora se retrahiam, testemunhando nos gestos o espanto que lhes causavam as embarcações, as velas, as vergas, os mastros, cousas como que animadas e sobrenaturaes, que pareciam obedecer ao impulso de uma vontade unica. Não tinha essa gente os caracteres phisicos das raças africanas ou europeas, e apenas se semelhava com as da India na côr baça e no cabello comprido e corredio. Os corpos eram altos e robustos, as feições regulares, a physionomia franca e benevola; e apesar das armas que traziam mostravam-se de indole pacifica, ditosos com seus costumes singelos, e satisfeitos com o que o solo espontaneamente lhes offerecia.
Não podendo desembarcar ahi, porque o mar quebrava então muito na{140} costa, seguiram os portuguezes na volta do norte, buscando á feição do vento algum porto seguro onde surgissem; e de feito, tendo navegado cerca de dez leguas, encontraram no dia 24 de abril uma enseada, onde logo entraram os navios menores, ficando ao principio as naus fóra dos recifes, por não se conhecer se havia dentro sufficiente fundo. Entretanto alguns marinheiros aproximaram-se em bateis á praia, e conseguiram tomar de sobresalto dous indigenas, que andavam n'uma jangada ou almadia, formada a seu modo de tres traves unidas, e que nem tentaram resistir, não obstante trazer um d'elles arco e frechas, e poderem ser facilmente soccorridos. Levados á presença de Pedro Alvares Cabral, procurou este de alguma fórma interrogal-os, deu-lhes o que indicaram desejar, enviou-os no dia seguinte{141} para terra afim de evitar suspeitas ou receios, e estabeleceu assim as primeiras relações com os habitantes d'essa parte do novo mundo que o acaso nos sujeitava, como o acaso entregára a Colombo as costas occidentaes da America.
Não tentaremos descrever as varias scenas de curiosidade e de innocencia por parte dos indigenas, de contentamento, de enthusiasmo e de nobreza por parte dos descobridores, que tiveram como theatro essas praias emquanto ahi se demorou a armada. O quadro que apresentassemos seria apenas um esboço desenhado a largos traços, que mal conseguiria trasladar a narração synchrona de Pero Vaz de Caminha, onde miudamente se representam os factos e circumstancias, e como que resurgem os proprios protogonistas. Cingir-nos-hemos, pois, a dizer{142} que, tendo o capitão mandado reconhecer o paiz, e sabendo que era fertil, retalhado de rios caudaes, coberto de arvores fructiferas, e povoado por gentio docil, com o qual se mostrava facil a entrada, resolveu tomar solemnemente posse d'essa região, oceano de soberbas e virginaes florestas em que parecia reproduzir-se o eden dos livros sanctos.
Designado para aquelle acto o primeiro dia de maio, assistiram á missa em terra os navegantes, ataviados das melhores telas e de lusidas armas; e debaixo d'aquelle céo puro, n'aquella atmosphera balsamica, perante aquelles horisontes explendidos, um profundo sentimento de confiança em Deus devia animar esses homens ajoelhados em frente do mesmo altar, esquecidos dos perigos e fadigas, e enlaçados pelas recordações, pelas crenças, pelos trabalhos{143} e pelo pensamento de gloria, que mais ou menos se erguia em todas aquellas almas de bronze. Em seguida, no meio do resoar das charamellas e tambores, das acclamações da marinhagem e dos gritos festivos dos indigenas, levantou-se perto da praia uma grande cruz, feita com madeira d'aquellas selvas, padrão glorioso da nobre empreza, que nenhum acto de crueldade deshonrára.
Não quiz Pedro Alvares Cabral demorar noticia tão extraordinaria, e expediu Gaspar de Lemos para a transmittir a el-rei, partindo elle proprio d'aquellas praias no dia 3 de maio, e deixando em terra dous degredados, vivo testemunho de posse incontestada. A fortuna, porém, que até então lhe fôra propicia, depressa o desamparou. Assaltada a frota por uma tempestade horrorosa proximo ao cabo da{144} Boa Esperança, abysmaram-se no oceano, com a gente que levavam, quatro dos onze navios que se dirigiam á India.
Passados mezes Gaspar de Lemos transpõe de novo a foz do Tejo, e vem annunciar a Lisboa, ao reino, ao mundo o novo descobrimento. A febre do enthusiasmo exaltou então todos os animos, dando-lhes a energia e confiança que até essa conjunctura faltára a muitos. O pendão das quinas, que tremulava na Europa e na Africa, nas ilhas do Atlantico e nos mares da India, ia alongar-se pelo occidente, e Portugal podia dizer com legitimo orgulho que tomára o primeiro logar entre as nações.
Hoje o Brazil é vastissimo imperio, vivido, esperançoso e livre. Emancipado da metropole não só pelos successos politicos, que se realisaram no{145} primeiro quartel do seculo em que vivemos, mas ainda pela logica natural do progresso das sociedades, está destinado, pela sua posição geographica, pela excellencia do clima, pelas riquezas que possue e pelo patriotismo dos seus habitantes, a desempenhar um grande papel na historia do novo mundo. Possa o povo infante, filho e em tudo descendente de uma nação pequena mas nobilissima, viver e prosperar por muitos seculos, dando exemplos de sabedoria e de humanidade ás velhas monarchias da Europa, que se julgam mais civilisadas, e que só têm mais poder ou fortuna.{146}
Até o principio do seculo XVI os hebreus portuguezes eram considerados como nação á parte, com magistrados, leis, usos e até bairros separados; mas á força de intelligencia, de estudo, de actividade, de astucia, de perseverança e de união, e a despeito das leis mais ou menos oppressivas a que sempre estiveram sujeitos, haviam conquistado no reino irresistivel preponderancia. Essa preponderancia,{148} de que, como é natural, frequentemente abusavam, desafiára o rancor das multidões, que não podiam vêr sem inveja homens desamparados de Deus possuirem grandes riquezas, e exercerem por toda a parte uma especie de senhorio. Depois de executada a fatal lei, que expulsou de Portugal os judeus não convertidos, o furor popular conservára-se por algum tempo latente. Era o vulcão que socegava depois de violenta erupção, mas cuja chamma inextinguivel se escondia debaixo das cinzas, para se alçar de subito com mais força n'uma explosão tremenda. Aquelles, portanto, que, vencidos e não convencidos, enervados pelo medo, sedentos de ouro, detidos pela execução de algum grande plano, ou presos pelos laços do amor patrio e das affeições de familia, tinham trahido as suas opiniões,{149} e renegado a crença de seus avós sómente para se conservarem na terra natal, não alcançaram em paga de tantos sacrificios senão uma tranquilidade equivoca e pouco duradoura. Detestados pelos christãos posto que na apparencia membros da mesma egreja, despresados como apostatas pelos instigadores da sua apostasia, envilecidos a seus proprios olhos pela vergonha de uma falsa conversão, tragando humilhações e aleives, sujeitando-se a toda a especie de gravames, receiando a cada hora perder a fortuna e a vida, e como que suffocados com a mascara da hypocrisia, é provavel que esses homens acolhessem na sua alma, como direito imprescriptivel, um odio profundo contra os seus tyrannos, e que não perdessem occasião alguma de o satisfazer, ou por via da usura, vicio aliás commum{150} da raça hebraica, ou até por meios violentos, quando podessem ser empregados sem imminente risco. Essas vinganças, porém, exacerbavam ainda a irritação dos animos, e tudo denotava que a cólera popular, agitada pelo fanatismo, ia em breve rebentar impetuosa e feroz.
Era na primavera de 1506. A peste assolava Lisboa, tornando ainda mais dura a triste condição dos seus habitantes, muitos dos quaes, no meio de sobresaltos, de desalentos e de agonias, já a custo resistiam ao flagello da fome. Faziam-se preces publicas, e no dia 19 de abril, domingo de Paschoela, ao celebrarem-se os officios divinos na egreja de S. Domingos houve quem visse ou suppozesse vêr uma luz extraordinaria, que illuminava a imagem do Redemptor na capella chamada de Jesus. Realisára-se o milagre{151} em dias anteriores; muitos dos circumstantes, porém, mostravam-se incredulos, e entre elles um christão novo, ao qual escaparam sobre o caso algumas palavras imprudentes. Tanto bastou para alborotar o povo, porque á devoção associára-se o terror; e o desditoso blasphemo foi arrojado para o adro, onde o assassinaram e queimaram, ao passo que dous frades dominicanos, erguendo nas mãos impias um crucifixo, clamavam contra a heresia. Accendeu-se mais com este estimulo a furia da plebe, e crescendo o numero dos amotinados com a marinhagem de muitas naus estrangeiras ancoradas no porto, cresceu em todos a ousadia. Os conversos, que andavam desprevenidos pelas ruas, eram mortos ou mal feridos, e arrastados indistinctamente para as fogueiras, que se haviam preparado no Rocio e na{152} Ribeira. A côrte e a nobreza estavam fóra da cidade, e os poucos officiaes publicos que não se tinham retirado e que tentaram apasiguar a revolta, apedrejados e perseguidos, só escaparam com a fuga ao impeto irresistivel das turbas.
Com as trevas aggravou-se a desordem. Na segunda feira as scenas da vespera repetiram-se com maior crueza. Já não apparecia nas ruas nenhum christão novo, mas aquelle tropel de canibaes não estava satisfeito de matança. Foram acommettidas as casas suspeitas, das quaes, depois de saquearem tudo, traziam para fóra os habitantes, e vivos ou mortos os lançavam nas fogueiras. Mulheres, velhos e creanças eram postos a tormento para confessarem onde havia que roubar; os templos, os altares, as imagens dos sanctos, os sacrarios não livravam da{153} morte os que á sombra d'elles se acolhiam; e muitos christãos velhos, sacrificados á cubiça ou á vingança, cahiam promiscuamente com os neophytos ás mãos dos assassinos.
A noite veiu cobrir com o seu veu aquelle longo drama de exterminio, que se renovou no dia seguinte, porém mais frouxamente, porque já faltavam as victimas. O numero dos mortos n'esses tres dias orçava por dous mil; um silencio sepulchral abrangia a vasta área da cidade; e apenas a intervallos o rugido já cançado dos algozes reboava por entre os gritos afflictivos das victimas. Emfim, pela tarde, o regedor da justiça, Ayres da Silva, e o governador da casa do civel, D. Alvaro de Castro, entraram em Lisboa acompanhados de guardas; os estrangeiros acolheram-se aos navios; e o socego restabeleceu-se.{154}
D. Manuel estava em Aviz quando lhe deram a execravel noticia. Indignado pelas atrocidades commettidas, mandou logo o prior do Crato e o barão de Alvito com largos poderes para inquirirem dos crimes e castigarem os culpados. Presos os mais notaveis e julgados summariamente, foram muitos condemnados á morte, e entre elles os dous frades, que haviam promovido e patrocinado aquella festa de sangue. As auctoridades, que por negligencia ou temor não procuraram conter os revoltosos, e os habitantes da cidade, que de algum modo intervieram no motim, dando-lhe favor e ajuda, tiveram por pena o confisco. Finalmente um decreto, expedido a 22 de maio, extinguiu a casa dos vinte e quatro, e condemnou Lisboa a perder grande parte dos antigos privilegios. Debalde a camara supplicou a el-rei{155} misericordia para a capital. D. Manuel respondeu que era preciso dar ao mundo aquelle exemplo de rigor, por um lado contra a fereza dos maus, por outro contra a pusillanimidade dos que não o eram.{156}
«A cidade de Goa, diz Barros, está situada em a terra a que os portuguezes chamam Canará, em uma ilha por nome Tiçuary, que quer dizer trinta aldêas, porque tantas havia n'ella quando os mouros a conquistaram, e tantas lhes pagavam direitos da novidade que colhiam.» Os geographos modernos consideram-n'a a mais importante possessão das que ainda temos na Asia, e todavia apenas conserva{158} um pallido reflexo da grandeza antiga. Ruinas sobre ruinas, marcadas com o cunho solemne da historia, e um resto de actividade commercial que os desvarios dos governos não têm podido destruir, eis quasi só o que existe da que foi capital das Indias, quando ensinámos aos demais povos da Europa o caminho do poderio e da gloria.
Era Goa, ao tempo em que os portuguezes a commetteram, excellente ponto maritimo, e a principal entrada dos reinos de Narsinga e Dekan. A segurança do porto, a brandura do clima, a fertilidade do territorio adjacente, e a altura das muralhas, assentadas á beira do rio, tornavam-n'a um dos mais ricos emporios do commercio asiatico, e talvez o logar mais adequado para se estabelecer a metropole das nossas conquistas no Oriente. Accrescia{159} ter sido, havia pouco, avassallada pelos mouros, e não estarem os indigenas ainda de todo submissos ao jugo dos vencedores.
Com estas circumstancias é natural que Affonso de Albuquerque, logo que tomou posse do governo da India, resolvesse no seu animo apoderar-se de Goa; outros cuidados, porém, e por ventura a consciencia das poucas forças de que dispunha, far-lhe-hiam espaçar a tentativa para occasião favoravel. Esta em breve se offereceu, e accommodada maravilhosamente aos seus designios. Partido de Cochim com vinte e tres velas e pouco mais de mil combatentes, e encaminhando-se a destruir a grossa armada que o sultão do Cairo apparelhava em Suez, encontrou-se proximo a Onor com Timoja, antigo corsario d'aquella costa e já então nosso alliado, que o dissuadiu{160} de expedição tão longinqua, quando tinha perto a ilha e cidade de Goa, que n'aquella conjunctura podia invadir com vantagem, por estar o Hidalcão muito desviado d'esses sitios, e detido a conter o fogo da revolta, que lavrava nos seus subditos, e ameaçava devorar-lhe o throno. Aproveitando um aviso tão conforme aos seus desejos, Albuquerque não quiz, comtudo, decidir por si só a opportunidade da empreza, ou porque receiasse a má vontade de alguns dos seus companheiros, ou por outros quaesquer motivos ignorados hoje; e convocando a conselho os principaes capitães, ahi assentou com elles o dirigirem-se a Goa, onde de feito surgiu a frota no dia 27 de fevereiro de 1510.
O resultado foi feliz como o previra Timoja. Tanto que os habitantes e governadores da cidade viram aquella{161} floresta de navios ancorar no seu porto, prepararam-se para a defensa não obstante o sobresalto do nome portuguez; mas a audacia com que os invasores arremettiam ás muralhas, ou pelejavam no campo peito a peito, depressa os desanimou, agigantando-se-lhes o perigo á força de o temerem. Era gente collecticia, a maior parte sem aquelle despreso da vida que nasce do exercicio da guerra, e por isso não admira que logo aos primeiros revezes desesperassem da victoria. Resolveram, pois, capitular com o partido das vidas e fazendas, e propozeram n'este sentido as condições da entrega. Incitado pelos generosos impulsos da sua alma, Affonso de Albuquerque accedeu á proposta, querendo antes recusar aos seus soldados o promettido despojo do que protrahir inutilmente os horrores da guerra; e no dia seguinte{162} entrou em Goa, no meio das acclamações festivas dos indigenas, que lhe entregaram as chaves da cidade, como homens que já não se julgavam inimigos, mas só vassallos do rei de Portugal.
Entretanto o conservar este dominio não era cousa tão facil como tinha sido adquiril-o. Os indios, naturalmente pacificos e já de certo modo affeitos ao despotismo estranho, contentaram-se quasi todos com a segurança e amparo que lhes garantiu o vencedor; mas os mouros, nossos implacaveis adversarios por odios de crença e de raça e por emulação de conquista, conspiraram desde logo contra o poder das quinas com a actividade incançavel, com a perseverança e talento de quem não attenta nos obstaculos senão para completamente os vencer. Por outro lado o Hidalcão, apenas soube a fatal{163} nova, celebrou pazes com muitos reis seus inimigos, os quaes determinaram logo auxilial-o, mandou tropas numerosas a fim de reconquistar Goa a todo o custo, e elle proprio se preparou para as seguir, resolvido a dar aos intrusos uma pesada demonstração de que pagava com usura as offensas recebidas.
Ao principio resistiram os portuguezes com alguma vantagem, repellindo constantemente os successivos assaltos, e fazendo grande estrago no exercito dos mouros; mas quando chegou o Hidalcão com sessenta mil soldados, e entre elles cinco mil cavalleiros, conheceram os mais valentes como a situação era impossivel, e instaram com Albuquerque para que, abandonada por em quanto a empreza, tentasse a fortuna por outro meio, temerario muito embora, mas não de tal sorte{164} imprudente, que o resultado só podesse ser funesto. De mau grado annuiu a isto o animo de ferro do heroe da India; faltando-lhe, porém, os soccorros que mandára vir de Cochim, vendo-se rodeado de traições, e conhecendo que os cercadores pretendiam queimar-lhe as naus, unico refugio com que contava no caso de extremo perigo, mandou embarcar a gente e recolheu-se á frota por entre os tiros dos inimigos, que, ao retirarem-se os portuguezes, os saltearam de improviso, furiosos pela inopinada resolução, que lhes frustrava, acaso para sempre, os planos de vingança.
Seguiu-se durante alguns mezes um combate incessante e terrivel, cujas diversas phases deixaremos de memorar por não valerem para o nosso principal intuito. Baste saber-se que{165} nos principios de agosto sahiu a frota da barra de Goa, e que aos 22 de novembro ahi surgiu outra vez, trazendo cerca de dous mil homens entre portuguezes e malabares.
Com esta gente determinou Affonso de Albuquerque rehaver Goa ou acabar na contenda. Reconhecendo, todavia, a insufficiencia dos seus recursos militares para tomar á escala vista uma cidade tão fortificada e guarnecida de defensores, meditou n'um ardil, que equilibrasse até certo ponto a desegualdade de forças. O engenho natural e a experiencia da guerra depressa lh'o suggeriram; e o logar tenente de D. Manuel, que via realisarem-se uns apoz outros quasi todos os seus planos, contou de antemão com a victoria, não esquecendo, todavia, nem as mais leves precauções para o bom exito do commettimento.{166} Era isto, era a audacia nos projectos junta á prudencia nas combinações que tornavam invencivel o insigne capitão. Quanto, pois, o systema offensivo dos assedios em taes casos recommendava, quanto os petrechos e provimentos de que dispunha podiam subministrar, tudo foi por elle empregado para que a tentativa, que parecia desatino, tivesse por termo a desaffronta e a gloria.
No entanto os soldados, convictos do proprio esforço, pediam com enthusiasmo o combate. Não tardou elle muito. Fixado para o assalto o dia 25, e reunidos na vespera os capitães da armada, decidiu Albuquerque que se investisse a cidade pelo lado da ribeira, em quanto alguns bateis com gente e artilheria simulavam o ataque por differentes partes, e distrahiam d'esse modo a attenção dos sitiados.{167} A empreza assustou os nossos, não por si, mas pelo general que declarou querer expôr-se ao balanço da aventura. Supplicaram-lhe, por isso, que deixasse a elles sós o risco, e aguardasse o resultado, para que, se cahissem, houvesse quem os vingasse, e não se perdesse de todo o que se possuia na India. Resistindo, porém, Albuquerque ás reiteradas instancias, e conhecendo-lhe todos o caracter inflexivel, prepararam-se para aquelle feito, que já então seria indecoroso deixar de levar a cabo.
A fortuna favoreceu mais uma vez a audacia dos conquistadores. Os mouros, ao sentirem o rumor dos bateis que vogavam ao longo da praia, correram á frontaria da cidade, suppondo que por alli queriam os cercadores tomar terra; e só reconheceram o engano, de que já não era possivel resguardarem-se,{168} quando, ao romper d'alva, ouviram o som dos instrumentos bellicos na ribeira e pela costa acima. Entretanto não desanimaram com isto, mas comparando o seu numero com o diminuto dos sitiadores, e a vantajosa posição com a de quem, apesar de tudo, só debaixo dos pés os poderia investir, offereceram resistencia desesperada, e tanto mais terrivel, quanto o rancor entre os dous exercitos se accumulára por largos dias sem poder resfolegar. Por outra parte os portuguezes, trepando pelas tranqueiras, não obstante choverem sobre elles milhares de tiros e arremeços, pelejando braço a braço com os cercados, luctando e rolando de pedra em pedra para de novo subirem, e cada vez com mais denodo, conseguiram a final arrombar uma das portas, por onde se arrojaram destemidos, como homens aos{169} quaes a febre dos combates exaltára até o delirio.
Despedaçado o dique, começou na apertada senda um fluxo e refluxo dos dous bandos contendores, combate indeciso e accerrimo que apenas durou instantes. Era denso o enxame dos que vedavam a entrada, mas aquelles mesmos, que ao principio tinham mostrado impetuoso esforço, tomaram-se de repentino susto ao experimentarem de perto a tempera das espadas inimigas, e desamparando tumultuariamente os postos, acolheram-se ao interior da cidade, onde os invasores, cegos de ira, se entranharam apoz elles. Então teve logar nas ruas e praças de Goa a maior força da refrega, porque os mouros eram dez vezes mais numerosos, e pelejavam enraivecidos por terem cedido o passo a tão poucos; mas isto não impediu que os soldados{170} de Albuquerque, soccorridos a cada instante pelos companheiros que chegavam, constrangessem, emfim, os defensores da cidade a deixal-a para sempre.
Se os mouros levavam, fugindo, perda e desar, a victoria não sahira incruenta aos portuguezes; poucos havia que não estivessem feridos, e Albuquerque, abraçando um d'elles, exclamou: «Filhos, que não sei que vos faça senão que romperei as vestiduras diante de el-rei, porque vos faça mercê, que vos honrastes a vós e a mim.» Assim sabia o varão extraordinario, que a providencia parecia ter creado para perpetuar nas nossas mãos o imperio da Asia, adquirir a affeição dos seus soldados, aos quaes com o exemplo infundia esforço, com as revelações luminosas do genio uma confiança sem limites, com a severidade{171} talvez excessiva o respeito e a obediencia.
Albuquerque, porém, não era sómente guerreiro. O homem que fundou e firmou o imperio portuguez do Oriente, subjugando Ormuz, Goa e Malaca; que planeou a ruina completa do poder mussulmano com o desviar o curso do Nilo e destruir a casa de Meca; que deixou, emfim, tal memoria entre os vencidos, que elles vinham depois diante do seu tumulo invocal-o, pedindo-lhe justiça, era uma d'essas intelligencias eminentes, que abraçam por inspirações subitas e fecundas todos os ramos do saber humano; era um desses nobres espiritos, que, perseguidos pela incredulidade, pela inveja, pelo terror, pelo odio, por todas as paixões mesquinhas dos que os não podem comprehender, conseguem, todavia, elevar-se radiantes acima de tudo quanto{172} os cérca. Profundo conhecedor das boas doctrinas politicas não quiz confiar á sorte das batalhas o emprehendimento de novas conquistas antes de assentar o dominio de Goa em bases seguras e duradouras, começando assim a realisar o programma pacificador, que devia pôr magestoso remate á nossa grandeza na Asia. Admittiu, pois, vassallagem aos indigenas; prometteu segurança e protecção aos mercadores estrangeiros; recebeu embaixadas e homenagens da maior parte dos soberanos indiaticos; mandou cunhar moeda em nome de D. Manuel; melhorou e refez as fortificações; promoveu com dadivas e promessas casamentos entre os portuguezes e as mulheres da ilha; dirigiu de tal modo as cousas que dentro de pouco tempo esta povoação importantissima parecia que desde muitos annos estava sujeita ao{173} imperio portuguez; e só depois de lançar á terra essas sementes de grandeza e de prosperidade é que continuou a cadeia de feitos de armas, que lhe mereceu dos adversarios o nome de leão dos mares, e que o eleva, no conceito dos historiadores, com Cesar e Bonaparte, á altura d'esses gigantes de acção, a que chamâmos heroes.{174}
Portugal, chegado ao fastigio do poder no reinado de D. Manuel, não podia escapar ás leis da humanidade e ás vicissitudes dos grandes imperios. A seiva da arvore social exhauria-se no bracejar immoderado, e nessa lucta temeraria contra nações poderosas e soberanos traiçoeiros, contra linguas, costumes, interesses, religiões e preconceitos diversissimos, o que admira, attenta a nossa pequenez e a extensão{176} illimitada das conquistas, é que a estrella das nossas victorias não declinasse mais depressa do zenith para o occaso. Não foi, todavia, sem gloria essa mesma decadencia, porque os poucos portuguezes, que dispersos pelo mundo defendiam as colonias, animosos na desgraça como na fortuna, só as cederam depois de porfiada lucta, e diante de adversarios contra os quaes não vale audacia nem esforço; acabando de se gastar mais por fomes de assedios que por armas de peleja, e buscando honroso tumulo nos rotos pannos de muros das desmanteladas fortalezas.
Mas não é da prolongada agonia do imperio portuguez na Asia e na Africa, que por ora temos de tratar; chamam-nos factos e successos realisados n'uma épocha em que ainda a nação se julgava cheia de vitalidade e vigor,{177} posto que os primeiros symptomas de decrepidez já fatalmente se tivessem apresentado na perda de Cabo Aguer, e sobretudo no desamparo de Safim, Azamor, Arzilla e Alcacer em tempo de D. João III.
Sabendo o scherif Muley-Abdalá, rei de Marrocos, de Fez, de Terudante, de Suz, e de muitos reinos e provincias d'Africa, que a fortaleza de Mazagão estava mal provida de artilheria e munições de guerra, e guardada apenas por poucos arcabuseiros, determinou conquistal-a. Era nesse tempo Mazagão um ponto verdadeiramente importante. Situada nas praias do Atlantico, o mar banhava-lhe os muros, deixando-lhe nos fossos sufficiente altura de agua, e tornando-lhe facil receber da metropole soldados, viveres e toda a especie de soccorros. Podia, pois, considerar-se excellente base{178} de operações, e o padrasto mais de receiar para a visinha cidade de Marrocos.
Com estas circumstancias as tentativas dos sarracenos para se apoderarem da fortaleza, tentativas frequentemente repetidas e sempre mallogradas, eram faceis de explicar. Desta feita, porém, parecia certa a victoria, e por isso o scherif encarregou a seu filho Muley-Hamet, moço brioso e valente, o mando de numerosas tropas, que um historiador italiano desse tempo avalia em duzentos mil homens, mas que, conforme calculam escriptores tambem coevos, a poucos mais poderiam subir de cento e cincoenta mil. Fosse como fosse, era espantoso o numero em comparação com o dos portuguezes, e havia sobretudo entre essa gente, em parte collecticia e desordenada, muitos cavalleiros e infantes{179} habituados á guerra e á disciplina, e habeis capitães encanecidos nos cargos da milicia e no tumulto dos combates.
Acampado o exercito a curta distancia de Mazagão, começaram os trabalhos do cerco, e com tal actividade e enthusiasmo, que em poucos dias se elevou defronte da fortaleza uma grossa trincheira, onde os mouros assentaram as baterias com grave damno dos cercados. Estes por seu lado não estavam ociosos, e Rui de Sousa de Carvalho, capitão mór na ausencia de seu irmão Alvaro de Carvalho, accudia com diligencia a remediar o que faltava na fortificação, mandando ao mesmo tempo jogar a artilheria contra os trabalhadores do campo, e determinando por vezes sortidas e escaramuças, em que o impeto dos portuguezes, repentino e devastador, conseguia{180} sempre assombrar a turba dos inimigos.
Soou depressa no reino a noticia do cerco, e desde logo muitos cavalleiros e soldados quizeram participar dos riscos da empreza. Posto que os habitos de luxo e as riquezas adquiridas na Asia tivessem de certo modo amortecido as virtudes politicas dos nossos maiores, não estava o caracter portuguez ainda gasto, como moeda velha, cuja marca o roçar de muitos annos houvesse já extincto; e o ardor de patriotismo, que então se revelou, recorda os actos mais heroicos da nossa edade média. Moços illustres, a quem os brios sobrepujavam os annos, embarcavam-se furtivamente; fidalgos velhos, exaltados por bizarria sublime, emprehendiam a jornada de que aliás estavam isentos pela edade e longos serviços; muitos{181} imploravam como mercê e recompensa affrontarem os combates e a morte; outros, reputando em pouco o sacrificio da vida, levavam ainda á sua custa navios cheios de soldadesca e munições. Havia como que uma embriaguez de enthusiasmo, o esforço convertêra-se em delirio, e o espirito religioso associado á cubiça de renome abrazava com tal intensidade os animos, que foi preciso que a rainha D. Catherina, regente na menoridade de seu neto D. Sebastião, prohibisse com penas severas novos embarques, e desse terminantes ordens para que não partissem mais navios.
Entretanto os mouros preparavam-se para o assalto, disparando a artilheria contra a fortalesa, e procurando ao mesmo tempo cegar o fosso com faxina; e supposto que os tiros, os arremeços e as materias escandecentes,{182} que sem tregoa choviam das ameias, ferissem e inutilisassem muitos dos que se empregavam n'aquelle trabalho, venceu, afinal, a constancia dos sarracenos, que conseguiram não só entulhar a cava, senão levantar proximo á muralha um grande terrapleno, que emparelhou com a maior altura do baluarte, a ponto que assaltantes e defensores pelejavam corpo a corpo, braço contra braço, á espada e lança varada, como em desafio ou batalha campal. Nem assim, porém, poderam os mouros entrar na fortaleza. Alvaro de Carvalho, que fôra dos primeiros que chegára do reino, combatia á frente dos seus soldados, onde mais acceso ia o fervor da batalha, sem todavia esquecer o officio de capitão; e o nobre exemplo e a emulação de esforço tornavam invenciveis os portuguezes.
Frustradas as tentativas de assalto,{183} começaram os cercadores a minar o principal baluarte; presentido o perigo pelos de dentro, procedeu-se logo á contramina; e desta maneira as duas estradas subterraneas desembocaram uma na outra, e os sitiadores topando ahi com os sitiados travaram renhida lucta, em que por algum tempo se ouviu sómente o tinir das espadas e alfanges, o bater das alavancas e alviões, e rapidos gemidos de agonia abafados pelo praguejar dos que pelejavam. Quem quer que, todavia, olhasse para os dous grupos, poderia facilmente prever a qual delles pertenceria a victoria. De um lado os mussulmanos, transbordando de colera por verem descoberto o ardil de que se tinham valido, mais cuidavam de ferir que de guardar-se; do outro os christãos, aproveitando a estreiteza das galerias, que de algum modo neutralisava{184} a desproporção de forças, combatiam com a serenidade e confiança de quem evita o perigo sem o temer. Era a lucta do furor e da intelligencia; indubitavel, pois, o desfecho. Não conseguindo quebrar aquella muralha de homens, ligados pela cadeia fortissima da disciplina e do renome, os sarracenos recuaram desesperados; e os portuguezes, ficando senhores da obra, utilisaram-n'a desde então em damno dos cercadores.
Seria longo descrever todas as scenas desta defensão heroica, lances e episodios pasmosos, que a muitos parecerão hoje fabulas sonhadas. Baste saber-se que durante quasi dous mezes os defensores da fortaleza, combatendo peito a peito nos adarves, sustentaram o apertado cerco, e detiveram no repetido acommettimento os innumeraveis assaltantes. Estes, quebrados os{185} animos pelas difficuldades imprevistas, fallavam já de levantar o sitio, mas Muley-Hamet, que na sua soberba tinha crido facil o triumpho, quiz proseguir na empreza, e no dia 1 de maio deram os mouros ultimo assalto.
Durou elle largas horas, mais ardido e sanguinolento, mais bravo, mais atroz, mais pavoroso do que nenhum outro tinha sido. Ao principio diante dos sitiados, firmes e immoveis como rochedos, cahiram e despedaçaram-se os esforços successivos dos esquadrões da mourisma; depois as duas hostes, revolvendo-se, enlaçando-se, confundindo-se como as ondas em sorvedouro profundo, formaram quasi um grupo unico, ennovelado, convulso, monstruoso; emfim, já o sol se inclinava para o occaso, e ainda a victoria estava indecisa. Assaltantes e defensores, julgando-se instrumentos de missão divina,{186} tinham um só pensamento, uma esperança, uma vontade, um intuito, o da gloria da sua crença se triumphassem, o da palma do martyrio se morressem.
A noite veiu pôr termo ao combate e juntamente ao cerco. Baldadas todas as tentativas para submetter a fortaleza, o desalento apoderou-se dos sarracenos, e Muley-Hamet, sem tentar mais fortuna nem feito de importancia, levantou o campo d'ahi a poucos dias.
Desde então até que o poderoso ministro de el-rei D. José a cedeu por tractado aos marroquinos, foi sempre Mazagão o ponto a que se dirigiram as correrias, os acommettimentos, os asfaltos da flor das tropas muslemicas; mas o nome dos defensores que luctaram como heroes, e em frente de cuja firmeza expirou constantemente a furia dos adversarios, jazem ignorados ou esquecidos,{187} porque a guerra que durante tres seculos sustentámos em Africa, theatro onde até mais tarde se patenteou nobre e desinteressado o esforço portuguez, não teve Barros nem Coutos que a escrevessem.{188}
As recordações da patria são como as memorias de familia; tem o quer que é saudoso e sancto, que occupa suavemente as largas horas da solidão, que attenua muitas dores do espirito, que povoa a alma de mais entes para amarmos, e que engrandece e vigora o sentimento de nacionalidade, suscitando, com as virtudes e façanhas dos nossos antepassados, o altivo e nobre desejo de imital-os. Ás vezes, porém,{190} esse fallar de avós comprime-nos de amargura o coração, quando nos commemora certas epochas, em que a patria, ludibriada e abatida, viu desfazerem-se uma apoz outra todas as suas grandezas; epochas tanto mais desastrosas, quanto a degeneração e ruina, que assignalam, contrasta com o poder e fortaleza de outros tempos. A historia portugueza, aliás tão formosa e invejada, não está isenta dessas paginas de luto, e uma dellas, e por certo a mais triste, é a que lembra os reinados immediatamente anteriores á dominação castelhana, espaço de poucos annos que bastou ás glorias de Portugal para descerem do apogeo ao occaso.
O reinado de D. Sebastião é notavel por um facto unico, a derrota de Alcacer. O projecto de submetter as terras da Berberia, berço das nossas{191} conquistas de alem-mar, não era tão louco como a desgraça o apresentou, e devia encontrar favor na vontade popular, porque assentava nas tradições e rancores de uma guerra de seculos, e na conveniencia incontestavel de se alargar o territorio portuguez pelas fronteiras costas africanas. A nação, comtudo, sentia-se cançada e pobre para a ousada tentativa, e ainda que assim não fosse, invalidavam-lhe as probabilidades de victoria, por um lado a cega vaidade do monarcha, por outro a tenebrosa politica de D. Philippe II, cuja desregrada cubiça contava por alliadas uma astucia e actividade inexcediveis.
Em tal estado de cousas, esmorecidas as grandes virtudes guerreiras da edade média, julgou-se necessario que o monarcha, antes de se aventurar longe da patria á sorte das batalhas,{192} aguardasse que a febre da discordia consumisse politica e moralmente as forças dos sarracenos; mas até nisso foram mal logrados todos os bons planos de fortuna, porque o imperio de Marrocos, apesar das luctas intestinas, e das perturbações e males causados pelas oppostas parcialidades, não decahira a tal ponto, que não podesse resistir com vantagem a uma invasão estrangeira. Muley-Moluk, homem de extraordinarios talentos militares e politicos, e de um denodo a que a escola do infortunio associára a prudencia, tinha derrubado do throno seu sobrinho Muley-Hamet, que, frustradas todas as tentativas para recuperar o poder, implorára por fim o soccorro dos portuguezes. Essa alliança, porém, convertêra uma contenda domestica n'uma lucta de religião e de liberdade, guerra sancta que dava aos soldados africanos{193} a força que resulta sempre do fanatismo religioso e do amor da independencia, natural em todos os povos; e Muley-Moluk fizera-se depressa estimado da maior parte dos mussulmanos, não tanto pela firmeza com que restabelecêra a ordem e administração do estado, como pela repugnancia que, conforme é facil de suppôr, excitára nas multidões a liga do rei desthronisado e dos seus parciaes com um povo inconciliavelmente inimigo por antagonismo de crenças e de raças.
Eram 4 de agosto de 1578 quando o moço rei portuguez, despresando o voto cauteloso dos principaes capitães, determinou romper a peleja contra o poderoso exercito dos mouros. Ao principio conseguiram os nossos manifesta superioridade. A cavallaria que acompanhava o rei, intrépida posto que pouco numerosa, e o terço de aventureiros{194} romperam e desbarataram, logo do primeiro impeto, a vanguarda dos adversarios, que, incapazes de sustentar o violento embate e de resistir frente a frente, se dispersaram, fugindo, pela extensão da planicie; Muley-Moluk, buscando com heroico esforço reanimar os seus, cahira moribundo nos braços dos alcaides; e os clamores de alegria com que os christãos se arremessavam á refrega, como se o dar e receber a morte fosse o prazer de um torneio, diffundiam o temor no centro dos infieis, que mal obstariam á furia da torrente, se o grosso das nossas tropas, aproveitando o ensejo, se empenhasse com egual denodo n'aquelle repto tremendo. Mas em vez d'isso uma voz de desalento, produzindo nos cavalleiros e peões um daquelles terrores panicos, de que não faltam exemplos nem até entre os soldados{195} que uma severa disciplina prepára para a victoria, mudou n'um instante o aspecto da batalha. Os arabes, conhecendo a desordem no arrayal contrario, e cobrando novos brios com o auxilio das forças de reserva, voltaram a disputar o terreno, que quasi haviam cedido sem combate, e em breve o sangue europeu regou abundantemente os aridos campos de Alcacer.
Então, quando as fileiras dos velhos soldados de Castella, da Italia e da Alemanha já debalde tentavam ordenar-se, e era grande a confusão e o susto nos terços dos portuguezes, precipitaram-se contra o nosso exercito as ondas dos cavalleiros mahometanos, e apoz elles a turba dos alarves, que do alto dos visinhos montes observavam o resultado da peleja, para baixarem, como aves carniceiras, sobre os restos dos vencidos. Desde esse momento{196} os signaes de derrota tornaram-se dolorosamente certos para os nossos, que, todavia, ainda combateram só com o fito na desesperada empreza de soccorrerem o soberano, facilitado-lhe os meios de retirar-se a salvo.
D. Sebastião, porém, nascera com animo altivo e coração generoso. Os mimos com que fôra tratado desde o berço; a educação acanhada que recebêra na adolescencia; as maximas de castidade que o privaram dos affectos puros e sanctos de familia, affectos que suavisam os caracteres mais duros; as suggestões dos validos, que, despertando-lhe pensamentos ambiciosos, lhe devoravam o socego, a reflexão e a mocidade; e finalmente, como é certo, as intrigas e mesquinhos enredos da côrte haviam excitado as más paixões, que fermentaram terrivelmente no seu coração de mancebo,{197} mas não tinham de todo prevertido os nobres sentimentos da sua alma. Vendo a batalha perdida, não quiz sobreviver aos seus, e, arrojando-se como leão onde quer que o combate era mais acceso, recusou sempre com altivez o entregar-se ou fugir. Afinal cahiu ou desappareceu no meio da multidão, e com a sua falta expirou o vigor nos peitos mais esforçados. O resto foi uma larga carnificina com que os mouros, senhores do campo, saudaram o triumpho, humilhando a intrepidez e constancia dos cavalleiros e homens de armas portuguezes.
Chegada a Lisboa a noticia do tragico desfecho da jornada de Africa, e duvidosos os animos sobre o destino do monarcha, foi entregue o governo do reino ao cardeal D. Henrique, velho insensato e timido, tão sequioso como incapaz do poder; e Portugal{198} despenhou-se então sem amparo na mais afflictiva phase da sua longa existencia. As virtudes militares e politicas de nossos maiores, e sobretudo as antigas leis do paiz, em completa harmonia com as suas necessidades e indole, haviam-nos até esse tempo conservado livres do jugo de Castella, cuja tenaz ambição nunca deixára de olhar para esta pequena faixa de terra como para uma provincia rebellada; mas o estabelecimento do regimen absoluto sobre as ruinas da monarchia liberal da edade média; o espirito de intolerancia, que, perseguindo e expulsando os judeus, privou todos os dominios portuguezes do trabalho, do conselho e dos capitaes de uma raça intelligente e activa; a sede do ouro, que fez desestimar a agricultura e industria do solo natal pelo engôdo das faceis riquezas{199} que se adquiriam na India e no Brasil; os desacertos economicos e administrativos do governo da metropole, e dos seus delegados na Asia, na Africa e na America; e por fim a ultima catastrophe nos campos de Alcacer-quibir tinham produzido a irremediavel e extrema decadencia, que nos obrigou a curvar o collo ao despotismo estranho.
Durante o curto reinado do cardeal D. Henrique, os animos estiveram sempre alvoroçados com os receios, cada vez maiores, ácerca da successão. O prior do Crato, o duque de Bragança e D. Philippe II eram os pretensores que contavam maior numero de probabilidades, mas nenhum dos dous portuguezes possuia as forças necessarias para tomar sobre os hombros a empreza de D. João I, em quanto que o rei de Hespanha, dotado de caracter{200} energico e de uma perfidia sem limites, tinha todo o poderio de vastissimos dominios para combater e debellar as resistencias que encontrasse. Essas não foram longas nem obstinadas.
O velho cardeal rei, pouco favoravel no principio a D. Philippe II, em breve mudou de resolução, compellido não menos por apprehensões pusillanimes, do que pela cubiça e pelo odio, que foram as paixões permanentes dos largos annos da sua vida. A principal aristocracia, antepondo os calculos interesseiros ao nome illustre de seus avós e á propria dignidade, não duvidou pactuar com os procuradores de Castella, que, á força de ouro e promessas, arrastaram a nacionalidade portugueza ao mercado das traições infames, dos enredos miseraveis, das torpes vinganças, das abjecções ignavas.{201} O povo, irreflectido e variavel como o mar, que ora freme colerico e se despedaça em vagalhões gigantes, ora se espreguiça brincando com os flocos de espuma que lhe saltam no dorso; o povo, dilacerado pela fome, pela peste e pelos desastres da guerra, não podia senão murmurar, porque os seus soldados, os seus capitães, os seus jurisconsultos, os seus magistrados, os seus bispos, os seus principes, tudo quanto no reino havia de nobre e rico por illustração e por linhagem, ou tinha já desertado para o partido estrangeiro, ou se conservava indeciso não obstante os riscos da patria. Finalmente a persuasão commum de que a paz, individual e domestica, só poderia conseguir-se com o sacrificio completo da independencia politica tirava ás almas mais robustas aquella tenacidade fria, aquella firmeza de{202} vontade, que não mede os obstaculos e para a qual não ha impossiveis.
Debalde nas côrtes, que se reuniram primeiro em Lisboa e depois em Almeirim, côrtes que já eram apenas pallido reflexo de representação nacional, alguns homens intrepidos e probos protestaram eloquentemente contra a imbecilidade e corrupção dos poderes publicos; debalde a voz auctorisada de Phebo Moniz, alto exemplo de virtudes publicas no meio da prostituição geral, instou com os procuradores dos povos e com o moribundo monarcha para que não se entregasse o reino ao dominio estrangeiro, e se respondesse com energia ás ameaças de D. Philippe II; debalde, emfim, a plebe, que é a ultima onde se desvanece o aferro á terra da patria, dava visiveis signaes de supportar de máo grado a ruina que lhe{203} preparavam; a força moral da nação tinha desapparecido, e a força material, que aliás é sempre illusoria quando falta a unidade do pensamento e o ardor do enthusiasmo, havia-se dissipado, a pouco e pouco, na extensão desmedida das conquistas, até acabar de todo nas planicies d'Africa.
Assim, apenas fallecido D. Henrique (31 de janeiro de 1580), os governadores do reino, nomeados anteriormente, dissolveram as côrtes, receiando que podessem ser o centro onde se alimentasse energica resistencia aos interesses de Castella; e a acceitação do filho de Carlos V para rei de Portugal foi definitivamente resolvida. Pouco depois um exercito de vinte mil homens, capitaneados pelo duque de Alva, o sinistro pacificador dos Paizes Baixos, entrava no Alemtejo para lavrar com a espada o epitaphio{204} das liberdades portuguezas; e o monarcha odioso, denominado o demonio do Meio-Dia n'uma epocha em que os progressos da civilisação ainda não tinham diffundido a brandura do tracto entre os homens, conseguiu tomar posse do seu novo reino, tendo só que vencer a fraca opposição de uma parte do povo, e desses raros cavalleiros que, no meio de gente gasta e prevertida, conservaram sempre os nobres sentimentos de integridade e patriotismo.{205}
Neste quadro e em parte do seguinte tentámos resumir em breves paginas o que está admiravelmente exposto nos tomos 1.º e 2.º da Historia de Portugal, do sr. A. Herculano. Sem este facho brilhantissimo ser-nos-hia decerto impossivel sahir da confusão e obscuridade, em que se involvem os primeiros tempos da monarchia.{206}
Em quatro grandes divisões, conforme a geographia arabe, se repartia a Peninsula: Al-Djuf, o norte; Al-Kiblah, o meio dia; Al-Sharkiah, o oriente; Al-Gharb, o occidente. Com este nome, por isso, se designava n'aquelle tempo a vasta extensão de territorio, que comprehende hoje as provincias do Alemtejo a Algarve, e que, juntamente com uma porção da Extremadura hespanhola e acaso da Andaluzia, formava os estados dos emires de Badajoz.
A palavra herdamento significou até o seculo XV o mesmo que herdade, quinta, casal ou qualquer predio rustico, arrendado ou não arrendado, e quer incluido dentro de muros ou marcos, quer composto de courellas separadas.
A denominação de maladia, muito frequente nos documentos dos seculos XI, XII e XIII, indicava o tributo a que eram obrigados os individuos, que, incapazes por qualquer motivo de se defenderem e a seus bens, alcançavam protecção de algum homem poderoso, do qual por esse facto como que se constituiam servos. Chamavam-se{207} tambem maladias as habitações e terras, em que os serviços, foros ou pensões se pagavam.
O termo páramos equivalia ao de honras e coutos, e designava qualquer porção de territorio, demarcado pela auctoridade do monarcha, e livre de imposições ou alcavalas.
Nessa épocha a cidade de Lyão, hoje uma das mais ricas e industriaes da Europa, pertencia nominalmente ao imperio romano-germanico, mas era na realidade tão independente do imperador da Alemanha como do rei de França, e só de algum modo estava sujeita ao proprio arcebispo.
Os nossos chronistas, geralmente pouco escrupulosos em questões de investigação e de critica, chamam-lhe Ali-Boacem. A inscripção commemorativa que se encontra na cathedral de Evora, confundindo o nome de familia com o do individuo, designa-o por Abenamarim. Conde, na historia do dominio dos arabes, chama-lhe Aly-Abul-Hassan-ben-Otman-ben-Jacub-ben-Abdelhac de-Beni-Merin.
Já que fallámos na inscripção que está na sé de Evora,{208} junto á capella da invocação da Cruz, transcrevel-a-hemos na integra, alterando unicamente a extravagante orthographia do original, porque não podemos comprehender que sirva conserval-a na publicação de antigos inéditos, senão para difficultar a leitura destes.
==Era de 1378. Rei Abenamarim, senhor de alem do mar, confiando em si e do seu grande haver e poder, passou áquem do mar com Naforra, filha do rei de Tunes, para perseguir e destruir os christãos. Tarifa, e o seu poder era tamanho, que se não poude tomar, e pois rei D. Affonso viu que não pode ser certo, houve receio de por si veiu a Portugal a demandar ajuda ao IV Affonso de Portugal, seu sogro, e a elle prouve muito de lh'a fazer com seu corpo e com seu poder; logo sem tardança começou o caminho para a fronteira, e mandou que os seus se fossem apoz elle. De Evora levou cem cavalleiros e mil peões, de que Esteves Carvoeiro foi por alferes. Lidaram com os mouros, e o rei de Portugal entendeu com elrei de Granada, e rei de Castella com Abenamarim, e foi mercê de Deus que nunca mouro tornou rosto, e morreram delles tantos que não poderam dar conta. O rei Abenamarim e o de Granada fugiram. No arrayal de elrei Abenamarim acharam grande haver em ouro e prata, e o houve el-rei de Castella. Mataram alli Naforra, e muitos mouros ricos, e outros mouros, e meninos infinitos. Captivaram um filho de Abenamarim, um seu sobrinho{209} e uma sua neta. Deus seja para sempre bento, por tanta mercê, quanta fez aos christãos.==
Nesse mesmo anno de 1499 mandou elrei lavrar os portuguezes de ouro, com a legenda==Emanuel Rex Portugaliae, Algarbiorum citra et ultra in Africa, et Dominus Guinae, e ao redor das armas==Conquista, Navegaçam, Commercio Aetiopiae, Arabiae, Persiae, Indiae.
Decorrido pouco tempo eram já insufficientes esses titulos para corresponderem com exactidão aos descobrimentos, ás conquistas, á influencia e poder dos portuguezes. Hoje, que vivêmos ao crespusculo da nossa passada gloria, conservâmos ainda a antiga formula, van lembrança do largo patrimonio que dividimos com as outras nações.
Os judeus, na allegação ao pontifice Paulo III, descrevendo as scenas de sangue e agonia, que neste quadro{210} tentámos esboçar, affirmavam que mais de quatro mil pessoas haviam nesses tres dias cahido ás mãos dos assassinos, em Lisboa e nas aldêas circumvisinhas; mas as memorias coévas e os historiadores calculam consoantemente em dous mil o numero dos que foram victimas na horrorosa hecatomba.{211}
End of the Project Gutenberg EBook of Quadros de historia portugueza, by Inácio Francisco Silveira da Mota *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK QUADROS DE HISTORIA PORTUGUEZA *** ***** This file should be named 30921-h.htm or 30921-h.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: https://www.gutenberg.org/3/0/9/2/30921/ Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. They may be modified and printed and given away--you may do practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. *** START: FULL LICENSE *** THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase "Project Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg-tm License (available with this file or online at https://gutenberg.org/license). Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. 1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be used on or associated in any way with an electronic work by people who agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works even without complying with the full terms of this agreement. See paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic works. See paragraph 1.E below. 1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation" or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is in the public domain in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope that you will support the Project Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with the work. You can easily comply with the terms of this agreement by keeping this work in the same format with its attached full Project Gutenberg-tm License when you share it without charge with others. 1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in a constant state of change. If you are outside the United States, check the laws of your country in addition to the terms of this agreement before downloading, copying, displaying, performing, distributing or creating derivative works based on this work or any other Project Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning the copyright status of any work in any country outside the United States. 1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: 1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, copied or distributed: This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org 1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived from the public domain (does not contain a notice indicating that it is posted with permission of the copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in the United States without paying any fees or charges. If you are redistributing or providing access to a work with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted with the permission of the copyright holder, your use and distribution must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the permission of the copyright holder found at the beginning of this work. 1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm License terms from this work, or any files containing a part of this work or any other work associated with Project Gutenberg-tm. 1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this electronic work, or any part of this electronic work, without prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with active links or immediate access to the full terms of the Project Gutenberg-tm License. 1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than "Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm License as specified in paragraph 1.E.1. 1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided that - You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he has agreed to donate royalties under this paragraph to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid within 60 days following each date on which you prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty payments should be clearly marked as such and sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in Section 4, "Information about donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation." - You provide a full refund of any money paid by a user who notifies you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm License. You must require such a user to return or destroy all copies of the works possessed in a physical medium and discontinue all use of and all access to other copies of Project Gutenberg-tm works. - You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the electronic work is discovered and reported to you within 90 days of receipt of the work. - You comply with all other terms of this agreement for free distribution of Project Gutenberg-tm works. 1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm electronic work or group of works on different terms than are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing from both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below. 1.F. 1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread public domain works in creating the Project Gutenberg-tm collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic works, and the medium on which they may be stored, may contain "Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by your equipment. 1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all liability to you for damages, costs and expenses, including legal fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE PROVIDED IN PARAGRAPH F3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH DAMAGE. 1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a written explanation to the person you received the work from. If you received the work on a physical medium, you must return the medium with your written explanation. The person or entity that provided you with the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a refund. If you received the work electronically, the person or entity providing it to you may choose to give you a second opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy is also defective, you may demand a refund in writing without further opportunities to fix the problem. 1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance with this agreement, and any volunteers associated with the production, promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, that arise directly or indirectly from any of the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause. Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of electronic works in formats readable by the widest variety of computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at https://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director gbnewby@pglaf.org Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit https://pglaf.org While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works. Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: https://www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.